13 abril 2023

Comentários sobre o espectro da morte

No dia 17 de Aristóteles de 169 (11.4.2023) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua sexta conferência (dedicada ao conjunto do dogma).

Antes da leitura comentada do Catecismo positivista, fizemos um complemento da homenagem aos aniversários de nascimento e de transformação de Clotilde de Vaux, ocorridos na semana anterior. Esse complemento de homenagem consistiu em recitarmos o belo poemeto de Henrique Batista da Silva Oliveira, Ave Clotilde, e também em recitarmos as sete máximas de Clotilde.

Após a leitura comentada do Catecismo positivista, dedicamos nosso sermão a alguns comentários sobre o "espectro da morte", ou seja, a algumas reflexões sobre em que consiste a morte, em termos biológicos, sociológicos e morais. As anotações que serviram de guia para nossa exposição oral estão reproduzidas abaixo.

A prédica foi transmitida nos canais Apostolado Positivista (l1nk.dev/cUSqg) e Positivismo (encr.pw/F618g). O sermão sobre o espectro da morte inicia-se em 45' 55".

ATENÇÃO: devido a um problema técnico, a transmissão no canal Positivismo foi interrompida em 1h 15' 02".

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Comentário sobre o espectro da morte

 -        Poucos assuntos são tão importantes quanto a morte

o   A importância desse tema, evidentemente, está em que todos morreremos algum dia

o   Assim, não deixa de ser um tanto paradoxal – mas não muito – que a importância da morte está em definir os limites e, por extensão, o sentido da vida

o   Como dizia Clotilde de Vaux, “Não há nada de irrevogável na vida senão a morte”

o   Se a vida fosse eterna, sem dúvida que a morte apresentaria outro valor

-        Embora uma boa seqüência para tratar desse tema fosse a sugerida pela escala enciclopédica (em particular em termos biológicos, sociológicos e morais), seguiremos aqui uma outra seqüência, para podermos abordar antes os problemas filosóficos e morais que o espectro da morte suscita atualmente no Ocidente; depois, em um viés mais claramente positivo, abordaremos o tema da perspectiva biológica e então moral

-        Apesar da importância central que a morte apresenta para todos nós, pelo menos a partir do século XX a reflexão a respeito dela tornou-se muito confusa: ou seja, não se sabe o que fazer com ou a respeito da morte

o   Essa confusão ocidental traduz-se em um intenso infantilismo a respeito da morte, que, por sua vez, é sinal de uma grande imaturidade intelectual e moral

-        Antes de mais nada, é importante termos clareza de alguns aspectos elementares:

§  Todos morreremos algum dia, mais cedo ou mais tarde

§  Podemos, e devemos, buscar viver o máximo possível

·         É claro que esse “viver o máximo possível” pode ser entendido pelo menos de três formas, ou seja, em três âmbitos diferentes: (1) viver mais tempo; (2) viver de maneira mais proveitosa; (3) viver mais “intensamente”

§  Conforme aprendemos com o Positivismo e como Augusto Comte nunca se cansou de sublinhar e reafirmar, uma realidade que em certo sentido é tão plenamente individual (a vida de nossos corpos) também é, ao mesmo tempo e até mesmo mais, plenamente social e histórica

§  O sentido da morte e da vida, então, é algo ao mesmo tempo profundamente sócio-histórico e individual

-        É evidente que a morte é um acontecimento desagradável para os envolvidos: trata-se da perda de alguém que nos é caro em termos afetivos, intelectuais e/ou práticos

o   A brevidade da vida impõe a todos a necessidade de refletir sobre o que fazer com o tempo disponível e sobre o que significa “estar vivo”; isso implica estabelecer um sentido para a vida e, daí, também um sentido para a morte

o   Talvez poucas situações mostrem tão claramente os valores e as concepções profundas das filosofias e das religiões quanto as relativas à morte; inversamente, poucas situações geram tantas reflexões e concepções que têm tantas conseqüências para as filosofias e as religiões como a morte

o   A brevidade da vida e a tragédia da morte podem ser entendidas de diversas maneiras, evidentemente:

§  Uma certa tradição, resultante no Ocidente da confluência da teologia judaica com um certo sobrenaturalismo metafísico grego, estabelece que a morte é passagem para uma outra e “verdadeira” vida

§  Mas a concepção do “além vida” não foi a primeira nem é a última que a Humanidade elaborou sobre a vida e a morte: o fetichismo e o Positivismo propõem coisas muito diferentes – mais satisfatórias, mais generosas, mais suaves

