25 março 2022

Hernani Gomes da Costa: "Positivismo e psicanálise - teorias e psicoterapia"

No dia 15 de março, durante a segunda sessão do Curso livre de política positiva, durante a exposição surgiu uma questão: considerando a importância da subjetividade, quais seriam as relações entre o Positivismo e a psicanálise? Essa questão, por mais interessante e sugestiva que seja, não poderia ser tratada durante o curso - seja porque ela ensejaria, necessariamente, muitas reflexões; seja porque, embora seja necessário falar sobre subjetividade, o curso em si é sobre política e não sobre psicologia; seja enfim porque eu mesmo não tenho condições de responder a essa questão.

Assim, pedi a meu amigo Hernani Gomes da Costa a grande gentileza de elaborar uma resposta; ele imediatamente começou a respondê-la, concluindo as suas anotações no dia 22 de março, uma semana depois, a tempo da terceira sessão do curso. Nessa terceira sessão eu não teria condições de ler a íntegra da resposta; por isso me limitei a apenas citar os quatro aspectos indicados inicialmente pelo Hernani; mas, com a autorização do autor, formatei o texto e publico-o agora, na forma abaixo.

Espero que gostem e que apreciem essas reflexões!

*   *   *

Positivismo e psicanálise - teorias e psicoterapia

Hernani Gomes da Costa


Introdução

Uma forma que me parece bastante fecunda de começar a examinar a relação entre a psicanálise e o positivismo consiste em distinguir logo de início a teoria psicanalítica de sua correspondente técnica psicoterápica e, em seguida, comparar a primeira à Moral Teórica e a segunda à Moral Prática. Embora o caráter metafísico da psicanálise deva oferecer, tanto em um caso como mesmo no outro, um contraste marcante com o espírito positivo, isso não nos deve demover de buscar entre essas duas grandes concepções da alma humana o maior número possível de pontos de contato, pontos esses, aliás, que devem poder formar toda uma base a partir da qual se poderá fazer a psicanálise percorrer, ela própria, a lei dos três estados.

Moral Teórica e teoria psicanalítica

Devo assinalar quatro grandes pontos de contato, cujo conjunto, assim me parece, chega mesmo a suplantar todas as diferenças e oposições que decerto existem entre essas duas formulações pioneiras; são elas:

1)                 primado da emocionalidade sobre a racionalidade;

2)                 identidade fundamental das leis naturais que regulam os estados de saúde e de doença mental;

3)                 plena caracterização do fenômeno mental como distinto dos (e irredutível aos) processos químicos, biológicos e sociológicos que o acompanham e malgrado estejam-lhe associados indissoluvelmente; por fim,

4)                 valorização da vida onírica como legítima (e segundo Freud como preferencial) via de acesso ao conhecimento e ao aperfeiçoamento profundo de si.

Examinemos agora, um a um, a relevância desses quatro pontos.

1) Primado da emocionalidade sobre a racionalidade

A grande revolução esboçada por Franz Gall e sistematizada por A. Comte sobre o psiquismo humano, segundo a qual se deveria buscar sempre em motivações emocionais as mais fundas raízes dos nossos pensamentos e das nossas ações, precisou esperar por Freud até se traduzir como parte de uma efetiva busca pelo alívio dos nossos transtornos psicológicos. No decorrer da evolução do movimento psicanalítico, não me consta que nenhuma de suas inúmeras dissidências tenha jamais dado ensejo à mínima insurreição contra essa tese, que representa, insistimos, uma semelhança essencial com a concepção positiva da alma. Pelo contrário, esta manteve-se intacta resistindo a todas as demais correntes que haveriam de formar-se na psicologia (mesmo fora da psicanálise) e que no fundo limitaram-se apenas à resolução do problema de identificar, dentre todo o inventário das nossas punções instintivas, a qual delas deveria caber o primado de nossa dinâmica mental.

2) Identidade fundamental das leis naturais que regulam os estados de saúde e de doença mental

O segundo ponto que me parece convir apresentar consiste no modo como tanto a teoria psicanalítica da alma quanto a comtiana formulam a seu próprio modo a identidade comum que subjaz aos fenômenos patológicos e aos que concernem à saúde. Prosseguindo ambas, nesse particular, as bases lançadas por François Broussais, elas vieram estabelecer o continuum que, ligando um desses extremos ao outro, permitem teoricamente que se conceba tanto a recondução da mente da doença para à saúde, quanto sua recaída à doença, e permitem ainda conceber essa dupla passagem como se constituindo, no fundo, de um só e mesmo processo, apenas funcionando em dois sentidos opostos. Foi assim que se tornou possível transpor o abismo em que jaziam ininteligíveis os mais grotescos sintomas psicopatológicos, que doravante puderam ser rastreados até sua origem mais remota e então compreendidos nos termos de uma intrincada deformação daqueles mesmos processos que a mente elabora em seu estado são.

3) O fenômeno mental como distinto dos processos inferiores

É sabido que a escola positivista encontrou profunda resistência do materialismo junto ao mundo acadêmico em que, na menos pior das hipóteses, apenas foi possível acompanhar – de um seguro distanciamento – as concepções comtianas até os estritos limites sugeridos pelo Curso de Filosofia Positiva que faziam então da Moral tão-só o capítulo final da Biologia e o preâmbulo à Sociologia (concebida esta como a última e a mais alta ciência). De fato, em uma atmosfera em que predominavam concepções como as de Carl Vogt (que afirmava ser o pensamento a secreção do cérebro), declarar, como Comte o fez em sua fase religiosa, a identidade própria do fenômeno moral em relação aos da neurofisiologia, inclusive a erguendo acima da Sociologia, era algo que parecia ameaçar a tão sonhada unidade objetiva da ciência materialista, com um retorno à tenebrosas concepções de um espiritualismo teológico ou de um vitalismo metafísico não menos funesto. Esse quadro só mudou a partir dos experimentos de Charcot (um dos mestres de Freud) com pacientes histéricos cujas paralisias parciais exóticas conduziriam a verdadeiros paradoxos se houvessem de ser anatomicamente compreendidas como associáveis apenas a lesões neurológicas. Foram tais experimentos que arrancaram Freud do materialismo vulgar, conduzindo-o a um caminho que, embora não exatamente novo (uma vez que já havia sido apontado por A. Comte e trilhado por seu discípulo Georges Audiffrent), havia, para todos os efeitos, permanecido à margem do mundo acadêmico, sufocado até mesmo pelo littreísmo que ainda hoje passa por ser o positivismo comtiano. Eis aí como foi que em mais esse aspecto fundamental a psicanálise veio assemelhar-se ao positivismo já a partir da própria consideração do fenômeno moral como detentor de um status próprio e superior, que, conquanto subordinado a todos os demais, não se reduz a nenhum deles.

4) Vida onírica como via de acesso ao conhecimento e ao aperfeiçoamento profundo de si

Se, como Freud afirmou, a interpretação dos sonhos é a via régia do inconsciente, então podemos dizer que Comte apresenta-se (no cenário de uma então embrionária Psicologia) como um genuíno precursor não só da psicanálise como do que hoje chamamos sonhos lúcidos. De fato, quanto a isso, Comte escrevera no Catecismo positivista – e, note-se, quase 50 anos antes da publicação dos dois célebres volumes que abrem o século XX e aos quais Freud carinhosamente se referia como “o meu livro de sonhos” – o seguinte: “pode-se esperar que a teoria cerebral conduza finalmente a bem interpretar os sonhos e mesmo a modificá-los, segundo o voto de toda a Antigüidade”. Se livrarmo-nos dos preconceitos que pairam sobre o positivismo, poderemos compreender como foi possível a Comte encetar tamanho adiantamento, uma vez que em uma síntese que sempre tendeu e pretendeu tornar-se plenamente relativa e subjetiva, a valorização da vida onírica não poderia senão corresponder a um dos corolários da própria valorização geral conferida a essa faculdade complexa da imaginação – isto é, ao recurso lógico de elaborar imagens e de intensificá-las deliberadamente. Tal faculdade vem, pois, com a nova síntese, reocupar natural e necessariamente no conjunto da nossa natureza, (e assim também nas concepções e práticas que a ela correspondem) o seu primitivo lugar de honra dignamente reconstituído, tanto quanto em contrapartida deveu-o ser posta sob suspeita e desprezada por um grosseiro academicismo materialista, que aliás perdura até hoje. Acrescente-se a isso que, além da esperança depositada por A. Comte (e compartilhada por Freud) na capacidade de bem interpretar os sonhos, também a expectativa do fundador do positivismo na possibilidade moral representada pelo dom complementar de modificá-los (assunto que, tanto quanto sei, jamais entrou na pauta da obra freudiana) veio enfim realizar-se sob nossos olhos, mediante técnicas do sonho lúcido sistematizadas apenas em meados dos anos 1970.

