11 julho 2023

Esboço de uma avaliação positiva do Chat GPT

No dia 24 de Carlos Magno de 169 (11.7.2023) fizemos nossa prédica positiva. Inicialmente demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, concluindo a "Sétima conferência", dedicada à filosofia das ciências naturais.

Na seqüência, na parte do sermão, expusemos algumas reflexões sobre o programa chamado "Chat GPT" e, de maneira mais ampla, sobre a chamada "inteligência artificial" e algumas de suas conseqüências sociais.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://ur1.app/AxImh) e Apostolado Positivista do Brasil (aqui: https://acesse.one/2nB2y). O sermão iniciou-se em 43' 33".

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Esboço de uma avaliação positiva do Chat GPT
  

-        As presentes anotações são uma breve súmula do artigo que escrevi no primeiro semestre de 2023, a convite do prof. Junqueira de Barros, para o livro Do Chat GPT a outras IA: a inteligência artificial e educações, organizado por Cristiane Porto (Universidade Tiradentes, Sergipe)

-        Em 30 de novembro de 2022 foi lançada a versão 3.0 do Chat GPT

o   Foi um sucesso imediato:

§  Seja porque é um programa divertido e inusitado – ele simula conversas (daí o nome “chat”, isto é, “bate-papo” em inglês)

§  Seja porque sua capacidade é gigantesca, incorporando 175 bilhões de parâmetros

§  Seja também – e é este, talvez, o motivo principal do espanto e do sucesso – porque ele simula com um altíssimo grau de semelhança as conversas humanas – e, em inúmeros casos, ele escreve melhor e com informações mais adequadas que os seres humanos

o   O nome do programa “Chat GPT” significa “chat generative pre-trained transformer”, ou seja, “tranformador generativo pré-treinado de conversa”

o   Assim como sua capacidade de simular conversas espantou, vários problemas e limitações do Chat GPT causaram ansiedade e geraram dúvidas e críticas:

§  Reprodução de estereótipos, preconceitos e discursos de ódio e subversivos

§  Informações incorretas, desatualizadas e/ou incoerentes

o   Assim, já em março de 2023 foi lançada a versão 4.0 do programa, procurando corrigir os defeitos acima

-        Direta ou indiretamente o Chat GPT exige uma reflexão toda própria – e, evidentemente, o Positivismo pode e deve realizar tal reflexão:

o   Considerando o Chat GPT como tecnologia que simula o ser humano

o   Considerando o Chat GPT como tecnologia que “organiza” e dissemina idéias, informações e valores

o   Considerando a tecnologia da informação em geral

o   Considerando a tecnologia da “inteligência artificial” em geral

-        A inteligência artificial consiste em mecanismos que coletam, organizam e calculam os termos, as expressões mais empregados pelos usuários e, a partir disso, sugerem resultados (expressões, palavras etc.)

o   A chamada inteligência artificial já é uma realidade e está em nossos dia-a-dias:

§  Robôs de teleatendimento

§  Mecanismos de busca na internet que se autocompletam ou que sugerem possibilidades

o   Os critérios definidos pelos programadores aumentam e refinam-se continuamente

o   Ao mesmo tempo, à medida que mais pessoas usam esses programas, maior a base de dados

o   Trata-se, então, de procedimentos pré-definidos que se realizam com base em operações estatísticas

o   Mas muitos programas estão obtendo resultados sem que os programadores saibam como esses programas chegaram aos resultados obtidos: são as “caixas pretas”

-        A informática emprega as expressões “lógica matemática” e “inteligência artificial”:

o   O sentido da “inteligência artificial” foi mais ou menos indicado acima

o   A “lógica matemática” consiste em operações matemáticas definidas pelos chamados “operadores lógicos”, a partir por exemplo dos princípios da identidade, da não contradição e do terceiro excluído

§  São os valores e as operações de verdade e falsidade, sim e não, incluído e excluído etc.

o   A inteligência, aí, acaba reduzindo-se à chamada “lógica matemática” e tornando-se sinônima dela: “pensar” ou “raciocinar” passa a equivaler a pensar de acordo com os princípios indicados acima

o   Com freqüência os programadores reconhecem a limitação desses conceitos – mas nem sempre o reconhecem

o   Por outro lado, os matemáticos de modo geral reconhecem ainda menos a limitação dos conceitos acima:

§  Seja porque não consideram o assunto

§  Seja porque entendem que essas definições são corretas

o   Assim, é importante termos em mente que os sentidos positivos de inteligência e de lógica

