A revista Insight Inteligência, em sua edição de julho a setembro de 2021 (v. XXIV, n. 94, p. 62-75), publicou um artigo de minha autoria, sob o título "Nem todos os 'conservadores' são conservadores". Na verdade, ele é a versão muito reduzida de um outro texto, em que desenvolvo pormenorizadamente uma avaliação do conservadorismo à luz do Positivismo. Abaixo eu publico essa versão longa e completa do texto.
A motivação para redigir esse texto é clara: a importância política que os assim-chamados, ou autoproclamados, "conservadores" têm atualmente no Brasil. Sob o rótulo geral mas ilusório de "conservadores", um grupo heterogêneo e contraditório tem tentado implantar mudanças retrógradas e reacionárias no país, com críticas variadas a tudo o que eles chamam genericamente de "progressistas" - e que inclui também o Positivismo. A questão que me preocupou foi a seguinte: será que o "conservadorismo", por si só, tem que ser reacionário? Ou, o que dá na mesma: o conservadorismo tem que ser contrário ao progresso?
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Os conservadores entre alguns acertos e
muitos erros –
avaliando o conservadorismo à luz do
Positivismo
1. Introdução
É fato conhecido por todos que o “conservadorismo” é uma corrente e uma tendência política que integra os debates públicos no Brasil, para bem ou para mal, quer gostemos, quer não gostemos disso[1]. Esse conservadorismo, claro, está adaptado ao nosso ambiente social, cultural e político, ao mesmo tempo em que não deixa de apresentar incoerências e “tensões” mais ou menos graves; de fato, considerando a atual realidade brasileira, a maior fonte de tensão está em conservadores apoiarem, em nome desse conservadorismo (mas também considerando o fantasma do antipetismo), a gestão do atual Presidente da República, que desrespeita de maneira sistemática as liberdades públicas, a tolerância, o cuidado com o meio ambiente, o multilateralismo internacional etc. etc.[2]. Nos últimos anos, em diversos momentos (LACERDA, 2018a; 2019a; 2019b; 2020c) procuramos indicar algumas das limitações do conservadorismo, menos com um espírito destruidor e mais no sentido de evidenciar, mesmo para os próprios conservadores, que o conservadorismo não é nem precisa ser sinônimo de reacionarismo nem, de modo mais central, sinônimo de autoritarismo.
Considerando que aos intelectuais cabe a tarefa de constituir um “poder Espiritual” (nos termos precisos de Augusto Comte (1929; 1972)) ou de realizar uma “Sociologia pública” (nos termos mais ambíguos de Michael Burawoy (2009)), a participação contínua nos debates públicos é quase uma obrigação (auto)imposta, que assume um caráter tanto político quanto pedagógico e moral. No que se refere à discussão com e sobre o conservadorismo, é possível, ou melhor, é necessário darmos um passo além em relação às intervenções anteriores e indicar com clareza no que ele erra em termos históricos (e, daí, políticos) e também em termos epistemológicos (e, daí, morais). É a esse exame que nos dedicaremos neste artigo.
Antes de passarmos à discussão substantiva, convém esclarecermos que a nossa perspectiva é positivista, ou seja, baseada nas concepções e propostas de Augusto Comte, fundador da Sociologia, da Sociologia das Ciências e, mais importante, da Religião da Humanidade. Bem vistas as coisas, o emprego da perspectiva positivista ao exame crítico do conservadorismo pode oferecer diversas possibilidades: por um lado, isso reafirma um dos aspectos centrais do Positivismo, a sua já citada proposta de um novo “poder Espiritual”; por outro lado, isso indica que as propostas comtianas não são peças de museu, que variam entre o exótico e a pura velharia, mas que são instrumentos efetivos de compreensão da realidade e de intervenção nos debates públicos; por fim, mas não menos importante, considerando que uma longa tradição de esquerda, especialmente da esquerda marxista, apoda ao Positivismo o título de “conservador” (com isso querendo significar “reacionário” ou “retrógrado”), o exame do conservadorismo a partir do Positivismo pode oferecer um contraponto no mínimo interessante ao que é, por seu turno, um preconceito político faccioso[3].
2. Algumas premissas do
pensamento conservador
Os conservadores – talvez não todos, mas com certeza muitos deles – definem-se afirmando que não são contra as mudanças sociais, mas que, muito mais importante que isso, para eles as longas tradições históricas, as instituições legadas pelo passado é que são importantes; nesse sentido, o que foi legado pelo passado como que passou pelo crivo da história, passou por uma espécie de teste histórico; essa aprovação garantiria não apenas que as instituições e as tradições herdadas são resistentes mas que, mais do que isso, são boas. A partir dessa concepção, para os conservadores, as mudanças não seriam ruins em si mesmas, mas elas devem ser incrementais e lentas, de modo a poderem ajustar-se às instituições e tradições herdadas e, de qualquer maneira, devem também ser postas à prova do tempo. Em contraposição ao legado histórico, as mudanças “bruscas” e/ou as mudanças feitas com base em projetos racionais são vistas com forte suspeição e/ou repudiadas pelos conservadores[4].
A concepção exposta acima tem várias características dignas de nota. Em primeiro lugar, ela tem o evidente mérito de respeitar o passado e, com isso, afirmar a historicidade humana, no sentido de que o ser humano é, por definição, acima de tudo, um ser histórico, um ser que resulta do acúmulo da atividade das gerações, umas após e sobre as outras. Em segundo lugar, os defensores dessa concepção preocupam-se em particular em afirmar que ela é apenas uma “noção”, uma concepção geral, não uma doutrina formalizada; o que mais lhes importa, ao afirmá-lo, não é que eles movam-se por um sentimento, mas é que eles desejam evitar a todo custo um roteiro claro que aponte para a frente; em outras palavras, eles querem limitar-se a respeitar o passado e, por isso, não querem indicar caminhos para o futuro: sua rejeição de um pensamento bem estruturado não visa a um irracionalismo (ainda que ele possa de fato aproximar-se do irracionalismo[5]), mas à rejeição de projetos de engenharia político-social, vistos como essencial e necessariamente traumáticos. Em terceiro lugar, está implícita a noção de que as instituições devem ajustar-se à natureza humana; essa concepção é correta em si mesma, embora seja criticada por pensadores para quem o ser humano é infinitamente plástico e que ele pode ser, literalmente, qualquer coisa, incluindo deixar de ser humano.
As três características indicadas acima são importantes e, até certo ponto, devem ser valorizadas e preservadas. Entretanto, importa notar que elas são insuficientes e que, em particular as duas primeiras, devem necessariamente ser complementadas por outras. Quais outras? Concepções que reconheçam, afirmem e valorizem as mudanças sociais, intencionais ou não.
