Hoje batemos a marca de 200.000 visitas no blogue Filosofia Social e Positivismo!
Para um blogue dedicado ao Positivismo, sem dúvida alguma essa é uma grande marca, é um grande feito. Fundado em 4 de janeiro de 2007 - pouco mais de dez anos atrás -, em 23 de julho de 2015 alcançamos 100.000 visitas e agora, após 14 meses, conseguimos dobrar as visitas.
Modestamente, isso comprova a relevância do Filosofia Social e Positivismo - em outras palavras, ele atende às necessidades sociais, políticas e intelectuais de nossa sociedade. É tudo o que almejamos.
Este blogue é dedicado a apresentar e a discutir temas de Filosofia Social e Positivismo, o que inclui Sociologia e Política. Bem-vindo e boas leituras; aguardo seus comentários! Meu lattes: http://lattes.cnpq.br/7429958414421167. Pode-se reproduzir livremente as postagens, desde que citada a fonte.
24 março 2017
22 março 2017
O Globo: "Defesa do Estado laico"
Artigo publicado em O Globo, do Rio de Janeiro, em 22.3.2017. O original encontra-se disponível aqui.
É notável, e estarrecedor, como mesmo membros do poder Judiciário erigem-se em representantes de teologias e de igrejas, em vez de defenderem e valorizarem os princípios básicos da vida republicana.
Em artigo publicado neste espaço, o juiz federal William Douglas qualificou de “intolerante” ação de improbidade ajuizada pelo Ministério Público em face do diretor do Arquivo Nacional, acusado de promover cultos evangélicos no auditório da instituição.
É notável, e estarrecedor, como mesmo membros do poder Judiciário erigem-se em representantes de teologias e de igrejas, em vez de defenderem e valorizarem os princípios básicos da vida republicana.
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Defesa do Estado laico
Todos são livres para fazerem pregações e cultos, mas um arquivo público e um tribunal não se prestam a esta finalidade
por Sergio Gardenghi Suiama / Jaime Mitropoulos
22/03/2017 0:00
Em artigo publicado neste espaço, o juiz federal William Douglas qualificou de “intolerante” ação de improbidade ajuizada pelo Ministério Público em face do diretor do Arquivo Nacional, acusado de promover cultos evangélicos no auditório da instituição.
Em benefício do direito à informação, achamos importante prestar alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, o diretor do Arquivo efetivamente promoveu reuniões em favor da sua religião, e não “encontros” nos quais múltiplas crenças estavam representadas, como afirmou o magistrado. Os cultos eram semanais e somente cessaram após o fato ter sido denunciado pela imprensa (O GLOBO, 17-7-2016). Portanto, a ação trata exatamente da preferência a uma religião em detrimento das demais.
Em segundo lugar, a liberdade constitucional de culto nada tem a ver com a proibição de que as dependências, equipamentos e servidores de uma instituição pública sejam usados para proselitismo religioso. Todos são livres para fazerem pregações e cultos, mas um arquivo público ou um tribunal não se prestam a esta finalidade, mas sim a outras, do interesse de cidadãos crentes e não crentes.
A esse respeito, é importante aprofundar a discussão para além do lugar-comum “o Estado é laico, e não ateu”. Não é demais lembrar as guerras e perseguições históricas contra os que não professam esta ou aquela crença. Talvez uma das principais lições que podemos extrair da História seja a da importância de se garantir a separação entre o interesse público, representado pelo Estado, e os interesses e valores das várias religiões. Tal princípio encontra-se previsto na Constituição, que proíbe o Estado de manter com representantes de igrejas relações de dependência ou aliança.
Assim, se o Estado não deve impedir o exercício da fé, tampouco pode permitir que grupos religiosos loteiem ou capturem o serviço público, utilizando as estruturas custeadas por todos para promover seus interesses particulares. Erro grosseiro comete quem afirma que os defensores da laicidade pregam a intolerância, pois é exatamente o contrário disso: em um mundo impregnado por fundamentalismos, deve-se assegurar o igual respeito a todas as crenças e impedir que os espaços das instituições públicas sejam transformados em púlpitos, como ocorreu no auditório do quase bicentenário Arquivo Nacional.
Perseguição religiosa haveria se a Justiça proibisse cultos em locais privados ou a ocupação de ruas ou praças para a realização de festas ou procissões, o que não é o caso. A comparação a Hitler, feita pelo magistrado, não poderia ser mais infeliz pois, em tempos como os atuais, nos quais vem se tornando comum prefeitos entregarem “a Deus” as chaves do município, não há nada mais contra a maioria do que defender a laicidade estatal como valor democrático necessário à convivência pacífica de múltiplas visões de mundo. Mais do que tolerância, a neutralidade exigida pelo Estado laico assegura o respeito à liberdade religiosa de todos.
Sergio Gardenghi Suiama e Jaime Mitropoulos são procuradores da República no Rio de Janeiro.
18 março 2017
Gazeta do Povo: "Escola sem Partido, os evangélicos e a esquerda"
Artigo de minha autoria, publicado em 18.3.2017 na Gazeta do Povo, de Curitiba.
O original pode ser lido aqui.
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O original pode ser lido aqui.