Moral Prática e técnica psicoterápica psicanalítica

Se na primeira parte de nosso exame foi simples identificar alguns pontos de contato significativos entre as teorias comtiana e freudiana da alma, a presente segunda parte, referente à atuação direta de ambas sobre a subjetividade humana, vem oferecer ao contrário um contraste radical que as torna, a meu ver, antagônicas; o que aliás sugere imediatamente a questão de saber se, afinal, existiria hoje alguma outra linha pedagógica e psicoterápica que melhor se assemelhasse à moral prática conforme concebida por Comte. Examinaremos também esse último ponto. Convém notar, porém, que a morte prematura de Comte representou a catástrofe que privou a Humanidade do que seriam os demais três volumes que se seguiriam ao tratado matemático (único publicado) que forma o primeiro tomo da sua Síntese Subjetiva. Seria justamente no segundo e no terceiro tomo dessa tetralogia há tanto tempo anunciada que Comte trataria de constituir a Moral Teórica e a Moral Prática (ou, como diríamos hoje, a Psicologia e a psicoterapia/pedagogia positivas, respectivamente). Assim, tudo quanto dispõe aquele que deseja debruçar-se hoje sobre tal problema encontra-se disperso heterogeneamente ao longo da obra comtiana, apenas sob forma de indicações mais ou menos incidentais e sumárias. Só o que nos resta fazer, pois, é conjecturar tomando tais bases – sugestivas porém necessariamente incompletas (somadas, é claro, a tudo o mais que a Humanidade conseguiu realizar convergentemente em termos de especulação e de investigação psicológica, psicoterápica e pedagógica) e, a partir daí, inferir (e mesmo assim apenas como mera plausibilidade) como haveriam de constituir-se as suas morais Teórica e Prática. Limitar-nos-emos apenas a indicar o que nos parece esse novo caminho que Comte começava a vislumbrar (e cuja mais precisa caracterização só pôde ser apresentada já em seu leito de morte como em um último ensinamento) e que, se percorrido, guiá-lo-ia – assim nos parece – a uma inteira e nova possibilidade de interação e de compreensão interpessoal, a qual, por sua vez, corresponde, a nada menos que à própria chegada da comunicação humana como um todo ao seu estado positivo.

Para melhor examinar o contraste efetivo entre o modo de operar da psicanálise e da Moral Prática, conviria examinar a proposta desta, indicada já por sua posição mesma na escala enciclopédica. O conceito que emerge de tal posição, e que me parece o mais caracterizador do seu espírito geral, traduz-se na sua condição única (e que apenas aí é possível) de uma plena concretude em que toda abstração torna-se a um tempo tão impossível quanto indesejável. Se à Moral Teórica apenas coube investigar e inventariar o que há de comum a cada individualidade, é à Moral Prática que cabe, ao invés, desenvolver os esforços no sentido de estabelecer as atitudes do que poderíamos chamar de “ciência da excepcionalidade”. Ocupando uma posição singularmente privilegiada na escala dos saberes, fronteiriça às demais artes práticas cujos seis restantes elementos formarão uma hierarquia que descerá sucessivamente da política até as artes ligadas à matemática, a Moral Prática caracteriza-se, de fato, pelo trabalho contínuo de deter-se tão-só em cada indivíduo no seu aqui e agora, ou seja na concentração total de nossa emocionalidade e de nossa atenção em uma determinada pessoa concreta, que se apresenta de fato a nós em um determinado lugar e tempo concreto e que, dessa forma, momento a momento vem revelar-se na qualidade da subjetividade singular e incomparável (ou antes a-comparável) que é. Os elementos únicos para uma tal compreensão não podem, pois, deixar de consistir exclusivamente naquilo que essa própria pessoa concreta venha revelar por meio da sua comunicação verbal ou não verbal conosco e que por nós possa ser assimilada e a ela devolvida como forma de confirmar, por tal pessoa mesma, se (ou em que medida) fomos capazes de alcançar o sentido subjetivo do que nos comunicou. Outrossim, esse nosso esforço por seu turno não carece de nenhum construto teórico, resumindo-se antes na consequência natural de um gesto único que consiste, ao contrário, em despirmo-nos cada vez mais de quaisquer abstracionismos (mesmo os oferecidos pela própria Moral Teórica) bem como de hipóteses, pressupostos, expectativas, juízos de valor etc. que possamos acaso formular sobre alguém e por mais plausíveis ou necessários que nos pareçam. É assim, pois, que tudo de quanto dispomos como instrumento para alcançar essa compreensão é a nossa própria emoção e atenção, inteira e integralmente voltadas e votadas a quem de fato apresenta-se a nós, no desejo imenso e intenso de captar assim a totalidade do significado subjetivo real do que nos é oferecido na interação – também única – dessa pessoa conosco. Em uma palavra, só o que nos resta como instrumento efetivo para tal compreensão humana somos nós mesmos, com nossas próprias faculdades naturais de empatia, de congruência e de receptividade positiva e incondicional.

Embora haja um certo consenso de que a psicanálise não é mais, hoje, o que foi nos tempos de Freud, parece-me inegável que ela tenha recebido da Medicina a herança de uma certa postura profissional típica, herança esta de que seus profissionais, em geral, ainda não se dispuseram a abrir mão. Refiro-me a um posicionamento no qual o psicanalista apresenta-se como um especialista, como um “doutor de almas”, ou – o que é ainda pior – como um “fulano-de-tal-ólogo”. Ela parte do pressuposto de que existem verdades universais e necessárias sobre os mecanismos mais profundos responsáveis pelo padecimento moral do ser humano, verdades que precisariam ser eficientemente identificadas nos sintomas que o “paciente” manifesta e em seguida “tratadas” pelo psicanalista. A palavra do psicanalista substitui, no caso, o bisturi; o divã substitui a mesa de cirurgia; as sessões são o equivalente a uma operação; o trauma é a causa do sintoma e a catarse, a extrusão do mal. Bem se vê que em uma ambiência como essa a relação deve pautar-se na suposta dependência quase total em que o “paciente” encontra-se na sua relação com o psicanalista. É essa dependência que faz o paciente requer uma ajuda impessoal cujas propostas e solicitações são tão específicas que ninguém mais – nem parentes, nem amigos, nem médicos, nem sacerdotes e nem ele próprio, paciente – teria como oferecer e à qual ele apenas vem contribuir na qualidade de um colaborador involuntário no desenvolvimento da teoria e no aprimoramento da técnica, oferecendo a ambas novos insumos de “material” a compor ilustrações adicionais que enriquecerão a psicanálise, confirmando, complementando ou, vez por outra, infirmando a verdade de seus pressupostos e a eficácia de seus procedimentos.

Uma evidência sensível do teorismo psicanalítico revela-se muito particularmente na barreira iniciática imposta pelo Estado na ocasião mesma do ingresso do recém-formado psicólogo em sua vida profissional: o gigantesco aparato teórico da psicanálise adjunto ao seu correspondente repositório terminológico (que já formou, diga-se, grossos léxicos) prestam-se – como talvez os de nenhuma outra linha de psicoterapia – a oferecer quase todo o conteúdo das questões de múltipla escolha presentes nas provas de concursos públicos para os cargos de psicólogo. Nada em Psicologia consegue ser tão farto e nada consegue ajustar-se tão bem e ser tão precisamente caracterizável (quando se trata de comportar um inequívoco “assinale a única resposta correta”) do que a psicanálise.

