31 outubro 2020

Mensagem enviada a Federico Finchelstein sobre Augusto Comte

Federico Finchelstein é um historiador argentino, radicado nos EUA, que teve um livro recém-publicado no Brasil, Uma breve história das mentiras fascistas (Belo Horizonte, ed. Vestígio, 2020).

O livro é interessante e corresponde a uma necessidade urgente - conhecer e entender como o fascismo mente, quais são as mentiras que ele difunde, quais são os efeitos sociais e políticos disso.

Exatamente devido a essa importância foi que percebi, com tristeza e alarme uma observação casual, mas profundamente errada e mesmo venenosa, em que o autor em poucas palavras repete mitos e desinformações sobre Augusto Comte. Assim, enviei-lhe a mensagem abaixo; a importância do combate a esses mitos leva-me a publicar a mensagem enviada.

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Caro Prof. Federico:

Meu nome é Gustavo Biscaia de Lacerda; sou Doutor em Sociologia Política, Sociólogo da Universidade Federal do Paraná e especialista em história das idéias. Como você é argentino, creio que posso escrever em português sem o receio de não ser entendido.

Como cidadão brasileiro, a política recente de meu país tem sido fonte de grande apreensão desde 2018, sendo muito maior e pior neste ano de 2020, com a pandemia de covid-19, as queimadas criminosas na Amazônia e no Pantanal e vários outros crimes e loucuras cometidos pelo fascista Bolsonaro. Por esses motivos, comprei com grande interesse a edição brasileira de seu livro A Brief History of Fascist Lies, recém-lançado no país.

O seu livro é muito interessante e cumpre um importante papel político neste momento. Uma passagem dele, todavia, chamou-me a atenção, pois está totalmente errada, o que diminui um pouco o brilho de seu livro; a passagem em questão afirma que Augusto Comte (1) seria um autor “antidemocrático” e “anti-individualista” e (2) que desejaria uma “verdade absoluta na política”; além disso, ao relacioná-lo a Joseph de Maistre, você (3) sugere que Comte seria um autor reacionário e, portanto, claramente dá a entender que ele seria um ancestral dos fascistas. (Isso está no cap. 2, p. 43, da edição brasileira.)

No que se refere a Comte, é com tristeza que noto que suas afirmações são equivocadas do início ao fim, não tanto nas expressões empregadas, mas no sentido que você empresta a elas; o problema, portanto, é semântico.

Sobre o “anti-individualismo”: esse mito, que cumpre funções de desinformação, tem origem em uma tradição intelectual radicalmente individualista e anticoletivista, que entende qualquer consideração “social”, radical e necessariamente, como sendo anti-indivíduo. Essa tradição tem origem pelo menos na Inglaterra do século XIX, com ninguém menos que Stuart Mill, e seguiu no século XX com ultraliberais como Hayek e (em uma tradição particularmente estadunidense) Ayn Rand.

Comte era contra o individualismo, mas não contra os indivíduos e as individualidades; em outras palavras, ele era contrário ao egoísmo erigido em norma político-social e em parâmetro de análise sociológica. Ao contrário de tradições sociológicas “holísticas”, em Comte a afirmação da primazia lógica e histórica da sociedade sobre o indivíduo não implica a negação da realidade política e moral do indivíduo; muito ao contrário, essa primazia permite situar social e historicamente cada indivíduo e, ao mesmo tempo, estabelece parâmetros morais para as atividades desses mesmos indivíduos. (Como eu disse antes, aqui se trata de um problema semântico.)

A “antidemocracia” de Comte refere-se ao caráter metafísico da “democracia” e da “soberania popular”, que sempre foram afirmadas como maneiras de negar a soberania divina dos reis, transferindo o capricho arbitrário dos reis para o capricho arbitrário dos “povos” (que, por sua vez, são representados pelos “líderes”). Na crítica filosófico-política que Comte faz à democracia não há nada que se refira às liberdades individuais, às liberdades de pensamento e de expressão, às garantias constitucionais de proteção aos indivíduos etc. Evidentemente, para Comte a democracia não é o regime das liberdades; em vez de falar em “democracia”, ele fala em “República”. (Como eu observei antes, trata-se aqui, mais uma vez, de um problema semântico.)

No que se refere ao desejo de uma “verdade absoluta na política”, eu fico sem saber de onde ela pode ser surgido. Comte era um autor que desde o início de sua carreira afirmava, com todas as letras, que “o único absoluto é que só existe o relativo”; a negação do absolutismo filosófico e a afirmação do relativismo foi uma das maiores constantes da carreira de Comte, ampliando-se cada vez mais à medida que o tempo passava. A referida rejeição da “democracia”, por exemplo, baseava-se exatamente nisso: tanto a “soberania divina dos reis” quanto a “soberania dos povos” eram absolutas - e, por isso mesmo, arbitrárias, caprichosas e sem o menor controle racional e/ou social -, devendo ser substituídas pelo relativismo do regime republicano, com liberdades públicas dirigidas ao bem comum. Aliás, enquanto no caso do “anti-invididualismo” e do “antidemocratismo” de Comte o problema é de manipulação semântica, no caso de uma “política absoluta” o problema é de outra ordem: trata-se da projeção aos inimigos dos defeitos próprios, isto é, os inimigos de Comte projetam nele os seus próprios desejos de uma “política absoluta”... é triste perceber que esse procedimento seja inadvertidamente adotado em um livro que combate as manipulações fascistas.

Por fim, a aproximação de Comte a De Maistre é um procedimento velho, que escamoteia totalmente a igual proximidade de Comte com Diderot, Condorcet, com os republicanos franceses de 1848, com sua oposição a Napoleão III etc.

Se tiver tempo e interesse, há vários livros que tratam dessas questões em profundidade. Há um antigo, de Jean Lacroix, La Sociologie d’Auguste Comte, assim como um mais recente, de Laurent Fedi, Comte.