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Escola sem Partido, os evangélicos e a esquerda
As discussões sobre o projeto “Escola sem Partido” têm sido marcadas por grandes mal-entendidos em parte acidentais, em parte propositais. Como não poderia deixar de ser, dificultam a compreensão dos sérios problemas ligados ao projeto.
Notemos à partida que o nome “Escola sem Partido” é enganoso. Ele foi proposto no Senado pela bancada evangélica, com apoio católico, supostamente para evitar o proselitismo político nas salas de aula. Mas, ao sair das generalidades, o projeto evidencia sua meta: ao afirmar uma preponderância das famílias na educação de crianças e adolescentes, deseja-se evitar que as escolas desempenhem o seu papel de esclarecimento e de transmissão do conhecimento. Mais especificamente: o que a bancada evangélica deseja é que nem a Teoria da Evolução nem temas de educação sexual sejam ensinados e que, em geral, todos os conhecimentos contrários ou polêmicos para a teologia (cristã) possam ser questionados e impedidos de serem apresentados. É a instrumentalização direta do Estado por denominações teológicas específicas para manipular os currículos. É o puro obscurantismo em ação.
A família é fundamental, não é todo-poderosa ou onisciente. A escola é a intermediária entre família e sociedade: transmite conhecimentos e também estabelece o convívio. Ela é uma etapa na vida coletiva e, assim, estabelece uma ruptura com a família. Caso vivêssemos presos ao âmbito familiar, nunca teríamos a vida política, ou o conceito de “público”, ou o Estado-nação, ou a noção de “humanidade” – apenas o despotismo paterno.
Por outro lado, muitos dos críticos do Escola sem Partido são – para dizê-lo com um eufemismo – ambíguos a respeito de suas motivações. É certo que o Escola sem Partido institui mais que um controle sobre os professores: quer um verdadeiro patrulhamento ideológico. Mas muitos dos que defendem a necessária e correta liberdade de cátedra defendem-na desejando, na verdade, manterem-se livres para o proselitismo político – sendo mais específico, o proselitismo político (quando não político-partidário) de esquerda.
O Escola sem Partido teve sua origem na chamada “direita”, em grupos liberais e neoliberais, dos moderados aos radicais. Tais grupos apresentam propostas desvairadas – o “Estado mínimo”, a intervenção militar –; mas, neste caso em particular, eles estão corretíssimos. Uma parte substancial do ensino fundamental e médio é política e ideologicamente enviesada, encarada como “espaço de disputa” política. A própria ideia de ensino “crítico” já evidencia a intensa politização do tema.
Nesse sentido, basta passar os olhos pelos livros de História e até de Geografia, quando não de Sociologia e mesmo de Filosofia. Noções como “luta de classes” e “burguesia versus proletariado” abundam. Isso vale para o ensino público e para o privado e, o que é pior, vige desde bem antes dos governos esquerdistas do Partido dos Trabalhadores.
Pode-se dizer que não existe ensino sem “ideologia”. De fato, o ensino não é nem tem como ser neutro. Mas não ser neutro não pode equivaler a doutrinação. O mesmo motivo que leva a rechaçar o projeto evangélico é aplicável à prática da esquerda. Se há valores a organizar o ensino fundamental e médio, que sejam universalistas e includentes – o humanismo, a ciência, a cidadania, a fraternidade e a preparação para o mercado –, e de maneira nenhuma o obscurantismo, a teologia e a revolução do proletariado.
Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Teoria Política e sociólogo da UFPR.
17 março 2017
Dois erros sobre o Positivismo: "autoritarismo", "funcionalismo público"
Em 2008 escrevi um pequeno mas agudo artigo, tratando de dois mitos difundidos a propósito do Positivismo: as idéias de autoritarismo e, vinculada a ela, de "funcionalismo público". Esses mitos são difundidos há muitas décadas, por boa vontade ou com má-fé, por autores de direita e de esquerda, liberais, católicos ou marxistas: em qualquer caso, estão errados. O texto indica esses erros e mostra em que consistem os erros.
Quase dez anos depois de publicado, em termos de teoria política ele mantém-se atual. Mas é em termos dos debates públicos que ele revela-se e afirma-se importante; embora ele dedique-se a refutar erros teóricos, ele sugere concepções aptas a superar os graves problemas políticos por que passa o Brasil desde, pelo menos, o ano de 2013.
N. B.: tendo sido escrito há vários anos, procurei respeitar sua versão original, de modo que não fiz nenhuma atualização nele. O texto foi publicado na Revista Espaço Acadêmico, de Maringá, n. 87, de agosto de 2008.
Quase dez anos depois de publicado, em termos de teoria política ele mantém-se atual. Mas é em termos dos debates públicos que ele revela-se e afirma-se importante; embora ele dedique-se a refutar erros teóricos, ele sugere concepções aptas a superar os graves problemas políticos por que passa o Brasil desde, pelo menos, o ano de 2013.
N. B.: tendo sido escrito há vários anos, procurei respeitar sua versão original, de modo que não fiz nenhuma atualização nele. O texto foi publicado na Revista Espaço Acadêmico, de Maringá, n. 87, de agosto de 2008.
