15 julho 2009

"Movendo montanhas", de Daniel Sottomaior

Reproduzo abaixo texto iluminador de Daniel Sottomaior, publicado originalmente no blogue Sedentário. A situação descrita é tenebrosa.

* * *

Esta é uma história sobre poder, dinheiro e religião. Não é ficção, mas envolve uma das maiores igrejas do mundo, o Estado brasileiro e dinheiro que sai do seu bolso. Muito, muito dinheiro.

Poucas pessoas sabem, mas em novembro do ano passado o presidente Lula foi à sede da Igreja Universal do Reino de Deus em São Paulo, (”a caminho de Washington”, segundo as fontes oficiais), para assinar, com Edir Macedo, um acordo entre a República Federativa do Brasil a Universal. Sim, um acordo entre o Estado que pertence a todos os brasileiros e deveria se guiar pelo bem comum, e a instituição cujo objetivo é promover e expandir a fé de alguns deles. Ao longo dos seus 20 artigos, o documento estabelece uma série de diretrizes na relação da igreja com o Estado, com as Forças Armadas e com os cidadãos brasileiros.

Como era de se esperar, o pacto logo foi denunciado como um instrumento de privilégios para a Universal. Para começar, o governo só revelou o conteúdo do documento depois que ele já tinha sido assinado. Por que razão se esconderia um acordo que é perfeitamente legal e justo? Como se soube depois, as negociações duraram anos e o seu conteúdo circulou por diversos ministérios. Mas, sintomaticamente, a sociedade foi impedida de tomar conhecimento do tema. A imprensa, o legislativo e outros órgãos públicos têm o poder e o dever de fiscalizar as ações do executivo para evitar abusos, mas o desejo da Universal e do governo não era esse.

Os cardeais da igreja se apressaram em afirmar que nada havia no documento além de direitos já estabelecidos. Ele não criava privilégio algum, mas celebrava a liberdade de culto e a laicidade do Estado. Afinal de contas, o pacto abria o caminho para que outras igrejas assinassem documentos de igual teor.

Ora, mas se o documento não continha nenhuma novidade, por que assiná-lo? E se outras igrejas devem procurar acordos semelhantes, isso é uma admissão clara de que os termos atuais realmente concedem privilégios que elas não têm — e que podem jamais ter se não tiverem o dinheiro e a organização suficientes para assinar acordos iguais. Quem poderia garantir que esses acordos realmente seriam assinados, depois de quanto tempo e em que termos? Tudo parecia muito improvável.

A idéia de que o governo estava favorecendo ilicitamente a Universal se aprofundou quando a base governista escolheu um deputado ligado à igreja para ser relator do tema na Câmara, onde o acordo deveria ser aprovado antes de entrar em vigor. Apesar de representantes de outros grupos terem procurado o relator, seu parecer foi francamente favorável ao acordo e sequer citou as posições em contrário. Em suas vinte e cinco páginas, o relator não encontrou espaço uma única vez para citar o art.19 da Constituição Federal, que estabelece a laicidade do Estado nos seguintes termos:

É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

O que é um acordo senão uma relação de dependência ou aliança? A separação entre Igreja e Estado é um princípio fundamental da democracia porque sem ela um credo sempre acaba por receber tratamento diferenciado dos outros. Assinando tratados com o Estado, por exemplo. Mas nada disso comoveu os parlamentares.

Alguns deputados e defensores da laicidade do Estado se mobilizaram para levar a discussão do tema a outras comissões, apontando sua inconstitucionalidade, o desvio de recursos públicos e outras anomalias. No entanto, o governo tem maioria na Câmara e aprovou regime de urgência na tramitação do acordo, removendo qualquer possibilidade de discussão em outras comissões, inclusive a Comissão de Constituição e Justiça, pela qual todos os projetos passam, e que deveria ser o maior obstáculo à aprovação de um documento inconstitucional.