Comte, em seu leito de morte, afirmara, porém, como consistindo em um verdadeiro vício lógico enraizado na Medicina a prática de aplicar princípios gerais a casos particulares. Jung, discípulo dissidente de Freud, chegaria mesmo a dizer: “conheçam-se todas as teorias, dominem-se todas as técnicas, mas ao estarmos diante de outra alma humana, sejamos apenas outra alma humana”. Ora, pergunta-se então: como ficaria (e em que consistiria) uma Psicologia, uma Psicoterapia e uma Pedagogia que procurassem rastrear as mais longínquas consequências de tal vício lógico, tentando o mais que possível evitá-las e contorná-las? Como dissemos inicialmente, na obra comtiana apenas poderemos encontrar sobre isso sentenças esparsas e incidentais. Esse tema tão capital (e que, desgraçadamente, em virtude de apenas dois anos de vida que o destino não concedeu ao fundador do positivismo) não pôde ter nenhuma apresentação direta e sistemática, conquanto representasse desde há muito o próprio coroamento de toda a doutrina. Contudo, pensamos que, apesar disso, o oferecido aqui, se largamente desenvolvido, possa servir como a primeira base de um esboço de tentativa no sentido de compreender o que foi aquela antiga e esquecida proposta, assim como de estabelecer algum critério por meio do qual seja possível investigar se existe hoje alguma linha de Psicologia naturalmente mais próxima dela. Penso que a resposta a essa última questão seja afirmativa e que tal linha esteja cabalmente representada nas chamadas abordagem centrada na pessoa (ACP) e na pedagogia centrada no aluno, de Carl Rogers.

Torna-se uma tarefa das mais melindrosas e arriscadas fazer derivar todo um conjunto de práticas de uma única indicação extrema tomada como fundamental, mas, a menos que nos arrisquemos a algo assim, não estaremos realmente em condições de avançar. As linhas psicoterápicas podem ser grosso modo divididas em três grandes grupos segundo a base que tomaram para o acesso à subjetividade humana: de natureza predominantemente prática (behaviorismo, orgonoterapia, rolfing, rebirthing, terapia do grito primal etc.), intelectual (psicanálise e suas dissidências, gestalt, terapia cognitivo-comportamental, filosofia clínica etc.) ou afetiva (abordagem centrada na pessoa, terapia existencialista, psicodrama etc.).

Essa decomposição mais ou menos assente nos meios acadêmicos forma um critério adicional que favorece o nosso trabalho, o qual passa a incidir de preferência sobre o último desses três grupos, tão bem a propósito caracterizado pela denominação de psicoterapias humanistas.

Assim como Comte precisou livrar-se até mesmo de determinadas especulações e ambições científicas para atingir a plenitude do estado positivo, Rogers também precisou fazê-lo para alcançar a cristalinidade da visão do outro como a de uma total alteridade mutável instante a instante. Em uma analogia com a Matemática, podemos dizer que a diferença entre a abordagem centrada na pessoa e as demais formas diretivas e abstratas de acesso à subjetividade assemelha-se à que existe entre a idéia de somatório quando comparada à de integral. Da mesma forma – e explorando ainda mais a analogia com a Matemática –, a diferença entre a pessoa conforme concebida nas demais terapias e na ACP assemelha-se à diferença fundamental entre o conjunto dos números reais, em que é cabível a relação “maior do que” e “menor do que”, e o conjunto dos números imaginários, em que esse componente quantitativo deixa de fazer sentido, malgrado seus elementos característicos consistam de entidades aritméticas tão bem definíveis como aquelas encontráveis no conjunto dos números reais[1].

Finalizando, devemos dizer que, embora os conceitos de doença, alta, cura, sintoma, inconsciente, trauma, diagnóstico, tratamento, terapia, neurose, psicose, obsessão, compulsão, id, ego, superego, paciente etc. etc. etc. não encontrem absolutamente lugar na abordagem centrada na pessoa, isso não significa que ela rejeite, a bem dizer, o fato reconhecido de que psicólogos de outras linhas tenham dito haver identificado (segundo seus próprios construtos – e designado segundo seu próprio jargão) muito do que efetivamente acontece no interior de uma sessão da ACP, quer na condição fenômenos a eles familiares, quer mesmo na condição de consistirem estes nas mesmas exatas e genuínas ocorrências que historicamente atestaram desde o início, a realidade de cada uma suas próprias e inúmeras teorias. A rejeição a esses conceitos obedece, no caso, a uma outra ordem de considerações e de atitudes distinta do que seria uma simples rejeição teórica. Trata-se aqui de evitar a todo custo o abstracionismo, considerando, por exemplo, que por mais bem descritos que possam vir a tornar-se conceitos como os de neurose, tão exaustivamente tratados, tais descrições jamais poderiam equivaler – em termos de informação real – ao que a própria pessoa que busca ajuda teria a dizer sobre si mesma, assim como jamais equivalerão ao que uma pessoa que busca compreender a outrem possa obter de sua própria empatia, quando se compara isso a qualquer suposto conhecimento a priori que estivesse fora do contato direto e íntimo com ela, pela intermediação dos mais experientes e argutos intérpretes.

 

Nota pessoal: Caro Gustavo, eis aí em síntese o meu prometido texto. Penso haver chegado a um resultado mais ou menos satisfatório nessa minha primeira tentativa sistemática de situar a psicanálise no contexto das concepções positivas, sobretudo considerando-se o tempo que tive disponível, bem como a necessidade de encurtá-lo tanto quanto convém a uma simples resposta. Precisamos desenvolver esse tema, inclusive no sentido de colher da própria psicanálise alguns conceitos mais tardios que eventualmente a aproximem mais da Moral Teórica e Prática.



[1] Melhor seria dizer “conjunto dos números complexos”, de que o conjunto dos imaginários é apenas uma parte , ou seja, aquele em que, na expressão geral “A+Bi”, A é igual a zero.

Curso livre de política positiva: vídeo da 3ª sessão

No dia 22 de março ocorreu a terceira sessão do Curso livre de política positiva, com transmissão ao vivo no canal do Facebook Apostolado Positivista: Facebook.com/ApostoladoPositivista.

Nessa sessão apresentamos os conceitos de Estática e Dinâmica; método subjetivo; estado normal; teoria da religião.

Houve alguns problemas na transmissão, que teve que ser interrompida e reiniciada. Apesar dessa dificuldade, reuni as duas partes da exposição em um único vídeo, disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=8Yjp1UDuoeg.

A programação completa do Curso pode ser vista aqui.



16 março 2022

Zequinha pela paz na Ucrânia

A tradicionalíssima personagem curitibana Zequinha une-se aos esforços mundiais pela paz na Ucrânia e pelo fim da invasão russa. E, de passagem, convida todos os interessados que se unam a manifestações públicas nesse sentido!




Canal Apostolado Positivista: celebração do nascimento de Augusto Comte

Inaugurando o canal Apostolado Positivista no Facebook (Facebook.com/ApostoladoPositivista), celebramos em 19 de janeiro de 2022 o aniversário de nascimento do fundador da Religião da Humanidade, o grande filósofo Augusto Comte (1798-1857).

Tal celebração, aliás, além de inaugurar o canal, também retomou a prática de celebrar essa data tão especial, interrompida por muito tempo.

O vídeo da celebração está disponível aqui: https://www.facebook.com/ApostoladoPositivista/videos/377154660880499.  




Curso livre de política positiva: vídeo da 2ª sessão

No dia 15 de março ocorreu a segunda sessão do Curso livre de política positiva, com transmissão ao vivo no canal do Facebook Apostolado Positivista: Facebook.com/ApostoladoPositivista.

Nessa sessão apresentamos os conceitos de historicismo; objetividade e subjetividade; visão de conjunto e visão de detalhe; descrições e prescrições; escala enciclopédica e níveis de generalidade.

Com várias participações ao vivo, a segunda sessão está disponível aqui: https://www.facebook.com/ApostoladoPositivista/videos/495457555587668/.