N. B. 2: em 19.9.2023 realizei uma prédica positiva na Igreja Positivista Virtual, em que abordei novamente o conceito de "funcionários públicos". As anotações que serviram de base para a exposição oral e o vídeo da prédica podem ser vistos aqui: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2023/09/sobre-expressao-funcionarios-publicos.html.
* * *
Dois erros sobre a doutrina política
comtiana:
“autoritarismo” e “funcionalismo público”
Gustavo Biscaia de Lacerda[1]
Resumo: Este
artigo comenta dois erros de interpretação bastante comuns a respeito da
doutrina política de Augusto Comte: 1) a idéia de que seria ela autoritária e
2) o (mau) uso da expressão “funcionário público”. No primeiro caso,
consideramos que não existe autoritarismo, na medida em que as liberdades
públicas são resguardadas e incentivadas, dentro do quadro teórico da
“liberdade republicana”. No segundo caso, afirmamos que em Comte o “público”
não equivale a “estatal”, pois que isso negaria a autonomia da sociedade
civil e, avant la lettre, justificaria estados totalitários.
Concluímos fazendo algumas considerações a respeito das dificuldades teóricas
e estilísticas que a obra comtiana apresenta.
Palavras-chave:
Positivismo; Augusto Comte; interpretação; autoritarismo; público; estatal.
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Não é nenhum segredo o fato de que o fundador do Positivismo, Augusto
Comte, ser um autor pouco lido, a despeito de reputar-se-lhe o caráter de
“clássico”. Apesar disso – ou, talvez, devido a isso – abundam
as observações críticas a respeito de sua obra, isto é, comentários negativos
em que se imputam a Comte as mais variadas opiniões e perspectivas, tão
díspares, desencontradas e contraditórias entre si quanto em relação à letra e
ao espírito comtianos.
No que se refere à sua doutrina
política, dois erros em particular são bastante comuns mas, ao mesmo tempo, são
pouco discutidos e problematizados: o Positivismo como “autoritário” e a
afirmação de Comte de que, no estado normal, todos os cidadãos deverão ser
considerados como “verdadeiros funcionários públicos”. Esses erros são tão mais
dignos de exame quanto autores sérios e competentes na análise de outros
aspectos da obra comtiana, como Bosi (2007) e Pickering (2007), cometem-nos.
Assim, vejamos cada um deles.
I
Comecemos pela segunda questão, que é
mais simples de ser analisada, e que se refere à afirmação, presente no
livro Discurso sobre o conjunto do Positivismo (COMTE, 1957), segundo a qual no
estado normal todos os cidadãos serão “verdadeiros funcionários públicos”.
Inicialmente, temos que determinar o
sentido que Augusto Comte dá a essa expressão – e, para isso, é necessário
fazer uma referência a alguns traços gerais de sua filosofia da história. Para
ele, quando a sociedade ocidental encerrar sua fase de transição das épocas
teológico-metafísicas, de caráter absoluto e militaristas, e passar para a
positividade, de caráter relativo, pacífico e industrial, todos os cidadãos
subordinarão o egoísmo ao altruísmo, buscando a melhoria das condições de vida
uns dos outros, em termos materiais, intelectuais e principalmente morais: esse
é o “estado normal”. A subordinação do egoísmo ao altruísmo e a dedicação de
cada um aos demais não significa o fim do egoísmo, isto é, dos pendores e das
preocupações de cada um consigo próprio, mas seu disciplinamento, de modo que
cada qual busque servir ao conjunto da sociedade ao mesmo que satisfaz as
próprias necessidades individuais. Dessa forma, na medida em que os cidadãos
contribuirão para a satisfação de necessidades coletivas, serão como
“funcionários públicos”.
“Público”, aí, não equivale a
“estatal”; se não produzisse um círculo vicioso, poderíamos simplesmente dizer
que “público”, no caso, equivale a... “público”, ou seja, aquilo que é comum a
todos. Esse é um problema mais de interpretação que de tradução; para evitar
mal-entendidos, talvez pudéssemos sugerir o “público” como sendo “social e
democrático”.
Qual o problema com essa expressão?
Tomar o “funcionário público” como “funcionário do Estado”.
Esse erro tem sua origem lógica em uma interpretação especificamente jurídica
da palavra “público”, na medida em que, no Direito, o que se opõe ao “privado”
é o “público” cuja representação empírica é apenas e tão-somente o Estado.
Assim, essa confusão à partida empobrece tremendamente a análise filosófica e
social, pois retira toda verdadeira autonomia da chamada “sociedade civil” e
supõe que apenas no Estado ou por meio dele é possível existir uma vida
“pública”. Teorizado juridicamente por Hans Kelsen (apud LACERDA
NETO, 2004, p. 244), o esquerdista Alfredo Bosi (2007, p. 218) cometeu esse
erro, considerando que os “funcionários públicos da era normal” seriam uma
justificativa para o aumento do aparelho estatal.
Mas as conseqüências de tal confusão
não param aí, pois que dão azo à muito mais séria interpretação de que o
Positivismo é a favor de alguma coisa como uma “estatolatria”, quando não
simplesmente de um “Estado total”, ou seja, de um totalitarismo. Essa é a
versão que o direitista Olavo de Carvalho dá à expressão “funcionário público”
em Comte (apud LACERDA NETO, 2004, p. 243-245).