-        Eis o que Augusto Comte entendia por “inteligência” e por “lógica”:

o   Inteligência: é a capacidade de modificar a conduta conforme a situação:

“Ao caracterizar, de um lado, a inteligência conforme sua aptidão a modificar sua conduta conforme as circunstâncias de cada caso – o que constitui, com efeito, o principal atributo prático da razão propriamente dita –, é ainda evidente que, sob essa relação, não menos que sob a precedente, não há espaço para estabelecer realmente, entre a humanidade e a animalidade, nenhuma outra diferença essencial que a do grau mais ou menos pronunciado que pode comportar o desenvolvimento de uma faculdade, necessariamente comum, por sua natureza, a toda vida animal [...]”[1]

“[...] A faculdade de modificar sua conduta conforme sua situação, principal característica da inteligência”[2]

o   Lógica: conjunto de meios disponíveis capazes de inspirar concepções:

“Para caracterizar a lógica relativa que convém à síntese subjetiva, é preciso comparar a sua definição normal com o esboço que formulei, seis anos antes [atrás], na introdução da minha obra principal [Sistema de política positiva, v. 1, de 1851]. Guiado pelo coração, eu já ali proclamei e mesmo sistematizei a influência teórica do sentimento. Uma apreciação mais completa fez-me também consagrar, no mesmo lugar, o ofício fundamental das imagens nas especulações quaisquer. Sob este duplo aspecto, o referido esboço foi satisfatório pois abraçou o conjunto dos meios lógicos, retificando a redução que deles fazia a metafísica que só empregava os sinais. Toda a imperfeição desse esboço consiste em que o destino de tais meios achou-se excessivamente restrito, por não me haver eu desprendido bastante dos hábitos científicos [isto é, cientificistas e academicistas]. Parece, por essa definição, que a verdadeira lógica limita-se a desvendar-nos as verdades que nos convêm, como se o domínio fictício não existisse para nós, ou não comportasse nenhuma regra. Nós devemos sistematizar tanto a conjectura quanto a demonstração, votando todas as nossas forças intelectuais, bem com as nossas forças quaisquer, ao serviço contínuo da sociabilidade, única fonte da verdadeira unidade.

Reconstruída convenientemente, a definição da lógica, incidentemente formulada na página 448 do tomo primeiro da minha Política positiva, exige duas retificações conexas, não no que se refere aos meios mas sim no que se refere ao fim [ao seu objetivo]. Deve-se substituir nela desvendar as verdades por inspirar as concepções, para caracterizar a natureza essencialmente subjetiva das construções intelectuais, e a extensão total do seu domínio, não menos interior do que exterior. Com esta dupla retificação, a minha fórmula inicial torna-se plenamente suficiente. Então somos finalmente conduzidos a definir a lógica: O concurso normal dos sentimentos, das imagens, e dos sinais, para inspirar-nos as concepções que convêm às nossas necessidades morais, intelectuais e físicas [...]”[3].

-        Citação de Teixeira Mendes sobre a necessária utilidade social e humana da ciência e da tecnologia (Teixeira Mendes, 1899, p. 5-7)[4]:

“Seja qual for o problema que solicite a nossa atenção, podemos dispor em duas categorias o conjunto dos dados imprescindíveis à sua completa solução: de um lado, a série de considerações fornecidas pelo mundo; de outro lado, a soma de exigências resultantes dos interesses humanos. É isto que se exprime em linguagem filosófica, dizendo que todo problema tem condições objetivas, – referentes ao mundo, – e condições subjetivas – referentes ao homem. Por exemplo, quando se projeta uma estrada de ferro, não basta examinar as condições do terreno, os lucros pecuniários etc.; cumpre saber sobretudo se a sua realização não importa a ruína da população a cujo cargo estava antes o transporte das mercadorias. E, ao formular a solução, é imprescindível indicar os meios de prevenir semelhante cataclismo, sob pena de ser uma solução incompleta, cientificamente, e iníqua sob o ponto de vista social e moral.

[...]

É para o homem que o homem trabalha; e para o homem devem convergir todos os esforços humanos; fora deste círculo, tudo é imoralidade e anarquia, seja qual for o pretexto e o título com que o decorem.

Ora, o predomínio do ponto da vista humano significa a satisfação dos interesses coletivos, o bem estar de todos, e não as conveniências de um indivíduo, de uma cidade ou de uma nação. Toda a concepção da ordem social que não se mostrar compatível com a felicidade de todos os homens, seja qual for a sua condição e o seu grau de civilização, é um sistema imperfeito, incapaz de satisfazer às inteligências e aos corações bem formados”.

