08 dezembro 2025

Monitor Mercantil: Intelectuais e vida coletiva – 1

No dia 6 de Bichat de 171 (8.12.2025) o jornal carioca Monitor Mercantil publicou um artigo de nossa autoria intitulado "Intelectuais e vida coletiva - 1". Esse artigo é o primeiro de uma série que abordará, nos próximos meses, a atuação pública e política dos chamados "intelectuais".

O original pode ser lido aqui: https://monitormercantil.com.br/intelectuais-e-vida-coletiva-1/.

Reproduzimos abaixo o texto.

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Pessoa com caderno e notebook (foto Unsplash).

Intelectuais e vida coletiva – 1

Quem são, qual o fundamento da sua ação, qual a sua situação institucional e para que servem os intelectuais? Por Gustavo Biscaia de Lacerda.


Um dos aspectos mais importantes em qualquer sociedade é a atuação dos intelectuais. Mas, ao mesmo tempo em que é importante, essa atuação é cada vez mais confusa e incompreendida, tanto da parte da sociedade quanto dos governos quanto, para piorar muito mais, da parte dos próprios intelectuais.

Qualquer pessoa que lê livros de história, sociologia, filosofia – ou melhor, qualquer pessoa que acompanhe os jornais diários percebe que as disputas políticas, as brigas intelectuais, as modas acadêmicas alteram profundamente a atuação dos intelectuais.

No dia a dia, o que vemos é esta verdadeira mixórdia:

  1. Quem são os intelectuais? Jornalistas, filósofos, professores, pesquisadores universitários, pesquisadores independentes, padres, pastores, pais/mães de santo, gurus, autores de autoajuda, influenciadores, agentes do governo? São pessoas que atuam isoladamente, que representam organizações, que falam em nome de corporações?
  2. Qual o fundamento da ação dos intelectuais? São pessoas que falam por inspiração divina, que falam ao incorporarem espíritos, que falam ao consumirem drogas alucinógenas, que falam como pesquisadores das ciências naturais, que falam como pesquisadores das ciências humanas, que falam como filósofos, que falam como líderes comunitários, que falam porque são pagos por jornais, que falam porque o governo manda, que falam porque estão em partidos políticos?
  3. Para que servem os intelectuais? Para explicar aspectos da realidade, para explicar a vida após a morte, para explicar a ira divina, para justificar a ordem social, para criticar a ordem social, para propor a revolução, para propor o retorno à ordem antiga, para justificar as ações de políticos e de governos, para aumentar a erudição pessoal, para disseminar o conhecimento, para estimular o amor, para estimular o ódio?
  4. A situação institucional dos intelectuais importa ou não? Um filósofo escondido nos confins do país tem a mesma “relevância” de quem é pago pelos principais jornais (impressos e da TV) para dar suas opiniões ou que os professores universitários das grandes universidades do Sudeste do Brasil?

Em meio a essa confusão – queremos evitar a palavra “caos” –, os chamados intelectuais atuam e influenciam. É importante, assim, entendermos um pouco o que eles são e como atuam – especialmente porque, como o parágrafo acima sugere, essas questões não são nada evidentes. Vale a pena dedicarmos alguns artigos desta coluna a essa questão.

O aspecto fundamental é: para que servem os intelectuais? A bem da verdade, não dá para responder a essa questão sem que se considere as várias sociedades envolvidas. Diferentes sociedades têm diferentes grupos de intelectuais, que atuam de diferentes maneiras. Apesar disso, ainda assim, todos precisamos de um conceito geral e básico, que permita começar a organizar a barafunda de possibilidades que vivemos hoje.

De nada nos serve pura e simplesmente afirmar a diversidade concreta de possibilidades de atuação dos intelectuais e achar que isso basta: se não tivermos uma clareza mínima nas ideias, o entendimento da realidade será pobre e, daí, nossas ações serão confusas e prejudiciais. (Aliás, isso já sugere algumas das funções dos intelectuais: explicar a realidade, organizar as ideias e permitir a orientação das condutas práticas.)

Para esse conceito mínimo dos intelectuais, a referência obrigatória nesse caso – como em inúmeros outros, aliás – é Augusto Comte, não por acaso o fundador da Sociologia. Para Comte, todas as sociedades se caracterizam por alguns elementos, que ele resume em número de cinco, ou melhor, seis: família, linguagem, propriedade, religião e governo; o governo desdobra-se em governo temporal e poder espiritual.

Para evitar confusões: a religião aqui tem que ser entendida como a regulação geral da existência humana; assim, ela não pode ser confundida com a teologia (que é só uma forma específica e transitória de religião). Já a propriedade, por seu turno, é a base material das sociedades, de modo que engloba a produção e a reprodução econômica e a organização social que se divide na força concentrada (com os chefes industriais) e a força dispersa (com os proletários).

Mas o que nos interessa é o governo: ele serve para impor à sociedade os rumos julgados mais importantes pelo conjunto da sociedade, o que equivale dizer que é a reação da sociedade sobre os indivíduos. Dessa forma, para Comte não existe sociedade sem governo (assim como, inversamente, não existe governo sem sociedade).

Há duas possibilidades gerais de atuação do governo: via força física, de maneira objetiva, e via aconselhamento, de maneira subjetiva. No primeiro caso nós temos o governo propriamente dito, também conhecido como Estado; é o que A. Comte chamava de “poder temporal”, que se impõe em última análise pela força física, isto é, pela violência legítima. Já o governo que se baseia no aconselhamento é o “poder espiritual”; ele convence as pessoas, a partir da educação, das ideias e dos valores compartilhados. É nele que atuam principalmente os “intelectuais”.

Como os fundamentos da atuação de cada um desses poderes são diferentes, convém que os responsáveis por eles estejam separados. É claro que há uma convergência geral nessas atuações, no sentido de que esses poderes visam a orientar a sociedade e os indivíduos; mas os resultados sobre os indivíduos e a sociedade são diferentes.

O Estado age de maneira objetiva e constrange os corpos; dessa forma, não lhe interessa se os indivíduos gostam ou não das decisões, se concordam ou não com elas: o que importa é que obedeçam e respeitem as decisões. (É claro que o Estado não pode desprezar a aceitação individual das decisões; mas, em última análise, caso necessário, ele imporá as decisões a despeito das vontades individuais.)

Como o poder espiritual aconselha a partir de ideias e valores compartilhados pela educação, a dignidade individual está subentendida aí: para que alguém seja convencido de algo, ele deve ter autonomia para isso, o que implica tempo e decisão individual.

Diversidade de meios, mas ação sobre as mesmas pessoas: o Estado e o poder espiritual podem ficar juntos ou separados. Ao longo da história, a sua união foi a regra, seja nas teocracias, seja no cesaropapismo; mas nos últimos dois séculos a sua separação é cada vez mais valorizada, no que se chama vulgarmente de “laicidade do Estado”. Isso será comentado na próxima coluna.

Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR.

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