A doutrina comtiana favorece um governo
– diríamos um “Estado” – forte, com capacidade de intervenção na sociedade. A
esse respeito, o fundador do Positivismo adotava uma recomendação geral: o
Estado deve ser o menor possível, de modo a não onerar a sociedade (ao menos,
não onerar em demasia). Mas um Estado que seja “o menor possível” não equivale
a “Estado mínimo”, conforme defendido pelos liberais. A esse respeito, Comte
criticava fortemente os economistas políticos de sua época por erigirem em
dogma político a inação e a omissão do Estado em relação aos problemas sociais.
Por outro lado, há momentos em que a ação estatal é necessária para estimular e
desenvolver aspectos da sociedade, em particular os relacionados à economia e
aos problemas econômicos[2]. Mas é importante notar: a ação do
governo, no que se refere ao conjunto da sociedade e à economia em particular,
é limitada e complementar em relação à “sociedade civil”.
Ao mesmo tempo, Comte estabelecia como
característica fundamental do regime político da sociedade positiva a separação
entre os poderes Temporal e Espiritual. Veremos novamente esse tema na próxima
seção, mas importa notar agora que tal separação tem como conseqüência uma
sociedade civil articulada e forte (o poder Espiritual), capaz de fiscalizar o
Estado (o poder Temporal).
Dessa forma, não há como reduzir no
pensamento comtiano o “público” ao “estatal”, nem, muito menos, deduzir que o
“público” em Comte revelaria uma “estatolatria”, um totalitarismo em germe.
Embora tanto Bosi quanto Carvalho
tenham cometido o mesmo erro interpretativo, o de Bosi foi menor: seus
comentários sobre a expressão foram desenvolvidos, além disso, por uma clara
simpatia – no mínimo, por um respeito à letra e ao espírito de Comte. Já no
caso de Carvalho, o erro foi maior e pior: sua interpretação, mais extremada,
animou-se por um vivo desprezo pelo fundador do Positivismo[3].
II
Passemos à primeira questão que nos
propusemos a tratar neste artigo, relativa ao afirmado autoritarismo de Augusto
Comte. Essa questão, por apresentar conseqüências maiores e basear-se em
pressupostos valorativos mais profundos, requer um tratamento um tanto mais
detalhado.
Antes de mais nada, que é ser
autoritário? Etimologicamente, autoritário é aquele que faz questão de enfatizar
a autoridade nas relações humanas, especialmente nas que assumem aspectos
políticos; além disso, essa autoridade é percebida como hierárquica, isto é,
deixando claro que os que estão embaixo devem obediência aos que estão acima
deles, com o adicional de negar aos primeiros a legitimidade na apresentação de
objeções ou reparos à ação dos segundos. Relacionada a essa acepção mas dela
distinta, há outra, que se vincula à falta de liberdade: aquele que nega a
liberdade de ação e, principalmente, de expressão a outrem é tachado de
autoritário.
Nesses termos básicos, a doutrina
política de Augusto Comte não é autoritária: embora afirme a validade do
princípio da autoridade, fá-lo para contrapor-se aos anarquistas, àqueles que
negam a validade de qualquer autoridade, de qualquer governo.
Ora, para um anarquista, qualquer governo é, por definição, autoritário; por
essa mesma senda seguiram os “libertários” dos anos 1960 e 1970, que,
revoltando-se contra “o que está aí”, afirmavam que todo governo, qua governo,
é opressivo: a obra política de Michel Foucault é um bom exemplo disso. Mas
esses casos são extremos e, de modo geral, a Teoria Política não considera que
a mera autoridade dos governos seja fator de autoritarismo; para comprovar essa
idéia, basta pensar a contrario: um governo sem autoridade é
percebido como um governo fraco e incapaz de ação – portanto, um governo
inútil.
Entretanto, é necessário complementar
essas observações com o elemento de liberdade que se deve associar à
autoridade. Um governo que não aceite, nem de facto nem de
jure, as diversas liberdades, é considerado autoritário. Quais são as
“diversas liberdades”? Basicamente, as chamadas civis e políticas, ou seja, as
relativas às capacidades dos cidadãos de professarem as idéias e as fés que desejarem,
expressarem-se conforme considerarem correto e adequado, de irem e virem;
também as relativas às possibilidades de associarem-se, realizarem
manifestações públicas e “ações coletivas”. (Deixamos de lado as liberdades
econômicas pois consideramos que, de um lado, elas estão subsumidas nas civis e
políticas e, por outro lado, os governos chamados de autoritários somente o são
em termos econômicos quando a burguesia não mais aceita a ação
econômica do Estado.) No que se refere a essas liberdades, Comte era explícito
e enfático: não há que se as limitar.
Uma análise bastante refinada do
conceito de liberdade foi elaborado em meados do século XX por Isaiah Berlin,
retomando em termos estritamente políticos uma distinção sociopolítica
elaborada quase um século e meio antes pelo primeiro Benjamin Constant; Berlin
separava a liberdade positiva e a negativa. Enquanto a primeira consiste em ser
livre no Estado, a outro consiste em ser livre do Estado.