-        Possibilidades positivas do GPT:

o   Substituição ou complemento docente, especialmente em locais de difícil acesso ou com recursos escassos: “mentores virtuais”

o   Auxílio em buscas elementares

o   Elaboração e/ou sugestões de documentos que não exigem ineditismo e/ou autoria identificada: cartas comerciais, roteiros de aulas/exposições, roteiros de RPG, referências bibliográficas elementares

o   Elaboração de obras artísticas complementares (por exemplo: sugestão de conclusão da sinfonia inacabada de Schubert)

-        Correntemente há uma corrida para o desenvolvimento de tecnologias de IA cada vez mais sofisticadas

o   No início de 2023 várias personalidades do âmbito da informática propuseram u’a moratória de seis meses nesse desenvolvimento

§  Seis meses parecem pouco, mas no âmbito da informática isso é um período enorme

§  O mais importante nessa proposta foi o aspecto simbólico e a afirmação de que é necessário pôr o pé no freio e refletir com cuidado a respeito do que se faz

o   A Itália proibiu o uso do Chat GPT enquanto essa tecnologia não se submeter aos parâmetros nacionais e europeus de uso de dados

o   Mesmo os criadores do Chat GPT concordam com isso

-        Problemas do Chat GPT:

o   Possibilidade de enganar as pessoas e/ou de elaborar programas criminosos

o   Estímulo ao desemprego:

§  Perspectiva de extinção em massa de empregos industriais e de serviços repetitivos, que exigem pouca especialização e pouca criatividade

§  Suposta criação compensatória de novos empregos, em outros setores

§  Alienação moral, intelectual e social de muitos dos desenvolvedores de novas tecnologias de informática:

·         Celebração do caráter diruptivo da informática

·         Celebração do desemprego em massa

·         Celebração da substituição concreta dos seres humanos pelos robôs (ou seja, por bonecos animados)

o   Aumento da solidão

§  Ausência de contato humano

§  “Epidemia de solidão” nos EUA

o   Incapacidade de os robôs de teleatendimento resolverem os problemas dos clientes

o   Elaboração das respostas a partir de critérios estatísticos

o   Ausência de indicação das bases pesquisadas (falta de “referências bibliográficas”)

o   Apresentação de respostas com preconceitos, discursos de ódio etc.

o   Estímulo do plágio

§  O problema do ineditismo é secundário, em face dos outros aspectos

§  Mau caratismo intelectual

§  Estímulo à preguiça mental

o   Ausência de indicação de autoria:

§  Não há “autor”, mas o leitor comum considerará que existe, sim, um autor

§  As respostas são elaboradas com base estatística; assim, elas não correspondem a um pensamento, mas a um resumo do que está disponível

§  Constitui-se, assim, uma espécie de anonimato artificial, que dá a impressão de que é um autor de carne e osso: as respostas são “irresponsáveis”, isto é, irresponsabilizáveis

o   Degradação da função sacerdotal

-        Comentários finais:

o   O Chat GPT indica a capacidade humana de criar coisas e desenvolver seus talentos e habilidades

o   O Chat GPT só é possível graças ao respeito às leis naturais: “só dominamos a natureza submentendo-nos a ela” (Francis Bacon)

o   Como auxiliar em muitas funções, o Chat GPT pode ser útil; jamais como substituto do ser humano em geral

o   De modo geral, no que se refere ao conteúdo das informações divulgadas, ele apresenta dois problemas:

§  Informações com vieses negativos

§  Textos sem autoria e, portanto, irresponsáveis

o   A tecnologia da informação, de modo geral, cada vez mais exige atenção pública, na medida em que lida com informações, isto é, dados, idéias, valores

§  Cada vez mais a TI deixa de lidar apenas com o formato da transmissão das informações e interfere no conteúdo dessas informações

§  Isso tem conseqüências sobre as liberdades de pensamento, de expressão e de organização       



[1] Augusto Comte, Sistema de filosofia positiva, 4ª ed., Paris, Sociedade Positivista, 1893; lição 45, p. 623.

[2] Augusto Comte, Síntese subjetiva, Paris, 1856; p. 9.

[3] Augusto Comte, 1856, p. 26, apud Luís Bueno Horta Barbosa, Introdução geral ao estudo da lógica, ou matemática, Rio de Janeiro, Jornal do Comércio, 1933; p. 3-4.

