Este blogue é dedicado a apresentar e a discutir temas de Filosofia Social e Positivismo, o que inclui Sociologia e Política. Bem-vindo e boas leituras; aguardo seus comentários! Meu lattes: http://lattes.cnpq.br/7429958414421167. Pode-se reproduzir livremente as postagens, desde que citada a fonte.
28 junho 2023
I Ciclo de Palestras do Centro Positivista do Lavradio (Rio de Janeiro)
27 junho 2023
Sobre as qualidades práticas
No dia 10 de Carlos Magno de 169 (27.6.2023) realizamos nossa prédica positiva. Em um primeiro momento demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua sétima conferência, dedicada à filosofia das ciências naturais.
Em seguida, na parte do sermão, abordamos as qualidades práticas, isto é, os atributos da natureza humana identificadas por Augusto Comte com a atividade prática - a coragem, a prudência e a perseverança.
A prédica pode ser vista nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/FNVUV) e Apostolado Positivista do Brasil (aqui: https://acesse.one/Dc5Bl). O sermão começa em 45' 38".
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Sobre as qualidades práticas
- Ao tratar da natureza humana, Augusto Comte seguiu uma tradição que estabelecia o seu caráter triplo: sentimentos, inteligência e atividade prática
- Geralmente, quando consideramos o quadro da natureza humana, ou quadro cerebral, ou quadro da alma, enfatizamos as funções afetivas, em número de dez (sete egoístas e três altruístas)
o Nesse caso, as funções intelectuais e as práticas por vezes são desconsideradas – não porque sejam desimportantes, mas porque, sendo o grande problema humano vinculado à relação entre egoísmo e altruísmo, a atenção tende naturalmente a concentrar-se nos sentimentos
o Assim, vale a pena fazermos algumas reflexões sobre as “qualidades práticas”, juntamente com alguns aspectos intelectuais e também as máximas morais propostas por Augusto Comte
- Como sabemos, elas são em número de três: coragem, prudência e perseverança
o A coragem e a prudência constituem a atividade; a perseverança constitui a firmeza
- A coragem e a prudência representam impulsos em parte opostos, em parte complementares para a ação
o A coragem é o impulso que nos leva efetivamente a agir; é o impulso que nos conduz a enfrentar os desafios, as dificuldades ou os perigos que a vida propõe-nos ou impõe-nos; é o impulso que nos leva a pôr-nos contra alguma coisa, alguém e/ou alguma situação
§ Continuamente precisamos de coragem, para as mais diferentes situações da vida: no trabalho, nas relações pessoais, nas idéias etc.
· Se pensarmos bem, mesmo para sairmos da cama, após acordarmos, precisamos de coragem
§ Podemos portanto dizer que há vários tipos de coragem: física, intelectual, moral
§ A falta de coragem pode ser medo ou covardia: pode ser um receio mais ou menos momentâneo; pode ser um pavor patológico (no caso das fobias); pode ser a ausência corrente do impulso para enfrentar os desafios da vida
o A prudência é o impulso que nos faz resguardar-nos em face dos perigos e/ou das dificuldades
§ Assim, enquanto a coragem leva-nos a agir, a prudência modera e altera esse impulso
§ Há na prudência um aspecto intelectual, ao mesmo tempo em que um sentimento de autopreservação
§ Assim como a coragem pode ser vários tipos, a prudência pode sugerir-nos várias possibilidades: o melhor momento, o melhor meio, as melhores disposições
o Como indicamos antes, a coragem e a prudência representam impulsos ao mesmo tempo opostos e complementares:
§ A coragem leva-nos a afrontar algum desafio, enquanto a prudência sugere meios de isso ocorrer sem que soframos danos