O sentido da “liberdade” que apresentamos no parágrafo acima é o da liberdade
negativa: os cidadãos não são impedidos pelo Estado de agirem como considerarem
correto ou, mais diretamente, de simplesmente agirem. A liberdade positiva
consiste em os cidadãos exercerem e realizarem sua autonomia decisória por meio
de sua participação direta na formulação das políticas de Estado. Embora não
haja, do ponto de vista lógico, uma verdadeira oposição entre uma e outra, o
fato é que elas correspondem a tipos diferentes de sociedades e arranjos
políticos – nisso consistindo a exposição de B. Constant: a liberdade negativa
é característica das sociedades modernas, de caráter industrial e dedicadas à
produção de bens, com grandes contingentes de trabalhadores livres organizados
em fábricas; a liberdade positiva era característica das sociedades antigas –
Grécia e Roma –, de pequena extensão territorial, voltadas para a conquista
militar e em que o número de cidadãos (isto é, de indivíduos livres e
capacitados pela leis a integrar a vida política) era pequeno e, portanto, era
fácil e simples reunir o corpo político[4].
Mais recentemente, a Teoria Política
formulou um terceiro tipo de liberdade, a “republicana”. Fruto da lucubrações
de Phillip Pettit, a “liberdade republicana” prevê que um cidadão somente é
livre no quadro de uma república, isto é, de um governo que não o domine,
não interfira em sua vida de maneira arbitrária. Na liberdade republicana, ao
contrário dos defensores da liberdade negativa – como o próprio Berlin –, o
problema não consiste na interferência do Estado na vida dos cidadão, pois ela
fatalmente ocorre e é mesmo necessária; a grande questão é que essa
interferência não seja arbitrária. A fim de garantir a não-arbitrariedade, uma
república prevê e exige a participação dos cidadãos no sentido de fiscalizar o
Estado, tendo para isso os canais necessários: esse é o próprio conceito
de accountability. Não sendo uma liberdade negativa, a liberdade
republicana também não é positiva, pois afasta a participação direta e contínua
dos cidadãos na formulação das políticas de Estado.
Retornando ao tema do autoritarismo:
deixando de lado a idéia de que todo governo, por definição, é autoritário, é
necessário perceber o autoritarismo como uma limitação da liberdade. Já vimos
que Augusto Comte no mínimo aceitava em termos gerais a liberdade negativa: mas
e quanto às outras duas liberdades, a positiva e a republicana?
Comte rejeitava a participação direta
da massa de cidadãos – por ele equiparada, em termos numéricos, ao proletariado
– no governo, embora aceitasse e mesmo propugnasse a condução do governo por
proletários tomados individualmente. Por outro lado, afirmava que o governo
deveria ser fiscalizado por órgãos da sociedade; essa fiscalização, além do ato
de verificar os projetos governamentais no dia-a-dia (sugerindo mesmo alterações
ou supressões de projetos), subentende um elemento de legitimação: um governo
que não passe no teste contínuo do escrutínio público perderá sua legitimidade,
com as conseqüências naturais disso. Detalhe: esse escrutínio deve ser feito
pela sociedade, não pelo Estado, ou seja, deve ser feito por um órgão externo
ao governo[5]. Isso significa duas coisas: em primeiro
lugar, a fiscalização do governo deve realizar-se pela opinião pública,
organizada pelo que Augusto Comte chamava de “sacerdócio” e secundada pelos
proletários e pelas mulheres; em termos atuais, para Comte a fiscalização do
Estado deveria realizar-se por uma sociedade civil organizada e forte[6] – é um dos sentidos profundos da
“separação entre os poderes Temporal e Espiritual”. Em segundo lugar, Comte
rejeitava a utilidade dos parlamentos como órgãos de representação, de
fiscalização e de formulação de políticas públicas; em outras palavras, os
parlamentos deveriam ser apenas câmaras orçamentárias[7], não governamentais em sentido estrito.
Em suma: à exceção do fim dos
parlamentos, a proposta de Comte é a própria liberdade republicana, que é tão
“liberdade” quanto qualquer outra “liberdade” tomada no sentido comum. Dessa
forma, não há autoritarismo no projeto político de Comte.
Mesmo assim, é necessário determinar a
origem da acusação de um Comte autoritário: em que consistiria o autoritarismo
comtiano? Por um lado, já vimos que isso se deve à afirmação de Comte de que o
Estado deve ser forte. Embora essa mesma postulação seja também feita
pelos regimes que correntemente chamamos de “autoritários”, essa afirmação em
si não implica nada: regimes democráticos – isto é, aqueles que, como o
proposto por Augusto Comte, celebram e realizam as diversas liberdades – também
exigem “estados fortes”. No fim das contas, não é necessário despender muito
tempo comentando como essa afirmação é, na melhor das hipóteses, simplesmente
gratuita.