Em si mesmo, o respeito às tradições e às instituições herdadas do passado tende ao mais completo imobilismo; se o respeito às tradições for erigido em valor último, o resultado é que nenhuma alteração será possível, pois não será tolerada, exceto com hipocrisia e/ou amnésia, ou, talvez, com incoerência doutrinária. Mas, de qualquer maneira, esse imobilismo exige também o controle centralizado das instituições e das tradições sociais, a fim de que se certifique de que nada mude; tal centralização pode ser maior ou menor, isto é, ocorrer em um indivíduo ou em uma corporação, embora, em todo caso, a necessidade da centralização mantém-se.
Outro aspecto que deve ser indicado é que as sociedades caracterizadas pelo respeito geral às tradições são muitas vezes chamadas de “tradicionais”, em que o que importa é apenas refazer hoje e amanhã o que se fez ontem, isto é, em que a condução das atividades humanas teria um certo automatismo. A palavra “automatismo” não é a melhor no presente momento, pois ela sugere mecanismos, ou melhor, máquinas e, daí, indústria; o que nos importa sugerir aqui não são as idéias de máquinas e indústria, mas, simplesmente, a repetição contínua, mais ou menos cíclica, de comportamentos. Claro está que esses comportamentos são realizados conscientemente pelos seres humanos, mas, ao mesmo tempo, há a concepção de que não cabe ao ser humano escolher o seu destino (individual e/ou coletivo), muito menos acelerar esse destino. Mesmo que a concepção cíclica do tempo não seja muito intensa, permanece a outra concepção, segundo a qual não cabe ao ser humano decidir os rumos que deve seguir, especialmente em termos coletivos. Assim, em certo sentido, o ser humano vive às cegas – e é precisamente o respeito às tradições herdadas que, supostamente, preveniria os danos desse viver às cegas.
O que se evidencia dos comentários acima é que a concepção de historicidade presente em tais sociedades é estática, no máximo cíclica: as coisas devem ser como sempre foram; temos ciclos mais ou menos regulares (as fases da Lua, o movimentos diário e anual do Sol, o movimento das estrelas, as estações do ano, o nascimento, amadurecimento, envelhecimento e morte de todos os seres vivos), mas não é possível e não se deve romper essa ordem geral, quer nossa vida esteja inserida em um desses ciclos, quer não esteja. Entretanto, de fato não importa aqui tanto a adequação aos ciclos, na medida em que a vida humana pode realizar-se independentemente da ocorrência dos ciclos: por exemplo, na teologia católica (e, de modo geral, cristã), o sentido da vida humana está em aguentar o que ocorre nesta vida para viver-se “de verdade” no outro mundo (seja na punição eterna, seja na fruição eterna, seja, ainda, na antecâmara da fruição eterna). No Ocidente, esse quadro que procuramos descrever, claro está, refere-se à Idade Média, especialmente nas fases e nas regiões menos urbanizadas e fora dos centros de poder e de riquezas.
Ora, quando os conservadores definem-se pelo respeito às tradições legadas pela história, com isso afirmando que preferem mudanças incrementais e lentas, eles são completamente incoerentes e deslocados, pelo menos por dois motivos: (1) porque eles consideram uma realidade histórica falseada e (2) porque a nossa sociedade não é imobilista, tradicional e/ou cíclica, nem anda às cegas.
3. Uma concepção histórica
falseada
A concepção de conservadorismo como o respeito às tradições legadas pelo passado e aprovadas na prova do tempo foi elaborada pelo irlandês Edmund Burke; não por acaso, ela foi exposta na obra Considerações sobre a revolução em França, de 1790 (BURKE, 1997); na verdade, pode-se considerar essa obra como a fundadora do conservadorismo como forma de pensar. Refletindo sobre a Revolução Francesa, iniciada no ano anterior, Burke criticava a destruição social e institucional generalizada que começava a ter lugar na França, no curso do processo revolucionário; cada vez mais rápido, em pouco tempo e até 1794 os revolucionários franceses aboliram o feudalismo (isto é, as leis que mantinham vigente a ordem feudal), a nobreza, a monarquia e ainda executaram o rei (por alta traição, após o vergonhoso episódio da “fuga a Varennes”); instituíram a República, a igualdade perante a lei e ainda enquadraram o clero católico e nacionalizaram os bens da igreja católica. Ao mesmo tempo em que esses eventos desenrolavam-se, era necessário manter a ordem pública na França e fazer frente a sucessivas guerras contra-revolucionárias e invasões externas; tudo isso resultou na radicalização política e na instituição do tribunal revolucionário, com o “grande terror” mantido em 1794 pelo Comitê de Salvação Pública. Parte desses eventos decorreu da dinâmica política e social daquele período, mas as bases intelectuais e morais tinham sido lançadas ao longo do século XVIII – ou seja, nas décadas anteriores à Revolução – pelos pensadores do Iluminismo, em particular os das suas três grandes escolas (a de Voltaire, a de Rousseau e a de Diderot)[6].
Enfim, foi contra o conjunto da Revolução Francesa que Burke definiu o conservadorismo; até mesmo a rejeição de uma definição doutrinária do conservadorismo liga-se ao temor de estabelecer parâmetros norteadores semelhantes aos desenvolvidos pelo Iluminismo. Ao mesmo tempo em que defendeu o primado do legado histórico, Burke contrapôs o processo revolucionário francês à história inglesa – entendida por ele como exemplar de sua concepção “conservadora” (mudanças incrementais, respeito à história etc.).
Ora, ainda que a crítica feita por Burke naquele momento à Revolução fosse até certo ponto justificada[7], o quadro histórico inglês contra o qual ele avaliou a França e, portanto, a partir do qual ele definiu o conservadorismo nada mais era do que pura ilusão. As instituições tão valorizadas por Burke, conservadas após a prova do tempo – a representação baronial no parlamento britânico, a submissão do rei inglês ao parlamento, a manutenção da monarquia britânica, a existência da igreja anglicana, a constituição dos partidos políticos e até mesmo a participação da sua Irlanda natal na comunidade britânica –, tudo isso e muito mais foi resultado não de mudanças incrementais transformadas em longas tradições históricas testadas e aprovadas pela prova do tempo, mas, bem ao contrário, foi o resultado de rupturas dramáticas, com freqüência violentas, na história da Inglaterra; mais do que isso: várias vezes, essas mudanças foram o resultado de engenharia social-institucional consciente. Senão, vejamos:
- a representação baronial começou com a revolta dos barões contra o poder divino do rei, em 1215;
- o rei foi submetido ao parlamento após revoltas, guerras civis, violências, golpes e contragolpes que encerraram em 1689 um século tormentoso, que incluiu a decapitação de um rei e o fim temporário da monarquia;
- a monarquia só foi garantida em 1689 na Revolução Gloriosa porque o Commonwealth britânico (1649-1660), governado por Cromwell, tinha sido visto como autoritário, embora os ingleses, ou melhor, os barões ingleses de modo geral detestassem os reis que antecederam e sucederam Cromwell, ao mesmo tempo em que esses mesmos barões decidiram submeter de vez a coroa ao parlamento;
- a igreja anglicana surgiu a partir de uma violenta revolta de Henrique VIII contra a milenar igreja católica, que incluiu a imolação dos dissidentes (como Thomas More);
- os partidos políticos foram uma inovação completa em termos políticos, defendida, justamente, pelo próprio Burke (BURKE, 1770);
- a Irlanda foi anexada à Grã-Bretanha após séculos de violências entre irlandeses e ingleses[8].
