Anotações sobre direita e esquerda
- “Direita” e “esquerda” são duas categorias políticas fundamentais nos debates políticos contemporâneos
o Evidentemente, com base no Positivismo eu tenho muito a dizer a respeito delas
§ É importante insistir em um aspecto inicial: as reflexões expostas aqui são comentários pessoais, não de Augusto Comte
§ Isso não poderia ser diferente, na medida em que direita-esquerda tornaram-se categorias básicas após a vida de Augusto Comte
o Mas: elas serem fundamentais nos debates políticos contemporâneos não equivale a dizermos que concordamos com elas e/ou que as consideramos adequadas ou suficientes
o Nesse sentido, não por acaso, já me manifestei inúmeras vezes a respeito, com publicações no meu blogue (https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/): “‘Ordem’ e ‘progresso’ como categorias sociopolíticas legítimas”, “Necessidade do ‘ordem e progresso’; superioridade sobre ‘direita-esquerda’, ‘situação-oposição’”, “Comparação entre Positivismo, direitas e esquerdas”
§ Alguns comentários retomarão argumentos expostos antes
§ A esse respeito, aqui está um modesto quadro comparativo que elaborei no início de 2020: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2020/02/comparacao-entre-positivismo-direitas-e.html
· Esse quadro compara o Positivismo com as extremas direitas, a extrema esquerda, a direita intermediária, a esquerda intermediária, a centro-direita, a centro-esquerda e o centro, em função de 16 conceitos sociopolíticos relevantes ((1) ordem; (2) progresso; (3) tradição; (4) passado; (5) liberdade de pensamento; (6) liberdade de expressão; (7) família; (8) pátria; (9) Humanidade; (10) religião; (11) propriedade; (12) governo temporal; (13) governo espiritual; (14) paz; (15) igualdade; (16) indivíduos e individualidades)
- O sentido da oposição direita-esquerda varia ao longo do tempo:
o A origem de direita e esquerda está no início da Revolução Francesa, em que, na sala da assembléia (1789-1792), no alto e à esquerda sentavam-se os jacobinos, embaixo e à direita os reacionários e, no meio, os girondinos
§ Assim, durante o século XIX, a esquerda foi associada ao “progresso” (e/ou à revolução) e a direita, à “ordem” (e/ou à reação)
o A partir do final do século XIX, a esquerda passou a ser associada a variados movimentos revolucionários: socialistas, comunistas, anarquistas; de qualquer maneira, cada vez mais ao marxismo
o Com a Revolução Russa, em 1917, a esquerda passa a vincular-se decididamente ao comunismo soviético
o A direita cada vez mais passa a definir-se de maneira residual e reflexa, como sendo a anti-esquerda ou a não-esquerda
o Isso se cristalizou durante todo o século XX e, em particular, durante a Guerra Fria; após 1989, a feliz e necessária derrocada do comunismo pôs em questão a validade da oposição direita-esquerda
o Em 1992 o filósofo italiano Norberto Bobbio reafirmou a oposição direita-esquerda e propôs que o conteúdo específico mais constante e importante da esquerda seria a igualdade e o da direita, a liberdade
§ É necessário admitirmos que essa proposta de Bobbio é muito cômoda e operacional; todavia, ela também é extremamente criticável, tanto no que se refere à direita quanto à esquerda
§ De qualquer modo, essa proposta tem o valor indireto de indicar o quanto a oposição direita-esquerda distanciou-se ao longo dos séculos da sua origem na Revolução Francesa
- Uma outra forma de entender direita-esquerda é por meio de situação-oposição:
o A oposição é quem não está no poder
o Essa concepção é bem mais fraca que as que surgiram com a Revolução Francesa
- Também é importante notar que, embora fale-se em direita e esquerda no singular, na verdade é necessário distinguir várias direitas e várias esquerdas (no plural), além da posição do “centro”
- Ilustrando as várias direitas e esquerdas com a situação atual do Brasil:
o As esquerdas dividem-se em esquerdas radicais, revolucionárias e leninistas (PCO); esquerdas “intermediárias”, de caráter revolucionário mas que aceitam os procedimentos eleitorais (PSTU, Psol, setores do PT); centro-esquerda, que tem perspectivas de esquerda, mas rejeita as revoluções e tem um franco diálogo com setores da direita (PDT, PSD, setores do PT, Rede)
§ Esses grupos afirmam buscar a igualdade social; as esquerdas “intermediárias” e a centro-esquerda assumem, cada vez mais, o facciosismo da política identitária; todos eles consideram que defendem o progresso, que é vagamente identificado com essas pautas