·         Essas diferentes perspectivas que variam em função dos tempos e dos lugares sugerem que é possível e, daí, que é necessário mudarmos as atuais concepções imaturas prevalecentes no Ocidentes (concepções que, além de tudo, correspondem à diluição de concepções teológicas)

-        Comecemos por uma constatação sobre a atualidade: no Ocidente temos uma atitude ambivalente ante a morte:

o   Por um lado, teme-se o evento da morte e há uma repulsa por tudo aquilo que se refere à morte, visto como macabro e/ou próprio a um suposto culto da morte;

§  Muitas vezes se assume uma perspectiva metafísica, em que a morte é encarada como uma abstração personificada

o   Por outro lado, como não poderia deixar de ser, é a morte que dá sentido à vida e, considerando o cristianismo, a morte é o momento de passagem para o “além”

-        Em termos históricos, o temor da morte tem crescido à medida que a ocorrência da morte afasta-se cada vez mais de nós: em outras palavras, à medida que a expectativa de vida aumenta, que a taxa de mortalidade infantil cai, que as guerras diminuem em quantidade e em mortes, que a qualidade de vida aumenta

o   Em outras palavras, à medida que a morte afasta-se do nosso cotidiano, passamos a encará-la com horror, como se morrer fosse antinatural – isto é, como se, além de um desastre, ela fosse também plenamente evitável

o   Essa repulsa da morte vincula-se não apenas a um hedonismo individualista, mas também a uma repulsa ao envelhecimento (e aos idosos) e, assim, a uma concepção mistificada da “eterna juventude”

-        A secularização do Ocidente tem afastado as pessoas das crenças cristãs de vida após a morte; mas, ao mesmo tempo, a secularização também tem estimulado (vinculado em parte a um certo ateísmo de fundo, em parte à ideologia estadunidense) o individualismo

o   Sem que se deixe formalmente de lado uma eventual crença na vida após a morte, a secularização individualista conduz a atitudes hedonistas e quase niilistas, em interpretações cada vez mais superficiais do carpe diem

o   Ainda assim, apesar do hedonismo individualista secularizado, a morte continua sendo o destino de todos nós e, portanto, a avaliação sobre o que fazer de nossas vidas e sobre qual o sentido da vida e da morte permanece como uma questão central para todos, mesmo que seja uma questão implícita

-        A ambigüidade atual do Ocidente em face da morte na verdade atualiza – e, portanto, mantém sob outros aspectos – uma ambigüidade estabelecida anteriormente pelo cristianismo

o   Embora o cristianismo considere que a morte é a passagem desta vida para uma suposta vida melhor e “mais verdadeira”, ao mesmo tempo ele considera a morte um momento absoluto de término

o   Essa concepção cristã de que a morte é um término e que, portanto, apresenta um certo caráter absoluto vincula-se ao raciocínio fundamental da teologia, segundo o qual a matéria é inerte e somente se torna ativa por obra e graça de uma força externa (no caso, a divindade, por meio do “sopro divino”, ou da “alma”)

§  Assim, para o cristão, quando uma pessoa morre, é o sopro divino, ou a alma, que sai do corpo: o corpo perde seu laço com a divindade e torna-se apenas um pedaço de carne cujo destino é o apodrecimento

o   Vale notar que, se fôssemos incapazes de perceber na atitude ocidental atual um espírito metafísico, esse caráter seria evidenciado pelo simples fato de que essa atitude atual é a versão corrompida de concepções teológicas

o   A teologia, ao pressupor uma “vida além da morte”, é vaga e arbitrária em suas concepções:

§  Ela é vaga porque, se houvesse uma tal vida, ninguém nunca voltou dela para esta vida e, portanto, ninguém pode dizer com clareza em que ela consistiria

§  Ela é arbitrária porque, não tendo nenhum parâmetro para defini-la, a vida após a morte é caracterizada segundo a imaginação da pessoa, do lugar e da época em questão

·         A tradição cultural atenua um pouco esses defeitos, mas o fato é que, no final das contas, o caráter puramente imaginativo das características mantém a vagueza e a arbitrariedade

§  Além disso, é digno de nota que mesmo os teológicos os mortos não com um apelo à sua situação na vida após a morte, mas efetivamente por meio da memória de suas atividades nesta vida: em outras palavras, mesmo apelando para uma suposta vida após a morte, os teológicos honram o caráter humano dos mortos e de suas vidas