Mas o grosso do argumento a favor do
suposto autoritarismo comtiano reside em uma confusão teórica e histórica
relativa ao papel dos parlamentos nas chamadas democracias contemporâneas[8]. Comte era muito claro a respeito: ele
rejeitava os parlamentos, afirmando que eles são instituições próprias ao
conflito entre as monarquias e as aristocracias, em particular a inglesa: afinal,
na Inglaterra o parlamento foi o instrumento utilizado para submeter – e, ao
final, neutralizar – o rei em benefício da aristocracia, com o apoio da
burguesia. O parlamento, dessa forma, representa a manutenção do sistema de
castas – que dá origem à aristocracia – e a mistura de duas formas opostas de
pensar, a teológica (com a monarquia, que é de direito divino) e a metafísica
(com a idéia de soberania popular). Para Comte, embora afirme-se correntemente
que foi a instituição do parlamento como órgão governativo que permitiu as
liberdades civis e políticas, isso não passa de um sofisma do ponto de vista
sociológico e teórico: o que realmente garantiu as liberdades na Inglaterra foi
o escrutínio público, realizado pela opinião pública – a partir do fim da Idade
Média inglesa consubstanciado temporariamente na aristocracia –, que as
garantiu.
A questão é saber se a existência do
parlamento é garantia real das liberdades públicas. A pesquisa histórica,
todavia, não aponta correlação positiva entre parlamento e liberdades públicas:
parlamentos podem coexistir com a inocorrência das liberdades públicas, com a
coibição dessas liberdades e – o que é a regra, em se tratando de parlamentos –
podem também ser fonte de corrupção política, econômica e social, além de serem
geralmente órgãos simplesmente inúteis[9].
Disso tudo resulta que o famoso
autoritarismo comtiano na verdade é um sofisma, um mito, ou melhor, uma
difamação demagógica de quem considera os parlamentos ou a atuação direta do
“povo” no governo são as únicas e, principalmente, as mais eficazes formas de
garantir as liberdades públicas.
III
Talvez algumas palavras a respeito da
obra comtiana sejam interessantes.
Comte observava os movimentos opostos,
profundamente daninhos ao conjunto da sociedade, dos retrógrados – que, de
extração católica, enfatizavam a importância da ordem social –, e dos
revolucionários – que, de extração rousseauniana, negavam as instituições
sociais em nome da liberdade e da igualdade. Para criar uma síntese original,
respeitando o “conjunto do passado”, isto é, reconhecendo a legitimidade das
reivindicações de cada um desses grupos, ao mesmo tempo que as ultrapassando,
afirmou a necessidade e a possibilidade de realizar um regime sociopolítico de
“Ordem e Progresso”. Essa síntese é marcada por uma dupla originalidade, que
consiste, por um lado, na originalidade que todo pensador possui, a par de sua
agência humana (cf. BEVIR, 2002); por outro lado, ao contrário do que afirmou
Habermas (1982, p. 93-94), a obra de Comte não é uma colcha de retalhos, uma
espécie de ecletismo teórica e metodologicamente incoerente como o de Victor
Cousin: a obra de Comte de fato integra as perspectivas opostas,
reconhecendo-lhe os méritos e as deficiências e criando uma nova teoria, que
ultrapassa as anteriores.
Pois bem: essa síntese original, ao
unir elementos da “direita” e da “esquerda”, sujeita-se ao ataque de ambos os
lados, seja porque ela não representa “adequadamente” as opiniões de cada um
dos pólos, seja porque representa para um pólo as opiniões do pólo oposto.
Mas há um problema extra. Temos
procurado indicar (LACERDA, 2007; 2008) de que maneira a lógica profunda do
pensamento comtiano não segue a do senso comum, na medida em que este é
igualitário e individualista e a de Comte é englobante (conforme as definições
de Louis Dumont (1992; 1995)). Dessa forma, abordar os textos do fundador do
Positivismo sem maiores cuidados metodológicos – ou mesmo animado por um
espírito de animadversão a seu respeito – tem por resultado erros como os
indicados aqui.
Além disso, o estilo de escrita
comtiano – sintético e denso – era marcado por idiossincrasias, que Ângelo
Torres (1997) chamou de “criptografias”. Some-se a lógica englobante ao estilo
“criptográfico” e teremos facilmente interpretações – como se viu, errôneas,
mas mais ou menos bem-intencionadas – que tomam no senso comum o que deve ser
percebido dentro do específico espírito da obra de Comte.
Jeffrey Alexander (1996) definiu como
“clássico” o autor capaz de apresentar às sucessivas gerações de pensadores e
pesquisadores um conjunto de modelos e sugestões teóricos e metodológicos,
intuições, valores e interpretações; é claro que, para fornecer essa riqueza
intelectual e moral é necessário que o clássico seja no mínimo lido.
Por seu turno, Mark Bevir (1994)
estabeleceu que as interpretações das obras dos autores e o desenvolvimento de
hipóteses e teorias têm que ser “progressistas”, ou seja, têm que ter, entre
várias outras características, a abertura, a “afirmatividade” e a
“compreensibilidade”, ou seja, têm que estar abertas à crítica e ao
aperfeiçoamento, têm que mais afirmar que refutar afirmações diversas e, por
fim, têm que ampliar cada vez mais o escopo de fatos explicados e
interpretados.
No que se refere a Comte, o uso de sua
obra como um “clássico” em uma pesquisa “progressista” foi recentemente feita
por Steiner (2008). Apesar disso, o fundador do Positivismo não é de modo geral
lido e sua serventia consiste muito mais em ser um espantalho para linchamento
em praça pública que em uma referência intelectual efetiva. Está mais do que na
hora de tornar Augusto Comte um “clássico” no sentido verdadeiro e profundo da
expressão – em um sentido... “progressista”.