O vídeo da segunda sessão também está disponível no canal The Positivism, aqui: https://www.youtube.com/watch?v=QMxrAUxE4KI.

A programação completa do Curso pode ser vista aqui.



Curso livre de política positiva: vídeo da 1ª sessão

No dia 8 de março ocorreu a primeira sessão do Curso livre de política positiva, com transmissão ao vivo no canal do Facebook Apostolado Positivista: Facebook.com/ApostoladoPositivista.

Nessa sessão apresentamos a justificativa e o plano do curso; uma rápida biografia de Augusto Comte e uma contextualização de sua imensa obra; por fim, começamos a expor as preliminares da política positiva, tratando do conceito fundamental do relativismo.

Com várias participações ao vivo, essa primeira sessão está disponível aqui: https://www.facebook.com/ApostoladoPositivista/videos/281799764032168/.

O vídeo também  pode ser visto no canal The Positivism, disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=bco6cWA47oQ.

A programação completa do Curso pode ser vista aqui.





04 março 2022

Mais alguns comentários sobre a invasão russa contra a Ucrânia

As observações abaixo dão continuidade à postagem feita em 2.3.2022 sobre a invasão russa da Ucrânia (disponível aqui). Elas não se referem às questões militares, mas à justificativa dada pela Rússia e às interpretações dadas no Brasil para essa invasão. Dessa forma, as observações tratam tanto de questões de fato quanto de questões de valores.

* * *

O "realismo" de Henry Kissinger que condena a inclusão da Ucrânia na OTAN é o mesmo que justifica o embargo econômico dos EUA contra Cuba: trata-se da idéia de "zonas de influência".

Como descrição política, as "zonas de influência" fazem sentido, é claro. Durante a Guerra Fria, essa era uma realidade fática e não havia muito o que falar: isso justificou a invasão soviética da Tchecoslováquia e da Hungria, da parte comunista, e o embargo contra Cuba, da parte dos EUA.
O problema é que não estamos mais na Guerra Fria. Assim, da mesma forma que o embargo dos EUA contra Cuba torna-se incompreensível e injustificável, deixar a Ucrânia à mercê da Rússia é inaceitável.
Foi a idéia das zonas de influência que justificou e legitimou, em última análise, a anexação violenta da Criméia pela Rússia em 2014. Em reação a essa violência, como nação soberana e preocupada com as questões mais elementares de segurança e de existência política, a Ucrânia foi atrás da OTAN (juntamente, e não por acaso, com inúmeros outros países da antiga Cortina de Ferro). Mas é ainda a idéia da "zona de influência" que justifica, da parte dos "realistas", a atual agressão russa contra a Ucrânia - pois a Ucrânia teria "provocado" a Rússia ao tentar defender-se, ao tentar preservar-se como país soberano e ao tentar evadir-se, dentro de suas possibilidades, da zona de influência russa.
O que não é explícito nesses raciocínios é que esse "realismo" acaba adotando um viés a favor das grandes potências: os países pequenos ou médios têm que se submeter às grandes potências. Em outras palavras, caso os países pequenos ou médios tentem ser, eles mesmos, realistas em favor de si mesmos, eles sofrerão punições das grandes potências a que estão submetidos. Para o realismo à la Henry Kissinger, as coisas são assim mesmo, não há muito o que dizer - e azar de quem não é grande potência.
É esse corolário meio fático, meio moral, de "azar de quem não é grande potência", que justifica a absurda afirmação de que a Ucrânia teria "provocado" a Rússia em 2022 ao solicitar a inclusão defensiva na OTAN, mesmo após ter sido desmembrada violentamente pela Rússia em 2014.
Para concluir: esse raciocínio "realista" encontra eco entre os esquerdistas que criticam a OTAN... bem entendido: encontra eco na medida em que os esquerdistas manifestam o seu antiamericanismo e seu anticapitalismo por meio da crítica à OTAN. Mas esses mesmos esquerdistas rejeitam essa teoria das zonas de influência quando se trata de Cuba. Enfim, é aquele negócio: dois pesos, duas medidas. (Nesse caso, o cinismo dos "realistas" é mais honesto que a hipocrisia dos esquerdistas; mas essa é outra questão.)

02 março 2022

Curso livre de política positiva

A partir de 8 de março de 2022 (terça-feira), a partir das 19h.

Curso em 15 sessões

Programa:
Sessão 1) Dia 8.3 - Apresentação: justificativa; foco geral do curso; estrutura do curso; Preliminares à Política Positiva I: o estado normal; objetividade e subjetividade; descrições e prescrições; visão de conjunto, visão de detalhe e a síntese subjetiva
Sessão 2) Dia 15.3 - Preliminares à Política Positiva II: relativismo, historicismo; escala enciclopédica e generalidade
Sessão 3) Dia 22.3 - Sociologia Estática I: religião: concepções e regulações gerais da existência humana
Sessão 4) Dia 29.3 - Sociologia Estática II: família e linguagem; os indivíduos
Sessão 5) Dia 5.4 - Sociologia Estática III: propriedade: origem e destinação sociais, gestão individual
Sessão 6) Dia 12.4 - Sociologia Estática IV: poder temporal: a gestão material da sociedade
Sessão 7) Dia 19.4 - Sociologia Estática V: poder espiritual: a orientação moral e intelectual da sociedade
Sessão 8) Dia 26.4 - As relações entre os dois poderes: laicidade, independência, dignidade
Sessão 9) Dia 3.5 - Sociologia Dinâmica I: os três estados da inteligência: teologia, metafísica, ciência e positividade
Sessão 10) Dia 10.5 - Sociologia Dinâmica II: os três estados da atividade: guerra conquistadora, guerra defensiva, paz industrial
Sessão 11) Dia 17.5 - Sociologia Dinâmica I: os três estados dos sentimentos: família, pátria, Humanidade
Sessão 12) Dia 24.5 - A Religião da Humanidade; regulação religiosa da sociedade: concepção do novo Grande Ser; a Trindade Positiva
Sessão 13) Dia 31.5 - A transição própria ao Ocidente: teocracia, Grécia, Roma, Idade Média, duplo movimento moderno, Revolução Francesa; transição final
Sessão 14) Dia 7.6 - República e “ditadura”: presidencialismo de liberdades
Sessão 15) Dia 14.6 - Justiça social: luta de classes; responsabilidade social

Alguns comentários sobre a invasão russa contra a Ucrânia

A guerra da Rússia contra a Ucrânia começou na noite de 23 para 24 de fevereiro de 2022, após semanas de aumento de tensões e de ameaças russas contra a Ucrânia. Como não poderia deixar de ser – em particular nesta época de notícias e opiniões difundidas em tempo real –, isso deu azo às mais diversas perspectivas; como, por outro lado, a análise do conflito depende precisamente das perspectivas adotadas, convém tecermos algumas considerações a respeito de algumas delas.

À parte o antiamericanismo dos (cripto)comunistas, muitas pessoas razoáveis têm sido ambíguas a respeito da invasão da Ucrânia ao adotar o curioso realismo à la Henry Kissinger[1], dizendo que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) expandiu-se de maneira irresponsável entre os anos 1990 e 2020, irritando e “atemorizando” (!) cada vez mais a Rússia.

Ora, Letônia, Estônia, Lituânia, Hungria, Polônia[2]: todos esses países e diversos outros foram atrás da OTAN, em vez de terem sido buscadas pela organização. Esses países buscaram a OTAN não para “provocar” a Rússia, mas, muito ao contrário, por um medo histórico desse país – aliás, tão histórico quanto as alegadas relações umbilicais entre Rússia e Ucrânia.

A Ucrânia quer aderir à OTAN simplesmente porque tem medo – cada vez mais justificado – da Rússia. E a invasão da Criméia em 2014 parece que não ocorreu e que não foi um ato violentíssimo, praticado pela “irmã” Rússia. Se antes de 2014 o desejo ucraniano de ingresso na OTAN talvez pudesse ser condenado em termos do “realismo” de Kissinger, o fato é que após a tomada da Criméia essa condenação tornou-se mera figura de retórica e o medo ucraniano da prepotência russa (e não o contrário) tornou-se mais real do que nunca.