A bem da verdade, é necessário termos clareza de que muitas dessas engenharias institucionais, embora conscientes, nem sempre ocorriam no sentido de romperem os grandes laços históricos; de fato, era comum a referência às tradições para sinceramente justificar esses rompimentos[9]. Além disso, deixando de lado a revolta baronial que instituiu no século XIII a Magna Charta, todas as demais alterações ocorreram em um período de cerca de 250 anos (entre a criação da igreja anglicana, em 1534, e a redação de Considerações sobre a revolução em França, em 1790).
Dito isso, o que temos é que o idílico teste histórico das instituições e tradições é pura tolice, portanto. Mas, se não fosse pouco, também importa notar que antes (e também depois) de escrever as Considerações, Burke defendeu a justeza da Revolução Americana (nome adotado nos ambientes anglossaxões para a independência dos EUA), que foi um violento processo de ruptura histórica, social e institucional (embora o próprio Burke lamentasse a guerra revolucionária em que a Inglaterra e os futuros Estados Unidos estivessem então envolvidos). Para coroar tudo isso, não deixam de ser altamente irônicos – pelo menos para os conservadores atuais – os fatos de que Burke era amigo pessoal e apoiador de pensadores iluministas (como Adam Smith)[10], era membro não do partido conservador inglês (Tory), mas do partido liberal (“progressista” – Whig), que ele era defensor da tolerância religiosa e crítico da escravidão.
Se o pano de fundo a partir do qual Burke definiu o conservadorismo é pura ilusão, isto é, reconstrução histórica fantasiosa, o fato é que, como Augusto Comte (1929, v. III; 1972) observava, desde o final da Idade Média, o conjunto do Ocidente vive um processo revolucionário, em que a antiga ordem católico-feudal tem que ser e é paulatinamente destruída, mas em que, ao mesmo tempo, a nova ordem demora para constituir-se e firmar-se. Todos os acontecimentos históricos indicados nos parágrafos acima pertencem a esse grande movimento revolucionário ocidental, cujo clímax foi, precisamente, a Revolução Francesa, devido ao descompasso entre os dois movimentos (rapidez da destruição com resistência conservadora; demora da constituição de instituições substitutivas, baseadas em elementos dissolventes). Mas, o que expusemos até agora corresponde apenas ao aspecto destruidor; entre muitos outros elementos, o aspecto construtivo do movimento moderno corresponde, para o que nos interessa aqui, à constituição da ciência moderna. É claro que essa constituição não se dá no vazio nem de maneira isolada; entretanto, não podemos deter-nos nesses vários outros elementos; também não nos interessa examinar cada uma das ciências em particular nem as inúmeras disputas travadas em seus interiores e com as instituições que as cercavam, nem, por fim, não nos interessa abordarmos a epistemologia das ciências[11]. O que nos interessa da ciência é algo mais específico e ao mesmo mais global; são os aspectos ligados à sua poderosa crítica às crenças teológicas; a possibilidade de ação humana consciente e racional sobre a natureza; por fim, mas não menos importante, a constituição da Sociologia.
4. Ocidente e ciência moderna
como não imobilistas
Comecemos pela parte destruidora: o poder dissolvente da ciência sobre a teologia não é ignorado por ninguém; a famosa distinção sofístico-metafísica entre “razão” e “fé” corresponde justamente à incapacidade crescente de a teologia explicar o mundo, acossada de maneira inapelável pela concomitante capacidade da ciência em fazê-lo com clareza, eficiência e estreita relação com a realidade (empírica) (cf. COMTE, 1972). Não se trata aqui de problemas abstratos ou de detalhistas reflexões epistemológicas, mas acima de tudo da dissolução das crenças, das tradições e das instituições baseadas na teologia: grosso modo, a maior parte das instituições medievais, que se presume respeitadas pelo “conservadorismo”[12].
De maneira complementar ao poder dissolvente da ciência em relação às interpretações teológicas da realidade, a ciência descortina, ou melhor, permite uma enorme possibilidade de intervenção humana consciente e racional, o que, por seu turno, põe por terra, de maneira decisiva, aquele comportamento próprio às sociedades tradicionais que denominei antes de “automático”, isto é, aquele comportamento repetitivo e realizado às cegas. Buscando ao mesmo tempo explicar e prever, o conhecimento científico permite ao ser humano passar a agir de modo cada vez mais consciente do que pode e não pode fazer, dominando os resultados de suas ações[13]. De posse do conhecimento científico, deixamos de agir de determinada maneira apenas porque nossos antepassados agiam dessa forma e passamos a examinar se essa forma de agir é correta, é boa, é eficiente; os parâmetros morais deixam de ser as crenças herdadas do passado apenas porque foram herdadas do passado e porque apontam para uma suposta outra vida (caracterizada pela punição ou pela recompensa eterna) e passam a seguir parâmetros imanentes, como o benefício coletivo, o estímulo ao altruísmo, o combate à violência, o combate à miséria etc. Vale notar que, por mais que ainda existam crenças que resistem ao poder dissolvente da ciência e ao crescimento do humanismo moral, o fato é que mesmo essas crenças sofrem uma constante e crescente pressão pelo seu término e por sua substituição pelo humanismo. Não podemos deixar de notar que a própria ciência foi estimulada por muitas tradições e instituições tradicionais ao longo dos séculos; por exemplo, nos estertores do movimento progressista da Igreja Católica e seguindo justamente essas tradições, o padre polonês Nicolau Copérnico foi o autor moderno da teoria heliocêntrica (cf. REPCHECK, 2011), com seu bem conhecido efeito devastador sobre a crença bíblica de que o mundo foi criado pela divindade e que, portanto, o homem e a Terra são o centro do universo (cf. COMTE, 1972).