Enquanto isso, apesar de ter sido amplamente informada sobre o tema, a grande imprensa se recusou a tratar do assunto. Seu silêncio foi denunciado mais de uma vez pelo importante Observatório da Imprensa, em suas versões online e televisiva, sem no entanto conseguir furar o silêncio da mídia. Nem mesmo os benefícios mais escandalosos, como a concessão de recursos públicos para manutenção dos bens móveis e imóveis da igreja foram suficientes para romper esse cerco.

O acordo prevê ainda que o Estado brasileiro seja obrigado a “promover a fruição dos bens, móveis e imóveis, de propriedade da Igreja”, segundo o art.6o. Essa conta milionária será paga por cidadãos de todos as crenças e descrenças, e a Universal gozará de status e poderes únicos no ordenamento jurídico brasileiro. Além disso, o governo brasileiro fica obrigado a oferecer ensino religioso em escolas públicas segundo a doutrina da Universal, contrariando a Lei de Diretrizes e Bases, que veda “quaisquer formas de proselitismo”. E tem mais: na prática, o pacto impede que a justiça trabalhista acolha causas de ex-sacerdotes e ainda estabelece que as sentenças da Universal em matéria matrimonial, baseadas em seu regulamento interno, serão homologadas pela lei brasileira! Mas os absurdos não param por aí: o acordo tem uma cláusula permitindo que ele seja livremente modificado e expandido ao longo dos anos pelo executivo, sem necessidade de aprovação pelo legislativo, e dá poderes ao braço executivo da igreja para celebrar convênios com o governo. Como o acordo é bilateral, não pode ser encerrado sem a anuência da IURD. Para todos os efeitos, é perpétuo!

Isso tudo parece ficção saída de um Dan Brown tupiniquim, mas não é. Como pode tudo isso ser verdade, e sequer chegar a ser noticiado pela imprensa? A realidade, mais uma vez, supera a ficção. Por mais incríveis que pareçam esses acontecimentos, eles realmente se desenrolaram nos últimos meses, e da maneira como foram descritos. Com uma pequena diferença: onde se leu Edir Macedo, o personagem de fato é Joseph Ratzinger. O tratado não foi assinado com a Igreja Universal, mas com a Sé de Roma, também chamada de Santa Sé, órgão máximo da Igreja Católica Apostólica Romana. Os benefícios descritos, no entanto, são os mesmos. O que o acordo faz é obrigar o Estado a mover montanhas para um credo e seus fiéis, em detrimento de todos os demais.

Se o leitor ficou chocado com o poder, o dinheiro e os privilégios concedidos ao bispo que preside a Catedral da Fé e sua igreja, não pode agora mudar de idéia e imaginar que a história seria menos escandalosa com outro protagonista, como o bispo de Roma e sua igreja. Se somos todos iguais perante a lei e o Estado, um acordo selado com qualquer igreja ou credo é igualmente abominável. A lei deve ser uma só e a mesma para todos. E, no entanto, neste momento o nosso governo trama para criar uma lei — sim, porque o acordo com a Sé de Roma é um tratado internacional, com força de uma lei que não pode ser revogada ou sequer alterada pelo legislativo –, uma lei que dá poderes e direitos especiais a um grupo religioso. E com a plena conivência da imprensa.

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É evidente que a única urgência aqui é a de impedir a população de tomar conhecimento do que está acontecendo. Mas o regime de urgência instaurado permite que o plenário da Câmara dos Deputados vote o projeto a qualquer momento. A imensa parte dos deputados está indiferente ou favorável à aprovação, porque não vê problema algum no acordo ou porque não deseja contrariar os interesses do governo e da Igreja. Um pequeno grupo de parlamentares, contudo, tem se posicionado com extrema clareza e lucidez contra esses absurdos. Alguns dos mais destacados são André Zacharow, Ivan Valente, Pedro Ribeiro e Dr. Rosinha.