-        O fetichismo e o Positivismo, em contraposição, estabelecem que a matéria é naturalmente ativa; assim, os corpos não necessitam de intervenções externas para serem ativos

o   Dessa forma, quando alguém morre, a atividade do corpo não cessa, mas ela modifica-se

o   Mas o que é a “morte”? A morte é a cessação dos fenômenos biológicos, ou seja, das constantes trocas (mutuamente modificadoras) entre o corpo e o ambiente

§  Mas, ainda assim, o corpo sem atividades biológicas continua em atividade em outros âmbitos

o   Dessa forma, a morte não é propriamente um fim: ela corresponde a uma transformação

o   O corpo que não abriga mais uma atividade biológica específica do próprio corpo mantém-se ativo em outros âmbitos; como o Positivismo e o fetichismo consideram que não há separação entre corpo e “alma”, o corpo sem vida não é apenas um pedaço de carne a apodrecer

·         No que se refere à “alma”, o Positivismo define-a como sendo o conjunto das funções cerebrais

§  Esse corpo é parte integrante fundamental da pessoa que morreu e cuja relação com o ambiente está modificada (em certo sentido, está diminuída; mas, em outro sentido, está aumentada)

-         As concepções acima explicam e justificam o culto aos mortos, tanto no Positivismo quanto, antes, no fetichismo

o   O culto aos mortos, portanto, não tem nada de macabro; não se trata de culto à morte, mas de lembrança sistemática e sistematizada de quem morreu

o   As concepções acima também justificam plenamente o nome do oitavo sacramento positivista: a “transformação

o   Vale lembrar que o culto aos mortos, no âmbito do cristianismo, é incoerente em relação ao seu dogma e dá-se devido à permanência de hábitos fetichistas e/ou à intuição do valor desse culto

-        De maneira mais específica, a transformação que ocorre com a morte, no Positivismo, consiste no seguinte:

o   Evidentemente, a mudança no estado geral de atividade do corpo, em que há uma diminuição nessa atividade (em termos biológicos)

o   Mas, por outro lado e de maneira mais importante, a vida objetiva cede lugar à vida subjetiva; a atividade concreta (especialmente cívica) cede lugar à atividade abstrata (diretamente afetivo-intelectual); a participação na solidariedade do presente cede lugar à continuidade na história

o   Dessa forma, o Positivismo considera não apenas que a morte corresponde a uma transformação, como também afirma que há, sim, uma vida após a morte: entretanto, a concepção positiva de “vida após a morte” estabelece que temos uma vida subjetiva após a morte

§  Em vez de aumentar a distância, a vida subjetiva após a morte aproxima de cada um de nós os entes queridos que sofreram a transformação

o   Vale a pena recordar e insistir: a concepção subjetiva de vida após a morte é clara e bem definida; em contraposição, a concepção objetiva, absoluta, teológico-metafísica de vida após a morte é imprecisa, extremamente vaga (não se sabe exatamente o que seria) e profundamente arbitrária (afinal, não tem nenhum parâmetro verdadeiro, exceto variações da presente vida)

-        Como se sabe, a vida subjetiva após a morte, realizada em particular no culto aos mortos, apresenta uma série de importantes conseqüências morais, intelectuais e práticas:

o   Define com clareza o sentido da vida de cada um de nós, sem cair nem no individualismo nem no hedonismo

o   Vincula cada um de nós ao conjunto dos seres humanos, ou seja, estabelece de maneira profunda o sentido de pertencimento

o   Torna a vida e a morte racionais e orientadas para um propósito moral e intelectualmente verdadeiro, bom e belo

o   Estabelece uma recompensa altruísta para os esforços contínuos de cada um de nós

§  Assim, estabelece parâmetros claros para a orientação e a avaliação da vida de cada um de nós

o   Diminui a dor da perda dos nossos entes queridos (e/ou importantes), quando de suas mortes

§  Assim, diminui o trauma de cada um de nós perante essas mortes e evita todo e qualquer desespero

o   Aproxima-nos do convívio com os mortos por meio da vida subjetiva, sem que isso se degrade em um culto macabro ou em um culto metafísico à “morte”

§  No caso das doações de órgãos, a vida do doador em certo sentido mantém-se por meio de quem recebe os órgãos: além de isso consistir em um forma objetiva e subjetiva de compartilhar a vida, também significa a única forma racional e possível de ocorrer o quimérico ideal teológico da ressurreição