O terceiro aspecto relativo à ciência que tem interesse para a discussão sobre o conservadorismo refere-se à fundação da Sociologia. Esse acontecimento, no início do século XIX – não por acaso, após a Revolução Francesa –, continua, consolida e aperfeiçoa os processos intelectuais e sociais assinalados acima para a ciências. A Sociologia, todavia, contribui pelo menos com dois elementos fundamentais para essa marcha: por um lado, ela afirma com clareza a noção de progresso, isto é, a noção de que a história humana não é caminho às cegas nem rota cíclica, mas uma caminhada – longa, com muitas curvas, desvios, pedras e buracos, não há dúvida – com uma direção determinada; essa caminhada pode ser acelerada ou retardada, mas, enfim, é uma rota que pode ser e é cada vez mais seguida de maneira consciente, racional e intencional, em direção à paz universal, às liberdades de pensamento e de expressão, às concepções positivas. Por outro lado, a Sociologia sugere que a intervenção consciente e racional do ser humano sobre a própria história não apenas é possível como, acima de tudo, é necessária: mudanças e inovações institucionais são freqüentes, com os mais variados objetivos, desde regular a atividade econômica (por exemplo, com a fixação de taxas de juros) até garantir a isonomia jurídica, passando pela proibição da escravidão, o respeito aos trabalhadores, a proibição da violência contra as mulheres e muito mais... não podemos deixar de mencionar a constituição do aparato do Estado de bem-estar social, que corresponde, justamente, a uma forma de intervenção prática na realidade social, a partir de estudos e concepções propriamente sociológicos, embora com preocupações políticas. Essas duas contribuições específicas da Sociologia têm como contrapartida a superação, a extinção e/ou, pelo menos, a desvalorização de um sem-número de tradições e instituições herdadas historicamente; para citar apenas algumas bastante evidentes, a escravidão, as guerras de conquista, o homem como dono da esposa e dos filhos, o ser humano como inerente e tão-somente egoísta. Mas podemos ir muito além: as vacinas, as técnicas pedagógicas, os procedimentos psicoterapêuticos, a biotecnologia, os fármacos específicos, as fontes renováveis de energia... todas essas formas de intervenção humana na realidade, sempre mediadas pela moral, ao mesmo tempo que correspondem à ampliação da capacidade humana de definir os seus próprios destinos, exigem que se deixe para trás os hábitos e os valores puramente tradicionais, ou melhor, os hábitos e os valores mantidos por mero automatismo. Na verdade, bem vistas as coisas, mesmo os valores “tradicionais” têm que ser afirmados atualmente com enormes clareza e autoconsciência, em um processo racional de escolha e de justificação que é totalmente tributário da revolução científica que comentamos aqui.
Diversas manifestações intelectuais chamadas atualmente de “conservadoras” mas que, no fundo, são “só” e assustadoramente irracionais e antimodernas correspondem, portanto, não a manutenções contemporâneas de valores e concepções conservadoras, mas, em um sentido bem diverso, a gritos desesperados de visões de mundo que estão fadadas a desaparecer – e que, em certos círculos, têm a consciência contraditória de que devem desaparecer: assim é o negacionismo atual, que afirma coisas moral e faticamente despropositadas mas que encontram guarida apenas em termos “tradicionais”, como a Terra plana, a ineficácia das vacinas, as vacinas com possibilidade de transmutar-nos em jacarés, a irrealidade do aquecimento global e por aí vai. Mais que esquisitices defendidas por políticos retrógrados e/ou por empresas que desprezam o bem-estar humano e a preservação do ambiente, essas concepções são mantidas por pensadores que rejeitam em bloco, na totalidade, a civilização moderna e o legado do Iluminismo e desejam, em contrapartida, a restauração de uma idílica mas há muitíssimo inexistente “época de ouro” das tradições: esse é pensamento de fundo dos olavistas no Brasil, dos trumpistas nos EUA etc.[14].
5. A natureza humana encontra o conservadorismo
Notamos antes que os conservadores pressupõem que as instituições que sobrevivem ao teste do tempo são boas porque correspondem às características da natureza humana. Já vimos que essa concepção é essencialmente imobilista; embora ela afirme valorizar a história, ela acaba sendo anti-histórica; além disso, ela tem como conseqüência a idéia de que as mudanças operadas consciente e racionalmente nas instituições não correspondem à natureza humana. Para usar uma metáfora marinha, enquanto a natureza humana seriam as correntes submersas, as mudanças seriam apenas as ondas superficiais.
Essa concepção tem o evidente mérito de considerar que o ser humano é histórico, ou seja, que é o resultado da acumulação paulatina dos esforços de geração após geração. Entretanto, se a história deve ser valorizada, ela deve ser valorizada pelas várias lições que ela pode ensinar, quer gostemos, quer não gostemos dessas lições; em particular, a história ensina que... as coisas mudam. Novamente a imagem marinha: se tudo muda e se as mudanças ocorrem o tempo inteiro, podemos considerar que nada muda (ou, talvez, que nada deva mudar); daí a mudança do foco das ondas superficiais para as correntes submersas, da agitação constante e sem sentido (aparente) para a calmaria e permanência das profundezas. Ora, a Sociologia reconhece ambas as possibilidades, mas percebe que as tendências profundas conduzem as agitações superficiais; que as correntes profundas não são estáticas, mas que se dirigem para diferentes lados e que se encontram com outras correntes, modificando-se à medida que percorrem seus caminhos; que, às vezes, intensas agitações superficiais (no caso de tempestades) podem modificar mais ou menos os trajetos submersos; que a água das correntes profundas e das agitações superficiais é a mesma; que as correntes e as agitações resultam em outros elementos (a vida marinha), que vão modificando aos poucos essas mesmas correntes; que é possível alterar de maneira mais drástica muitas das correntes por meio de barragens e canais[15].
O que podemos concluir da digressão sobre a imagem marinha a respeito da natureza humana entendida pelos conservadores? Talvez o seguinte: para os conservadores, assim como a história é imóvel, a natureza humana para eles resulta em apenas duas possibilidades, agitação constante mas superficial e calmaria durável e constante; o movimento, quando existe, é apenas o superficial – e que, como superficial, pode e deve ser desconsiderado no cômputo geral das coisas. Entretanto, não há motivo para considerar que a natureza humana é estática; essa concepção só faz sentido de verdade quando temos pouca história atrás de nós (como era o caso dos antigos, isto é, dos gregos e dos romanos) (cf. BURY, 1920; COMTE, 1929) e/ou quando queremos que o mundo fique parado; mas se tivermos uma longa história e percebermos que o movimento integra de pleno direito a existência humana, a natureza humana será entendida de modo dinâmico[16].