Eu mesmo tenho inúmeros livros sobre essas questões, como pode ver aqui; também é possível ler a versão original da minha tese de doutorado (PhD thesis) aqui.

Saúde e Fraternidade,

Dr. Gustavo Biscaia de Lacerda.

28 setembro 2020

Roteiro da exposição sobre o décimo mês dos calendários positivistas (Shakespeare e Mulher (providência moral))

Roteiro da exposição sobre o décimo mês dos calendários positivistas


As anotações abaixo consistem no roteiro da celebração gravada do nono mês dos calendários positivistas, que abordam Shakespeare (o drama moderno, no calendário concreto) e a mulher, ou providência moral (no calendário abstrato).

A gravação encontra-se disponível aqui.

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Parte I – Mês concreto: Shakespeare




 -        10º mês do calendário positivista concreto

o   Considerando o ano júlio-gregoriano de 2020 (ano bissexto), o mês de Shakespeare começa em 9 de setembro e termina em 6 de outubro

o   O oitavo mês concreto representa o drama moderno

§  É o terceiro mês da modernidade

·         Após os meses da Antigüidade e da Idade Média, a modernidade apresenta-se com seus seis meses (Dante, Gutenberg, Shakespeare, Descartes, Frederico, Bichat)

§  Augusto Comte dedica dois meses à arte moderna, Dante (epopéia moderna) e Shakespeare (drama moderno)

·         De acordo com Frederic Harrison, esses dois meses devem ser entendidos em conjunto, representando a poesia (incluídas aí a literatura em prosa e o teatro), a música, a pintura, a arquitetura e a escultura

o   Eles constituem um total de 49 nomes, que vão do século XII ao XIX

·         Essa grande quantidade de tipos artísticos deve-se à ampliação das possibilidades e dos temas passíveis de serem tratados pela arte, na modernidade

·         A arte na Antigüidade referia-se a valores e a uma estrutura social mais aceitas, de modo que ela atingiu formas mais perfeitas

·         Em contraposição, a modernidade apresenta um movimento mais contraditório, mais conflitos e valores menos aceitos, o que torna a sua arte menos capaz de idealizar a realidade; mas, ao mesmo tempo, torna-a mais variada e mais audaciosa

o   O mês e as semanas correspondem ao seguinte:

§  Shakespeare – representa as obras literárias que retratam a variedade de costumes e de tipos humanos, com diferentes graus de idealização e de profundidade

§  Calderón – reúne os dramaturgos moralistas

§  Corneille – reúne os dramaturgos  históricos

§  Molière – representa as obras em prosa (isto é, os romances), especialmente aqueles que expõem os costumes, além de obras satíricas e de comédia

§  Mozart – as grandes composições de música orquestral, que se aliam ao drama (óperas, sinfonias, músicas sacras)

-        Shakespeare integra o triângulo dos 13 grandes poetas ocidentais:

 


Parte II – Mês abstrato: a mulher (providência moral)

-        O décimo mês do calendário positivista abstrato celebra a mulher, responsável pela providência moral

o   A providência moral, corporificada nas mulheres, é a primeira das funções normais; as demais são: o sacerdócio (providência intelectual), o patriciado (providência material), o proletariado (providência geral)

o   A “providência moral” consiste no grupo e nas pessoas que continuamente nos lembram de que o ser humano é afetivo e que devemos sempre “viver para outrem”; em outras palavras, a providência moral lembra-nos continuamente que devemos sempre ser altruístas

§  Há uma correspondência entre a providência moral, das mulheres, e a providência intelectual, do sacerdócio: ambos direcionam-nos para o “viver para outrem” à mas enquanto o sacerdócio realiza essa função no âmbito público, as mulheres fazem-no no âmbito privado (isto é, doméstico)

o   Entre homens e mulheres há igualdades, superioridade e inferioridade:

§  Homens e mulheres têm igualmente sentimentos, inteligência e atividade

§  As mulheres são mais afetivas que os homens; isso não quer dizer que elas são menos inteligentes que os homens, mas quer dizer, sim, que elas são mais clara, direta e facilmente altruístas que os homens;

·         Como a origem e o objetivo da vida humana – que constituem a felicidade – são os sentimentos altruístas, torna-se claro que as mulheres são superiores aos homens nesse sentido

§  Em contraposição os homens são mais fortes e mais ativos que as mulheres

§  Outra dupla de contraposições entre homens e mulheres, que corresponde à anterior, dá-se nos tipos de inteligência preponderantes em cada um: os homens são mais analíticos, as mulheres são mais sintéticas

·         A conseqüência dessa variedade de tipos de inteligência preponderante em cada um dos sexos é que os homens tendem a preferir as ciências naturais (que são mais analíticas) e as mulheres, as ciências humanas e as artes (que são mais sintéticas)

§  As diferenças entre homens e mulheres não deve ser vista em termos de competição entre ambos, mas em termos de complementaridades

§  O resultado das diferenças complementares entre homens e mulheres é que o papel da providência moral é, antes e acima de tudo, um papel de educação – para maridos, filhos e parentes, que atuarão na vida pública

·         Assim, quando Augusto Comte afirma que as mulheres devem atuar no âmbito doméstico, ele não está escravizando-as sob o rótulo de “rainhas do lar”: ele está afirmando sua importância e sua dignidade intelectual, social e, acima de tudo, moral

§  De modo geral, a teologia sempre encarou a mulher como inferior ao homem em todos os sentidos, sendo mesmo culpada pelos sofrimentos humanos (como no mito de Eva e da maçã); já a metafísica afirma ou que as mulheres são superiores ao homem em tudo ou, então, afirma pura e simplesmente que homens e mulheres são iguais em tudo: em ambos os casos, o resultado é opressão e/ou disputas sem fim