[4] Raimundo Teixeira Mendes, Calendário positivista – precedido de indicações sumárias sobre a teoria positiva do calendário. Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1899.

06 julho 2023

Martins Fontes: "Pétalas soltas do rosal pensante"

Falecido o médico e poeta positivista Martins Fontes em 1937, em 1938 o também positivista Ivan Lins publicou uma coletânea póstuma intitulada Nos jardins de Augusto Comte. Essa coletânea reúne dezenas de poesias positivistas, isto é, inspiradas por motivos, personagens e acontecimentos celebrados pela Religião da Humanidade.

Entre as inúmeras pérolas dessa coletânea está o duplo soneto intitulado "Pétalas soltas no rosal pensante", que consiste no versejamento das máximas de Clotilde de Vaux. (Pode-se consultar essas máximas aqui, aqui, aqui e aqui.)

Devido à beleza, à engenhosidade e à profundidade desses versos, reproduzimo-los abaixo.


Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Martins_Fontes


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Pétalas soltas do rosal pensante

José Martins Fontes[1]             

 

Mais do que as outras, nossa espécie deve

Ter tais obrigações e tais intentos

Que, segundo Clotilde nos prescreve,

            Produza sentimentos

 

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Que prazeres na vida, que venturas,

Para nosso consolo, excederão

As secretas, as íntimas e puras,

            Incomparáveis da dedicação?

 

* * *

 

Melhor do que ninguém, sinto a fraqueza

            Da nossa natureza

Quando não se dirige às soberanas

            Amplidões da pureza,

Inacessíveis às paixões humanas.

 

* * *

 

Quanto mais analiso, estudo e penso,

Mais sinto, porque a dúvida me invade,

Que temos, todos nós, um pé suspenso

            Sobre a soleira da verdade.

 

* * *

 

Tudo, tudo no mundo é perdoável,

E relativo como a própria sorte:

Não há nada na vida irrevogável,

            Senão a morte.

 

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Muitas vezes, na minha soledade,

Ouço do coração íntimos sons:

Os maus, conforme os casos, de piedade

Precisam mais ainda do que os bons.

 


[1] Fonte: Martins Fontes, Nos jardins de Augusto Comte (São Paulo, Comissão Glorificadorfa de Martins Fontes, s/n, 1938). A grafia foi atualizada.

Sobre o "politicamente correto"

No dia 17 de Carlos Magno de 169 (4.7.2023) realizamos a nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua sétima conferência, dedicada à filosofia das ciências naturais.

Após a leitura comentada, realizamos nosso sermão, dedicado nesta semana ao chamado "politicamente correto". As anotações que serviram de base para o sermão estão reproduzidos abaixo.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/kajkk) e Apostolado Positivista do Brasil (aqui: https://acesse.one/10ia6). O sermão pode ser visto a partir de 45' 07".

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Sobre o politicamente correto

-        A expressão “politicamente correto” é uma das mais usadas nas últimas décadas, já tendo sido incorporada ao léxico corrente

o   Essa expressão é extremamente ambígüa:

§  Por um lado, ela serve de parâmetro para avaliação moral, intelectual e social

§  Por outro lado, ela notavelmente não é definida de maneira clara, sendo mais uma “noção” e, ainda mais, sendo objeto de críticas contrárias a ela (ou seja, com freqüência ela é definida por seus críticos, não por seus defensores)

o   Na medida em que o “politicamente correto” pretende regrar padrões de comportamentos morais, intelectuais e sociais, ele é de interesse direto para o Positivismo e, portanto, deve ser objeto de nossas reflexões

-        A origem da expressão vem do inglês “political correctness”, que significa “correção política”

§  O sentido da correção política é o da subordinação das atitudes e das opiniões à estrita conveniência política de um partido político – em particular, do Partido Comunista, com sua disciplina do “centralismo democrático” leninista

§  Apesar de sua origem vinculada ao Partido Comunista, o fato é que é possível – na verdade, é necessário – ampliar a concepção do “political correctness” a diversos outros partidos, tanto de esquerda quanto de direita

§  Essa ampliação é necessária não apenas em termos históricos como também em termos atuais, como as disputas ocorridas nas “redes sociais” com fake news evidenciam intensamente

o   Assim, a correção política consiste em realizar um policiamento intelectual e moral conforme as exigências partidárias do momento, em que se exige que se elogie algo ou alguém ou, inversamente, que não se critique algo ou alguém

o   Esse sentido corresponde, portanto, à subordinação da moral à política e à redução da moralidade às disputas cotidianas pelo poder