Os conservadores, portanto, escolhem o que querem apoiar, no sentido de que decidem ignorar aspectos que lhes são desagradáveis. Eles escolhem ignorar as mudanças sociais que o espetáculo histórico, muito mais por meio da Sociologia que da própria História, oferece; analogamente, eles escolhem uma concepção estática da natureza humana, deixando de lado todas as evidências em favor da concepção dinâmica. Essas escolhas incoerentes ocorrem desde a fundação do conservadorismo pela pena de Edmund Burke, na medida em que esse irlandês escolheu deixar de lado em sua definição a Revolução Americana como revolução, a revolta baronial contra o rei como revolta, as guerras civis inglesas com guerras, a Revolução Gloriosa como revolução e muito mais; em suma, ele escolheu entender a história inglesa moderna como se fosse a história das antigas dinastias egípcias ou chinesas, ou seja, como grandes imobilismos temporais (cf. LAFFITTE, 1861; 1928). Os conservadores atuais igualmente fazem escolhas desse tipo, à la carte, adotando o que lhes convém, rejeitando também o que lhes convém e sendo vagos a respeito dos critérios para adoções e rejeições[17]. Um exemplo banal é a total incoerência a respeito da aceitação de trechos bíblicos: por um lado, são vigorosamente aceitos por muitos conservadores trechos que, supostamente, condenam a homossexualidade; mas, por outro lado, são ignorados pela virtual totalidade de conservadores os trechos que condenam ao apedrejamento as mulheres que não se casarem virgens: se é para aceitar a Bíblia como a palavra da divindade, ela deve ser aceita literalmente e em sua totalidade; mesmo que critérios heterodoxos sejam adotados na interpretação, de qualquer maneira é necessário adotar-se parâmetros homogêneos e consistentes – o que está claro que não ocorre nos exemplos da homossexualidade e do apedrejamento de não virgens.
Outro exemplo em que os conservadores são ambíguos, ou confusos, ou contraditórios, ao escolherem à la carte as suas tradições: a rejeição da escravidão. Como sabemos, no Ocidente moderno, ela desgraçadamente vigeu por mais de 300 anos; esse prazo – três séculos – deveria ser suficiente para garantir-lhe a aprovação no teste do tempo, mas, no caso do Brasil, quando ela foi abolida de uma vez, de verdade ninguém resistiu à mudança[18]. Embora durante a monarquia – que, aliás, fundou e manteve-se enquanto houve escravidão no Brasil – houvesse conservadores que defendiam a escravidão (como José de Alencar (2008)), não vemos nenhum conservador de hoje lamentando, no Brasil, a mudança não incremental que foi o fim do trabalho servil no país[19]. Outro exemplo: a despeito do cinismo envolvendo o suposto “tratamento precoce” contra a covid-19, não vemos nenhum dos autodenominados conservadores defendendo de verdade tratamentos tradicionais, como rezas, a colocação de pedras aquecidas na testa, o consumo de alface ou coisas assim: todos fazem questão de usar o mais atual, o mais moderno, o mais eficiente tratamento científico, mesmo que seja na forma enganosa do emprego da hidroxicloroquina (supostamente justificada com base em pesquisas científicas).
Vale a pena repetir: o suposto respeito à historicidade, proclamado pelos conservadores, é apenas meio respeito; na verdade, é apenas um apego a algumas instituições e práticas, escolhidas segundo suas conveniências políticas, econômicas, filosóficas e por vezes até estéticas.
6. Um conservadorismo progressista
Em suma, diferentemente do que propõem os conservadores, atuais ou não, a fórmula “respeito às instituições que passaram pelo teste do tempo”, amparada pela concepção estática da natureza humana e contrária ao “progressivismo”, é inadequada e insuficiente em termos políticos, mas, de modo mais central para o presente artigo, ela é ruim para a própria concepção “conservadora”.
Um verdadeiro respeito às experiências históricas, isto é, àquilo que pode, de fato, ter passado no teste da resiliência histórica, ao mesmo tempo que aceitando as mudanças exigidas pela própria experiência histórica e pelas necessidades advindas da vida em sociedade – mudanças incrementais ou não –, pode ser sumariada em uma outra fórmula, muito superior à proposta por Burke e, talvez não por acaso, proveniente do lado que o irlandês criticava: é o “só se destrói o que se substitui”, criada pelo líder revolucionário Georges Danton, adotada por Augusto Comte e empregada pelos positivistas desde meados do século XIX (cf. TRINDADE, 2007). Este líder e patriota, que no final da vida pôs-se contra o rousseauniano Robespierre, teve a memória louvada por Augusto Comte como o representante da escola construtiva de Diderot na Revolução Francesa (cf. ROBINET, 1865; COMTE, 1899); a sua fórmula afirma ao mesmo tempo a necessidade de respeitarmos o que já existe e de sermos responsáveis em face das necessidades sociais e políticas; além disso, de maneira central para os nossos propósitos, essa fórmula conjuga a conservação com as mudanças. É possível que, se em vez da vaga fórmula proposta por Burke, fosse a fórmula dantoniana a adotada na Inglaterra, atualmente a rainha Isabel II já não seria mais a governante daquele país, havendo algum(a) presidente no lugar...
Para concluir estas longas anotações, é necessário lembrar que, não por acaso, os conservadores definem-se em oposição ao progresso e aos chamados “progressistas”. Não cabe aqui criticarmos a concepção de “progresso” que rejeita todo o passado histórico, ou que considera que o passado é um peso que nos oprime – como dizia Marx (2011) e que tanto a esquerda quanto liberais (!) citam alegremente, com isso querendo afetar “criticidade” –; essa concepção de progresso é errada do ponto de vista sociológico e desastrosa do ponto de vista político. Em todo caso, ocorre que os conservadores, a partir de sua concepção estática da história (e da natureza humana), rejeitam de roldão tanto o progressivismo que nega toda historicidade quanto o progressivismo que respeita a historicidade mas reclama mudanças; para usar a famosa fórmula francesa, os conservadores jogam fora o bebê juntamente com a água do banho.