§  Como se viu, o Positivismo afirma diferenças complementares, em que a dignidade de homens e mulheres é afirmada e, em particular, a mulher tem que ser ouvida e respeitada

o   A afirmação da mulher como providência moral lembra-nos de que a família é a célula da sociedade à mas, ao mesmo tempo, a destinação pública da família é o melhor e mais importante corretivo para os desvios da família (em particular, a opressão masculina e marital)

§  A mulher como providência moral também indica que relações sociais mais fraternas exigem um órgão contínuo que atue precisamente nesse sentido, que seja respeitado e preservado das pressões e das agressões externas da vida

o   São quatro as modalidades determinadas por nosso mestre na providência moral, com as respectivas festas semanais:

1)      Mãe (a veneração)

2)      Esposa (o apego)

3)      Filha (a bondade)

4)      Irmã (o apego)

-        Vale lembrar que as mulheres são celebradas em duas outras ocasiões, de maneiras diretas e indiretas:

o   O primeiro mês do ano é dedicado à Humanidade, a nossa deusa, que é representada por uma mulher (com as feições de nossa cofundadora, Clotilde de Vaux), tendo em seus braços um bebê, isto é, o futuro

o   Além disso, nos anos bissextos, o último dia do ano, após a festa geral dos mortos, é dedicado às mulheres santas

-        É importante ressaltar: o Grande Ser do Positivismo é um tipo feminino

o   A representação feminina do Grande Ser é uma clara afirmação do altruísmo

o   Clotilde de Vaux era inicialmente percebida por Augusto Comte como esposa (subjetiva), mas, somando-se a diferença inicial de idade entre ambos (17 anos) e o tempo que transcorreu após a morte de Clotilde (em 1846), o próprio Comte observou que, paulatinamente, ela era vista como filha

o   Na vida de Comte, ele passou a celebrar os seguintes tipos femininos:

§  Mãe (a veneração): Rosália Boyer

§  Esposa (o apego): Clotilde

§  Filha (a bondade): Clotilde e Sofia Thomas

 

Parte III – Comemorações de aniversários

-        Em termos de aniversários, neste ano lamentavelmente não temos nenhuma comemoração














Referências bibliográficas

Augusto Comte: Sistema de filosofia positiva, Sistema de política positiva, Catecismo positivista, Síntese subjetiva

Frederic Harrison: O novo calendário dos grandes homens

Raimundo Teixeira Mendes: As últimas concepções de Augusto Comte

Raimundo Teixeira Mendes: A mulher (3ª ed.: 1958)

David Carneiro: História da Humanidade através dos seus grandes tipos, v. 6

Ângelo Torres: Calendário Filosófico

25 setembro 2020

Agustín Aragón: "Sobre a Guerra Hispano-Americana"

O destacado positivista mexicano Agustín Aragón y Léon (1870-1954) publicou em 1898 um interessante livro sobre a Guerra Hispano-Americana (ou, mais corretamente nomeada em espanhol, Guerra Hispano-Estadunidense - 1898).

Para avaliar esse conflito, o autor examina as histórias da Espanha e dos Estados Unidos, bem como os valores e as práticas culturais e políticas de ambos os países, inserindo-os na evolução histórica da civilização ocidental. A conclusão a que chega é que esse conflito foi uma injustificável agressão dos Estados Unidos contra a Espanha (ainda que, por sua vez, a independência cubana - que foi a desculpa dada pelos EUA para o conflito - fosse, por sua vez, necessária e justificada).

Assim, o livro é uma interessantíssima aplicação prática do Positivismo, isto é, da Religião da Humanidade à política internacional, combinando relato histórico, análise sociológica, perspectivas "realistas" e perspectivas "idealistas".

O livro pode ser lido aqui.



Conversa com Érlon Jacques sobre Positivismo, Sociologia e Filosofia

No dia 18.8.2020 o positivista gaúcho Érlon Jacques de Oliveira participou de uma conversa à distância, com o prof. Pedro Júnior dos Santos Silva, da Unisc (Universidade de Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul) sobre a "interação entre Sociologia e Filosofia" e, de modo mais específico, sobre o Positivismo e sua teoria do conhecimento.

Essa conversa, que durou cerca de uma hora e foi gravada, está disponível aqui.

23 setembro 2020

Luís Lagarrigue, um positivista indicado ao Prêmio Nobel da Paz

Em 1928 o positivista chileno Luís Lagarrigue publicou o belíssmo livro Política internacional (que pode ser lido e baixado aqui e aqui).

Pois bem: em virtude dessa publicação extremamente oportuna (tanto na época em que veio a lume quanto atualmente), o governo chileno decidiu sugerir o nome de Luís Lagarrigue para o Prêmio Nobel da Paz de 1928. Não deixa de ser triste, e talvez revelador, o fato de que nesse ano ninguém recebeu de fato esse prêmio (como se pode conferir aqui).

De qualquer maneira, com essa indicação Luís Lagarrigue integra a seleta lista de positivistas que receberam prêmios Nobel (Marie Curie, que recebeu dois) ou que a ele foram indicados (no caso de nosso grande Rondon).

A notícia abaixo foi extraída do jornal chileno La Nación de 7.2.1928, cujo original encontra-se disponível aqui.



Luís Lagarrigue: "Política internacional"

Em 1928 o positivista chileno Luís Lagarrigue publicou um interessante e belíssimo opúsculo intitulado Política internacional

Escrito em francês, ele dirigia-se ao público ocidental daquele momento (e das gerações futuras, é claro), afirmando que a paz era uma necessidade política e moral, isto é, que a paz deve reger as relações internacionais tanto devido a motivos de conveniência prática quanto devido a considerações morais. 

Dito de outra forma, ele argumenta e demonstra que embora a guerra tenha sido inevitável e mesmo historicamente necessária, na atualidade (isto é, desde pelo menos o século XIX) ela já é errada, desnecessária e evitável.