Diversas entidades, dos mais diversos tipos, já declararam ser contra o acordo: Ação Educativa, Associação Brasileira de Liberdade Religiosa e Cidadania, Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, Superior Órgão de Umbanda do Estado de São Paulo, Associação Brasileira dos Templos de Umbanda e Candomblé, Associação da Parada GLBT de São Paulo, Católicas pelo Direito de Decidir, Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, Grupo Corsa, Instituto Edson Néris, Catedral Presbiteriana do Rio, Ile Asé Igbin de ouro, entre outros (veja uma lista um pouco mais completa aqui).

Você também pode e deve ajudar nesta luta. O histórico das concordatas em todo mundo é tenebroso, como se pode conferir no site www.concordatwatch.eu. No Brasil não é diferente. Mande cartas aos jornais e principalmente aos seus deputados (há uma lista de emails de lideranças aqui ou utilize diretamente o site da Câmara). Acrescente seu nome ao abaixo-assinado em http://www.petitiononline.com/BrasVat/petition.html. Os dados essenciais sobre a concordata estão descritos em formato de perguntas e respostas simples em acordovaticano.blogspot.com.

As adesões institucionais são especialmente importantes, pois agregam mais peso e legitimidade. Se você participa de uma entidade, igreja, terreiro ou qualquer outra instituição, peça que eles se manifestem o quanto antes, ou pode ser tarde demais.

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O acordo assinado “por ocasião da Audiência Privada do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva com Sua Santidade o Papa Bento XVI – Vaticano, 13 de novembro de 2008″ pode ser lido nesta nota do Itamaraty.

ATUALIZAÇÃO (13/07)

Se você pensa que o acordo não deve ser ratificado, pode exercer seu direito e protestar ainda mais efetivamente neste momento:

Antes de ir a plenário, a proposição deve ser votada pela comissão — e ganhar o voto na comissão é meio caminho andado, pois o parecer dela pode contrariar o do relator, e tem grande influência no plenário. Há boa chance de que a votação na comissão ocorra nesta terça ou quarta, então isso é ainda mais urgente do que os emails aos demais deputados. Quem votou pela urgência tem boa chance de votar pela aprovação, então esses são os destinatários prioritários de seu protesto.

Você confere a lista completa de votantes aqui, e os membros da comissão aqui.

Os deputados da comissão que votaram pela urgência na tramitação desse acordo são:

Deputado a favor da urgência email
Aracely de Paula PR/MG dep.aracelydepaula@camara.gov.br
Íris de Araújo PMDB/GO dep.irisdearaujo@camara.gov.br
Jair Bolsonaro PP/RJ dep.jairbolsonaro@camara.gov.br
Luiz Sérgio PT/RJ dep.luizsergio@camara.gov.br
Maria Lúcia Cardoso PMDB/MG dep.marialuciacardoso@camara.gov.br
Nilson Mourão PT/AC dep.nilsonmourao@camara.gov.br
Damião Feliciano PDT/PB, 1º vice da CREDN dep.damiaofeliciano@camara.gov.br

Manifeste sua opinião.

Os que não votaram, e também podem ser destinatários especialmente efetivos:

Deputado que não participou da votação de urgência
Arlindo Chinaglia PT/SP dep.arlindochinaglia@camara.gov.br
Átila Lins PMDB/AM dep.atilalins@camara.gov.br
Ibsen Pinheiro PMDB/RS dep.ibsenpinheiro@camara.gov.br
Maurício Rands PT/PE dep.mauriciorands@camara.gov.br

Vale por fim indicar o que foram contra a urgência. Estes podem merecer seu elogio e apoio:

Deputado votou contra a urgência
Dr. Rosinha PT/PR dep.dr.rosinha@camara.gov.br
George Hilton PP/MG dep.georgehilton@camara.gov.br
Takayama PSC/PR dep.takayama@camara.gov.br
Severiano Alves (PDT/BA) (pres. da CREDN) dep.severianoalves@camara.gov.br

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