Se a definição do conservadorismo é vaga e tende ao imobilismo, embora com clareza valorize a história, ou melhor, valorize uma faceta da historicidade humana, por outro lado os “progressistas” não se saem melhor; na verdade, tendem a definir-se de modo pior. A concepção que o comum dos autoproclamados progressistas defende de progresso é largamente tributária da oposição ao imobilismo tendencial dos conservadores e, por isso, não raras vezes tende simplesmente a ser sinônima de “mudança” – qualquer mudança. Entretanto, como bem sabemos, de modo mais específico os progressistas também são chamados de “esquerda”; nesse caso, as referências passam a ser a valores e a concepções mais determinados: ao marxismo e, em virtude disso, às ideias correlatas de luta de classes e de extinção do “capitalismo”; isso dá um caráter virulentamente classista à esquerda, que, em seu projeto de revolução mundial, afirma-se equivocamente como “universalista”. De qualquer maneira, a tendência geral nesse movimento, como observou Norberto Bobbio (2001) há muitos anos, é que a esquerda busca a igualdade, ao passo que, por oposição, a direita buscaria a liberdade. No que se refere à “direita”, parece-nos que a busca da liberdade é apenas a forma que Bobbio encontrou para determinar uma oposição elegante mas principalmente fácil em relação à esquerda; ainda assim, o vínculo básico entre esquerda e igualdade proposto por Bobbio parece-nos correto[20].
A chamada “microssociologia” gosta de afirmar que o característico da sua abordagem, em oposição às demais concepções sociológicas, é o entendimento de que a vida em sociedade é “relacional”; isso é uma pretensão arrogante desses autores, que tomam exclusivamente para si uma concepção sociológico-filosófica fundamental. Mas, enfim, deixando de lado essas picuinhas academicistas, o fato é que, se há um aspecto sociológico verdadeiramente “relacional”, este é o das definições mútuas dos conservadores e dos progressistas: uns definem-se em função dos outros, a partir e contra as definições que cada qual dá para si mesmo. Em diversos artigos anteriores (por ex.: LACERDA, 2014a; 2014b; 2016) insistimos em o quanto a definição que os autoproclamados progressistas dão para si mesmos, a partir da definição que eles dão para o progresso, é ruim; se os conservadores negam a historicidade no sentido de mudanças, os progressistas negam a historicidade no sentido de legado. Ambas as definições tomadas isoladamente são ruins, ou melhor, são insatisfatórias – embora, evidentemente, possam e devam combinar-se. A combinação dessas definições não é a soma de cada uma das perspectivas, na medida em que elas têm pressupostos filosóficos, sociológicos e morais diversos: a combinação das duas perspectivas parciais necessariamente altera as definições parciais anteriores, de tal sorte que, analogamente, as perspectivas políticas dos conservadores e dos progressistas também deveriam mudar. Um progresso que respeite a ordem, uma ordem que permita (isto é, que seja aberta a e que desenvolva) o progresso: essa concepção é tão distinta filosófica e sociologicamente dos conceitos simples subjacentes a conservadores e progressistas quanto é diferente em termos políticos de cada um desses grupos. Esse movimento não se trata nem de conciliação, nem de apaziguamento, nem de justaposição; trata-se de uma nova composição, superior aos dois elementos prévios isoladamente tomados[21]. Essa foi e é a proposta positivista, de Augusto Comte: como argumentamos em Lacerda (2021), parece clara a necessidade de retomá-la – com urgência.
7. Para concluir
Para concluir, desejamos fazer algumas reflexões abertamente contemporâneas, afastando-nos um pouco das considerações mais abstratas feitas até aqui.
O atual movimento conservador no Brasil, a despeito da pretendida unidade política, é muito mais uma construção linguística (a partir do uso do rótulo “conservador”) que uma realidade fática. Ele consiste em um estranho amálgama intelectual, político e social: há católicos (como a professora Cláudia Helena Gomes); há tradicionalistas (como os olavistas); há evangélicos; há “liberais” (como o Deputado Kim Kataguiri); há autoritários; há retrógrados e monarquistas (como o Deputado Luiz P. Orleans e Bragança); há fascistas[22]. Na presente conjuntura, o que os une, além do rótulo genérico, são a rejeição a um certo progressivismo (ou melhor, a rejeição ao fantasma do “lulopetismo”) e o apoio ao Presidente da República, apodado de conservador apenas a partir de sua histeria antipetista. Esse estranho amálgama reúne sob o mesmo teto grupos heterogêneos, obrigando-os a compromissos morais e políticos que não têm necessidade de ocorrer. Ao mesmo tempo, ainda que sejam limitadas e que sejam parcialmente corretas, as concepções do conservadorismo burkeano emprestam dignidade filosófica e política aos demais grupos que estão agrupados no rótulo genérico do conservadorismo; isso ocorre por vontade própria, como podemos ler com todas as letras na defesa convicta, apresentada com uma condição bastante dúbia, que a professora Maria Helena Gomes faz do atual Presidente da República (PROFESSORA DA UFG EXPLICA, 2021):
Para quem vê de fora, o universo
bolsonarista pode parecer um balaio de gatos. A impressão não está de todo
incorreta. A direita é assim porque não há um conjunto de dogmas como na
esquerda. O conservadorismo é, na verdade, a negação da ideologia. Não cabe
aqui uma explicação mais detalhada, mas resumidamente posso dizer que o
conservador é alguém que vê a continuidade da experiência humana como um
caminho mais seguro, com pequenos ajustes na direção, em detrimento de um
“grande salto” para construção do “paraíso socialista”, experimentados na China
e em Cuba com seu milhões de mortos pela fome ou paredão de execução. Em
particular, como católica, meio apoio está condicionado à obediência do
presidente Bolsonaro aos valores professados pela minha Igreja. Enquanto o
presidente Bolsonaro estiver ao lado do que ensina a Igreja Católica, terá meu
apoio irrestrito.
Todavia, os elementos que reúnem os grupos “conservadores” são cada vez mais frágeis, menos coerentes e – isso é o principal – mais daninhos para o país: no cenário ideal, caber-lhes-ia uma reflexão profunda, uma “autocrítica”, que lhes permitisse perceber os danos institucionais, sociais e morais de que o Brasil cada vez mais padece. Não há dúvida de que os elementos autoritários, fascistas, retrógrados não farão nenhuma reflexão sobre si mesmos e suas ações, pois eles realizam agora que estão no poder exatamente o que desejam realizar, ainda que não realizem tudo o que desejam. Tornou-se famosa a sintomática frase dita pelo atual Presidente da República, logo após a sua eleição em 2018 ou no início do seu governo, em 2019, segundo a qual ele que tinha que destruir muito antes de fazer qualquer coisa positiva. Essa afirmação, dita com a aquiescência do seu ultraliberal Ministro da Economia, pode concordar com o perfil de autoritários, fascistas, retrógrados e mesmo ultraliberais; entretanto, é difícil entender como é que ela coaduna-se com o conservadorismo. Mas, mesmo assim, nutrimos um pouco de esperança e cremos existir conservadores que, apesar das limitações de sua perspectiva filosófica, valorizam mais as liberdades, a tolerância, o respeito mútuo, as instituições de bem estar social, a história republicana do Brasil, do que o apoio a um determinado Presidente da República a quem é atribuído o rótulo de “conservador”.