Da mesma forma, um dos argumentos para tentar-se justificar a invasão da Ucrânia – que, cada vez mais, evidencia que terminará por destruir o país em termos geográficos, políticos, econômicos e sociais – são os laços étnicos entre Rússia e Ucrânia. Isso não é desprezível, evidentemente. O problema é que esse argumento tem sido mobilizado para justificar a invasão (e a destruição) da Ucrânia pela Rússia; mais do que isso: o argumento da fraternidade étnica tem sido usado para negar aos ucranianos o direito soberano de decidirem coletivamente o que fazer de suas próprias vidas. Moldávia, Irlanda, Macedônia do Norte etc. etc. mais ou menos têm o direito à autodeterminação, a despeito de evidentes e seculares vínculos com outros países; mas à Ucrânia esse direito é negado.

Por fim, vale notar que, no caso da Polônia e da Hungria, por mais que desde há uns dez anos sejam países autoritários de extrema direita e próximos à Rússia, nem por isso abandonam a OTAN. O “realismo” pelo jeito vale para a Ucrânia e só para a Ucrânia – mas não para os outros.



[1] Cf.: Henry Kissinger, “How the Ukraine Crisis Ends” (The Washington Post, 6.3.2014) – https://www.henryakissinger.com/articles/how-the-ukraine-crisis-ends/.

[2] A relação dos estados-membros da OTAN e seus respectivos anos de ingresso na organização podem ser vistos aqui: https://es.wikipedia.org/wiki/OTAN#Estados_miembros.

09 fevereiro 2022

Palestra "Desmistificando o Positivismo: filosofia, sociologia e política"

No dia 8 de fevereiro de 2022 ocorreu a palestra "Desmistificando o Positivismo: filosofia, sociologia e política". Foi uma palestra realizada à distância, promovida pelo Centro Universitário de Tecnologia de Curitiba (Unifatec), a convite da Profª Sheila Torquato Humphreys.

Durante pouco mais de uma hora e meia abordamos algumas características do Positivismo, os equívocos relacionados a essa filosofia, a concepção da Religião da Humanidade, a sua política e um pouco da sua atuação no Brasil.

A palestra foi gravada e está disponível no meu canal The Positivism (aqui) e no canal da Unifatec (aqui).

21 janeiro 2022

Hernani Gomes da Costa: "Figuras da IPB com quem convivi"

O texto abaixo é a versão escrita e estendida de anotações que o meu querido amigo e correligionário Hernani Gomes da Costa leu no dia 1º de janeiro de 2022, como uma celebração da Festa Geral dos Mortos (ocorrida na véspera, no dia 31 de dezembro). Tal celebração ocorreu no lançamento da Rede Humanidade, iniciativa informal de Érlon Jacques de Oliveira.

As anotações abaixo servem de registro biográfico e também institucional de algumas das figuras mais belas e mais emblemáticas da Igreja Positivista do Brasil (IPB), entre as décadas de 1980 a 2000, e que revelam também o quanto o Positivismo pode ser, e de fato é, uma fonte de beleza, de ternura e de energia para o congraçamento e a melhoria da Humanidade.


*   *   *


Figuras da Igreja Positivista do Brasil com quem convivi

Celebração da Festa Geral dos Mortos

(1.1.2022)

 

Hernani Gomes da Costa

 

Quero dedicar este momento de gratidão à celebração da memória de alguns dos amigos e amigas que eu conheci do Templo da Humanidade, da Capela da Humanidade e do Centro Positivista do Paraná. Embora não mais se achando objetivamente entre nós, eles estão bem vivos em mim, na lembrança que tenho das imagens deles, nos doces sentimentos que estas evocam e nos hábitos que eu preciso imitar se quiser ser tão feliz como eles foram nessa existência tão rica quanto sóbria a que o Positivismo nos convida ao mais completo e perfeito desfrute e que a morte mesma só faz avivar.

-        Stella da Cunha Santos: Aquela cuja fala pausada e calma fazia-me prestar uma atenção dupla a cada vírgula do que me dizia (aliás nunca antes vírgulas puderam ser tão audíveis...). É também aquela com quem eu busco obter a virtude dessa serenidade que nada tem de fria e distante, assim como a aguda penetração psicológica que só possuem aqueles que se inclinam a ouvir com respeito o que uma outra alma tem a dizer, por mais tolo ou incompreensível que a princípio nos pareça.

-        Beatriz Torres Gonçalves, a Bia: jamais eu vi em outro rosto humano uma expressão tão gentil e que eu diria mesmo parecer haver se fixado, de tão habituais tornaram-se nela os exercícios dos músculos que à essa terna alegria correspondem. Dela eu busco obter (no que me couber) a exuberância de uma vitalidade que parecia transcender à fragilidade de um corpo de mais de 90 anos.

-        Wally Leal Freire de Souza: a pequena, bem humorada e por vezes rascante professora de música, cuja fala lembrava uma rápida sequência de minúsculas explosões, vindas de alguma artilharia de brinquedo; é também aquela de quem eu espero poder obter toda a inquebrantável altivez caso a vida me empurre a situação de ter de enfrentar, como essa corajosa mulher o fez, algum mal corpóreo incurável que não me permita senão um último ano de vida.

-        Sofia Torres Gonçalves, a irmã da Bia. Ela era de uma vozinha quase inaudível, um sussurro emanado de um corpo cuja severa e dolorosa escoliose eu logo me encarreguei de livrá-la na construção da imagem interior que dela formei, mesmo antes de sua transformação (e sem que a ausência desse estorvo oferecesse o menor prejuízo à realidade de sua vida subjetiva). Se da Wally eu obtive a coragem frente ao abalo de uma surpresa fatal, da Sofia eu obtive o exemplo complementar da resignação, diante de um longo convívio com limites físicos que, sem provocarem a morte ou encurtarem a vida, colocam-nos frente a única alternativa honrosa de aprender a melhor nos adaptarmos a eles pelo único caminho do suportar.

-        Tasso Bolívar Garcia Paula. O maior contador dos “causos” humorísticos e pitorescos de nossa Igreja, aquele que vendo em mim uma esperança apostólica, me proveio de um subsídio mensal tão logo eu comecei a realizar as prédicas dominicais. Um episódio tocante permitirá mostrar como era o seu carinho pela obra e pela pessoa de Comte. Certa vez ele declarou a mim que sempre foram muito difíceis os seus estudos da doutrina, através das leituras da Filosofia e da Política positiva, revelando-me também que certas passagens (e às vezes páginas inteiras consecutivas) escapavam-lhe totalmente à compreensão. Ele porém dizia que, mesmo assim, não se arrependia desse seu estudo, uma vez que também podemos sentir toda a beleza do canto de um pássaro sem no entanto compreender uma só palavra do que ele esteja querendo dizer.

-        Henrique Batista da Silva Oliveira, o Almirante Henrique, a quem eu encontrava no Clube Positivista, onde conversávamos longamente sobre a doutrina. Ele foi, ao que eu saiba, o nosso último confrade a receber o sacramento da destinação paramentado como aspirante ao apostolado da Humanidade. Foi a pessoa com quem eu mais me senti seguro em tudo o que se refere à formação teórica do Positivismo. E aquele portanto a quem, mesmo sem saber, eu gostava de me espelhar em todas as ocasiões em que se faziam necessárias exposições sintéticas do conjunto da doutrina. Sua personalidade dava-me uma sensação única de estar sobrepairando bem acima dos problemas do tempo presente. Jamais me foi possível ver tão bem combinados como em sua conversa o caráter solene de um assunto com o tom jovial de um simples e despretensioso bate-papo informal. Havia mesmo nele um certo sorriso de Gioconda e que o fazia parecer estar falando da glória a que está reservada a Humanidade nos tempos futuros, não como um teórico, mas como se ele próprio fosse um de seus habitantes, que nos houvesse voltado ao passado para nos dar mais uma chance. Devo confessar que ainda estou bem longe de aprender como é que se faz isso...

