Individualismo como emancipação incompleta da teologia
Gustavo Biscaia de Lacerda
Um dos maiores problemas, para
não dizer "erros", de quem se emancipa da teologia é, ao realizar
essa emancipação, afirmar o individualismo, seja ele epistemológico, seja ele
moral, seja ele sociológico. É fácil de entender essa passagem, pois o
indivíduo tem que se afirmar pessoalmente, ou melhor, a pessoa tem que se
afirmar claramente como indivíduo para superar, para deixar de lado as pressões
sociais em favor da teologia e reconhecer que não faz sentido e que não importa
a crença nos deuses para a condução da vida humana. É claro que, quanto mais
secularizada uma sociedade e, o que às vezes é um pouco equivalente, quanto
mais sociologicamente diversificada uma sociedade, menor a pressão exercida
pela coletividade em favor da teologia e, portanto, mais facilmente ocorre essa
emancipação.
Todavia, seja porque nessa
passagem com freqüência é necessário afirmar-se uma individualidade, seja
porque nessa afirmação também é necessário desvalorizar fortemente (quando não
desprezar) o peso da coletividade, o resultado é que é bastante comum que a
emancipação conduza ao individualismo, entendendo-se por essa expressão tanto a
concepção segundo a qual é o indivíduo isoladamente tomado que
"constrói" a realidade (consistindo, portanto, em uma forma de
solipsismo), quanto entendendo por "individualismo" as idéias gêmeas
de que o objetivo da vida é a realização dos próprios indivíduos (sendo, assim,
um egoísmo) e que, como os agentes da vida social são os indivíduos, não existe
a "sociedade". Reafirmando mais uma vez as idéias acima: é bastante
claro que essas três formas de individualismo (solipsismo, egoísmo moral e
individualismo metodológico) têm em comum a rejeição da idéia de sociedade[1].
Essas três conseqüências são
problemáticas porque são erradas e falsas,
isto é, porque consistem em concepções que não correspondem à realidade, e
também porque são moralmente daninhas,
seja porque não correspondem à realidade[2],
seja porque impedem o desenvolvimento do altruísmo e estimulam diretamente o
egoísmo. Além disso, como um resultado um tanto paradoxal mas não
necessariamente imprevisto, embora tais formas de individualismo surjam como
rejeição da teologia, o fato é que elas próprias aproximam-se bastante da
teologia monoteísta, em particular dos cristianismos e, ainda mais, dos
protestantismos[3].
Por que esses individualismos
não correspondem à realidade? Porque, apesar do fato evidente de que as
sociedades somente podem existir compostas por indivíduos, é apenas
coletivamente e ao longo do tempo (ou seja, historicamente) que o conhecimento
é produzido[4], que o altruísmo é
passível de realização e que, portanto, é possível aos indivíduos terem
satisfação pessoal. Nas três situações não se trata, portanto, do truísmo
segundo o qual "ninguém pode viver sozinho": trata-se, sim, de que é
por meio do esforço compartilhado e acumulado que se pode conhecer a realidade,
por um lado, e, por outro lado, de que o "altruísmo" consiste em
"viver para os outros" e que é somente na medida em que se vive para
os outros que se pode obter uma satisfação plena e duradoura. Dessa forma, não
se pode entender a sociedade como a simples agregação de indivíduos: a
totalidade social é maior que a soma das partes individuais. Inversamente,
recusar a característica social e histórica do ser humano é recusar o próprio
ser humano.