§  Assim, diminui o trauma de cada um de nós perante essas mortes e evita todo e qualquer desespero

o   Estimula diretamente o altruísmo, desenvolve nossos pendores artísticos, aperfeiçoa nossa capacidade de idealização, desenvolve nossos pensamentos e, last but not the least, melhora nossos esforços práticos

§  Vale notar que todos esses esforços alteram – para melhor – a anátomo-fisiologia cerebral e, daí, de todo o nosso corpo

o   Deve ser claro para qualquer pessoa que esse conjunto de conseqüências estimula diretamente a harmonia coletiva e individual

§  Todavia, vale notar que essas concepções distanciam-se não apenas das concepções próprias à teologia, como também se distanciam das superficiais concepções vigentes atualmente no Ocidente, tão marcadas pelo individualismo, pelo hedonismo, pelo niilismo criptocristão – e pelo horror à morte

05 abril 2023

Comentários sobre o academicismo e o cientificismo

No dia 10 de Aristóteles de 169 (4 de abril de 2023) fizemos nossa prédica positiva. Nessa ocasião, demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em particular em sua "Sexta conferência", dedicada ao conjunto do dogma. Na seqüência fizemos algumas considerações sobre o cientificismo e o academicismo.

Entre cada uma das duas partes principais da prédica, lembramos as datas de nascimento e de transformação de Clotilde de Vaux, cofundadora da Religião da Humanidade, que nasceu em 3 de abril de 1831 e transformou-se em 5 de abril de 1846 - esta última data, aliás, integra o calendário oficial de celebrações públicas da Igreja Positivista do Brasil. 



Depois comentamos algumas observações da feminista estadunidense Christina Nehring em seu livro Em defesa do amor: a autora, embora partidária da metafísica feminista, apresenta algumas (mas somente algumas) opiniões que são extremamente próximas da Religião da Humanidade - isso para não dizermos que essas algumas opiniões são, de fato, plenamente positivistas: (1) o amor não obnubila a razão, mas, ao contrário, aumenta a agudeza de nossas percepções e evidencia as possibilidades e o melhor dos seres amados; (2) os homens importam para as mulheres, não como seres opressores, violentos etc., mas como parceiros, amigos, objetos do amor, sujeitos do amor etc. Esses comentários são tão mais notáveis quanto foram feitos por uma adepta da metafísica feminista, indicando, ao mesmo tempo, devido à necessidade de essas afirmações serem feitas e devido ao caráter "escandaloso" delas, o quanto o feminismo de modo geral está afastado da positividade.

A prédica está disponível nos canais Apostolado Positivista (aqui: acesse.one/Academicismo) e Positivismo (aqui: encr.pw/Cientificismo); o sermão sobre academicismo e cientificismo está disponível a partir de 55' 54".

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Comentários sobre o academicismo e o cientificismo
 

-        À primeira vista, pode parecer estranho ou irônico que o Positivismo aborde o academicismo e o cientificismo

o   Essa estranheza ou ironia deve-se ao fato de que, justamente de acordo com os parâmetros estabelecidos pelos próprios academicismo e cientificismo, o Positivismo seria extremamente ou seria por definição academicista e/ou cientificista

o   Assim, para limpar o terreno e deixar clara a posição do Positivismo a respeito: o academicismo e o cientificismo são vícios intelectuais e institucionais, de orientação metafísica e que correspondem a hábitos contrários ao que o Positivismo estabelece ou recomenda

o   Convém notar que as palavras “cientificismo” e “academicismo” são relativamente recentes, tendo sido elaboradas, com objetivos críticos, após a morte de Augusto Comte; ou seja, ele próprio não as empregou, embora os conceitos estejam meio ou menos subjacentes a inúmeras passagens do fundador do Positivismo

-        Tratando inicialmente do cientificismo: podemos defini-lo a parti do Positivismo como sendo a tendência da ciência a constituir-se de maneira absoluta e, portanto, metafísica

o   É importante lembrarmos alguns aspectos:

§  Ao longo de sua constituição, a ciência sempre reconheceu e buscou o relativo, ao buscar as leis naturais (e, assim, rejeitando na prática, quando não na teoria, a metafísica e o absoluto)

§  A tendência absolutista (e metafísica) da ciência não tem nada a ver com afirmações como a de que a ciência seria, sempre e de qualquer maneira, metafísica, porque teria “pressupostos filosóficos” ou porque muitos de seus conceitos teriam origem teológico-metafísica