Esse inspira-se e baseia-se nas vistas históricas, sociológicas, políticas e morais do Positivismo, ou melhor, da Religião da Humanidade, fundada por Augusto Comte (1798-1857) e Clotilde de Vaux (1815-1846).

Como se pode ver em outra postagem deste blogue (disponível aqui), por este livro Luís Lagarrigue foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz para o ano de 1928.

O livro está disponível aqui.



Luís Lagarrigue: "Quadros da Religião da Humanidade (síntese subjetiva)"

 Em 1939 o positivista chileno Luís Lagarrigue (1864-1949) publicou uma pequena edição com vários quadros, tabelas e informações, de caráter sintético e sinóptico, da Religião da Humanidade, isto é, do Positivismo, fundado por Augusto Comte (1798-1857).

Embora em si mesma essa publicação não seja explicativa - ela não tem essa intenção -, ela fornece de maneira resumida e prática vários elementos da Religião da Humanidade, o que é extremamente útil, não há dúvida.

O caráter belamente ortodoxo e pio dessa publicação já se verifica no seu título: Quadros do culto e do dogma da Religião Universal, instituída por Clotilde de Vaux e Augusto Comte.

Essa publicação está disponível aqui.



22 setembro 2020

Richard Congreve: "Prece à Humanidade"

Está disponível no portal Archive.org o opúsculo comemorativo intitulado Prece à Humanidade, escrito pelo positivista inglês e apóstolo da Humanidade Richard Congreve (1818-1899), juntamente com uma prece do também positivista e apóstolo da Humanidade, o brasileiro Miguel Lemos (1854-1917).

Essa edição foi publicada em 1936; as preces foram elaboradas para serem lidas publicamente na Festa da Humanidade, que ocorre sempre no dia 1º de Moisés (a que corresponde o dia 1º de janeiro, no calendário júlio-gregoriano).

São dois belos exemplos de uma espiritualidade humanista e secular.

O opúsculo pode ser lido aqui.


Richard Congreve


Miguel Lemos


Manuel de Almeida Cavalcanti: "Introdução à síntese subjetiva"

Está disponível no portal Archive.org o livro Iniciação filosófica, do engenheiro e professor positivista Manuel de Almeida Cavalcanti (nascido em 11.12.1865, no estado de Alagoas). Foi publicado em 1914 e é uma exposição didática da síntese subjetiva positivista, elaborada por Augusto Comte (1798-1857) ao longo de sua carreira, especialmente após 1848.

A síntese subjetiva positivista é, do ponto de vista filosófico, a condensação do Positivismo, em que culminam as reflexões científicas, epistemológicas, sociológicas, políticas e morais de Augusto Comte. Com a síntese subjetiva, a Religião da Humanidade torna-se plenamente compreensível, aceitável e aplicável. 

O relativismo, a historicidade, a subjetividade humana são plenamente afirmados e aplicados na síntese subjetiva, ou, em outras palavras, são aplicadas em toda a sua extensão possível. Com isso, o Positivismo, na forma da Religião da Humanidade, mantendo o realismo e o respeito às leis naturais, ultrapassou em muito o cientificismo, o utilitarismo estreito, a arte pela arte, o academicismo: essa ultrapassagem esteve muito à frente do que era considerado aceitável no século XIX e está também muito à frente do que se considera hoje, no século XXI, possível.

Assim, não é coincidência que justamente a síntese subjetiva seja ao mesmo tempo ignorada e desprezada pelo comum dos comentadores de Augusto Comte. Isso pode parecer incoerente, mas ocorre de fato, a partir do mito do "Comte maluco", que justifica a postura do "não li e não gostei".

O livro de Almeida Cavalcanti pode ser consultado e baixado aqui.

27 agosto 2020

Roteiro da exposição sobre o nono mês dos calendários positivistas (Gutenberg e monoteísmo)

As anotações abaixo consistem no roteiro da celebração gravada do nono mês dos calendários positivistas, que abordam Gutenberg (a indústria moderna, no calendário concreto) e o monoteísmo (no calendário abstrato), além dos centenários compreendidos nesse período.

A gravação encontra-se disponível aqui.


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Roteiro da exposição sobre o nono mês dos calendários positivistas