o No Brasil, as direitas consolidaram-se bastante nos últimos anos; elas abrangem a extrema direita, que é militarista, fascista ou filofascista, evangélica e católica ultramontana, ultraliberal (PSL, PL, Republicanos); uma direita “intermediária”, de caráter liberal ou neoliberal (Republicanos, PL, União Brasil, PSDB)
§ O que dá coerência às direitas no Brasil é a rejeição à esquerda e ao vago progressivismo correlato; assim, as direitas defendem um vago – mas na prática bastante duro – conceito de ordem social, que ora defende o Estado mínimo, ora prega o retorno à Idade Média (ou à época de Moisés!); também se definem como “conservadores”; a presença dos evangélicos aí é cada vez mais pronunciada e agressiva
o O centro consiste basicamente em políticos tradicionais que vendem seu apoio ao governo em troca de prebendas e que estão sempre prontos a pilhar o Estado; caracteristicamente são políticos favoráveis ao parlamentarismo, sem grande identidade ideológica, moral ou intelectual (PL, Republicanos, União Brasil, PSDB)
o Para considerar as nossas reflexões sobre o mérito individual, expostas na prédica do dia 7.2.2023: enquanto a esquerda basicamente rejeita o mérito (em nome de seus ideais igualitaristas), a direita teológica considera que o mérito é obra divina (e, portanto, é um sinal da eleição divina, conforme o que o protestantismo prega) e a direita materialista reduz o mérito a uma concepção ultraindividualista e antissocial
- Para o Positivismo, a oposição direita-esquerda é insuficiente e inadequada:
o Evidentemente, é uma divisão muito cômoda e, é necessário convir, de modo geral, no dia a dia, ela é muito operacional
§ Essa “operacionalidade” também se deve ao caráter fortemente metafísico da política atual
o Entretanto, a oposição direita-esquerda ela reduz a dinâmica social ao confronto interminável entre dois pólos, sem que haja nem a possibilidade nem o desejo de que esse confronto seja solucionado
§ Tal oscilação é cansativa, desgastante, degradante e, portanto, daninha para o ser humano
o Além de manter a dinâmica social presa em uma oscilação virtualmente eterna, a oposição direita-esquerda é muito propícia para as polarizações mais ou menos extremas, com todas as suas conseqüências particularistas, excludentes e agressivas (na lógica do “nós contra eles”)
o Também é importante notar que essa oposição é particularmente adequada para os partidos políticos, sendo menos adequada à dinâmica social
§ Ainda assim, há momentos em que a sociedade politiza-se de tal maneira que ela acaba partidarizando-se: é o que vemos no Brasil de dez anos para cá
o Adicionalmente, os conteúdos específicos da direita e da esquerda são extremamente mal definidos, vagos e passíveis das mais variadas manipulações, muitas delas cínicas
o Também é importante notar que a oposição direita-esquerda associa-se à política metafísica, com toda a demagogia daí resultante
§ A política metafísica propõe a “democracia”; o que se opõe, positivamente, a isso é a sociocracia
§ Para
evitar inevitáveis confusões: a “democracia” criticada pelo Positivismo não é o
atual regime de liberdades e de garantias; aliás, o regime de liberdades,
garantias e opinião pública é a sociocracia; a democracia é o regime absoluto,
autoritário, que considera que “a voz do povo é a voz de deus”; que considera
que “o povo não erra”; excludente e clericalista, proposto por J.-J. Rousseau e
realizado por M. Robespierre
· Nesse sentido, não há como nem porque não deixar claro: o fascismo é rigorosamente “democrático”, bem como o comunismo
o Por fim, mas não menos importante, é necessário realçarmos com toda a clareza que os princípios que fundamentam a direita e a esquerda são prejudiciais ao ser humano, por serem estritamente parciais e particularistas, além de absolutistas (sejam teológicos, sejam metafísicos)
§ Embora a direita tenha uma origem teológica, nas últimas décadas ela assumiu um claro caráter metafísico, ao adotar o materialismo economicista e individualista próprio ao liberalismo (ou ao neoliberalismo, ou ao ultraliberalismo)
- No âmbito do Positivismo, em vez de falarmos em “direita e esquerda”, falamos em “ordem e progresso” e em sociocracia
o Sociocracia: regime da opinião pública altruísta e voltada para o bem público (que é basicamente a satisfação das necessidades do comum do povo), com fiscalização e responsabilização pública constante; afirmação dos deveres mútuos; liberdades públicas e garantias individuais; reconhecimento e disciplinamento do poder, da riqueza e dos indivíduos