·         Afirmações desse tipo servem apenas para conscientemente confundir, misturar e, a partir disso, legitimar a metafísica

o   A ciência adota metas absolutas quando passa a considerar-se um objetivo por si só e para si mesma, independentemente de quaisquer outras considerações morais, intelectuais e práticas

§  De maneira bastante direta, essa tendência pode ser vista quando os cientistas afirmam que o desenvolvimento infinito da ciência é, por si só, um objetivo aceitável, bom, correto

§  Em outras palavras, isso se dá quando a ciência rejeita limites intelectuais e mesmo morais à sua atividade

o   Uma outra possibilidade de a ciência constituir-se de maneira absoluta é quando ela francamente estabelece para si própria a investigação do absoluto: por exemplo, a origem do universo

o   Ainda outra possibilidade de a ciência tornar-se absoluta é quando ela estabelece, implícita ou explicitamente, que seus procedimentos são os únicos aceitáveis

§  Isso não se refere à necessidade de bases empíricas para qualquer afirmação; não se refere às relações entre fatos e conceitos; não se refere ao relativismo

§  Isso se refere, sim, à rejeição da concepção de que a ciência, em si mesma, por mais importante que ela seja, é apenas uma etapa prévia – de caráter essencialmente intelectualista, analítico, parcial e especializante – para uma elaboração filosófica superior e posterior – que abrange o conjunto da existência humana, de caráter sintético, globalizante e generalizante

§  Essa necessária elaboração de síntese filosófica posterior à atividade científica coordena os vários resultados científicos entre si e que os situa no conjunto da existência humana, em particular subordinando a inteligência às necessidades humanas e, daí, subordinando duplamente a ciência a tais necessidades (subordina como integrante da inteligência e subordina ainda mais como atividade analítica, parcial e especializante)

§  Em outras palavras, quando os cientistas e os filósofos da ciência rejeitam a síntese positiva subjetiva e relativa, que se constitui na Religião da Humanidade, eles são plenamente cientificistas

·         O cientificismo, então, não está no que corresponde ao que é próprio e legítimo na ciência (como nas críticas que os teológicos e os metafísicos fazem à ciência e para quem qualquer afirmação da ciência é “cientificista”); o cientificismo está nos desvios daquilo que é próprio e legítimo à ciência

o   Como um importante caso particular da situação anterior, uma outra forma de cientificismo é quando se considera que, apesar dos inúmeros e graves defeitos lógicos e morais da teologia e da metafísica ao longo da história, elas não teriam desempenhado nenhuma função efetiva no desenvolvimento humano, como etapas necessárias desse desenvolvimento, mesmo no sentido da constituição da ciência

o   Um outro caso particular da situação anterior é quando os cientistas e os filósofos da ciência afirmam o reducionismo

§  O reducionismo consiste na negação da autonomia de ciências superiores e o “imperialismo” de ciências inferiores sobre elas

§  Exemplos: o algebrismo (tudo reduz-se aos números ou ao movimento dos corpos), o “astronomismo” (no caso da astrologia), o “fisicalismo”, o “quimicismo”, o biologicismo, o sociologismo, o economicismo; inversamente, há também o psicologismo (que, todavia, basicamente não é uma forma de reducionismo)

o   Quais os motivos que explicam a acusação – infundada e injusta, como vemos – de que o Positivismo seria cientificista? Sugerimos três ou quatro possibilidades, não necessariamente excludentes entre si:

§  A busca de um bode expiatório e/ou de um álibi para os hábitos cientificistas de outras correntes e grupos, em que se atribui aos outros os próprios defeitos

§  A ignorância generalizada e/ou os preconceitos contra o Positivismo

§  A má-fé e a desinformação, ou seja, a imputação intencional de características sabidamente erradas ao Positivismo

§  A rejeição da aplicação à ciência dos parâmetros morais e intelectuais próprios à síntese subjetiva e relativa

-        Tratando do academicismo: podemos defini-lo a partir do Positivismo como sendo a tendência a considerar que somente na academia, isto é, nas universidades, é possível ser inteligente, produzir ciência e, de modo geral, produzir conhecimento

o   Inversamente, o academicismo estabelece que qualquer produção intelectual que se desenvolva fora das universidades não tem valor intelectual

§  O academicismo chega a tal ponto que muitas vezes nem mesmo instituições de pesquisa que não sejam “universidades” são respeitadas

o   Em virtude disso, o academicismo considera que, se alguém não possui um diploma, não tem valor intelectual