O individualismo ateu, além
disso, aproxima-se em sua concepção de mundo do individualismo protestante na
medida em que reconhece apenas indivíduos e rejeita as mediações sociais:
enquanto o individualismo ateu rejeita a sociedade (seja na solidariedade
contemporânea, seja na continuidade histórica), o individualismo protestante
rejeita a igreja, ao estabelecer uma comunicação direta, pessoal e
intransferível entre o crente e a divindade; em ambos os casos a pessoa está
sozinha no mundo e é a única responsável pela sua satisfação íntima. Aliás, não
é por acaso que as "sociologias" derivadas de ambientes protestantes
têm características individualistas, de que o maior exemplo é a obra de Max
Weber, que concebia apenas interações individuais e recusava-se terminantemente
a definir a "sociedade". Já as obras de Hobbes e Locke apresentam um
aspecto misto, juntando a emancipação individualista da teologia com aspectos
do protestantismo anglicano: essas duas características tornam os dois autores
também individualistas, concebendo a sociedade como a união de indivíduos ou,
no caso de Hobbes, rejeitando a própria idéia de sociedade com o indivíduo
plenamente egoísta e racional.
Em suma: é por esses motivos
todos que a emancipação relativamente à teologia não pode parar no
individualismo; ou, considerando a questão de outro ângulo, é por todas essas
razões que as várias formas de
individualismo (epistemológico, moral e sociológico) correspondem à emancipação
incompleta da teologia.
[1] Neste
texto refiro-me em particular ao individualismo ateu, isto é, causado pelo ateísmo.
Mas, como se verá, existem outras variedades de individualismo, ou melhor,
outras fontes intelectuais e morais do individualismo, entre as quais as teologias.
De qualquer maneira, como o filósofo francês Pierre Laffitte (discípulo de Augusto
Comte) e o antropólogo também francês Louis Dumont argumentaram, a rejeição monástica
da sociedade foi uma das fontes mais importantes e poderosas da produção do
"individualismo", ocorrendo tanto no Ocidente quanto (por exemplo) na
Índia.
[2]
Nesse sentido, torna-se claro que a busca da verdade é em si mesmo um valor
moral. Sem dúvida que o tempo todo o ser humano percebe que várias de suas
concepções são erradas: o problema não está no erro sincero, mas na persistência
no erro e também no erro voluntário e consciente. O erro sincero é honesto, o
erro voluntário é mentiroso; além disso, as concepções que não correspondem à
realidade dos fatos e, em particular, as concepções que não reconhecem e não
valorizam a natureza humana (coletiva e individual) produzem miséria e infelicidade.
De qualquer forma, importa
reconhecer que conceber dessa forma a relação entre o ser humano e a sociedade,
de um lado, e a verdade e a busca da verdade, por outro lado, está fora dos hábitos
mentais contemporâneos, do Zeitgeist
das nossas sociedades ditas "pós-modernas", em que o irracionalismo e
a "ironia" têm um peso tão grande; em outras palavras, buscar e
valorizar a verdade é algo fora de moda. Evidentemente, como argumentava
Galileu e argumentam todos os filósofos da ciência sérios, a verdade não é simplesmente
uma questão de número, isto é, ela não é "democrática".
[3] À
luz da lei dos três estados intelectuais, o surgimento do individualismo ateu aproximar-se
do individualismo teológico não é um resultado necessariamente imprevisto, na
medida em que tanto o individualismo quanto o ateísmo são concepções metafísicas
– e, como argumentava Augusto Comte, embora a metafísica tenda à positividade,
o fato é que ela consiste em uma forma degradada de teologia.
[4]
Nesse sentido, a própria emancipação relativamente à teologia de qualquer
indivíduo é sempre dependente das outras pessoas, ou seja, é dependente da
sociedade e da história: por um lado, a teologia é uma etapa na constituição do
conhecimento; por outro lado, a despeito da retórica – ultra-individualista, cumpre notar – que afirma a
incomensurabilidade e a infinidade da imaginação individual, a possibilidade de
alguém emancipar-se é dada também pelas condições sociais e históricas próprias
a cada coletividade.
(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)
(Primeira versão deste texto: 2.12.2014; segunda versão: 4.12.2014.)
(Primeira versão deste texto: 2.12.2014; segunda versão: 4.12.2014.)
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