02 dezembro 2014

"Ordem" e "progresso" como categorias sociopolíticas legítimas

"Ordem" e "progresso" como categorias sociopolíticas legítimas

Gustavo Biscaia de Lacerda



Um dos motivos por que o Positivismo é visto como estranho para os dias de hoje e até mesmo (embora incorretamente) como "autoritário" é que ele afirma com clareza que há uma separação entre governo e sociedade civil e que a última não deve governar, seja por motivos práticos – se todos governarem, ninguém governará ninguém; além disso, se todos governaram, estabelecer-se-á a "soberania popular", que resulta em totalitarismo e/ou em arbítrio –, seja por motivos morais – quem governa deve dispor-se ao mando, ou seja, a uma forma particularmente forte de egoísmo (mesmo que oriente socialmente esse egoísmo).

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O que se chama atualmente de "esquerda", hoje como desde o século XIX, é sistematicamente favorável à revolta contra o poder político e contra o poder econômico; além disso, com freqüência não hesita em sacrificar a liberdade em nome da igualdade. Nesse sentido, não deixa de ser extremamente significativo o fato de que são vivamente celebradas as concepções políticas e sociais ditas "contestatórias", "revolucionárias", "críticas": o objetivo dessas concepções é apresentar-se de maneira contrária às ordens estabelecidas, vistas sempre, por definição, como "autoritárias", "injustas", incorretas e, por vezes, contrárias ao progresso.

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A teoria social e política contemporânea valoriza acima de tudo o anormal, o esquisito, o desviante, o marginal: a normalidade e o ajustamento são vistos com intensa desconfiança e como valores ou objetivos "conservadores". Da mesma forma, o conflito é visto como elemento central, necessário e positivo da sociedade; a harmonia, a paz e a concórdia são negativos, prejudiciais e, claro, "conservadores".

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A esquerda é a favor do progresso, mas, não somente não o conceitua para além (1) da igualdade e da eqüalização contínuas e (2) das "mudanças" sociais contínuas, é incapaz de assumir a mais evidente conseqüência do progresso, que é a diferenciação social e, portanto, a produção de desigualdades sociais. Em contraposição, cria o sofisma que opõe as "diferenças" às "desigualdades".

A esquerda chama a si própria de "progressista", mas o parâmetro que adota para avaliar o progresso é apenas a realização de seus ideais; esses ideais, por sua vez, são meramente sonhos políticos, que ignoram a realidade sociológica, com freqüência em nome das "utopias". Em outras palavras, defendem mudanças sociais, mas não sabem, nem querem saber, se tais mudanças são possíveis ou desejáveis; mas quem critica essa política quimérica é tachado de "conservador" e "reacionário".

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Causam-me profundo espanto todos aqueles indivíduos que, dizendo-se "progressistas", ainda assim professam crenças em variadas formas de teologia, sejam elas fetichistas, sejam elas politeístas, sejam elas principalmente monoteístas (no caso do Brasil, de modo geral católicos); da mesma forma, espantam-me afirmações segundo as quais o estímulo às teologias (fetichistas, politeístas, monoteístas) e às metafísicas seriam propostas "progressistas" e índices de progresso: é o mesmo que dizer que ir para trás é avançar.

Mas, por outro lado, também me espanto ao ver indivíduos ditos "progressistas" que, não crendo no sobrenatural, encerram-se no ateísmo e no individualismo, em vez de afirmarem o humanismo e a perspectiva social.

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Todos aqueles que afirmam que a fórmula "ordem e progresso" busca limitar o progresso à ordem são incapazes de definir o progresso, em particular para além da definição geral de Condorcet, para quem o progresso é desenvolvimento contínuo, permanente e infinito. Ao contrário da fórmula da infinidade, o "ordem e progresso" definido por Augusto Comte estabelece as condições, as possibilidades e os limites do progresso, dizendo com clareza exatamente em que ele consiste. Em outras palavras, o "ordem e progresso" tira a idéia de progresso da vagueza e, portanto, da metafísica; ao contrário, quem rejeita essa fórmula em nome do progresso indefinido é simplesmente incapaz de entender a ordem de outra maneira que não como sendo "despotismo" ou "autoritarismo".