§ A coragem sem prudência é a temeridade; a prudência sem coragem é covardia
- A perseverança corresponde à firmeza, isto é, a capacidade de mantermos uma decisão ao longo do tempo e/ou apesar das dificuldades impostas a essa manutenção
o A perseverança vincula-se, por um lado, à paciência e, por outro lado, também à esperança
o A perseverança tem um aspecto temporal (manter uma postura ao longo do tempo) e também pode ter um aspecto de resistência (suportar as adversidades)
o A perseverança é igualmente complementar à coragem e à prudência:
§ A coragem sem firmeza torna-se impulso momentâneo (“fogo de palha”) e aproxima-se da covardia ou da irresponsabilidade
§ A prudência sem firmeza transforma a coragem em temeridade
- Embora as três qualidades práticas sejam claramente distintas entre si, fica bastante evidente que elas atuam de maneira necessariamente conjunta e convergente – isto é, sinérgica – nas vidas de todos os seres humanos, embora variem de acordo com o aspecto envolvido, o momento e o grupo/indivíduo
- Também é importante notar que os atributos práticos implicam sempre vontades (mais ou menos conscientes)
o Um sinônimo para as “vontades” são as “intenções”
o As vontades conscientes implicam o conjunto da natureza humana (sentimentos, inteligência e atributos práticos), mas, de qualquer maneira, evidenciam uma inteligência atuante
§ Na Trindade Positiva, a inteligência – e, daí, a vontade – pertence exclusivamente ao Grande Ser, isto é, à Humanidade (o Grão-Meio, o Espaço, tem apenas sentimentos e o Grão-Fetiche, a Terra, tem sentimentos e atividade)
o Na medida em que os atributos práticos implicam vontades humanas, nesse âmbito específico faz sentido perguntar-se os “porquês” das ações
o Entretanto, há que se ter clareza: a vontade humana não é caprichosa nem arbitrária
§ Há uma diferença clara entre querer algo e obter esse algo: no puro ato da volição, o objeto do desejo até pode ser caprichoso e mais ou menos arbitrário; mas a obtenção efetiva desse objeto de desejo sempre se dá conforme os limites impostos pelas leis naturais e pelo princípio de que o ser humano modifica a natureza subordinando-se a ela (subordinação dos fenômenos mais nobres aos mais grosseiros)
- Há um aspecto prático na concepção das leis naturais que com freqüência não é percebido pelas pessoas que estudam o Positivismo: trata-se do caráter geral das leis naturais e, portanto, de seu distanciamento dos casos específicos
o Esse aspecto das leis naturais é decorrente do seu caráter abstrato, ou seja, do fato de que, para serem elaboradas, as leis têm necessariamente que desconsiderar uma série de aspectos concretos
o Ao investigar-se um caso concreto, em que se busca aplicar uma lei natural, o arranjo geral estipulado pela lei é complementado pelo conhecimento concreto e específico de cada situação
§ Isso quer dizer, por seu turno, que é necessário querer conhecer os detalhes concretos: daí que “são necessárias vontades para completar as leis”
o Esse aspecto de “incompletude generalista” das leis naturais tem dois resultados práticos importantes:
§ Por um lado, estabelece a diferença entre a teoria e a prática, entre as previsões teóricas e os resultados concretos
§ Por outro lado e em conseqüência do aspecto indicado acima, estabelece que não faz sentido nenhum falar em “determinismo” no âmbito do Positivismo
§ Por outro lado ainda, também como outra conseqüência dos aspectos indicados acima, não faz sentido falar em “leis probabilísticas” no âmbito do Positivismo