§  Evidentemente, essa degradação implica que essa origem, ou melhor, essa vertente do “politicamente correto” é inaceitável

-        Embora o sentido partidário da expressão não seja negligenciável, o sentido mais recente, mais difuso e mais difundido tem um elemento mais claramente moral

o   A origem específica do sentido difuso é desconhecida: isso quer dizer que não conseguimos determinar nenhuma filosofia específica proponente do “politicamente correto”

§  O máximo que conseguimos determinar é que se trata de um impulso originário dos Estados Unidos, a partir dos anos 1980

§  No Brasil o “politicamente correto” começa a difundir-se no início dos anos 1990, talvez já no final dos anos 1980

§  Mas é necessário ter-se clareza de um aspecto: embora não consigamos determinar a origem filosófica específica desse movimento, ainda assim ele surtia efeito, ou seja, ele irradiava-se de algum lugar

§  Além disso, vale notar que sua definição era (como é) feita por seus críticos, não por seus proponentes

o   O conteúdo do “politicamente correto” difuso, em suas linhas gerais, é bastante claro: trata-se do respeito às diferenças, o combate aos preconceitos, a afirmação da dignidade do ser humano em geral e das suas particularidades etc.

§  Portanto, há um forte elemento de fraternidade universal, de dignidade do ser humano; em outras palavras, é um humanismo que se afirma contra as discriminações e as opressões

o   O âmbito de atuação desse “politicamente correto” difuso é a sociedade civil, pelo menos na medida em que ele era difuso, referia-se a valores morais e intelectuais e não tinha defensores (explícitos, pelo menos)

-        Quais as críticas mais comuns, ou mais importantes, ao “politicamente correto”?

o   Em primeiro lugar, a sua “psicologia floco de neve”, que considera que se as pessoas são frágeis e que ao menor sinal de desrespeito ficarão eterna e profundamente marcadas

§  Ainda no âmbito da “psicologia floco de neve”, considera-se que a vida não exige força e persistência para enfrentar-se adversidades variadas, nem que essas mesmas adversidades, bem ou mal, acabem tendo um caráter pedagógico para grupos e indivíduos variados

§  Decorrente dessa “psicologia floco de neve”, o “politicamente correto” difuso previa o uso sistemático de eufemismos e de expressões corretivas variadas, além de uma higiene lingüística geral

o   Uma conseqüência geral das características acima é a sisudez do “politicamente correto” difuso, ou seja, a falta de bom humor

§  É claro que muitas pessoas reclamavam, como reclamam, do “politicamente correto” porque, conforme seus parâmetros, não seria mais possível fazer piadas ofensivas ou preconceituosas

§  Mas, por outro lado, o “politicamente correto” difuso é particularmente mau humorado, rejeitando as piadas de modo geral

·         É importante lembrarmos que rir faz parte da existência humana, sendo importante para relaxarmos a mente, para divertirmo-nos, mesmo para podermos refletir em geral

§  Na verdade, o “politicamente correto” difuso até aceita piadas, desde que sejam dos “oprimidos” contra os “opressores”

·         Sem negar a relativa utilidade de piadas politicamente orientadas, o fato é que esse critério mata o aspecto lúdico das piadas, ao assumir um caráter de combate

§  Tal sisudez, além disso, revela o predomínio da pureza em detrimento da ternura

·         Esse predomínio da pureza em detrimento da ternura costuma estar associado a movimentos inquisitoriais

·         Além disso, a mentalidade própria aos Estados Unidos é particularmente imbuída da busca da pureza, contra a ternura, conforme sua origem protestante

o   A ausência da determinação da origem do “politicamente correto” difuso impede que se faça uma avaliação mais justa do movimento

§  Por que se impede a avaliação mais justa? Porque não se tem acesso a documentos estruturados, com indicação clara de intenções e princípios morais e filosóficos envolvidos

·         O máximo que se tem com um movimento difuso são avaliações gerais, baseadas em noções imprecisas e em críticas negativas

·         A ausência de fontes também impede, ou pelo menos dificulta, que se atribuam responsabilidades aos seus autores e mentores

§  A despeito desses problemas intelectuais e políticos, como veremos na seqüência, o “politicamente correto” em sua vertente difusa acaba tendo algumas virtudes – exatamente devido ao seu caráter difuso

