08 novembro 2015

Demétrio Magnoli: "Proposta do MEC para a História mata a temporalidade"

Devido à gravidade do problema, reproduzo abaixo um artigo de Demétrio Magnoli e Elaine Barbosa, desenvolvendo um tema de que eles trataram há algumas semanas - a saber, as novas diretrizes para o ensino de História, propostas pelo Ministério da Educação. 

Essas novas diretrizes acabam com a própria idéia de "história", isto é, de cronologia, propondo em seu lugar um ajuntamento de perspectivas isoladas. 

Convém notar que, ao contrário dos preconceitos fortemente correntes, o Positivismo é radicalmente contra essa concepção ao mesmo tempo anti-histórica e particularística de história. Em outras palavras, o Positivismo é contra essa concepção revisionista e "acrítica".

Os autores do texto abaixo, embora tenham completa razão em sua crítica às propostas reacionárias do MEC, erram totalmente quando se referem ao Positivismo, evidenciando também o seu preconceito contra a doutrina e a prática fundada por Augusto Comte e desenvolvida em TODOS os continentes.

Para algumas considerações positivistas em apoio aos textos de Demétrio Magnoli e Elaine Barbosa, ver a postagem intitulada "Demétrio Magnoli: 'História sem tempo'" (disponível aqui).

Para uma pequena refutação da idéia do Positivismo como eurocentrismo, ver a minha postagem justamente intitulada "Positivismo como eurocentrismo" (disponível aqui).

Para uma discussão sobre a ignorância geral sobre o Positivismo, prevalecente no Brasil, ver a minha postagem "A impossibilidade de 'estudos comtianos' no Brasil" (disponível aqui).

O texto abaixo foi publicado na Folha de São Paulo de 8.11.2015; o original pode ser lido aqui.

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Proposta do MEC para ensino de história mata a temporalidade


Ouvir o texto
RESUMO Este texto critica a visão de história da Base Nacional Comum Curricular proposta pelo Ministério da Educação. Ao abandonar a temporalidade em prol de certa noção de cultura, a BNC bane a ideia de história em construção e apaga dos livros didáticos as páginas consagradas à formação das modernas sociedades ocidentais.
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O ensino de história deve se basear "em ensinamento crítico, mas sem descambar para ideologia". A recomendação apareceu no Facebook do já então ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro, como uma crítica explícita à Base Nacional Comum Curricular (BNC) de história, divulgada quando ele ainda chefiava a pasta.

Por uma dessas extraordinárias coincidências, Janine pronunciou-se horas depois da publicação de artigo de nossa autoria sobre o mesmo assunto ("História sem tempo", "O Globo", 8/10). E, casualmente, ele repetiu um argumento nuclear daquele artigo. "Não havia, na proposta, uma história do mundo", escreveu, cutucando a ferida de um programa que ignorava "quase por completo o que não fosse Brasil e África".

Janine tem razão quando enquadra o debate na moldura dos direitos dos estudantes e enfatiza o tema, tão esquecido, da pluralidade. "É direito de todo jovem saber o trajeto histórico do mundo. Precisa saber sobre a Renascença, as revoluções, muita coisa. Mas não há uma interpretação única de nenhum desses fenômenos. E é esta diversidade que a educação democrática e de qualidade deve garantir." Aloizio Mercadante, novo titular do ministério, parece igualmente convencido de que há algo de fundamentalmente errado num documento com "muita África e história indígena e pouca história ocidental".

As críticas de Janine e Mercadante têm peso político suficiente para provocar algum tipo de reforma na BNC, mas apenas roçam a superfície do problema: atrás da abolição da "história ocidental" encontra-se a supressão do próprio sentido temporal que define a disciplina.