-        Rubem Descartes de Garcia Paula, a única pessoa nascida no século XIX que eu conheci em minha idade adulta; nós éramos unidos por uma ciência cultivada em comum – a Química – de onde ambos obtivemos os mais diretos subsídios teóricos para alcançar o estado positivo do entendimento. Seu livro Religião, uma criação da Humanidade, que eu li antes mesmo de minha primeira visita ao templo (livro que foi um dos pouquíssimos a manter o interesse do meu pai além da página cinco), proporcionou-me uma impressão que só hoje, enquanto escrevo essas linhas, pude notar como importou para o meu desejo de conhecer mais a fundo o Positivismo. Seu Descartes foi para mim o primeiro autor positivista contemporâneo a escrever (com a leveza e o frescor de um escritor contemporâneo) sobre a nossa doutrina, o que me permitiu num momento decisivo de minha formação reconhecer, já a partir do estilo, antes mesmo que pelo conteúdo, toda a atualidade da Religião da Humanidade, e que uma obra mais antiga talvez não me pudesse evidenciar.

-        Ruyter Demaria Boiteux, o médico com quem eu conversava sobre assuntos biológicos, foi o ser mais próximo da santidade que eu tive a ventura de conhecer na Igreja. Condecorado por heroísmo ao conseguir extrair um projétil explosivo da perna de um soldado, poupando-o da amputação, ele dedicava como médico boa parte de suas horas de trabalho a atendimentos gratuitos de quantos chegassem ao consultório. Seu bom humor auxiliado por uma generosa expressividade mímica eram tão envolventes e a medicina compunha de tal modo o seu ser que, ao conversar com ele, tinha-se a sensação de um vigor salutar renovado, de se estar falando mais rápido, respirando melhor e mesmo sacudindo partes do corpo que até então manteríamos prudentemente quietas.

-        Mozart Pereira Soares. Financiado pelo Doutor Ruyter, eu viajei à Capela da Humanidade para integrar aquele que seria o penúltimo encontro anual de positivistas; de que ele, Ruyter, fôra sempre o seu esteio. E foi na casa do Professor Mozart que eu e um outro confrade, Arthur Virmond de Lacerda, nos hospedamos por toda a duração do encontro, que embora breve, bastou para que eu obtivesse da amistosidade de seu caráter e de sua vasta erudição uma impressão perene junto a todas as demais pessoas aqui retratadas e com quem eu convivi por tão mais tempo. O meu carinho e respeito por ele tem um sabor todo especial, tendo o Professor Mozart me convidado para assistir ao filme do Batman (aquele contra o Pinguim), ocasião em que ele não perdeu nenhuma oportunidade de tecer considerações éticas às principais situações de sua trama.

-        Paulo de Tarso Monte Serrat, O psiquiatra paranaense que anualmente vinha nos brindar com suas práticas calorosas, sempre de grande impacto emocional. Dono de uma voz privilegiada, que conseguia a um tempo ser alta sem tornar-se agressiva e grave sem tornar-se lúgubre; suas conferências eram a ocasião esperada em que se podia experimentar todo o prazer das reverberações acústicas do Templo da Humanidade e cuja eficiência parecem desafiar as leis da Física. Ele era a meu ver o único confrade a fazer do otimismo diante da vida e das pessoas a sua principal plataforma religiosa. Por vezes somos, como positivistas, seduzidos a um perigo moral que consiste em acabarmos transformando o nosso amor à Humanidade numa falsa justificativa com a qual chegamos ao paradoxal resultado de gostar mais da Humanidade do que de gente. Contra esse perigo, as prédicas do Doutor Paulo de Tarso funcionaram sempre, e antes de tudo, como um santo remédio.

-        Alfredo de Moraes Filho: foi, de todos os vultos aqui retratados nestas brevíssimas pinceladas, aquele com quem eu convivi de mais perto e por mais tempo, juntamente com sua esposa, Ondina de Moraes. Seu temperamento enérgico porém não era de molde a nos permitir grandes aproximações. E se por um lado essa acolhida parcimoniosa e mesmo permanentemente desconfiada pôde ter servido como um filtro que evitou tanto quanto possível franquear-se a Igreja a todo tipo de pessoa, também infelizmente acabou isolando-a do mundo atual, em oposição ao que mais desejariam os apóstolos Miguel Lemos e Teixeira Mendes. Guardo dele, porém, a imagem daquele que, depois dos dois apóstolos, foi, ao meu ver, quem mais se dedicou e se sacrificou pela Igreja e pelo movimento positivista, inclusive em tempos de repressão política; onde a campanha do “Petróleo é Nosso” irmanou comunistas e positivistas num aspecto comum do trabalho de ambos em prol de um mundo mais justo.

Faltam algumas outras pessoas que o tempo de que disponho não me permite acrescentar aqui senão os nomes, mas sobre as quais eu teria tanto a dizer quanto já o fiz: Ondina de Moraes; Francisco Ribeiro Dantas; Ângelo Torres; Jorge Torres Gonçalves; Júlio Costa e Tales de Muriaé Garcia Paula.

Eduardo de Sá: "Rosália Boyer consagrando Augusto Comte à Humanidade"




Celebração do nascimento de Augusto Comte (19.1)

O roteiro abaixo serviu de base para uma celebração ao vivo, transmitida no Facebook, a partir das 19h do dia 19 de janeiro de 2022. Esse vídeo pode ser visto aqui.


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1.      A presente celebração é um evento importante por dois motivos: por si mesmo, como comemoração de Augusto Comte, e como retomada da comemoração pública no próprio dia de nascimento do filósofo

2.      A data de 19 de janeiro marca o glorioso nascimento de Augusto Comte

a.       A importância de Comte vincula-se à fundação do Positivismo, ou melhor, da Religião da Humanidade, em 1854, mas desde 1848 anunciada

3.      O nome completo do filósofo era Isidore Auguste François Xavier Comte, filho de Louis Comte e Rosalie Boyer

a.       Comte nasceu em Montpellier, no Sul da França, mas viveu toda a sua vida adulta em Paris

b.      A grande parte de sua vida foi marcada por dificuldades de toda ordem: problemas financeiros, empregos ruins, dificuldades conjugais; além disso, entre 1826 e 1828 ele atravessou uma longa e dolorosa crise nervosa, marcada mesmo por uma tentativa de suicídio no rio Sena

4.      A carreira de Comte costuma ser dividida em duas partes, uma científica e outra religiosa, cada uma delas marcada pela redação de uma obra ou de um conjunto de obras: a fase científica é a do Sistema de filosofia positiva (1830-1842) e a religiosa, do Sistema de política positiva (1851-1854), mas também do Discurso sobre o conjunto do Positivismo (1848), do Catecismo positivista (1853), do Apelo aos conservadores (1855) e da Síntese subjetiva (1856)

a.       Na verdade, o próprio Comte afirmava essas duas fases de sua carreira; as divergências ocorrem em função do valor que se dá a cada uma delas e, em particular, à fase religiosa:

                                                                          i.      os adeptos heterodoxos, marcadamente cientificistas, rejeitam a fase religiosa

                                                                        ii.      já os ortodoxos reconhecem a unidade da carreira comtiana e, seguindo a orientação do mestre, entendem que a fase religiosa é a mais importante

b.      Embora pareça meramente acadêmica, essa distinção resulta em importantes conseqüências morais, políticas, sociais, intelectuais e até afetivas

5.      A presente comemoração é religiosa e, portanto, pressupõe a unidade da carreira comtiana e a afirmação da Religião da Humanidade

a.       Vale notar que, nas palavras de nosso mestre, a Religião da Humanidade foi criada tanto por ele quanto por Clotilde de Vaux, a inteligente jovem de vida sofrida por quem ele apaixonou-se e que, apesar dos seus sofrimentos, deu-lhe forças para empreender uma série assombrosa de elaborações intelectuais e afetivas

6.      À  primeira vista, a idéia da Religião da Humanidade pode parecer estranha para muitos, seja no que se refere à “religião”, seja no que se refere à “Humanidade”

a.       Esse estranhamento também ocorre porque nossos hábitos mentais vinculam a “religião” à teologia, assim como a “humanidade” ao secularismo; além disso, o papel desempenhado pela ciência no Positivismo é visto como incompatível com a “religião”, ou então como uma forma de cientificismo, ou então como uma aberração total (considerando a confusão moral generalizada entre os cientistas)