-        Mas, por outro lado, bem vistas as coisas, as características do “politicamente correto” correspondem a uma filosofia e uma política bastante clara: trata-se da política identitária

o   A origem do “politicamente correto” difuso na política identitária é uma sugestão da nossa parte (uma “hipótese de pesquisa”, por assim dizer), a partir das coincidências de valores, concepções e épocas em que ambos passaram a ser difundidos

§  O “politicamente correto” difuso consistiria, então, na difusão da mentalidade e dos valores identitários sem pressão sistemática dos grupos identitários, aliada à simpatia generalizada despertada por sentimentos e valores de fraternidade universal, de combate aos preconceitos e às opressões etc.

o   Como sabemos, a política identitária é particularista e raivosamente exclusivista, ainda que afirme combater preconceitos e opressões

§  O agressivo particularismo exclusivista da política identitária diverge da promessa de fraternidade do “politicamente correto” difuso

·         Mas é claro que essa divergência pode ser explicada pelo caráter difuso do “politicamente correto”, isto é, pela relativa ausência de um claro centro difusor

o   Além disso, o identitarismo tem uma origem pós-moderna, que nega toda a ciência e reduz a sociedade e o mundo (1) a disputas incessantes de poder e (2) a meros discursos

§  A conseqüência da ultrapolitização e do construtivismo lingüístico radical do identitarismo é que, para ele, há apenas “discursos” e as disputas políticas são travadas em torno de palavras

·         É importante notar que o conceito de poder é manipulado de maneira cínica, no sentido de que o poder é exercido apenas pelos supostos opressores contra os identitários e nunca pelos identitários contra outros grupos quaisquer

·         Essa manipulação cínica tem como objetivo permitir a afirmação de que os identitários, “por definição”, nunca oprimem, nunca discriminam

§  Com isso, mudar as palavras torna-se o aspecto central da política identitária: daí os eufemismos, as gírias e a novilíngua identitária

§  A centralidade lingüística do identitarismo denuncia com clareza o seu intelectualismo e, mais ainda, o seu academicismo

o   Um aspecto central do identitarismo, entretanto, é que ele é fortemente orientado para o Estado

§  A “orientação para o Estado” significa que o identitarismo busca com toda a clareza usar o Estado para impor sua agenda moral e intelectual sobre o conjunto da sociedade, tornando políticas oficiais de Estado os eufemismos, as gírias e a novilíngua identitária

§  Nesse sentido, é necessário reconhecer que o “politicamente correto” difuso – que atua na sociedade civil – é diferente da política identitária

·         Essa diferença também pode ser explicada pelo caráter difuso do “politicamente correto”, ou seja, pela aparente ausência de um centro difusor definido

-        Feitas essas observações todas, podemos sugerir uma avaliação do “politicamente correto” pelo Positivismo:

o   A variedade partidária do “politicamente correto” é, pura e simplesmente, inaceitável, na medida em que degrada a moral e também degrada a política

o   A variedade difusa do “politicamente correto”, na medida em que não tem um claro centro difusor, é um pouco mais aceitável

§  O que ela tem de aceitável é a valorização do ser humano, o combate às opressões, o combate aos preconceitos, o cuidado no usar as palavras para não ofender os demais; em uma palavra, trata-se da afirmação da fraternidade universal

§  O caráter difuso dessa variedade acarreta alguns problemas e permite algumas qualidades:

·         Os defeitos estão na impossibilidade efetiva de avaliação consistente e na pieguice da moralidade implícita (“psicologia floco de neve”)

·         As qualidades são uma conseqüência do caráter difuso, em que os sentimentos generosos e amplos suplantam a origem identitária particularista e raivosa (trata-se de uma versão política e moral do “quem conta um conto acrescenta, ou modifica, um ponto”)

o   Sugerimos aqui a origem identitária do “politicamente correto” difuso: o identitarismo, apesar de afirmar-se “libertador”, é exclusivista, excludente, agressivo; ele explícita e conscientemente nega a universalidade de valores, a começar pela fraternidade universal

§  O identitarismo, além desses graves defeitos morais e intelectuais, não esconde que busca usar o Estado para impor seus valores como política oficial de Estado

§  Assim, repetindo algo dito acima, o resultado é que o “politicamente correto” difuso, ainda que tenha problemas intelectuais e morais, exatamente devido ao seu caráter difuso – ou seja, meio vago – torna-se superior à sua origem sistemática, que é o identitarismo

27 junho 2023

Sobre as qualidades práticas

No dia 10 de Carlos Magno de 169 (27.6.2023) realizamos nossa prédica positiva. Em um primeiro momento demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua sétima conferência, dedicada à filosofia das ciências naturais.