Marc Bloch disse que "a história é a ciência dos homens no tempo". Na direção oposta, os autores (anônimos e, assim, "especialistas") do documento do MEC investiram numa sociologia do multiculturalismo que esvazia a temporalidade e, com ela, a gramática da historiografia. De fato, se aplicada, a proposta oficial significará o cancelamento do ensino de história. A narrativa histórica canônica estrutura-se sobre um esquema temporal clássico: Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna, Idade Contemporânea. De acordo com a BNC, alunos do 6º ano do ensino fundamental, com 11 ou 12 anos de idade, devem aprender a "problematizar" o "modelo quadripartite francês". Dali em diante, até o fim do ensino médio, o "modelo" nunca mais aparece.

Junto com ele, desintegra-se o ensino da Grécia clássica, do medievo das catedrais, do comércio e das cidades e, ainda, das rupturas filosóficas, culturais e religiosas que anunciaram a modernidade.

No lugar disso, segundo o documento do MEC, o ensino médio é chamado a se concentrar no estudo dos "mundos ameríndios, africanos e afro-brasileiros" (1º ano), dos "mundos americanos" (2º ano) e dos "mundos europeus e asiáticos" (3º ano). Assim, expulsa da escola, a temporalidade é substituída por supostos atores coletivos, construídos a partir de uma tosca noção de cultura.

TEMPORALIDADE

A história entrou na escola pelas mãos do Estado-Nação europeu, no século 19. Inexiste novidade na crítica ao paradigma temporal clássico, impregnado de positivismo, evolucionismo e eurocentrismo. Contudo superá-lo não implica suprimir a gramática da temporalidade.

O programa (mal) camuflado da BNC não é incorporar a África, a Ásia e a América pré-colombiana ao ensino de história, mas recortar dos livros didáticos as páginas consagradas à formação das modernas sociedades ocidentais, erguidas sobre o princípio da igualdade dos indivíduos perante a lei.

Numa primeira versão da proposta, informa Janine, os autores orientavam o estudo de revoltas coloniais com a participação de escravos ou índios, mas "deixavam de lado a Inconfidência Mineira". Seria um equívoco concluir daí que a exclusão decorria, principalmente, da ausência de escravos ou índios no movimento dos inconfidentes. O alvo da censura situa-se mais abaixo: na presença das ideias iluministas que conectam Tiradentes às revoluções Americana e Francesa.

Há método no caos da BNC. Sem a ágora grega, praça de mercado e praça pública, os estudantes ignorarão as origens do individualismo e da democracia –e a relação que existe entre ambos. Sem a Idade Média europeia, jamais entenderão a importância das religiões monoteístas na formação de sociedades que, pela primeira vez, englobaram grupos geográfica e culturalmente diversos por meio de valores éticos universalistas. Sem o Antigo Regime, não serão apresentados à filosofia das Luzes, base do contrato político da cidadania e fonte da ideia de que as pessoas são donas de suas escolhas e seus destinos. Sem a contestação socialista ao liberalismo, que emergiu na Europa novecentista, não compreenderão a trajetória de afirmação dos direitos sociais e trabalhistas.
O vácuo dessas múltiplas ausências será preenchido pelo ensino de histórias paralelas de povos separados pela intransponível muralha da "cultura".

A "história ocidental" mencionada por Mercadante converteu-se, num certo ponto, em história universal, pois a expansão dos Estados europeus –um percurso balizado pelas navegações, pela Revolução Industrial e pelo imperialismo– entrelaçou o mundo inteiro. O paradigma temporal clássico refletia a idealização desse processo. Uma educação democrática tem o dever de narrá-lo na sua inteireza, evidenciando suas luzes e suas sombras.

A herança ocidental abrange tanto a liberdade quanto a opressão: o habeas corpus e o tráfico escravista, a soberania popular e a tirania, a independência nacional e o colonialismo, a igualdade política e o racismo, os direitos humanos e o totalitarismo, a vacinação e a morte radioativa. A educação escolar tem o desafio de investigar tais complexidades e contradições. Mas, à abordagem dos educadores, a BNC contrapõe o método típico dos doutrinadores, fornecendo uma narrativa sobre mocinhos e bandidos que infantiliza professores e estudantes.