o “Ordem e progresso”: necessidades sociais igualmente necessárias, devem ser compatibilizadas para que cesse a oposição e a oscilação patológicas entre cada um dos princípios; a união ocorre com o altruísmo, a afirmação dos deveres, a prevalência da moral;
§ A “ordem” e o “progresso”, na sociocracia, têm definições filosóficas e sociológicas precisas: “o progresso é o desenvolvimento da ordem, a ordem é a consolidação do progresso”
- Em relação aos grupos políticos de sua época, Augusto Comte entendia da seguinte maneira a ordem e o progresso:
o O grupo da ordem: os reacionários; teológicos (católicos) e monarquistas; afirmação dos elementos da ordem social (de modo geral, da Estática Social), mas com sacrifício do progresso e com justificativas absolutas e teológicas, desejosos de manter os valores do feudalismo ou de retornar a essa época; basicamente passivos politicamente; escola de De Maistre e De Bonald
o O grupo do progresso: os revolucionários; metafísicos (materialistas ou espiritualistas; juristas ou literatos) e democratas (às vezes parlamentaristas, com freqüência clericalistas); desejosos de realizar o progresso com sacrifício da ordem; revolta contra o poder, contra o capital, contra a história; corresponde ao grupo que tem a primazia política atual; escola de Rousseau, Voltaire, Robespierre
o O grupo da ordem e do progresso: os positivistas; sociocratas, republicanos; propõem a conjugação necessária, imperiosa e inadiável entre ordem e progresso, com o liame do amor; consagra e disciplina o poder e a riqueza, a partir da história e do altruísmo; escola de Augusto Comte, Diderot, Danton
- Até onde conseguimos perceber, Augusto Comte era particularmente crítico do grupo do progresso – e isso devido a pelo menos dois motivos:
o O grupo do progresso afirmava o progresso sacrificando totalmente a ordem (e, em particular, a historicidade humana)
§ Não por acaso, como sabemos, a concepção de progresso mobilizada pela “esquerda” é vaga e/ou quimérica, extremamente crítica e considera que o passado é um pesado fardo
o O grupo do progresso detém a primazia política, no sentido de que a ele competem as iniciativas e o ativismo sócio-político: só por isso sua importância social é enorme
§ Mas, como os princípios que orientam o grupo do progresso são ruins, a prática política daí derivada também é ruim
o Esses dois fatores conjugados realçam o fato de que o grupo que possui a liderança social, embora supostamente represente uma das tendências fundamentais da sociedade, é orientada por concepções – mas também sentimentos – erradas, equívocas e imorais
- Resumindo o argumento:
o Embora direita e esquerda sejam categorias políticas fundamentais desde o fim do século XIX, elas são inadequadas para a reflexão política e social
o A inadequação de direita-esquerda é dupla:
§ Por um lado, o seu esquema fundamental é rigorosamente maniqueísta, propondo a oscilação eterna entre os dois pólos, sem que se veja, nem que se deseje, nenhuma solução para isso
§ Por outro lado, cada um dos termos é errado e prejudicial em si mesmo: os princípios que fundamentam a direita e a esquerda são prejudiciais ao ser humano, por serem estritamente parciais e particularistas, além de absolutistas (sejam teológicos, sejam metafísicos)
· A direita é autoritária e/ou retrógrada e/ou antissocial; a esquerda é contra a ordem, mistifica a “revolução” (que é sempre violenta) e seu igualitarismo é anti-histórico, antissocial e com freqüência reinstitui castas
o A adequação de “direita e esquerda” aos dias atuais também se dá porque a política atual é fortemente metafísica
o Em oposição à metafísica da direita-esquerda, é necessário afirmar a positividade sociocrática do “ordem e progresso”:
§ O “ordem e progresso” afirma a conjugação necessária e simultânea de dois, ou melhor, três aspectos da vida humana: a Estática Social (ordem), a Dinâmica Social (progresso), vinculadas pelo amor (a palavra “e”)
§ Não há indefinida oscilação maniqueísta no “ordem e progresso”, mas complementaridade e conjugação constante e permanente de necessidades e anseios sociais
§ Cada um dos termos do “ordem e progresso” corresponde a uma efetiva realidade social, política e moral, que pode e deve ser satisfeita para a harmonia social e a felicidade individual
§ Os
termos do “ordem e progresso” correspondem ao caráter histórico de continuidade
humana e das suas instituições sociais fundamentais; essa continuidade não é
estática, mas dinâmica e desenvolve-se na direção do pacifismo, do relativismo,
do altruísmo: qualquer outra proposta é irreal e imoral