- Há um outro aspecto vinculado os atributos práticos e as concepções de leis naturais, no que se refere ao “determinismo”:
o Quanto mais complicados os fenômenos, maior a possibilidade de modificação dos arranjos secundários (isto é, da manipulação das variáveis)
§ No caso das ciências superiores, não apenas a amplitude dos fenômenos é muito maior como, também, a possibilidade de variação secundária é maior
o Isso abre um amplo campo de atuação humana intencional, nas mais variadas áreas
§ As leis naturais correspondem à constância em meio à variedade
o A complexidade dos fenômenos superiores e a definição das leis naturais permitem a atuação cada vez maior do ser humano, com sua digna liberdade, isto é, com uma vontade livre e respeitante das leis naturais
§ Isso, por definição, opõe-se tanto ao “determinismo” quanto à concepção teológico-metafísica de “liberdade”
- Do que foi dito até agora, fica bastante claro que – como tudo na vida humana – os atributos práticos mantêm íntimas relações com a moral:
o Em primeiro lugar, como já vimos, a atividade prática é o âmbito da vontade humana consciente: mas essa vontade não é arbitrária nem caprichosa
o Em segundo lugar, a atividade prática é o âmbito de atuação efetiva dos sentimentos e de aplicação da inteligência
§ A atividade prática estabelece o critério da utilidade, que é o critério fundamental complementar à realidade das concepções humanas
§ Dessa forma, a realidade prática limita e orienta a inteligência, juntamente com os sentimentos
o Em terceiro lugar, a atividade prática tem suas exigências específicas (por exemplo, as atividades econômicas e as políticas)
§ Mas é claro que, como tudo na vida, as exigências específicas da atividade prática têm que desenvolver a simpatia (isto é, o altruísmo), a partir das concepções sintéticas
o Em quarto lugar, os atributos práticos devem ser regulados de acordo com as exigências simpáticas e sintéticas – daí uma importância adicional para as máximas de Augusto Comte:
§ “Agir por afeição e pensar para agir”: estabelece a relação normal do conjunto da natureza humana e, portanto, regula os atributos práticos
§ “Viver para outrem”: implica a perseverança e orienta a coragem
§ “Viver às claras”: implica a perseverança e regula também a prudência
23 junho 2023
Live AOP com Ricardo Cortez Lopes: "A ciência cabe em frases? Divulgando por meio de aforismas"
20 junho 2023
Sobre materialismo e espiritualismo/idealismo
No dia 3 de Carlos Magno de 169 (20.6.2023) realizamos nossa habitual prédica positiva. Após darmos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista (em sua sétima conferência, dedicada à filosofia das ciências naturais), realizamos nosso sermão, que abordou os vícios intelectuais opostos do materialismo e do espiritualismo/idealismo.
As anotações que serviram de base para a exposição oral estão reproduzidas abaixo.
Antes das atividades da prédica, lamentamos e criticamos dois acontecimentos recentes: (1) a tramitação acelerada do projeto de "Lei da Carteirada", que consolida os ocupantes de cargos públicos como uma casta no Brasil e degrada totalmente o caráter de responsabilização próprio à República, ao criminalizar as críticas feitas contra eles; (2) o mais recente episódio de assassinato perpretado por adolescentes ou jovens adultos em escolas públicas, agora ocorrido no interior do Paraná (em Cambé), no dia 19.6.2023.
A prédica foi transmitida, como de hábito, nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/Itn9w) e Apostolado Positivista do Brasil (aqui: https://l1nk.dev/fLXgY). O sermão está disponível a partir de 54' 27".