Em seguida, na parte do sermão, abordamos as qualidades práticas, isto é, os atributos da natureza humana identificadas por Augusto Comte com a atividade prática - a coragem, a prudência e a perseverança. 

A prédica pode ser vista nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/FNVUV) e Apostolado Positivista do Brasil (aqui: https://acesse.one/Dc5Bl). O sermão começa em 45' 38".

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Sobre as qualidades práticas
 

-        Ao tratar da natureza humana, Augusto Comte seguiu uma tradição que estabelecia o seu caráter triplo: sentimentos, inteligência e atividade prática

-        Geralmente, quando consideramos o quadro da natureza humana, ou quadro cerebral, ou quadro da alma, enfatizamos as funções afetivas, em número de dez (sete egoístas e três altruístas)

o   Nesse caso, as funções intelectuais e as práticas por vezes são desconsideradas – não porque sejam desimportantes, mas porque, sendo o grande problema humano vinculado à relação entre egoísmo e altruísmo, a atenção tende naturalmente a concentrar-se nos sentimentos

o   Assim, vale a pena fazermos algumas reflexões sobre as “qualidades práticas”, juntamente com alguns aspectos intelectuais e também as máximas morais propostas por Augusto Comte

-        Como sabemos, elas são em número de três: coragem, prudência e perseverança

o   A coragem e a prudência constituem a atividade; a perseverança constitui a firmeza

-        A coragem e a prudência representam impulsos em parte opostos, em parte complementares para a ação

o   A coragem é o impulso que nos leva efetivamente a agir; é o impulso que nos conduz a enfrentar os desafios, as dificuldades ou os perigos que a vida propõe-nos ou impõe-nos; é o impulso que nos leva a pôr-nos contra alguma coisa, alguém e/ou alguma situação

§  Continuamente precisamos de coragem, para as mais diferentes situações da vida: no trabalho, nas relações pessoais, nas idéias etc.

·         Se pensarmos bem, mesmo para sairmos da cama, após acordarmos, precisamos de coragem

§  Podemos portanto dizer que há vários tipos de coragem: física, intelectual, moral

§  A falta de coragem pode ser medo ou covardia: pode ser um receio mais ou menos momentâneo; pode ser um pavor patológico (no caso das fobias); pode ser a ausência corrente do impulso para enfrentar os desafios da vida

o   A prudência é o impulso que nos faz resguardar-nos em face dos perigos e/ou das dificuldades

§  Assim, enquanto a coragem leva-nos a agir, a prudência modera e altera esse impulso

§  Há na prudência um aspecto intelectual, ao mesmo tempo em que um sentimento de autopreservação

§  Assim como a coragem pode ser vários tipos, a prudência pode sugerir-nos várias possibilidades: o melhor momento, o melhor meio, as melhores disposições

o   Como indicamos antes, a coragem e a prudência representam impulsos ao mesmo tempo opostos e complementares:

§  A coragem leva-nos a afrontar algum desafio, enquanto a prudência sugere meios de isso ocorrer sem que soframos danos

§  A coragem sem prudência é a temeridade; a prudência sem coragem é covardia

-        A perseverança corresponde à firmeza, isto é, a capacidade de mantermos uma decisão ao longo do tempo e/ou apesar das dificuldades impostas a essa manutenção

o   A perseverança vincula-se, por um lado, à paciência e, por outro lado, também à esperança

o   A perseverança tem um aspecto temporal (manter uma postura ao longo do tempo) e também pode ter um aspecto de resistência (suportar as adversidades)

o   A perseverança é igualmente complementar à coragem e à prudência:

§  A coragem sem firmeza torna-se impulso momentâneo (“fogo de palha”) e aproxima-se da covardia ou da irresponsabilidade

§  A prudência sem firmeza transforma a coragem em temeridade

-        Embora as três qualidades práticas sejam claramente distintas entre si, fica bastante evidente que elas atuam de maneira necessariamente conjunta e convergente – isto é, sinérgica – nas vidas de todos os seres humanos, embora variem de acordo com o aspecto envolvido, o momento e o grupo/indivíduo

-        Também é importante notar que os atributos práticos implicam sempre vontades (mais ou menos conscientes)

o   Um sinônimo para as “vontades” são as “intenções”

o   As vontades conscientes implicam o conjunto da natureza humana (sentimentos, inteligência e atributos práticos), mas, de qualquer maneira, evidenciam uma inteligência atuante