Enquanto isso, de qualquer maneira, a conclusão geral a que podemos chegar a respeito dos conservadores é o que dá título a este artigo: eles têm alguns acertos, mas muitos erros.
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[1] O presente artigo, como sói acontecer, deveria consistir apenas em uma curta nota crítica motivada por observações lidas na imprensa, mas que, aos poucos, assumiu maiores dimensões e ensejou reflexões mais amplas. De qualquer maneira, agradeço o apoio e os comentários de Christian Lynch.
[2] Exemplar dessas contradições e tensões foi o debate entre dois propagandistas do conservadorismo nacional, os agitadores Caio Coppola e Kim Kataguiri, em maio de 2021, que se dividiram entre apoiar ou rejeitar a figura e o governo do atual Presidente da República (cf. ZANINI, 2021). Além do seu “liberalismo” e do seu “conservadorismo”, o que realmente os une é a rejeição a um fantasma político e social chamado “lulopetismo” – fantasma que, até certo ponto, eles mesmos criaram.
[3] Um exame dos preconceitos antipositivistas pode ser lido em Lacerda (2009); várias interpretações positivistas de questões sociológicas gerais e brasileiras podem ser lidas em Lacerda (2018b).
[4] As opiniões que motivaram este artigo foram expostas en passant, no contexto de uma entrevista escrita, mas revelam muito do senso comum político atualmente prevalecente no Brasil e, em particular, no ambiente dito “conservador”. Essas opiniões foram exaradas por uma professora de Direito da Universidade Federal de Goiás, Cláudia Helena Nunes J. Gomes, em um texto encomendado a um periódico local de direita (Jornal Opção); nos termos desse mesmo periódico, Cláudia Helena Gomes seria “[...] uma das mais articuladas vozes da direita no Estado [...]”.
Embora o artigo como um todo seja digno de atenção devido ao ser caráter exemplar, foi o seguinte trecho que me chamou mais a atenção: “[...] o conservador é alguém que vê a continuidade da experiência humana como um caminho mais seguro, com pequenos ajustes na direção, em detrimento de um “grande salto” para construção do “paraíso socialista”, experimentados na China e em Cuba com seu milhões de mortos pela fome ou paredão de execução” (PROFESSORA DA UFG EXPLICA, 2021).
Na verdade, a professora Cláudia Helena Gomes também afirma que o político goiano Major V. Hugo – que integra a base política do atual Presidente da República – não seria “conservador, mas positivista”. Essa curiosa acusação de “positivismo” feita por uma conservadora a um militar é digna de nota, embora, como observamos em outro artigo (LACERDA, 2020), trata-se apenas de uma cortina de fumaça. De qualquer maneira, não é esse o tema principal que nos interessa no presente artigo.
[5] Ainda assim, sobre os inúmeros vínculos entre irracionalismo e conservadorismo, cf. Wolin (2006) e Sternhell (2010).
[6] A literatura sobre a Revolução Francesa é gigantesca. Para uma descrição ampla dos acontecimentos da Revolução Francesa, cf. Mignet (1899); sobre o ano de 1794, cf. Loomis (1965); para uma descrição histórica com uma interpretação sociológica, cf. Laffitte (1880).
[7] “Até certo ponto justificada” porque, se por um lado Burke estava chocado com a destruição sistemática das instituições sociais feita pelos revolucionários franceses, por outro lado ele perdia totalmente de vista o sentido de progresso social. Em outras palavras, faltava-lhe ter uma concepção ampla da marcha humana, a partir da qual ele pudesse avaliar o presente e o passado; como argumentamos neste artigo, ele via apenas o passado. Adiantando o nosso argumento: conforme indicou posteriormente Comte (1899; 1929), são exatamente o apego excessivo ao passado e a concomitante incapacidade de discernir o futuro que estimula a manutenção cega de instituições, isto é, que estimula o conservadorismo e o imobilismo; o resultado disso, por sua vez, é a explosão destruidora realizada pelas forças do progresso. A solução para esse problema está em a história não ser sacralizada, mas respeitada e empregada como base para a Sociologia, que, por sua vez, atua como guia intelectual, política e moral para os negócios humanos, conjugando a ordem e o progresso.
[8] Vale notar que as violências anglo-irlandesas só cessaram, e de maneira muito parcial, apenas em 1912, quando foi proclamada afinal a República da Irlanda, ou Eire. Esse fato ocorreu após muitos conflitos, que se mantiveram entre 1797 (morte de Burke) e 1912 (fundação do Eire). Sobre Cromwell, cf. Harrison (1888) e Hill (1988); sobre a história inglesa de modo geral, cf. Harrison (1908) e Hill (2012).
[9] Esse é um traço importante do conservadorismo; em contraposição, os “progressistas” entendem que o rompimento com o passado é bom ou correto. Um exemplo da argumentação política inglesa em que um rompimento político baseou-se na tradição pode ser lido em Worden (2002); outro exemplo, agora do outro lado do Atlântico, é a Declaração de Independência dos EUA, escrita por Thomas Jefferson (cf. DRIVER, 2006).
[10] Essa amizade não pode ser desprezada, na medida em que torna atualmente difícil definir Burke como um conservador “puro sangue”. Por outro lado, outro iluminista britânico que também era amigo de Adam Smith era o escocês David Hume – que, entretanto, claramente se reconhecia como conservador e era favorável ao partido Tory (cf. ROSS, 1999).
[11] Para uma interessante exposição das discussões científicas modernas, cf. Rossi (2010); para discussões sobre as epistemologias de cada uma das ciências e de seus papéis destrutivos e construtivos, cf. Comte (1929; 1972).
[12] No Brasil isso se limita a uma defesa confusa e parcial do catolicismo – um catolicismo adotado à la carte, conforme as preferências e conveniências do freguês. A defesa de instituições herdadas da Idade Média faz um pouco mais de sentido na Inglaterra, em que o conservadorismo, com o apoio dos meios de comunicação, esforça-se por manter a sociedade de castas, a monarquia e a teologia oficial de Estado (e até um certo imperialismo). Ainda assim, ao longo do século XX o conservadorismo inglês viu-se cada vez mais acossado pelo progressivismo (cf. MARSHALL, 1967; JUDT, 2010); quando ele retornou ao poder com um projeto próprio, esse projeto consistiu acima de tudo em uma destruição generalizada, que é o sentido final do neoliberalismo (ou ultraliberalismo) de Margareth Tatcher. Sobre o liberalismo, suas vertentes em geral e no Brasil e suas relações com o progressivismo, cf. Lilla (2018) e Lynch (2020).