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Sobre o materialismo e o espiritualismo/idealismo
o Entre essas supostas características gerais apresentam-se com freqüência duas, que têm conteúdos opostos: o materialismo e o espiritualismo/idealismo
o Além de serem características que, mais que descrever o Positivismo, degradam-no e reduzem-no ao que ele não é, devemos também indicar que o Positivismo por si só tem muito o que dizer a respeito delas, no sentido de que o Positivismo define com clareza esses conceitos
- Antes de mais nada, então, vale a pena sabermos como é que se pode atribuir ao Positivismo cada um desses conceitos
- Atribui-se (erroneamente!) o materialismo à Religião da Humanidade, por um lado, devido à importância que a ciência tem no Positivismo, com os vários atributos reais ou imputados, bem ou mal, à ciência: empirismo, naturalismo etc.; por outro lado, devido à rejeição do sobrenaturalismo
o A ultrapassagem da teologia, em particular, com a conseqüente rejeição do sobrenaturalismo, conduz com freqüência à concepção de que o Positivismo seria materialista – e, às vezes, seria materialista porque seria ateu
§ Claramente, os que afirmam que o Positivismo é “materialista” e/ou “ateu” são pensadores teológicos
§ Às vezes, autores materialistas atribuem ao Positivismo o caráter de materialismo - e, nesse caso, essa atribuição, ainda que errrada, é elogiosa
o Se adotarmos uma concepção rasa e genérica de “materialismo” como consistindo na rejeição do sobrenaturalismo e na concomitante afirmação do naturalismo, então, de fato, o Positivismo seria “materialista”
o No que se refere ao suposto ateísmo, a Religião da Humanidade pura e simplesmente não é atéia, podendo ser denominada, nesse sentido, de “agnóstica”
§ O ateísmo encontra-se no âmbito da metafísica, com seu caráter crítico, corrosivo, destruidor e sua ambição absolutista
§ Com enorme freqüência, devido à lógica interna do ateísmo, muitos ateus acabam rejeitando o humanismo e/ou adotando o individualismo egoístico
§ Como dizia Augusto Comte – criticando o ateísmo –, os ateus mantêm a pergunta ("quem criou o universo?") mas rejeitam a única resposta possível (a(s) divindade(s))
§ O Positivismo considera que o ateísmo, como a metafísica de modo geral, foi uma etapa histórica necessária, mas estritamente passageira e destinada a ser ultrapassada
§ O Positivismo afirma a Humanidade e o humanismo, a partir do estudo da realidade; assumimos como pressuposto que as concepções teológicas são, em si mesmas, fictícias e seguimos adiante com a já indicada afirmação do ser humano, do humanismo e da Humanidade
- Atribui-se (erroneamente!) o espiritualismo ao Positivismo, por um lado, devido à afirmação do valor das idéias, das concepções morais, da subjetividade, da vida subjetiva e, por outro lado, devido à afirmação da Religião da Humanidade
o Um sinônimo – na verdade, de uso até mais comum no que se refere ao Positivismo – para esse espiritualismo é “idealismo”