Parte I – Mês concreto: Gutenberg


Gutenberg, em lâmina da Igreja Positivista do Brasil



-        9º mês do calendário positivista concreto
 o   Considerando o ano júlio-gregoriano de 2020 (ano bissexto), o mês de Gutenberg começa em 12 de agosto e termina em 8 de setembro
o   O oitavo mês concreto representa a indústria moderna
§  É o segundo mês da modernidade 
·         Como já vimos, após os sete meses da Antigüidade e da Idade Média, a modernidade é representada por seis meses (Dante, Gutenberg, Shakespeare, Descartes, Frederico, Bichat) 
o   Para entendermos a indústria moderna, é necessário caracterizarmos as duas palavras, “indústria” e “moderna” 
§  A indústria, para Augusto Comte e no presente contexto, não consiste nas fábricas, mas em uma forma de organizar a produção material (ou seja, a “economia”) 
·         O melhor a falar, então, seria em “sociedade industrial”, que se opõe a “sociedade militar”; esta busca a conquista do ser humano, ao passo que a primeira busca a conquista da natureza 
·         Em termos de organização do trabalho, a sociedade militar baseia-se não raro na escravidão e, de qualquer maneira, na desvalorização do trabalho (“maldição divina”, impedimento do “ócio criativo” e do ócio contemplativo) 
·         Já a sociedade industrial baseia-se no trabalho livre (e na correlata valorização do trabalho) e na divisão entre trabalhadores e patrões 
§  Por outro lado, a indústria moderna tem que ser distinguida da indústria antiga 
·         A indústria antiga era organizada em pequena escala, por vezes em caráter individual, em que não havia a divisão entre patrões e empregados 
·         Uma outra forma de organizar a indústria na Antigüidade era por meio das castas, em que as profissões eram hereditárias e características das famílias 
·         A indústria moderna, então, baseia-se no trabalho livre, em que a sociedade como um todo organiza-se em uma atividade pacífica e de grandes proporções; em virtude disso, ocorre a separação entre trabalhadores e patrões e os grandes contingentes de trabalhadores organizam-se em sindicatos (igualmente livres) e cada trabalhador pode escolher o ramo industrial em que deseja trabalhar 
§  Uma outra forma de entender o espírito da indústria moderna é por meio de uma oposição elaborada em 1819 pelo suíço Benjamin Constant, entre a “liberdade dos antigos” e a “liberdades dos modernos” 
·         Esse Benjamin Constant não é o nosso fundador da República; o suíço viveu entre 1767 e 1830, ao passo que o nosso deveu seu nome ao primeiro e viveu entre 1836 e 1891 
·         Na verdade, essa oposição elaborada por Benjamin Constant também não é original; ela remonta à querela dos antigos contra os modernos, que se desenvolveu após o Renascimento e que continuava viva no século XIX, como se pode ver tanto pela obra de Benjamin Constant quanto pela de Augusto Comte (bem como pela de outros pensadores) 
·         Para Benjamin Constant, a liberdade dos antigos caracterizava-se pela participação ativa nos negócios públicos, enquanto a liberdade dos modernos caracteriza-se pela ausência de impedimentos estatais à ação individual privada 
·         Mas, para além do elogio do individualismo burguês e do governo representativo, a oposição proposta pelo suíço Benjamin Constant afirma que os antigos buscavam a glória das conquistas, ao passo que os modernos buscam o conforto da produção material 
§  O mês da indústria moderna, portanto, valoriza a atividade pacífica e cooperativa entre indivíduos, classes, países e civilizações 
·         A segunda lei dos três estados, relativa à atividade prática, sintetiza essa evolução histórica: “A atividade é primeiro conquistadora, em seguida defensiva e enfim industrial” (oitava lei da Filosofia Primeira) 
o   A sociedade industrial deve organizar-se da seguinte maneira, conforme o Positivismo: 
§  Separação entre patrões e empregados, com relativamente poucos patrões e muitos empregados 
§  Os patrões têm a responsabilidade de organizar a produção material e de gerar empregos e renda para os trabalhadores 
§  Em suas atividades, os patrões empregam de maneira altruísta alguns instintos egoístas, como o de destruição, o de construção e o orgulho; assim, eles ficam mais sujeitos aos desvios do egoísmo à portanto, sua situação não é invejável e deve ser constantemente cobrado por seu comportamento e pelos resultados de suas ações 
§  Augusto Comte era fortemente crítico da burguesia francesa de sua época, que ele considerava frívola, mesquinha e egoísta à no lugar da burguesia desprezível, ele propunha a renovação moral dos patrões, que se transformariam em “patrícios” 
§  Como deve ocorrer a separação entre patrões e empregados e como a condição moral e profissional dos patrões não é invejável, os trabalhadores devem constituir a grande massa da sociedade e evitar buscar a sua transformação em patrões à assim, em particular, ocorreria a extinção da “classe média”, que seria decomposta em poucos patrões e muitos empregados 
§  A definição-recomendação de Augusto Comte para os empresários é esta: deve ocorrer a concentração de capitais e de recursos de tal forma que seja possível a um indivíduo controlá-los e dispô-los de maneira responsável 
§  Assim, o capital deve ser concentrado à mas, da mesma forma que o capital tem origem social, ele deve ter necessariamente uma destinação social, mantendo-se privada a propriedade 
§  As atividades industriais evidentemente não são iguais nem homogêneas; por isso, ocorre uma hierarquia prática que se revela também uma hierarquia moral e social, baseada na generalidade e na responsabilidade coletiva crescentes; a hierarquia dos patrões origina uma correspondente hierarquia dos trabalhadores: agricultura, indústria, comércio, bancos 
o   O mês e as semanas correspondem ao seguinte: 
§  Gutenberg – criador do instrumento que permitiu a difusão do conhecimento e o aumento das comunicações humanas (em termos estáticos e dinâmicos) e, assim, permitiu a ação pacífico-industrial sobre o planeta Terra 
§  Colombo – corresponde aos exploradores do planeta Terra, que ampliaram o nosso conhecimento sobre o Grande-Fetiche e estabeleceram as ligações entre os mais diferentes povos, permitindo, assim, a constituição da Humanidade em termos realmente universais (incluem-se aí os caminhos para as Índias, a ultrapassagem do Cabo das Tormentas, a circum-navegação, a exploração da Oceania, a ligação entre Ocidente e Oriente, entre Europa e África etc.) 
§  Vaucanson – corresponde aos inventores propriamente ditos, que buscam meios de aumentar o rendimento do nosso trabalho (incluem-se aqui o tear mecânico, o telégrafo, o cronômetro); também os artesãos de obras artísticas 
§  Watt – corresponde aos cientistas que, com suas pesquisas, permitiram a aplicação da ciência à indústria, seja ampliando o rendimento de nossa ação, seja ampliando as possibilidades de intervenções (incluem-se aqui o motor movido pela pressão do vapor, as aplicações da termologia, da física dos gases e também a aplicação da Química à vida humana) 
§  Montgolfier – corresponde às futuras e possíveis aplicações técnicas proveitosas para o ser humano, como o domínio dos ares, a agricultura científica, a manipulação genética e mesmo o embelezamento da indústria e da arte de viver 
-        Há um aspecto no mês de Gutenberg que apresenta uma importância à primeira vista inusitada, mas que, bem vistas as coisas, acabaria sendo formulada cedo ou tarde 
o   Trata-se da crítica feita pelos povos colonizados do papel dos colonizadores, muitas vezes daninhos para os dominados 
§  Esse problema está não por acaso concentrado na semana de Colombo, que reúne os exploradores (Colombo, Vasco da Gama, Fernão de Magalhães, James Cook) 