7.      Mas não há motivo nenhum para o estranhamento com a Religião da Humanidade; quando entendidas suas concepções, o que se evidencia é a sua razoabilidade e a sua necessidade

8.      A “religião” não é igual a “teologia”: é um sistema geral que coordena, isto é, que junta, estrutura, relaciona e regula as várias partes da existência humana: nossos sentimentos, nossas idéias e nossas condutas práticas

a.       A religião, para Comte, é a instituição que estabelece a operação mental da “síntese”; além disso, ela tem um evidente componente educativo, pedagógico, no sentido de ensinar e aprimorar continuamente o ser humano

b.      Nesse esforço, Comte considera que a natureza humana apresenta três partes principais – os sentimentos, a inteligência e a ação prática. O início e o objetivo de todas as nossas condutas é a satisfação dos sentimentos; a inteligência esclarece e orienta nosso comportamento; as ações práticas são os comportamentos efetivos realizados em tal satisfação.

c.       Nesse conjunto, os sentimentos altruístas – o amor – é que permitem a coordenação de tudo, incluindo a do egoísmo

9.      A humanidade, por outro lado, é uma concepção altamente idealizada; sem dúvida que ela refere-se ao conjunto dos seres humanos, mas há vários graus nisso:

a.       Antes de mais nada, a Humanidade são os seres humanos que vivem em nossos corações, em nossas memórias e em tudo aquilo de que desfrutamos atualmente; por outro lado, a Humanidade também são os seres humanos futuros, que ainda não nasceram mas que são objeto constante de nossas preocupações: nesses termos, a Humanidade é a subjetividade dada pelo passado e pelo futuro

b.      Nós, os seres humanos vivos, somos portanto apenas uma pequena fração da longa cadeia histórica; é claro que sem os seres vivos o passado e o futuro não existem e que somente por meio dos vivos é que os sentimentos, as idéias e as ações próprias à Humanidade podem ter lugar; mas o fato é que somente podemos aspirar à honra futura se formos dignos hoje; em outras palavras, a incorporação subjetiva à Humanidade nunca está garantida enquanto estamos vivos

c.       Os animais domésticos também integram a Humanidade, desde os cachorros e os gatos até os bois, os cavalos, os porcos e tantos outros

10.  A Religião da Humanidade oferece um quadro geral que nos orienta em nossas vidas, tanto individuais quanto coletivas: ela oferece valores, dizendo o que é certo e o que é errado; ela oferece idéias, explicando o mundo e o ser humano; ela oferece objetivos, ao indicar o que deve ser feito (e porque isso deve ser feito)

a.       Em virtude dessas características todas – mas de muitas outras mais, que não é possível indicar nesta breve celebração –, Augusto Comte afirmava que a Humanidade é a verdadeira providência, aquela que provê os recursos para sermos quem somos e fazermos o que fazemos

11.  A Humanidade é objeto de celebração e veneração: reconhecendo seus limites, reconhecemos os nossos próprios limites; mas, inversamente, reconhecendo suas possibilidades, reconhecemos as nossas próprias possibilidades

a.       O serviço à Humanidade combinado com a incerteza que todos temos a respeito de sermos ou não incorporados subjetivamente a ela após nossa morte oferece ao mesmo tempo a doçura e a alegria próprias à vida e também a necessária humildade que todos temos que ter

b.      Com isso, o culto à Humanidade oferece-nos um objetivo na vida, o pertencimento a uma comunidade (que é ao mesmo tempo objetiva e subjetiva) e a submissão a um ser superior (que pode muito, mas não é onipotente; que sabe muito, mas não é onisciente; que tem uma unidade, mas é composto por inúmeros agentes e membros; que é amoroso, fraterno e pacifista)

12.  A esmagadora maioria, quando não a totalidade, das instituições e das sugestões de Augusto Comte no âmbito da Religião da Humanidade têm sido afirmadas ou retomadas, de maneira dispersa e espontânea, nas mais variadas partes do mundo

a.       Assim, se invertermos a ordem das idéias e juntarmos essas várias experiências dispersas, dando-lhe uma coerência dada pelo altruísmo, pelo pacifismo e pelo relativismo, teremos um conjunto que só não será “Positivismo” ou “Religião da Humanidade” pelo eventual nome que assumir

13.  É em virtude dessas tão belas idéias, que afirmam a fraternidade universal, a atividade convergente e pacífica, o respeito ao meio ambiente, aos povos e grupos fracos, o conhecimento útil da realidade, o respeito à história e a busca do aperfeiçoamento humano (moral, intelectual e físico), que praticamos a Religião da Humanidade e na data de hoje celebramos, emocionados, a vida e a obra de seu cofundador, Augusto Comte

21 dezembro 2021

Moralidade podre de "Homem-Aranha: sem volta para casa"

(ATENÇÃO: FAÇO REFERÊNCIAS À TRAMA. OU SEJA: DIVULGO SPOILERS.)

Assisti ao filme Homem-Aranha: sem volta para casa. Estava ansioso por isso - tanto pelo filme em si, que prometia por exemplo um retorno parcial do Tobey Maguire (o primeiro Homem-Aranha no cinema), quanto porque não ia ao cinema desde o início da pandemia.

Enfim, o filme é tudo o que prometeram e muito mais, tendo encontros inesperados, muitos momentos divertidos e também muito drama e choro. (E muitas cenas extremamente violentas.)

Mas já na metade do filme fiquei muito irritado. A moralidade apresentada é a típica moral de super-heróis: destroem tudo o que há pela frente e as únicas considerações pelos demais referem-se às pessoas ao redor (amigos e família); além disso, todas as decisões de âmbito público são tomadas na mais estrita esfera privada (ou melhor, no mais completo segredo). Se morre alguém próximo aos "heróis", a reação é imediata e violenta; se qualquer outra pessoa morre, ninguém dá a menor atenção. E, claro, quem exige que os "super-heróis" sejam responsabilizados por suas condutas é tratado como adversário, ou melhor, como inimigo ou até "vilão".

Mas o filme Homem-Aranha: sem volta para casa dá um passo além mesmo nessa odiosa moralidade de "super-heróis": enquanto nos filmes anteriores havia "vilões" que realmente agiam de maneira negativa e os super-heróis limitavam-se a reagir, neste filme todas as ações negativas decorrem das decisões conscientes do próprio Homem-Aranha, "aconselhado" ou não por sua tia e/ou por seus amigos. Essas decisões incluem (1) duas tentativas de lavagem cerebral em todo o planeta; (2) a libertação de cinco perigosíssimos criminosos; (3) a destruição de monumentos públicos, prédios residenciais, pontes e estradas e muitos e muitos carros; (4) o combate a quem deseja evitar todos esses problemas.

Para não ser injusto, há dois momentos em que o filme muda um pouco essa moralidade de super-herói. O primeiro momento é quando Peter Parker decide tentar mudar os vilões, revertendo os acidentes que os transformaram em vilões: essa decisão em si é bastante generosa, mas, ainda assim, no contexto do filme, ela é irrefletida e inconseqüente; em outras palavras, ela é absoluta e infantil. O segundo momento é quando a tia May repete para Peter Parker a bela fórmula "grandes poderes trazem grandes responsabilidades". No conjunto do filme essa fórmula não tem nenhuma conseqüência, mas a fórmula em si é correta e relativa - e, aliás, é de origem positivista (https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/.../gran...). No fim das contas, esses dois momentos acabam reafirmando os problemas da moralidade de super-heróis, seja porque (no primeiro momento) essa moralidade é reafirmada, seja porque (no segundo momento) de fato a moralidade verdadeira, que não é a dos super-heróis, não é aplicada.

Em suma, a moralidade apresentada e desenvolvida no filme é absoluta, infantil - e não consigo pensar em outra palavra que não seja "podre". Não dá para gostar de um filme assim.

(A qualidade técnica do filme - realmente excepcional - não muda nem evita os graves problemas acima. Na verdade, essa qualidade técnica apenas realça os problemas, na medida em que está a serviço dessa moralidade podre.)