o Quando afirmam que o Positivismo seria “idealista” ou “espiritualista” devido à Religião da Humanidade, o que está implícito é a afirmação (na verdade, acusação) de que no final das contas o Positivismo teria retrogradado para a teologia
o Claramente, os que afirmam que o Positivismo é “espiritualista” ou “idealista” são pensadores cientificistas, sejam eles meramente cientistas, sejam eles marxistas, sejam ainda ateus militantes
- Passemos, então, para os conceitos positivos de “materialismo” e “espiritualismo”:
o Para o Positivismo, o materialismo e espiritualismo basicamente são vícios intelectuais – e são vícios simétricos
o Embora basicamente sejam vícios intelectuais, eles apresentam conseqüências morais
- Para entender-se o caráter vicioso desses conceitos e seu aspecto simétrico, é necessário termos em mente a escala enciclopédica:
o A escala enciclopédica estabelece que existem sete níveis de estudo da realidade; cada nível constitui-se de fenômenos irredutíveis aos graus anteriores e que servem de base para os graus subseqüentes; além disso, partindo do nível mais simples, mais geral (em termos objetivos) e mais grosseiro, a cada nível que se sobe há um aumento na complicação, há um decréscimo da generalidade (objetiva) e um aumento na nobreza do fenômeno estudado
o Os sete níveis podem ser ajustados de diversas maneiras, reduzindo-se a escala para seis, cinco, quatro, três ou no mínimo dois graus
§ Esses dois graus correspondem à Cosmologia e à Moral
§ Essa oposição, por sua vez, corresponde à dualidade fundamental entre o mundo e o ser humano
§ Essa dualidade, por sua vez, pode ser entendida como os âmbitos da objetividade e da subjetividade (ou, ainda, do método objetivo e do método subjetivo)
o Em relação aos sete degraus da escala enciclopédica, o Positivismo afirma a dignidade de cada nível de fenômenos
§ É importante repetirmos: a dignidade de cada degrau consiste no reconhecimento simultâneo de que cada nível congrega categorias gerais de fenômenos sui generis, que são irredutíveis aos fenômenos dos degraus inferiores; além disso, cada degrau constitui a base para o desenvolvimento dos fenômenos superiores
o Assim, em outras palavras, a dignidade de cada nível é diferente:
§ (1) da subordinação dos fenômenos mais nobres aos mais grosseiros (estabelecida pelo método objetivo) e
§ (2) da avaliação teórica, metodológica e moral dos fenômenos mais grosseiros pelos mais nobres (realizada pelo método subjetivo)
- Estabelecidos os degraus da escala enciclopédica, a dignidade de cada um deles e as relações que eles necessariamente mantêm entre si, podemos afinal passar diretamente para os conceitos de materialismo e espiritualismo:
o O materialismo consiste na explicação de fenômenos superiores pelos inferiores, via redução
§ Os exemplos são numerosos: são os vícios do matematicismo (redução da realidade aos números, como ocorre com freqüência com a Estatística), do astronomismo (com a astrologia), do fisicalismo (com o mecanicismo), do biologicismo (em que a sociedade e os indivíduos são reduzidos a animais e/ou a genes), do economicismo (em que a sociedade e os indivíduos são reduzidos aos interesses de classe) etc.