No caso dos Estados Unidos, cuja origem revolucionária transformou-o ao mesmo tempo em herdeiro e negador da Europa, o conservadorismo é muito mais vago, definindo-se, como no Brasil, muito mais pelo antiprogressivismo. Essa vagueza pode ser constatada no livro de Kimball (2010), que é muito preciso nas críticas à esquerda acadêmica estadunidense, mas que é incapaz – seja porque não podia, seja porque não queria – explicar como é que os valores “tradicionais” do Ensino Superior nos EUA foram estabelecidos, seja nos próprios EUA, seja no Ocidente; assim, a partir de uma perspectiva anti-histórica, o autor cria um mito chamado “valores tradicionais”, completamente descontextualizados, mas que servem bem aos seus objetivos políticos – nomeadamente, a crítica ao que ele chama de “progressivismo”. Sobre o antiprogressivismo nos EUA, cf. também McAllister (2017) e, sendo bem francos, de modo mais assustador, Teitelbaum (2020) e Sedgwick (2021).
[13] Usamos as palavras “dominar os destinos”, “controlar os resultados” etc. porque o objetivo é esse mesmo, o de sermos senhores de nossas vidas, tomadas coletiva e individualmente. Isso, evidentemente, não equivale, de maneira nenhuma, a afirmar que devemos tornar-nos autômatos a serem explorados pelo capitalismo e/ou pelo Estado (como argumenta fantasiosamente o marxismo místico-romântico da Escola de Frankfurt, com Adorno, Horkheimer e, depois, Habermas), nem se trata de aplicar às ciências humanas a lógica das ciências naturais (como defende a metafísica alemã da “compreensão”, com Dilthey, Weber e seus epígonos). Cf. Teixeira Mendes (1898), Grange (2008) e Lacerda (2009).
[14] É claro que essa rejeição em bloco da modernidade não os impede de usarem despudoradamente os meios mais atuais de manipulação das massas, de enriquecimento individual, de comunicação e até de preservação da vida. Apesar de serem arquiconservadores, eles também não têm pudor nenhum de proporem revoluções sociais e políticas para implementarem suas ideias e valores – a diferença com os “progressistas”, ou com a esquerda, é que esses arquiconservadores querem revoluções para irem para trás, não para frente; nesse sentido, eles são mais arquirretrógrados que arquiconservadores. A possibilidade de empregar a revolução para fins conservadores deve-se à admiração do propositor inicial do tradicionalismo (Julius Evola) por Lênin e seus métodos violentos; o apoio ao fascismo e ao nazismo, na conjuntura europeia dos anos 1920 a 1940, foi um passo fácil. Não é casual, portanto, a simpatia ou o apoio de vários conservadores atuais a políticos que não apenas são antiprogressistas mas que também são francamente autoritários. Novamente, cf. Teitelbaum (2020) e Sedgwick (2021).
[15] De modo geral, os historiadores compartilham dessas concepções, vendo ou apenas agitações superficiais e incessantes ou grandes imobilidades submersas. Do ponto de vista de obtenção de dados empíricos, essas concepções especificamente historiográficas são instrumentais e mais ou menos adequadas a seus respectivos objetos (as lutas políticas em um caso, as formas de pensar, em outro); mas é claro que são inadequadas e impróprias para o empreendimento da Sociologia, que exige uma outra percepção e que toma as pesquisas historiográficas como fontes de dados empíricos em seu esforço de comparação, abstração e generalização. Isso, infelizmente, de modo geral não é aceito pelos historiadores; mesmo muitos sociólogos, exageradamente inspirados pelos métodos historiográficos, não o entendem.
[16] Muitos “críticos” sociais afirmam que o ser humano não possui natureza humana; eles baseiam suas críticas nas afirmações de pensadores e políticos que entendem a sociedade de modo estático – e, em particular, contrário ao que os próprios críticos defendem.
Entretanto, isso não faz sentido; antes de mais nada, é necessário termos clareza de que não existem funções sem órgãos, isto é, de que o ser humano é tanto uma realidade biológica quanto social e psicológica. A constituição humana em termos biológicos estabelece uma natureza humana: inicialmente em termos genéticos, depois por meio da constituição cerebral e das interações sociais e históricas, é a esse conjunto que podemos e devemos nomear “natureza humana”. É claro que isso tem a conseqüência de que o ser humano, embora muito plástico (isto é, muito variável), não é infinitamente plástico nem é “qualquer coisa”; ele tem características específicas e definidas que tornam o ser humano o que é, para bem e para mal. Cf. Comte (1929).
[17] A vagueza não se deve, então, apenas à rejeição a um comportamento determinado por uma doutrina coerente; ela cumpre também a função de dificultar a determinação dos parâmetros adotados nas escolhas mais ou menos aleatórias realizadas. Ainda assim, vale notar que os conservadores não rejeitam por si mesmas doutrinas orientadoras, quer sejam doutrinas políticas, quer sejam doutrinas morais; por exemplo, na quase totalidade das vezes, eles são cristãos. Como notamos há pouco, o problema, de verdade, está na concepção de progresso; mas, novamente, não é o progresso por si só; é o progresso no que ele tem de necessariamente dissolvente das suas crenças morais e políticas.
[18] Evidentemente, o caso dos Estados Unidos é bem diferente, em que a escravidão só se encerrou após e devido a uma violenta guerra civil (cf. DAVIDSON, 2016).
[19] Bem entendido: nenhum conservador que não seja ao mesmo tempo um romântico saudoso da monarquia, com interesses estritamente familiares nisso, como o Deputado Federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança, que não por acaso justificou a escravidão com base em uma concepção estática da natureza humana (cf. ESCRAVIDÃO É “ASPECTO DA NATUREZA HUMANA”, 2019).
[20] Esse vínculo refere-se às disputas políticas até meados dos anos 1980; após esse momento, seja devido à influência da filosofia pós-moderna, seja devido à afirmação prática (em particular nos Estados Unidos) de movimentos identitários (negros, feministas, homossexuais), seja devido ao colapso do bloco comunista e ao consequente (e necessário) descrédito do marxismo, a esquerda passou a adotar uma pauta identitária, deixando de lado a igualdade (e a isonomia) e também as preocupações com os trabalhadores. Para uma crítica do identitarismo proveniente da esquerda dos EUA, cf. Lilla (2018); para uma crítica nacional, cf. Risério (2019).
[21] Em Lacerda (2020a) elaboramos um quadro com uma comparação sistemática entre as vistas do Positivismo e o espectro que vai da extrema esquerda à extrema direita.
[22] Em Lacerda (2020c) fizemos uma análise do apoio fascista ao atual governo federal.