§  Em outras palavras, inversamente, o academicismo estabelece que o valor intelectual de alguém está vinculado à posse de algum(ns) pedaço(s) de papel

o   Mas é necessário termos clareza a respeito de um aspecto central: o vício moral-intelectual-institucional do academicismo é muito diferente da valorização da instrução e da busca de conhecimentos teóricos e práticos

§  Em outras palavras, ao criticarmos o academicismo, não criticamos os esforços coletivos e individuais em prol do esclarecimento e do conhecimento

o   Uma outra manifestação do academicismo é julgar que, se algum corpo doutrinário não foi elaborado nas universidades, ou não foi ensinado nas universidades, ele não tem existência efetiva e/ou ele não tem valor

§  Por exemplo: como a Sociologia foi fundada por Augusto Comte fora das universidades e ela só passou a ser ensinada a partir dos anos 1890, com uma outra geração de pensadores, não positivistas e estreitamente vinculados a universidades, a Sociologia só teria surgido a partir dos anos 1890

§  Ou, inversamente: como Augusto Comte elaborou suas reflexões fora das universidades, a sua Sociologia não seria científica, não seria uma “verdadeira Sociologia”

o   Essas concepções são aplicadas atualmente, mas é claro que sempre foram autoaplicadas pelo e ao público universitário

§  Além da aplicação à realidade atual, essas concepções também são ampliadas e exageradas para considerar que as universidades em geral, desde sempre, foram sempre bastiões do conhecimento verdadeiro

-        A partir das definições acima, parece claro que, embora cada um dos conceitos sejam independentes um do outro, eles costumam andar juntos

o   O academicismo, dependendo da sua versão (ou dos seus exageros), pode ser cientificista ou não: ele pode fingir que as universidades durante séculos não foram bastiões conservadores ou retrógrados da metafísica e da teologia

-        Para concluir: vale reforçar que o Positivismo é anticientificista e antiacademicista

o   A concepção de ciência do Positivismo valoriza a ciência, mas reconhece e estabelece limites a ela e, ao coordenar a existência humana, estabelece que a ciência ocupa uma posição necessariamente limitada e subordinada

§  Para usar conceitos atuais: o Positivismo tem uma concepção reflexiva, profunda e densa da ciência e do conhecimento humano; dessa forma, sua concepção da ciência não é simplista e não a considera todo-poderosa

o   Como vemos, o Positivismo é antiacademicista por si só, mas o anticientificismo do Positivismo reforça o antiacademicismo

§  O antiacademicismo também se vincula a um respeito pela sabedoria popular


31 março 2023

Live AOP: Carlos Eduardo Oliva: Laicidade e constitucionalidade inconstitucional do ensino religioso

No dia 30 de março de 2023 realizamos uma Live AOP com o professor, sociólogo e jurista Carlos Eduardo Oliva (UERJ-Colégio Pedro II), sobre a laicidade do Estado e a constitucionalidade inconstitucional do ensino religioso no Brasil.

Foi uma palestra muito interessante e muito agradável, que durou cerca de duas horas. O evento foi transmitido no canal Positivismo; foi também gravado e o vídeo está disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=eLHq89UdwJw.



 

29 março 2023

Comentários sobre a metafísica

No dia 3 de Arquimedes de 169 (28.3.2023) fizemos nossa prédica positiva. Na ocasião demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista (no caso, à sua sexta conferência, dedicada ao conjunto do dogma); em seguida, fizemos nosso sermão sobre o conceito de metafísica.

Antes da leitura comentada, lembramos que no dia 29 de março celebramos o aniversário de nascimento de David Carneiro, um dos maiores positivistas do Paraná e do Brasil (nascido em 1904). Além disso, lamentamos profundamente a violência ocorrida em 27 de março de 2023 em uma escola de São Paulo, em que a Professora Elizabeth Tenreiro foi brutalmente assassinada por um pré-adolescente profundamente perturbado.

As anotações sobre a metafísica que nos serviram de base para a exposição oral estão reproduzidas abaixo. A prédica está disponível nos portais Apostolado Positivista (aqui: l1nk.dev/eVa7i) e Positivismo (aqui: l1nq.com/M1Xml); a exposição sobre a metafísica pode ser vista a partir de 1h 12".