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Há também a possibilidade de recusar-se o "ordem e progresso" devido a uma rejeição do próprio progresso, seja porque há um apego à ordem, seja porque se nega a idéia de progresso. Quem se apega à ordem já foi retrógrado, atualmente é reacionário; bem vistas as coisas, nos dias de hoje são relativamente poucos grupos que rejeitam qualquer progresso: por vezes limitam as ambições de outros grupos em um ou outro aspecto e o mais das vezes desejam limitar o desenvolvimento ao que já se obteve: esses poderiam ser denominados de "reacionários" ou "conservadores". Os grupos atuais que têm um caráter especificamente retrógrado são, não por acaso, os teológicos, majoritariamente cristãos, muçulmanos e até judeus (embora, saindo do espectro teológico, possamos também incluir também na rubrica de retrógrados os comunistas).

Já os que rejeitam a idéia de progresso não são necessariamente retrógrados, no sentido de rejeitarem melhorias: antes, são irracionalistas, que rejeitam a concepção de "leis sociológicas" e que consideram que a história humana consiste apenas e tão-somente de "som e fúria", de choques permanentes e infinitos entre os grupos humanos. Esse tipo de raciocínio freqüentemente é metafísico e, não por acaso, também com freqüência é possível determinar suas origens teológicas, tão próximas ao misticismo e à metafísica alemã. Se a vida é apenas choque permanente, além de não ser possível determinar sentido algum nesta vida, o máximo que se pode almejar em termos coletivos é a vida política e, em particular, a política do poder – em outras palavras, egoísmos coletivos, guerras e dominação de todos sobre todos. Inversamente, se a vida é apenas luta e disputa, o consenso é uma ilusão e/ou uma hipocrisia. Cumpre notar que, de modo geral, essa concepção irracionalista é especificamente acadêmica, isto é, ela é exposta e defendida por "intelectuais"; ironicamente, com freqüência esses intelectuais defendem essa concepção como sendo mais científica e/ou como mais avançada que suas rivais, de modo que, embora explicitamente critiquem o progresso, implicitamente defendem uma forma dele.

O "ordem e progresso" propõe a conciliação das necessidades da ordem social e das tendências de desenvolvimento humano. Em uma outra forma de considerar as dinâmicas políticas e sociais, muitos afirmam que é necessário em toda sociedade e em todo regime político a existência de situação e oposição ou, em termos parecidos, de "direita" e "esquerda". Situação e oposição, de um lado, e direita e esquerda, de outro lado, não são equivalentes a ordem e progresso: seja porque, no limite, podem ser oposições meramente formais, seja porque seus conteúdos específicos diferem bastante de ordem e progresso. A dupla "situação e oposição" refere-se apenas ao fato de que há alguém (ou algum grupo) que governa e alguém (ou algum grupo) que (nominalmente) não gosta de quem está no poder e que gostaria de governar em seu lugar: refere-se, portanto, apenas à disputa pelo poder (e, nesse sentido, esse par de conceitos é compatível com a rejeição irracionalista da idéia de progresso).

O par "direita e esquerda", por outro lado, tem conteúdos muito mais problemáticos, na medida em que, surgida essa oposição na Revolução Francesa, em mais de 200 anos ela já mudou inúmeras vezes de conteúdo. De modo geral, o pólo forte é a esquerda: é ela quem costuma definir os conteúdos respectivos de cada um dos pólos, seja por derivação lógica (se a esquerda define-se pela "justiça", à direita corresponderia a "injustiça"), seja por imputação voluntária direta (como quando a esquerda define como traço específico da direita o fascismo) – mas é claro que tal posição de superioridade lógica da esquerda nem sempre se verifica historicamente. De qualquer maneira, nem a esquerda pode ser sinônima automática de progresso e liberdade (embora seja sempre sinônimo de igualdade – o que, mais uma vez, não é sinônimo nem de progresso nem de liberdade), nem a direita é sinônima de autoritarismo (embora também não implique nem a liberdade nem a ordem).