o O espiritualismo consiste na afirmação dos fenômenos superiores desconsiderando (isto é, rejeitando, ou fingindo que não existem) os fenômenos inferiores
§ As concepções idealistas geralmente são espiritualistas, no sentido indicado, em que o que move as sociedades são “espíritos” e/ou “idéias” abstratas e em que não há relação nenhuma do ser humano com a realidade cósmica
§ Em outras palavras, o espiritualismo/idealismo considera que o ser humano flutua no vazio
· Exemplo: a oposição de negação mútua, estabelecida pela metafísica idealista alemã, entre Kultur e Zivilitation
o Augusto Comte observa que, até a constituição definitiva do Positivismo e da Religião da Humanidade, o método objetivo e o método subjetivo estiveram em lados opostos; embora o método subjetivo afirme a perspectiva humana, ele só pôde ser reafirmado após o método objetivo alcançar as ciências superiores e, assim, regenerar as doutrinas específicas das ciências superiores
§ O choque multimilenar entre os métodos objetivo e subjetivo corresponde à disputa entre materialismo e espiritualismo/idealismo
§ Esse choque, essa disputa só pôde e só pode ser solucionada – e é temos que afirmar que é necessário ter uma solução para isso – com o Positivismo e a Religião da Humanidade
o Ambos os vícios são absolutos:
§ O materialismo é sempre metafísico
§ O espiritualismo pode ser teológico ou metafísico
- Do ponto de vista moral, os motivos que, supostamente, justificariam os defeitos de materialismo e espiritualismo/idealismo são os seguintes:
o No que se refere ao materialismo, ele justificar-se-ia pela importância histórica e pela eficiência explicativa do método objetivo – que, de fato, tendia a aplicar um procedimento materialista em cada degrau da escala enciclopédica antes de reconhecer a limitação desse procedimento e passar para o degrau seguinte
§ De um ponto de vista epistemológico, a eficiência do método objetivo baseia-se nos princípios (1) segundo o qual os fenômenos mais nobres subordinam-se aos mais grosseiros e (2) segundo o qual quanto mais grosseiro um fenômeno, mais geral ele é
o No que se refere ao espiritualismo/idealismo, ele justificar-se-ia pela importância universal e eterna da moralidade humana, presidindo, então, o método subjetivo
§ Entretanto, a afirmação da moralidade humana com freqüência foi confundida com a afirmação dos dogmas teológicos e, de qualquer maneira, com a negação da realidade cosmológica
§ A dignidade humana seria dada, então e de maneira altamente contraditória, pela afirmação da divindade e/ou por puras idéias desencarnadas
o É importante lembrarmos que há confusões reiteradas, intencionais ou ingênuas, de que o materialismo é isento de moralidade (portanto, seria “objetivo” e/ou amoral) e de que, inversamente, somente o espiritualismo/idealismo permitiria a avaliação moral
§ O “realismo” objetivista do materialismo despreza a moralidade ou redu-la sistematicamente aos egoísmos individual e/ou nacional; além disso, para essa concepção o ser humano não tem verdadeira liberdade nem é dotado de “agência”, isto é, de vontade própria: ele é apenas um títere de “forças externas” totalmente incontroláveis
§ Por outro lado, ao rejeitar a vinculação do ser humano ao mundo e, portanto, ao rejeitar a subordinação dos fenômenos mais nobres aos mais grosseiros, a concepção de moralidade do espiritualismo/idealismo consiste na liberdade das divindades, que não se submete a nada nem se preocupa com ninguém; portanto, é caprichosa, voluntariosa, irresponsável e incontrolável; daí se segue que a pretensa moralidade defendida pelo espiritualismo/idealismo é totalmente imoral
- Para concluir, vale a pena reafirmarmos algumas idéias expostas:
o Apesar de numerosos comentadores (ou melhor, numerosos críticos) atribuírem ao Positivismo o materialismo ou o espiritualismo/idealismo, isso é errado
o Os conceitos de materialismo e espiritualismo/idealismo devem ser (isto é, só podem ser) entendidos em função da escala enciclopédica
o O Positivismo afirma a dignidade de cada nível da escala enciclopédica
o O materialismo reduz os fenômenos superiores aos inferiores, o espiritualismo afirma os fenômenos superiores desprezando os inferiores
o Embora materialismo e espiritualismo/idealismo pareçam justificar-se em função de propriedades fundamentais do método objetivo e do método subjetivo, é bastante claro que materialismo e espiritualismo/idealismo são vícios intelectuais e morais:
§ São sistematicamente incapazes de entender a realidade e as relações entre o homem e o mundo
§ O materialismo degrada o ser humano ao negar a realidade da sociedade e da moral
§ O espiritualismo/idealismo degrada o ser humano ao negar a subordinação humana ao mundo e validar a concepção caprichosa, ultravoluntarista e baseada na teologia de “liberdade”
o A única solução possível para os vícios opostos de materialismo e espiritualismo/idealismo é aquela que respeita a dignidade humana e não nega a realidade; em outras palavras, a única solução possível é a combinação do método objetivo com o método subjetivo, realizado pela síntese positiva, a partir da simpatia altruísta, com vistas à sinergia prática, no âmbito da Religião da Humanidade
13 junho 2023
Concepção positiva da fé
No dia 24 de São Paulo de 169 (13.6.2023) realizamos nossa prédica positiva. Demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua sétima conferência, dedicada ao que podemos chamar de filosofia das ciências naturais. Na seqüência, expusemos algumas considerações sobre a noção positiva de fé, considerando, além disso, como se apresentam as dúvidas da fé na teologia, na metafísica e na positividade.
A prédica foi transmitida ao vivo nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/Zr9Z6) e Apostolado Positivista do Brasil (aqui: https://acesse.one/w1vK5). O sermão sobre a fé pode ser visto a partir de 45' 05".