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Comentários sobre a metafísica

 

-        A metafísica é um conceito bastante curioso em relação ao Positivismo: ele é secundário em termos intelectuais e políticos, mas, devido a uma série de fatores, acabou ganhando destaque

o   Uma indicação indireta mas eficiente dessa estranha relevância do conceito de metafísica: no meu blogue, o artigo “O Positivismo e o conceito de metafísica” corresponde a 7% das visitas (27.800/393.300), ocupando o primeiro lugar em artigos consultados; o segundo artigo mais lido (“Homem-Aranha positivista”) corresponde a cerca de 3,5% das visitas, ou seja, metade do primeiro lugar[1]

-        A metafísica tem certa relevância atual devido aos seguintes motivos:

o   Da parte do Positivismo: caráter metafísico da política contemporânea (individualismo, igualitarismo, academicismo, irracionalismo, militarismo, permanência do absoluto)

o   Da parte de fatores externos I: recuperação academicista de uma área chamada “metafísica” (ou “ontologia”)

o   Da parte de fatores externos II: confusão intencional entre as expressões “elaborações filosóficas abstratas” e “metafísica”

§  Essa confusão resulta em que a “metafísica” é entendida como sinônima de “filosofia”, de “especulações abstratas”, de “concepções de mundo”, de “moral”, de “epistemologia”

§  Exemplo clássico dessa confusão intencional: o título e o conteúdo de um livro famoso, As bases metafísicas da ciência moderna, de Edwin Burtt (de 1924, com edição brasileira de 1983)

o   Da parte de fatores externos III: crítica do Círculo de Viena à metafísica

§  Aparecem (ou reaparecem) aí o “problema da delimitação” e o “problema do empirismo”

-        Devido ao item anterior, antes de avançar para a exposição sobre o que o Positivismo entende por “metafísica”, é necessário deixar muito claro que, para o Positivismo, valem as seguintes concepções:

o   A filosofia é uma reflexão geral sobre a realidade humana, com caráter sintético

o   A Moral é tanto uma ciência quanto uma prática quanto uma “ética

o   A partir da historicidade humana, todas as concepções positivas têm base empírica; ainda que com freqüência sejam abstratas e passíveis de deduções, nossas concepções não são apriorísticas nem arbitrárias nem “voluntaristas”

-        Para o Positivismo, a metafísica é um conceito secundário, subordinado à teologia e mesmo à positividade:

o   Como sugeriu o equívoco sociólogo inglês Anthony Giddens, o conceito positivista de “metafísica” é metodológico e não substantivo: ele consiste em uma forma de entender (ou interpretar) a realidade

o   A metafísica consiste de modo geral na degradação da teologia, ocupando sempre um papel de transição entre alguma teologia e outro estado intelectual, seja uma outra teologia, seja a positividade

o   A metafísica, portanto, é tanto um elo (de maneira ampla: entre teologia e positividade) quanto teologia degradada

o   Sendo um elo, a metafísica compartilha características dos extremos cuja ligação realiza

§  Na passagem da teologia para a positividade, dependendo do caso em questão, a metafísica compartilha, por um lado, ou mais as abstrações fictícias e irracionais da teologia ou, por outro lado, mais o esforço racionalizante e empírico da positividade

§  Em certo sentido, portanto, é possível entender a metafísica como a secularização da teologia (mas secularização bastante equívoca)

o   Sendo teologia degradada:

§  A metafísica mantém o caráter absoluto da teologia, buscando entender o mundo por meio dos “porquês”, mas atribuindo as explicações, ou melhor, as vontades às puras abstrações, que passam a atuar como se tivessem vontade humana

§  Além disso, a metafísica assume um forte caráter crítico, destrutivo, dissolvente: seu objetivo é destruir, é degradar

§  A combinação das duas características acima – o absoluto e a criticidade sistemática – resultam que é possível verificarmos até mesmo a metafísica científica (ou, inversamente, a ciência metafísica), na forma do academicismo, do cientificismo e dos vícios opostos do materialismo e do espiritualismo

-        A metafísica adota as abstrações personificadas para explicar o mundo: no âmbito da Sociologia, exemplos fáceis são o “mercado” (ou “a mão invisível”), o “capitalismo”, o “patriarcado”

o   Como a metafísica emprega as abstrações, o que fica evidente é que ela surge a partir do desenvolvimento sistemático da abstração; em outras palavras, como o fetichismo é concreto, a metafísica é “pós-fetichista” e, portanto, surge propriamente a partir da teologia

o   A metafísica também pode ser entendida como a desregulação, ou a atividade desregulada, das abstrações, que perdem cada vez mais as relações com a realidade empírica