§  A grita atual consiste em criticar e mesmo desprezar os grandes exploradores, bem como figuras acusadas (justa ou injustamente) de racismo; assim, estátuas estão são destruídas tanto por grupos sociais quanto por governos, nomes de instituições estão sendo modificados etc.: estátuas de Colombo e James Cook (“chacinadores”) e de Churchill (“racista” e “imperialista”); a Escola de Relações Internacionais da Universidade de Princeton retirou a referência a Woodrow Wilson de seu nome (ele era racista) 
§  Além disso, tem sido estimulada uma postura de raiva e de negação do passado; no caso dos descendentes de antigos donos de escravos e, de modo geral, no caso dos “brancos”, estimula-se um forte sentimento de culpa e de responsabilidade atual pelos crimes (efetivos ou imputados) aos antepassados 
§  É importante notar que, se por um lado o presente movimento (internacional) justifica-se pouco, a sua origem imediata ensejou e enseja os mais vívidos e corretos clamores por justiça: o assassinato de um desempregado por policiais racistas nos EUA; esse desempregado chamava-se George Floyd e morreu em meados de 2020 enquanto pedia para respirar mas tinha a garganta pressionada pelo joelho de um policial insensível ao sufocamento do homem 
o   É necessário aplicarmos o relativismo histórico: 
§  Por mais justas que sejam em parte as reclamações atuais de povos outrora dominados, é importante notar que tais reclamações baseiam-se em valores que, em grande medida, são nossos e são de nossa época 
§  Afirmar a contemporaneidade dos nossos valores não tem como objetivo torná-los “particulares”, “específicos” de nossa época e, portanto, não tem como objetivo desvalorizá-los (como os pós-modernos, os ultra-relativistas e os ultracontextualistas fazem); bem ao contrário, é necessário entender que os valores de respeito mútuo, de respeito universal, de tolerância, de rejeição da violência são valores nossos, ou melhor, são valores “novos” e recentes e que, portanto, nossos antepassados desgraçadamente não os tinham 
·         É claro que a novidade dos valores da fraternidade universal, do pacifismo, da tolerância não é tão grande assim: eles já tinham sido afirmados com clareza por Augusto Comte no século XIX – que, a esse respeito, seguia e prosseguia uma tradição que vinha pelo menos do século XVIII (com o Iluminismo) 
·         Da mesma forma, os romanos, na fase final da República (Júlio César) e já no Império (Trajano, Adriano e, de modo geral, a sua dinastia nervo-antonina) afirmavam o primado da paz e do respeito mútuo 
§  Também é necessário notar que a atividade pacífica só surge como desenvolvimento da atividade militar e em conseqüência dela; dito de outra forma, mesmo a paz e a indústria exigiram antes delas a guerra e a violência 
§   A violência praticada por exploradores contra diferentes povos é lamentável, não há dúvida 
·         Mesmo no período das colonizações, em meio às violências, havia cobranças, reprimendas, perorações: o padre Bartolomeu de las Casas na América espanhola é um exemplo 
·         Embora a violência praticada pelos colonizadores europeus seja, para nós, ocidentais atuais, motivo de vergonha e tristeza, é necessário considerar se à época em que eles agiam o seu repertório de comportamentos aceitáveis excluía a violência sistemática: de modo geral, a resposta é negativa 
§  Todavia, convém distinguir a atuação de personagens como Colombo e Cook da de Pizarro e dos ingleses na Austrália: os exploradores de modo geral foram apenas exploradores, não conquistadores 
§  Além disso, no caso dos exploradores, é importante notar que a sua ação como exploradores é por si só altamente meritória e digna de respeito e veneração 
·         O respeito e a veneração devidos aos exploradores deve-se à ampliação do conhecimento do planeta e ao estabelecimento de relações entre todas as porções da Humanidade 
·         Além disso, as epopéias de Colombo, Vasco da Gama etc. demonstram uma coragem gigantesca, ao realizarem viagens que eram, na melhor das hipóteses, meras apostas 
·         De quebra, vale notar que os exploradores comprovaram na prática, após as demonstrações gregas, que a Terra é um planeta redondo 
§  Um outro aspecto do relativismo histórico consiste em notar que a ação de povos e indivíduos não se resume a um único aspecto, de tal sorte que em suas vidas e histórias podem apresentar – e, com efeito, apresentam de fato – comportamentos positivos e negativos, altruístas e egoístas, construtivos e destrutivos 
·         O relativismo, portanto, consiste em pesar, contextualizadamente, aspectos positivos e negativos 
o   Apenas em casos excepcionais – e, a bem da verdade, patológicos – é que se pode reduzir a carreira de um povo, ou de um indivíduo, a um único traço 
·         Os “contextos” em que se deve inserir a ação de indivíduos e povos deve incluir não apenas as estruturas sociais, mas também as idéias e os valores disponíveis em cada momento 
§  Em virtude das considerações acima, destruir (ou, de qualquer maneira, suprimir) estátuas de Colombo e de Cook é um erro 
·         Da mesma forma, embora Churchill fosse mesmo imperialista, o que ele compartilhava da mentalidade do “white man’s burden” não o impediu, nunca, de buscar a fraternidade, de buscar a tolerância, de ser razoável e, acima de tudo, não o impediram de ser o brilhante e corajoso líder que manteve a Inglaterra como inimiga do nazismo durante a II Guerra Mundial 
·         No caso de Woodrow Wilson: ele era do Sul dos Estados Unidos (Virgínia), o que estimulava o racismo, não há dúvida; ele apoiava o movimento da eugenia, postulando em particular que a miscigenação (especialmente entre brancos e não brancos) causava a delinqüência social, a prostituição, o retardo mental etc.; ele apoiou essas idéias mesmo quando foi Reitor de Princeton. Essas idéias são desprezíveis e são inaceitáveis sob qualquer perspectiva; além disso, o anti-racismo já era uma causa antiga no início do século XX, especialmente após a violenta Guerra da Secessão dos EUA. Todavia, a despeito dessas idéias e dessas práticas, a atuação doméstica de Wilson foi progressista (favorável aos direitos trabalhistas) e a atuação internacional foi mais importante ainda: ele levou os EUA ao decisivo ingresso na I Guerra Mundial junto dos Aliados (França e Inglaterra), ele promoveu o chamado “idealismo” na política internacional, que consistiu na moralização da política internacional; ele defendeu a autodeterminação dos povos e, se isso tudo não fosse pouco, ele foi o responsável pela criação da Liga das Nações. Assim, é no mínimo problemático e, bem vistas as coisas, é incoerente e mesmo hipócrita desprezar a atuação de Woodrow Wilson (em particular suprimir o seu nome da Escola de Relações Internacionais da Universidade de Princeton): não há dúvida de que seu racismo travestido de uma ciência desprezível era odioso; todavia, é necessário um esforço moral e político muito grande para negar, desprezar e rejeitar a sua atuação política, principalmente na política internacional 
o   É importante insistir em uma idéia fundamental do Positivismo e do culto positivo: o calendário histórico concreto foi instituído não apenas para exibir (para o público ocidental) de maneira sintética o conjunto da evolução ocidental, mas também, e talvez principalmente, para estimular justamente o relativismo histórico 
§  O que o relativismo histórico recomenda é que respeitemos e valorizemos nossos antepassados, sabendo pesar e avaliar suas limitações e seus defeitos 
§  De maneira correlata, o elogio histórico não é devido a qualquer indivíduo: a incorporação na Humanidade exige que o indivíduo em questão seja merecedor e que cumpra a definição de Humanidade (“conjunto de seres convergentes, passados, futuros e presentes) 
·         O elogio histórico, quando adequado e justificado, exige a valorização dos aspectos positivos, mas não esconde, nem camufla, os aspectos negativos