Referências
ALEXANDER, J. 1996. A importância dos
clássicos. In: GIDDENS, A. & TURNER, J. (orgs.). Teoria
Social hoje. São Paulo: UNESP.
BENOIT, L. O. 1999. Sociologia
comtiana. Gênese e devir. São Paulo: Discurso.
BEVIR, M. 1994. Objectivity in
History. History and Theory, Middletown, v. 33, n. 3, p. 328-344,
Oct.
_____. 2002. The Logic
of the History of Ideas. Cambridge: Cambridge University.
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filosofia. Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Universidade
Estadual do Rio de Janeiro.
[1] Gustavo
Biscaia de Lacerda (gblacerda@ufpr.br) é
doutorando em Sociologia Política na Universidade Federal de Santa Catarina,
sociólogo da Universidade Federal do Paraná, editor da Revista de
Sociologia e Política e de Política & Sociedade e
bolsista do CNPq.
[2] Ora, essa é
precisamente a mesma posição de teóricos (e práticos) atuais da “reforma do
Estado”: cf. Bresser Pereira (2005); Bresser Pereira e Pacheco (2005)e Nóbrega
(2005).
[3]Pode-se
encontrar um desprezo semelhante, mas a partir de uma perspectiva marxista, em
Benoit (1999).
[4] Uma
particularidade: embora a teoria política grega – bem entendido: ateniense, no
período clássico, de Péricles – previsse e realizasse a plena igualdade dos
cidadãos na magistratura por meio do sorteio, para os assuntos que realmente
importavam, ou seja, a realização das guerras não havia “democracia”, não havia
“liberdade positiva”, mas a ação de generais reconhecidos e respeitados como
capazes e competentes.
[5] O Brasil, desde
a promulgação da Constituição de 1988, possui um órgão estatal estritamente
dedicado à fiscalização pública, que é o Ministério Público e cuja atuação é
por todos reconhecida como importante, “republicana” e “democrática”.
Evidentemente, seria um anacronismo caso condenássemos Comte por não pensar em
uma instituição desse tipo, mas, considerando suas idéias e suas opiniões, é
lícito supor que a aplaudisse.
[6] Embora
utilizemos aqui a expressão “sociedade civil organizada e forte”, também
poderíamos usar outra: a habermasiana “esfera pública”, que foi objeto de
detida análise por Pickering (2007).
[7] Para os ciosos da importância política
dos parlamentos, a sua atuação como câmaras orçamentárias não deve ser
diminuído, devido ao caráter absolutamente estratégico, em termos políticos,
que tem a peça orçamentária para qualquer governo. Nesse sentido, aliás,
manifestou-se Delfim Netto (2007). Por fim: a proposta de “orçamento
participativo”, do Partido dos Trabalhadores, não é estrangeira às preocupações
de Comte (cf. SOUZA, 2001).
[8] Um claro
exemplo disso pode ser visto em Franco (2007).
[9] Isso é o
que se percebe na atuação generalizada dos parlamentares dos três níveis de
governo (no caso brasileiro) que apresentam projetos sem sentido apenas para
terem “produção legislativa”; no que se refere às câmaras de vereadores e às
assembléias legislativas, a regra é a apresentação de projetos de homenagem a
personalidades e instituições variadas. Nada disso parece propriamente útil,
defensor das liberdades públicas ou função do governo.
20 fevereiro 2017
Textos sobre Positivismo em várias línguas
No portal e-textes positivistes é possível encontrar milhares de artigos sobre Comte e os positivismos, em inúmeras línguas (francês, português, inglês, espanhol, polonês, russo, chinês, japonês).
Organizado pelo positivista francês Emmanuel Lazinier, esse portal está disponível aqui:
http://confucius.chez.com/clotilde/etexts/etexts.xml
Organizado pelo positivista francês Emmanuel Lazinier, esse portal está disponível aqui:
http://confucius.chez.com/clotilde/etexts/etexts.xml
Citações de espírito positivo na ciência
Carlos Augusto de Proença Rosa, diplomata brasileiro e historiador da ciência, faz as seguintes observações que revelam o espírito positivo, conforme definido por Augusto Comte, em alguns momentos da história científica brasileira e universal:
Cumpre notar que o Museu Nacional foi dirigido, entre 1926 e 1935, pelo também positivista Edgard Roquette-Pinto (como se pode ver na página 26 deste arquivo).
Carlos Augusto de Proença Rosa é autor de u'a monumental História da ciência, em quatro volumes, publicados pela Fundação Alexandre de Gusmão. Eles estão disponíveis aqui, para compra ou para serem baixados:
Em minhas pesquisas sobre a ciência no Brasil, encontrei esta pérola do incomparável Claude Bernard:
“Eu ignoro as causas finais porque eu ignoro a causa inicial... eu me privo de ambas”.Nessa mesma linha, encontrei a seguinte declaração do zoólogo brasileiro e diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, de 1909, João Batista de Lacerda:“As causas primeiras, inacessíveis aos nossos meios de investigação, estão fora da órbita da ciência [...] a interrogação ‘por que?’, referindo-se à razão primeira das coisas, é uma palavra surda-muda, que nada pode dizer, nem ensinar. ‘Como’, ‘de que modo’, ou ‘por que forma’, eis a única interrogação que à ciência é permitida fazer, analisando os fatos”.