§  Na Trindade Positiva, a inteligência – e, daí, a vontade – pertence exclusivamente ao Grande Ser, isto é, à Humanidade (o Grão-Meio, o Espaço, tem apenas sentimentos e o Grão-Fetiche, a Terra, tem sentimentos e atividade)

o   Na medida em que os atributos práticos implicam vontades humanas, nesse âmbito específico faz sentido perguntar-se os “porquês” das ações

o   Entretanto, há que se ter clareza: a vontade humana não é caprichosa nem arbitrária

§  Há uma diferença clara entre querer algo e obter esse algo: no puro ato da volição, o objeto do desejo até pode ser caprichoso e mais ou menos arbitrário; mas a obtenção efetiva desse objeto de desejo sempre se dá conforme os limites impostos pelas leis naturais e pelo princípio de que o ser humano modifica a natureza subordinando-se a ela (subordinação dos fenômenos mais nobres aos mais grosseiros)

-        Há um aspecto prático na concepção das leis naturais que com freqüência não é percebido pelas pessoas que estudam o Positivismo: trata-se do caráter geral das leis naturais e, portanto, de seu distanciamento dos casos específicos

o   Esse aspecto das leis naturais é decorrente do seu caráter abstrato, ou seja, do fato de que, para serem elaboradas, as leis têm necessariamente que desconsiderar uma série de aspectos concretos

o   Ao investigar-se um caso concreto, em que se busca aplicar uma lei natural, o arranjo geral estipulado pela lei é complementado pelo conhecimento concreto e específico de cada situação

§  Isso quer dizer, por seu turno, que é necessário querer conhecer os detalhes concretos: daí que “são necessárias vontades para completar as leis”

o   Esse aspecto de “incompletude generalista” das leis naturais tem dois resultados práticos importantes:

§  Por um lado, estabelece a diferença entre a teoria e a prática, entre as previsões teóricas e os resultados concretos

§  Por outro lado e em conseqüência do aspecto indicado acima, estabelece que não faz sentido nenhum falar em “determinismo” no âmbito do Positivismo

§  Por outro lado ainda, também como outra conseqüência dos aspectos indicados acima, não faz sentido falar em “leis probabilísticas” no âmbito do Positivismo

-        Há um outro aspecto vinculado os atributos práticos e as concepções de leis naturais, no que se refere ao “determinismo”:

o   Quanto mais complicados os fenômenos, maior a possibilidade de modificação dos arranjos secundários (isto é, da manipulação das variáveis)

§  No caso das ciências superiores, não apenas a amplitude dos fenômenos é muito maior como, também, a possibilidade de variação secundária é maior

o   Isso abre um amplo campo de atuação humana intencional, nas mais variadas áreas

§  As leis naturais correspondem à constância em meio à variedade

o   A complexidade dos fenômenos superiores e a definição das leis naturais permitem a atuação cada vez maior do ser humano, com sua digna liberdade, isto é, com uma vontade livre e respeitante das leis naturais

§  Isso, por definição, opõe-se tanto ao “determinismo” quanto à concepção teológico-metafísica de “liberdade”

-        Do que foi dito até agora, fica bastante claro que – como tudo na vida humana – os atributos práticos mantêm íntimas relações com a moral:

o   Em primeiro lugar, como já vimos, a atividade prática é o âmbito da vontade humana consciente: mas essa vontade não é arbitrária nem caprichosa

o   Em segundo lugar, a atividade prática é o âmbito de atuação efetiva dos sentimentos e de aplicação da inteligência

§  A atividade prática estabelece o critério da utilidade, que é o critério fundamental complementar à realidade das concepções humanas

§  Dessa forma, a realidade prática limita e orienta a inteligência, juntamente com os sentimentos

o   Em terceiro lugar, a atividade prática tem suas exigências específicas (por exemplo, as atividades econômicas e as políticas)

§  Mas é claro que, como tudo na vida, as exigências específicas da atividade prática têm que desenvolver a simpatia (isto é, o altruísmo), a partir das concepções sintéticas

o   Em quarto lugar, os atributos práticos devem ser regulados de acordo com as exigências simpáticas e sintéticas – daí uma importância adicional para as máximas de Augusto Comte:

§  “Agir por afeição e pensar para agir”: estabelece a relação normal do conjunto da natureza humana e, portanto, regula os atributos práticos

§  “Viver para outrem”: implica a perseverança e orienta a coragem

§  “Viver às claras”: implica a perseverança e regula também a prudência