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Sobre a fé
o Embora muitas vezes seja até possível essa metonímia (a parte pelo todo), o fato é que a fé é apenas uma parte da religião – e nem ao menos é a principal
§ Assim, tomar a fé pela religião pode ser (1) metonímia (aceitável) ou (2) uma redução (inaceitável)
o Essa postura de equivaler a religião à fé, todavia, é própria dos protestantismos e, mais do que isso, dos protestantismos evangélicos do século XIX para cá
o O que interessa neste sermão é apresentar as características gerais da fé (em particular, claro, da fé positiva) e, como uma pequena aplicação prática, diferenciar a fé positiva do conceito cada vez mais absoluto e restrito que o monoteísmo faz da “fé”
- A chamada “fé” na verdade é o dogma, isto é, a parte da religião que trata das idéias e dos valores; em outras palavras, é a parte que trata da inteligência
o Como o dogma é a parte que trata da inteligência, ele sistematiza e organiza o entendimento da realidade (seja a cosmológica, seja a humana), para podermos relacionarmo-nos com ela
§ Da mesma forma, portanto, o dogma é a parte que sistematiza e explica o Grande Ser
o Nos monoteísmos, a explicação da divindade assume o lugar central e, na prática, transforma o dogma em sinônimo da religião
§ Isso curiosamente torna extremamente intelectualistas essas religiões
§ Além disso, como sabemos, essas religiões cada vez mais recuam e limitam-se a defesas da pura “fé”, da pura crença, em que a crença torna-se importante por si só, contra tudo e a despeito de tudo
- Antes de mais nada, devemos entender a fé do ponto de vista estático:
o A concepção sintética e simpática da unidade humana estabelece que o culto precede o dogma
§ O culto eleva-nos à perspectiva adequada da Humanidade e, assim, prepara-nos para o dogma
o A fé – ou melhor, o dogma – integra a religião de maneira complementar (e subordinada) com o amor
§ O amor compreende os sentimentos propriamente ditos e também as atividades práticas
§ A fé compreende a inteligência
§ Assim, ser religioso é antes de mais nada sentir e agir em benefício da Humanidade; as crenças, ou a “fé”, atuam apenas como intermediárias (ao esclarecer-nos sobre o mundo e sobre os meios de modificá-lo)
o Nas teologias a fé (o dogma) vem antes do amor (e do culto), pois, sendo imaginários os seus respectivos grandes seres, a sua definição, ou a sua busca, deve concentrar as maiores atenções
§ Na positividade o Grande Ser é real e, tomando-o como pressuposto, a atenção pode concentrar-se no que realmente importa, ou seja, no amor (e no culto)
o A religião busca estabelecer a mais completa unidade humana
§ “Religião” vem de religare: ligar internamente pelo amor e externamente pela fé
o A fé faz-nos reconhecer uma potência superior e exterior a nós a fim de regular nossos instintos individuais
o A fé positiva apresenta várias características:
§ “O dogma fundamental da religião universal consiste, portanto, na existência constatada de uma ordem imutável a que estão sujeitos os acontecimentos de todo gênero. Esta ordem é ao mesmo tempo objetiva e subjetiva: por outras palavras, diz igualmente respeito ao objeto contemplado e ao sujeito contemplador” (Catecismo, 1ª Conf.)
§ A fé positiva exige a harmonia entre o sujeito que conhece (subjetivamente) e o objeto conhecido (objetivamente)
§ O conjunto da ordem universal em si mesmo é constatado e não explicado; ele fornece a base para as explicações variadas
o Enquanto a fé teológica explica tudo por meio das vontades, a fé positiva explica os fenômenos particulares por meio das leis e reconhece para as vontades o seu âmbito específico, que é o da atividade intencional dos seres humanos
§ A submissão humana à regularidade das leis, permitindo a previsão e a intervenção, resulta em que a fé positiva pode efetivamente estender-se ao âmbito da atividade prática
§ Em contraposição, como a teologia pressupõe sempre as vontades arbitrárias, ela não indica regularidades nem permite, portanto, a atuação humana regular e racional
§ O máximo de previsibilidade que a teologia aceita são as “maldições” e/ou o destino cego, que representam respectivamente, por um lado, a vontade arbitrária e inflexível de uma pessoa concreta e, por outro lado, a vontade arbitrária e inflexível de um ser superior anônimo
- Do ponto de vista dinâmico, a fé deve ser entendida da seguinte maneira:
o O princípio fundamental que explica dinamicamente a fé é a lei intelectual dos três estados