§  Juntamente com a atividade desregulada das abstrações, a metafísica também apresenta um forte caráter verborrágico

o   As características da natureza humana são mais desenvolvidas durante a teologia (como na tríplice transição ocidental, entre Grécia, Roma e Idade Média); entretanto, cabe à positividade a necessária e imperiosa tarefa simultânea de (1) regular e regularizar as relações entre essas características, (2) restabelecer a dignidade das concepções concretas e (3) regular e regularizar o emprego das abstrações

-        Em termos de história ocidental, o duplo movimento moderno, posterior à Idade Média, combinou a degradação metafísica da teologia e a construção positiva; esse duplo movimento resultou na grande crise de 1789 (a Revolução Francesa)

o   Desde então, o Ocidente já não vive mais sob a égide da teologia – apesar em particular da retrogradação desenvolvida e estimulada pelos Estados Unidos – mas os esforços e o impulso da positividade ainda não foram capazes de superar a dinâmica anárquica entre retrogradação e revoluções, bem como também não conseguiram superar o forte impulso metafísico estimulado pelo Ocidente, em particular após a I Guerra Mundial

-        A política contemporânea, portanto, é amplamente metafísica:

o   Não se trata apenas, por exemplo, da nefasta e atual política identitária, cujas características destruidoras, particularistas e irracionalistas são bastante conhecidas

o   A política contemporânea é metafísica devido aos seus valores profundos, às suas concepções e às suas práticas: seja com o identitarismo, seja com o individualismo, seja com a exaltação do egoísmo e da concepção egoístico-negativa da natureza humana, seja com seu radical impulso destruidor, seja com a concepção de que a vida em sociedade é eterno e permanente conflito (“política agonística”)

§  É evidente que a política contemporânea ser metafísica em geral não impede que muitos políticos sejam mais ou menos positivos

§  Mas, por outro lado, convém lembrar que a permanência e o aprofundamento da metafísica estimulam movimentos retrógrados

-        Para concluir estes comentários, duas citações:

o   Há uma piada corrente na internet, baseada em uma frase de Voltaire, que define da seguinte maneira virtualmente positivista a filosofia, a teologia, a metafísica e a ciência:

Filosofia é estar em um quarto escuro procurando um gato preto.

Metafísica é estar em um quarto escuro procurando um gato preto que não está ali.

Teologia é estar em um quarto escuro procurando um gato preto que não está ali, mas gritando “achei!”

Ciência é estar em um quarto escuro procurando um gato preto usando uma lanterna.

-        A música Hier encore (“Ainda ontem”), do cantor francês Charles Aznavour, apresenta os lamentos de um velho que se arrepende profundamente do tempo perdido em sua vida, especialmente em sua juventude: os vícios de que ele arrepende-se, na segunda e na terceira estrofe, parecem-me todos eles decorrentes de uma postura metafísica em face da vida:

 

Ainda Ontem[2]

Charles Aznavour

 

Ainda ontem eu tinha vinte anos

Acariciava o tempo e brincava com a vida

Como se brinca com o amor.

E vivia à noite

Sem contar meus dias, que fugiam no tempo,

Fiz tantos projetos que ficaram no ar,

Alimentei tantas esperanças que bateram as asas,

Que continuo perdido, sem saber aonde ir,

Com os olhos procurando o céu, mas com o coração posto na terra.

 

Ainda ontem eu tinha vinte anos

Desperdiçava o tempo, acreditando detê-lo

E, para retê-lo, e até ultrapassá-lo,

Só fiz correr e perdi o fôlego.

Ignorando o passado, conjugando no futuro,

Começava qualquer conversa com “Eu”.

E dava minha opinião, que pensava ser a melhor,

Para criticar o mundo com desenvoltura.

 

Ainda ontem eu tinha vinte anos

Mas perdi meu tempo a cometer loucuras

Que não deixam, no fundo, nada de realmente concreto

Além de algumas rugas na testa e medo do tédio.

Pois meus amores morreram antes de existir

Meus amigos partiram e não mais voltarão.

Por culpa minha, criei o vazio à minha volta

E desperdicei a vida e meus anos de juventude.

Do melhor e do pior, descartando o melhor,

Imobilizei meus sorrisos e congelei meu pranto.

Onde estão agora, agora, meus vinte anos?



[1] A medição, mesmo que aproximada, foi feita em 28.3.2023.