15 dezembro 2021

Um ministro "terrivelmente evangélico" contra a República

O artigo abaixo critica inicialmente a indicação e, depois, a aprovação em sabatina de André Mendonça para ministro do Supremo Tribunal Federal. Como se sabe, essa indicação foi feita com base no predicado de que ele seria um ministro "terrivelmente evangélico", o que deveria ser encarado como um descalabro por todos aqueles que se preocupam com a República. 

Infelizmente, poucas foram as pessoas e as instituições que se manifestaram contra esse descalabro; a maioria dos "formadores de opinião" no Brasil permaneceu quieta (e, portanto, omissa) ou apoiou (e, portanto, é cúmplice) desse verdadeiro crime de lesa-república. O artigo explica, em poucas linhas, os inúmeros problemas teóricos e práticos causados por essa indicação clericalista.

Vale notar que todas as manifestações públicas de André Mendonça antes e, principalmente, depois da sabatina no Senado Federal confirmam os meus argumentos abaixo.

O texto foi publicado no jornal carioca Monitor Mercantil em 8 de dezembro de 2021 (disponível aqui, com acesso aberto) e no jornal curitibano Gazeta do Povo em 14 de dezembro de 2021 (disponível aqui, para assinantes).


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Um ministro "terrivelmente evangélico" contra a República

No dia 1° de dezembro de 2021, André Mendonça, ex-ministro da Justiça do Governo Bolsonaro, foi sabatinado pelo Senado Federal para a vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). A sabatina, que terminou por aprovar a indicação, e a própria indicação constituem episódios lamentáveis na vida política brasileira, no sentido de que são atentatórios contra o conjunto da República e, em particular, contra a laicidade do Estado. Sem nos deter em detalhes, vejamos os problemas.

Antes de mais nada, temos que dizer com todas as letras: a indicação pelo presidente da República e a aprovação pelo Senado Federal – mesmo que quase cinco meses depois da indicação – de alguém que foi indicado apenas por ser “terrivelmente evangélico” é um retrocesso político e social no Brasil.

O problema não está exatamente nas crenças íntimas de André Mendonça, mas no motivo da indicação e também no fato de que o próprio indicado jamais renegou esse motivo. Se o Estado é laico – e se ele deve ser e deve manter-se laico – a condição religiosa dos ministros é completamente irrelevante: o que importa é se o indicado valoriza as instituições republicanas e seus valores fundantes (liberdades públicas, inclusão social, fraternidade e paz universais etc.). Se o indicado respeitar e, mais do que isso, se ele valorizar de fato as instituições e os valores republicanos, não importa se ele é católico, ateu, budista, presbiteriano, umbandista, cardecista, positivista, luterano, satanista ou evangélico.

Antes de seguirmos adiante, uma pequena digressão. Ao contrário do que prega a mistificação parlamentarista, o parlamento não é uma instituição de “debates” e serve mal para a defesa das garantias e das liberdades públicas. Se o Congresso Nacional, representado pelo Senado, quisesse de fato garantir as instituições republicanas, deveria ter dado uma resposta institucional e reprovado a cínica indicação clericalista do ministro “terrivelmente evangélico”; essa recusa teria um peso e um impacto muito maiores que a mera decisão individual de David Alcolumbre de postergar por cinco meses a sabatina de André Mendonça.

Aliás, o concomitante desprezo do conjunto do Congresso Nacional pela ordem do próprio STF para tornar público o “orçamento secreto” – que é o instrumento atual da corrupção política em favor dos parlamentares – deveria bastar para pôr abaixo todas as pretensões parlamentaristas, apesar da retórica diversionista que trata do “presidencialismo de coalizão”.

Enfim, a futura nomeação do ministro do STF “terrivelmente evangélico” coroa paradoxalmente uma política seguida desde sempre pela... Igreja Católica. Essa instituição combateu a laicização do Estado em 1889-1891, voltou orgulhosa ao poder em 1931 e, sempre que pode, reafirma suas pretensões a religião oficial do país, bem como um sem-número de privilégios políticos, fiscais, pedagógicos (como no caso da Concordata de 2008, assinada por Lula).

Em face disso, os evangélicos sempre foram ambíguos: defendem a laicidade apenas para opor-se aos católicos, mas, quando percebem que podem ganhar, aliam-se despudoradamente aos inimigos da véspera (novamente, a Concordata de 2008 é exemplar). Não se trata, portanto, de respeito doutrinário à laicidade do Estado ou às instituições republicanas: é a mais rasteira conveniência política.

A aprovação do ministro “terrivelmente evangélico” – indicado pelo “católico” Jair Bolsonaro – é também a vitória da política identitária. O identitarismo opõe-se violentamente aos universalismos republicanos, ao defender uma política de representação das identidades, em termos de proporcionalidade demográfica.

Em outras palavras, o identitarismo rejeita a concepção de que a República é composta por cidadãos e que se constitui de regras universais; ao mesmo tempo, o identitarismo defende a concepção de que a política serve para representar os particularismos e que a República é apenas a justaposição desses grupos particularismos, que teriam direito a nacos do Estado com base nas proporções demográficas da população brasileira – idealmente, por meio de… cotas. Sem tirar nem pôr, foram exatamente essas as justificativas de Bolsonaro ao fazer a indicação do ministro “terrivelmente evangélico”.

Mas também é importante realçar que a política identitária é indiferente ou até hostil à laicidade do Estado, defendendo-a apenas se e quando lhe convém, sem maior engajamento filosófico e político. E mais do que isso: embora o identitarismo seja atualmente instrumento da esquerda, dos chamados “progressistas”, o fato é que a política identitária é uma invenção da direita, na Alemanha das décadas de 1920 e 1930, cuja expressão máxima coube a um cabo e pintor de rua que obteve o poder. Enfim, os efeitos nefastos do identitarismo deveriam agora, mais do que nunca, estar claros para todos, na medida em que o identitarismo foi aplicado à perfeição no Brasil.

Indicado contra a laicidade e a República, a partir de uma concepção identitária, André Mendonça já deixou claro que não entende o que é a laicidade – e, portanto, o que é a República. Para ele, respeitar o Estado laico significa limitar-se a não fazer orações no plenário ou no ambiente do STF... isso é mais ou menos o mesmo que dizer que um servidor público deve respeitar o Código de Ética e que isso significa não andar pelado nas repartições públicas.

A laicidade é não conceder privilégios para as doutrinas e suas igrejas; é não restringir a cidadania aos adeptos de uma determinada instituição; é não ser indicado para a vaga de ministro do STF por ser pastor de uma igreja; é não deturpar a belíssima frase de Neil Armstrong para comemorar o particularismo identitário da sua aprovação como futuro integrante do STF.

Para concluir, é importante lembrar: o Positivismo (como filosofia social e política) e os positivistas (como cidadãos brasileiros) são uns dos poucos, se não forem simplesmente os únicos, que defendem a laicidade do Estado e o universalismo da República, como elementos da Ordem e do Progresso do Brasil e da Humanidade.

Desde o início de suas atividades no Brasil, na década de 1870, os positivistas sempre deixaram claro que laicidade e republicanismo andam juntos, apoiam-se e reforçam-se; combater um é combater o outro, necessariamente. Assim, é como positivista e, portanto, como cidadão brasileiro que observo: o presidente da República que, com base em uma concepção de identitarismo clericalista, indicou um “ministro terrivelmente evangélico”; o Congresso Nacional, que atuou como cúmplice na sabatina desse indicado; o próprio pastor terrivelmente evangélico – todos atuam contra a laicidade e contra a República; contra a ordem e o progresso.

  

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

03 dezembro 2021

Estado laico acima de tudo, Humanidade acima de todos

Após a aprovação (em 1.12.2021, na sabatina no Senado Federal) como novo ministro do Supremo Tribunal Federal de André Mendonça, cujo critério de seleção pelo Presidente da República consistiu em ser "terrivelmente evangélico", é necessário reafirmarmos o princípio abaixo.


Fonte e autoria: desconhecidas.