Blogue francês: Rendre Comte
O positivista francês Emmunel Lazinier mantém o blogue Rendre Comte, dedicado ao pensamento e à obra de Augusto Comte. Além disso, também participa de debates e polêmicas a partir do Positivismo; desse modo, é um "blogue-irmão" deste Filosofia Social e Positivismo.
Emmanuel Lazinier também é o responsável pelo imponente portal Auguste Comte et le Positivisme (que, aliás, tem uma versão-espelho em inglês), que apresenta uma quantidade enorme de informações sobre Comte, o Positivismo, Clotilde de Vaux, positivistas brasileiros, franceses, ingleses, alemães, escoceses, suecos, espanhóis, indianos etc.
Emmanuel Lazinier também é o responsável pelo imponente portal Auguste Comte et le Positivisme (que, aliás, tem uma versão-espelho em inglês), que apresenta uma quantidade enorme de informações sobre Comte, o Positivismo, Clotilde de Vaux, positivistas brasileiros, franceses, ingleses, alemães, escoceses, suecos, espanhóis, indianos etc.
15 fevereiro 2017
Gazeta do Povo: "Pelo universalismo includente, contra a 'apropriação cultural'"
O artigo abaixo foi publicado em 15.2.2017 na Gazeta do Povo, de Curitiba. O original pode ser lido aqui.
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Nos últimos dias tem recebido destaque, entre os círculos “socialmente engajados”, a ideia da “apropriação cultural”: de acordo com seus defensores, essa proposta promoveria a justiça social e combateria a exploração. O raciocínio é simples: em nome da defesa da cultura de grupos excluídos e/ou explorados, a “apropriação cultural” propõe ser ilegítimo que um membro de uma “cultura” utilize elementos de outra “cultura”.
Essa proposta tem origem nos Estados Unidos, em que a noção de raça é importante e fundamenta a cultura. Lá, os indivíduos definem-se como membros de grupos específicos, determinados pela origem étnica – que, por sua vez, poderia ser aferida de maneira objetiva por atributos físicos –, em vez de verem-se como cidadãos de uma república e integrantes de uma comunidade cultural e política única, mas plural. Além disso, os grupos sociais são justapostos entre si, não se misturam e evitam a mistura. No lugar de universalismo e integração social e cultural, o que há são censuras, “identidades”, rejeições, desconfiança e, claro, ódio mútuo. Embora chamem-no de progressista, esse modelo lembra as propostas de Donald Trump.
A ideia da “apropriação cultural” resulta em intolerância e divisões de ódio
Pode-se argumentar que essa descrição está errada, mas o fato é que ela corresponde a um modelo sociológico amplamente aceito, divulgado e entendido como válido para organizar a sociedade – e para ser exportado. No Brasil, a despeito de afirmarmos que queremos a emancipação intelectual em relação ao “Norte”, o fato é que consumimos avidamente esse modelo e desde há algumas décadas estamos implantando-o na forma de políticas públicas, grotescamente chamadas de “inclusivas”.
É difícil apresentar a “apropriação cultural” sem evidenciar que ela endurece e objetifica vilmente a cultura, tornando-a algo estático, fechado e exclusivo de grupos determinados; e mais: que ela associa a cultura a traços físicos dos membros desses grupos, de tal maneira que a cultura acaba tendo fundamentos estritamente genéticos. Ou seja, salta aos olhos o aspecto racista da “apropriação cultural”.
Pode-se argumentar que ela busca defender e proteger grupos socialmente frágeis. Mas esse é o caso de um suposto remédio que mata o paciente – e envenena todos ao redor. Pois é disso que se trata: a ideia da “apropriação cultural” estabelece que cada grupo social tem sua cultura exclusiva, que é proibida aos demais. Se a cultura é exclusiva, ela não deve ser misturada: logo, deve haver escolas específicas para cada grupo – para brancos, para negros, para mulatos, para japoneses, talvez para judeus... o século 20 já viu aonde vai dar isso.
No Brasil, pelo menos desde o século 19 celebra-se a miscigenação cultural como constituinte de nossa sociedade: os românticos, os abolicionistas, os republicanos diziam-no. O movimento que se considera fundador da nossa modernidade cultural, a Antropofagia, celebrava a mistura. Assim, a ideia da “apropriação cultural” não apenas é contrária aos fundamentos da sociedade brasileira; ela é retrógrada em mais de um século.
Escrever contra a ideia de “apropriação cultural”, a favor do universalismo, de políticas inclusivas, da fraternidade, da miscigenação étnico-cultural, das trocas culturais é expor-me à acusação de... racismo. Isso deveria ser apenas chocante ou risível, mas é verdadeiro e produz resultados muito concretos. Além do rótulo negativo atribuído injustamente a quem é a favor da emancipação humana e da fraternidade, a ideia da “apropriação cultural” resulta em intolerância e divisões de ódio. Por mais que se propagandeie o contrário, é necessário dizê-lo com clareza: isso simplesmente não é progressista, pois todos saímos perdendo.
Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.
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