Parte II – Mês abstrato: monoteísmo 

-        O nono mês do calendário positivista abstrato celebra o monoteísmo 
o   O monoteísmo é a terceira e última fase das fases sociológicas históricas (dinâmicas) preparatórias; as anteriores são o fetichismo e o politeísmo 
o   O monoteísmo consiste na concentração dos vários deuses em uma única entidade, todo-poderosa e reinante sobre tudo 
§  Alegadamente o monoteísmo surgiu com Moisés; mas, na verdade, o deus mosaico não se afirmava o único deus, mas o maior e superior a todos; apenas com o passar dos séculos e, em particular, após o cativeiro na Babilônia é que o judaísmo converteu-se de fato em um monoteísmo 
§  De um ponto de vista sociológico, o monoteísmo constituiu-se após o declínio moral e social do politeísmo e, na verdade, em virtude desse mesmo declínio 
§  Sugestões para a constituição do monoteísmo vinham pelo menos desde o século IV aec, como com Sócrates e, depois, como Aristóteles 
·         Em particular Aristóteles defendia um deus único que operasse como “motor inicial”, ou seja, como uma entidade que tivesse criado tudo e posto o universo em movimento, mas depois disso se afastando radicalmente de tudo 
§  O monoteísmo só vingou no início da era corrente quando as necessidades de renovação moral ficaram bastante evidentes; a partir daí é que atuou São Paulo, que criou o catolicismo mas que, em sua modéstia, em sua sabedoria e em sua perspicácia, atribuiu a sua obra a outro, que lhe assumiu o nome da doutrina 
§  As necessidades de renovação moral só ficaram evidentes quando o Império Romano dominou toda a bacia do Mediterrâneo (além da Península Ibérica, das Gálias, dos Bálcãs e do Oriente Médio): essa dominação permitiu a imposição dos hábitos da paz e a necessidade de reorientação das vidas individuais e dos destinos coletivos dos povos envolvidos 
·         Essas considerações histórico-sociológico-morais têm algumas conseqüências: por um lado, o judaísmo, embora seja em si mesmo um monoteísmo e tenha influenciado o catolicismo, para o que nos interessa, é secundário e não foi determinante para a constituição do catolicismo; além disso, a partir dessas considerações o surgimento do catolicismo deixa de ser milagroso, como nos relatos tradicionais, e passa a ser explicado racionalmente 
§  Os monoteísmos considerados por Augusto Comte (catolicismo e islamismo) têm algumas características (ou “propriedades”) importantes para nós: 
·         Eles passaram a afirmar diretamente a necessidade de moralidade na conduta humana; o politeísmo, embora regesse até certo ponto a moralidade, servia mais para explicar o mundo e menos para regrá-lo 
o   O monoteísmo em última análise é imoral, pois a divindade é profundamente arbitrária; mas, ainda assim, atribui-se a ela alguns motivos morais e, de qualquer maneira, a partir dela estabelece-se um código moral de conduta 
o   A moralidade monoteísta, além disso, em si mesma é profundamente imperfeita, pois rejeita o caráter inato dos instintos altruístas e também estabelece móveis egoístas para a conduta humana (a ambição do paraíso, o medo do inferno); mas, enfim, era o possível na época e era o possível para regrar populações com hábitos grosseiros 
·         Embora em si mesmos exijam a adesão aos seus dogmas – que, na época em que foram estabelecidos, eram radicalmente contrários aos hábitos mentais, morais e sociais das populações (os romanos, por exemplo e com justiça, repudiavam os dogmas católicos como imorais) –, os monoteísmos permitem a constituição de religiões universais, pois que ultrapassam as origens nacionais dos politeísmos 
§  O catolicismo surgiu no ambiente romano; no século VII surgiu o Islã, que, em sua rápida expansão seguida da reação católica, acabou dividindo mais ou menos ao meio os antigos territórios romanos: como se sabe, tomando-se como divisor a linha que vai da Grécia ao Egito, os territórios a Leste ficaram sob o Islã, os territórios a Oeste (o Ocidente) ficaram sob o catolicismo 
·         O catolicismo e o islamismo são os monoteísmos principalmente considerados por Augusto Comte justamente porque eles foram duas formas que buscaram resolver a moralização da vida e da política, a partir do Império Romano 
·         O catolicismo é profundamente complicado, com seu dogma da trindade, com a postulação da vida após a morte e a reencarnação (ou ressurreição) etc.; o islamismo, em contraposição, embora mantenha a promessa da vida eterna após a morte, simplifica o dogma, ao suprimir a trindade e ao postular o caráter santo (mas não divino) do “filho” (reduzido à condição de profeta anterior a Maomé) 