§ As concepções teológicas são absolutas e necessariamente surgiram antes das concepções relativas
§ As explicações absolutas começaram fetíchicas, passaram para o politeísmo e então para o monoteísmo, degradando-se afinal na metafísica
o Os seres superiores fictícios inspiravam sentimentos mais ou menos fortes, apesar de sua irracionalidade e de suas vontades caprichosas
o Enquanto o dogma positivo limitou-se à cosmologia e até à biologia, ele foi incapaz de desenvolver qualquer concepção que estimulasse realmente os nossos sentimentos e regulasse nossas condutas, ao mesmo tempo em que se limitou à crítica (negativa e destruidora) dos seres supremos fictícios
o Mas com a criação da Sociologia e da Moral, estudando de maneira positiva a ordem humana, foi afinal possível constituir-se e sistematizar-se a noção positiva do ser supremo, a Humanidade
- As crenças absolutas – teológicas e metafísicas – são sempre incompatíveis entre si, especialmente no caso das teologias monoteístas
o Uma das consequências dessa incompatibilidade mútua é que essas crenças promovem a intolerância sistemática umas em relação às demais
- As crises de dúvidas que assomam todos os seres humanos, em vários momentos de suas vidas, são entendidas de diferentes maneiras para as religiões absolutistas – ou melhor, para os monoteísmos – e para a religião relativa e positiva
o No caso dos politeísmos e até dos fetichismos, as dúvidas na fé podem ser solucionadas por meio da mudança de panteão ou de sistema filosófico (um fetichista reafirma o fetichismo; um politeísta muda de panteão ou volta para o fetichismo ou até sobe para o monoteísmo)
o Para os monoteísmos, as dúvidas não apresentam alternativa: elas só podem ser solucionadas por meio da reafirmação das crenças (ocorrida mais ou menos em breve)
§ Às vezes, no monoteísmo considera-se que a dúvida faz parte da fé; entretanto, essa dúvida-que-integra-a-fé só pode integrar a fé quando a dúvida é solucionada, necessariamente, por meio da reafirmação da fé e pela rejeição das dúvidas
§ Na passagem do politeísmo para o monoteísmo, o dogma teológico torna-se cada vez mais concentrado, em princípios cada vez mais fechados e cada vez mais absolutos, do que resulta que a saída do monoteísmo é sempre entendida como heresia
§ Não apenas a simples dúvida como também a crítica é entendida como heresia, ou seja, como crime intelectual e social
o Na metafísica a dúvida é congênita e transformada sistematicamente em crítica
§ A “heresia” na metafísica consiste na crença e não na dúvida
o Na positividade, a dúvida é entendida como algo normal, isto é, como parte do processo de aprendizado
§ O relativismo próprio à positividade resulta em que a dúvida e o “erro” integram o processo de aprendizado
§ O entendimento positivo da realidade conduz a que as dúvidas sejam esclarecidas, explicadas e demonstradas; dessa forma, a fé é constituída pelo convencimento e não pela negação de toda racionalidade
- Os protestantismos, especialmente os evangélicos e cada vez mais a partir do século XIX, afirmam a centralidade da fé
o A centralidade da fé no protestantismo realça o seu caráter individualista, em que o crente individualmente se liga à divindade
§ A centralidade da fé – portanto, do dogma – ocorre às custas do amor
o O avanço da positividade (e mesmo da metafísica) acua cada vez mais a teologia, tornando cada vez mais irracional, imoral e por assim dizer inócua a crença na divindade
o Assim, cada vez mais a pura crença em algo torna-se um valor em si mesmo
§ Essa pura crença é cada vez mais um ato irracional, em que o conteúdo da crença acaba tornando-se secundário: “crer” é mais importante que “saber”, “conhecer” e até “amar”
o É importante insistir: essa pura crença é:
§ Irracional: pois rejeita a reflexão e o relativismo
§ Imoral: pois afirma o egoísmo individualista, afirma uma espécie de intelectualismo, afasta o ser humano do altruísmo, nega a Humanidade e estimula as vontades caprichosas
§ “Inócua”: pois rejeita o conhecimento efetivo da realidade, preferindo os caprichos voluntariosos
§ Resultando na intolerância e no fanatismo
- Para concluir, importa lembrarmos que: a verdadeira concepção da fé é aquela que (1) explica a realidade para o ser humano, (2) reconhece a submissão geral do dogma ao culto e ao regime, (3) permite a sábia e digna intervenção humana no mundo e (4) possibilita o desenvolvimento humano, principalmente moral, tendo por parâmetro a Humanidade