Em suma: enquanto "ordem e progresso" corresponde, de fato, a um programa político e social claro, com liberdades e melhorias nas condições de vida, "direita e esquerda" é uma oposição vaga e freqüentemente estéril; "situação e oposição" é apenas uma formalização da disputa pelo poder, conforme a política britânica cristalizou.

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Há quem proponha que, como os estudantes das Ciências Naturais tendem a ser mais conservadores e os estudantes das Ciências Humanas tendam a ser mais "revolucionários", isso se deva a que haveria uma divisão política entre C. Naturais e C. Humanas semelhante à polarização entre esquerda e direita. Essa concepção é equivocada e profundamente daninha: não porque não haja diferenças entre os ramos científicos, nem porque não seja possível, e por vezes necessário, politizar a prática científica, mas porque transporta para o âmbito da compreensão da realidade a dinâmica de oposição característica do mundo político. Em outras palavras, em vez de entender-se a relação entre Ciências Humanas e Ciências Naturais como de complementaridade de resultados e mesmo de métodos (ainda que cabendo a presidência do sistema às Ciências Humanas), a transposição a esse par da dicotomia direita-esquerda dá a entender que no âmbito científico, isto é, no âmbito da compreensão da realidade é válida e aceitável a dinâmica estabelecida entre "situação" e "oposição" ou, por outro lado, que os desenvolvimentos havidos nas Ciências Humanas corresponderiam ao avanço da justiça ou, mais precisamente, da igualdade (lembrando que igualdade e justiça nem são sinônimas nem se implicam mutuamente) e os desenvolvimentos das Ciências Naturais corresponderiam a avanços da "ordem", do "status quo" e, no limite, do "autoritarismo". Nada disso faz sentido e, confirmando o que afirmamos acima, o resultado dessa forma de raciocinar é altamente prejudicial para a prática científica.

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Nos meses das campanhas eleitorais para Presidente da República de 2014, no Brasil, apresentaram-se com clareza grupos sociais que se definem como sendo de "direita". Muitos deles defenderam o retorno dos militares como árbitros da vida política nacional e, em particular, a realização de um golpe de Estado militar com vistas à substituição do governo encabeçado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) por um governo encabeçado por algum outro partido político que não se declare explicitamente como sendo de "esquerda". Outros apresentaram-se como "conservadores", ou seja, como contrários às concepções "progressistas", entendidas estas de modo geral como as defendidas pelo PT, embora haja aqueles que são "conservadores" de modo político mas não político-partidário, ao defenderem visões de mundo conservadoras (que, por sua vez, amparam-se de modo geral em concepções contrárias ao progresso, seja devido ao antiprogressismo irracionalista, seja devido à aplicação à política de idéias teológicas). Muitos de "direita" definem-se assim porque defendem as liberdades, em oposição ao igualitarismo defendido pela "esquerda".

Além do fato de que desde o final do regime militar, isto é, desde há cerca de 25 anos não havia grupos sociais no Brasil que se definiam como de "direita" – o que por si só é interessante –, essa nova direita é um movimento especificamente político, ou melhor, especificamente secularizada, no duplo sentido de que até o momento não apresentou características de ideário religioso (teológico) e de que os vários grupos teológicos (mais ou menos conservadores, mais ou menos progressistas, sejam eles católicos, sejam eles evangélicos) apoiam tanto a "direita" quanto a "esquerda". De qualquer modo, o que parece unificar, ou melhor, conferir uma certa identidade – sem dúvida alguma momentânea – a essa nova direita nacional é a sua oposição sistemática ao PT e ao governo federal.

(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)

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