·         A simplicidade islâmica evita os debates tão próprios às populações submetidas ao Islã e garante que o chefe islâmico (o califa e, em menor grau, o sultão, após o próprio Maomé) mantenha-se como chefe temporal (isto é, como chefe militar) em vez de ser também um chefe espiritual 
·         A complicação do dogma católico foi possível também devido à separação (imperfeita, claro está) entre os dois poderes: o chefe temporal governava, o chefe espiritual regia as discussões teológicas 
·         Os defeitos morais e intelectuais próprios ao catolicismo – que, como indicamos, já eram bastante claros para os romanos – foram atenuados pela sabedoria prática do clero católico, especialmente por inúmeros papas que reinaram até cerca de metade do ciclo das cruzadas (século XII) 
§  O catolicismo e o islamismo são incompatíveis, o que conduziu à disputa entre ambos por hegemonia 
·         No Ocidente, a reação feudal proposta e coordenada pelo papado realizou, na última fase da Idade Média, a realização final e plena do feudalismo, que consiste na combinação digna entre a independência e o concurso entre as unidades políticas à isso deixa claro que o feudalismo não se caracterizava por “anarquia” 
·         A reação ocidental ao avanço muçulmano consistiu, em um primeiro momento, em barrar o avanço na França, com Carlos Martel, em Poitiers; depois, nas guerras de reconquista ocorridas ao longo de vários séculos na Península Ibérica; a partir do século XI, esforços mais sistemáticos, de grande envergadura e agrupando o conjunto dos povos ocidentais ocorreram por instigação do papado, na forma das cruzadas 
·         Os constantes choques entre catolicismo e islamismo conduziram à sua neutralização mútua e às suas decadências, cujo marco e símbolo foi a batalha de Lepanto (próximo a Corinto, na Grécia), em 1571, em que as armadas das duas religiões bateram-se; a batalha foi mais ou menos vencida pelas forças cristãs, mas, de qualquer maneira, ela indicou o empate entre Islã e catolicismo e, portanto, a aceitação mútua da incapacidade de um dominar e destruir o outro à sinal desse reconhecimento foi os cristãos abandonarem aos muçulmanos o suposto berço de Cristo (até 1948, bem entendido) 
§  A incapacidade dos dois monoteísmos e sua mútua neutralização deixam claro a necessidade de uma fé demonstrável e plenamente universalizável, isto é, do Positivismo 
o   Um último aspecto dos monoteísmos é que eles afirmam a síntese objetiva e absoluta 
§  Após a síntese subjetiva absoluta, própria ao fetichismo, tanto o politeísmo quanto o monoteísmo consagraram a síntese objetiva absoluta: ora, a única síntese verdadeira e durável tem que ser subjetiva e relativa, que é a instituída pelo Positivismo 
§  Apesar desse defeito intelectual do monoteísmo, é importante assinalar que ele foi a última síntese que no Ocidente afirmou a lógica afetiva (ao mesmo tempo que afirmava a importância da lógica dos sinais) 
o   As quatro festas semanais comemorativas do monoteísmo são as seguintes: 
1)      Monoteísmo teocrático (Abraão, Moisés, Salomão) 
2)      Monoteísmo católico (São Paulo; Carlos Magno; Alfredo; Hildebrando; Godofredo; São Bernardo) 
3)      Monoteísmo islâmico (Lepanto) (Maomé) 
4)      Monoteísmo metafísico (Dante; Descartes; Frederico)

 

Parte III – Comemorações de aniversários 

-        Em termos de aniversários, comemoramos neste mês as seguintes figuras: 
o  Em 15 de Gutenberg (26 de agosto): 
§  Morte de Stevin (1548-1620) 
o  Em 16 de Gutenberg (27 de agosto): 
§  Nascimento de Mariotte (1620-1684) 
Em 17 de Gutenberg (28 de agosto): 
§  Nascimento de Agustín Aragón (1870-1954) 
o  Em 25 de Gutenberg (5 de setembro) 
§  Morte de Augusto Comte (1798-1857) 
o  Em 27 de Gutenberg (7 de setembro) 
§  Independência do Brasil (1822)

Possível rosto de Gutenberg
Simon Stevin
Edme Mariotte
Agustín Aragón
Túmulo de Agustín Aragón
Monumento em homenagem a Augusto Comte, na Universidade Sorbonne (Paris)
Reprodução de daguerreótipo de Augusto Comte
Memento mori (foto do morto) de Augusto Comte
Memento mori (foto do morto) de Augusto Comte
Memento mori (foto do morto) de Augusto Comte
Augusto Comte
José Bonifácio retratado no quadro de Eduardo de Sá, "A pátria brasileira"
Estátua de José Bonifácio em Washington (DC)
José Bonifácio



Referências bibliográficas 

Ângelo Torres: Calendário Filosófico 
David Carneiro: História da Humanidade através dos seus grandes tipos, v. 4-5 
Jean-François Eugène Robinet: Notice sur l’oeuvre et la vie d’Auguste Comte 
Joseph Lonchampt: Epítome da vida e dos escritos de Augusto Comte 
Raimundo Teixeira Mendes: As últimas concepções de Augusto Comte