Quando Bloch define a história pela dimensão temporal, ele quer enfatizar seu caráter cronológico: o sentido de "processo", isto é, as relações e interações que promovem constantes mutações sociais.

A "história em construção" é precisamente aquilo que os formuladores da BNC pretendem dissolver, de modo a fabricar sujeitos a-históricos: grupos étnicos ou raciais identificados por supostas essências culturais e, portanto, impermeáveis à mudança. Eles não querem, como alegam, conferir visibilidade à história da África, da Ásia ou da América pré-colombiana, mas fabricar a "história dos africanos", a "história dos ameríndios" e a "história dos asiáticos", numa cartolina que incluiria, ainda, a "história dos europeus".

FETICHIZAÇÃO

Seria um equívoco interpretar a BNC como uma revolta contra o "ocidentalismo". De fato, não há nada mais "ocidental" que a fetichização da cultura. O essencialismo cultural deita raízes na "ciência das raças", elaborada à sombra do imperialismo, que falava do "fardo do homem branco" e produzia quadros descritivos sobre os "negros" (africanos), os "amarelos" (asiáticos) e os "vermelhos" (ameríndios). Atualmente, sob o mesmo registro operativo, difunde-se a tese neoconservadora do "choque de civilizações". Os autores convocados pelo MEC usam a linguagem e os conceitos do "choque de civilizações", fabricando uma cópia invertida da célebre narrativa sobre a "missão civilizatória" dos europeus.

A escritura da história segue caminhos diversos. A historiografia liberal enfatiza a política e o indivíduo. Os historiadores marxistas colocam os holofotes sobre as classes sociais e a economia. Mais recentemente, a nova história alargou e fragmentou o campo de investigação, abordando as mentalidades, ou seja, as representações sociais. A BNC, contudo, rejeita em bloco todo esse variado repertório, pois recusa a temporalidade. Nesse passo, acende uma fogueira destinada a consumir as obras consagradas e a melhor produção historiográfica acadêmica.

Para que serve o ensino de história? Na sua origem, a história escolar servia para inscrever a pátria no mármore da eternidade. A antiga visão utilitária reaparece, sob roupagem atualizada, na BNC.

Reagindo à crítica tardia de Janine, a professora Márcia Elisa Ramos, da Universidade Estadual de Londrina, defendeu a proposta do MEC recorrendo a uma alegação orwelliana de aparência banal: "O ensino de história deve não apenas estudar as diferenças mas compreender para respeitar. O currículo apenas contempla os objetivos do ensino de história, que são respeito à diversidade, pluralidades étnico-raciais, religiosa, de gênero etc.".

Não se ensina biologia para que os jovens aprendam regras de saúde e higiene. Não se ensina química para evitar a ingestão de substâncias tóxicas pelos alunos. Não se ensina física para alertar sobre o perigo de saltar da janela do edifício. Não se ensina português para treinar a habilidade de redigir solicitações de emprego. Não se ensina matemática para calcular os rendimentos da poupança. Tudo isso, bem como a aversão a preconceitos étnicos, raciais, religiosos ou de gênero, são subprodutos úteis da educação escolar. Mas o conhecimento serve a si mesmo: é um passaporte que garante acesso ao diálogo do mundo.
Diferentes indivíduos leem o mundo de formas diversas. Escola não é igreja: não é lugar de pregação, de tutela ou de retificação de mentes "desviantes".

A história, como as outras disciplinas, serve para acender a chama da curiosidade intelectual, ensinar os fundamentos do pensamento científico, habilitar os jovens para investigar, interpretar e refletir. Nossos doutrinadores de plantão, sábios "especialistas" que não declinam seus nomes, jamais concordarão com isso.


DEMÉTRIO MAGNOLI, 57, sociólogo e doutor em geografia humana, é colunista da Folha.

ELAINE SENISE BARBOSA, 50, é professora de história, autora de "História das Guerras" (Contexto). 

02 novembro 2015

Concepção positiva do Dia dos Mortos

Dia dos mortos, 2 de novembro


Cartaz gentilmente elaborado por João Carlos Silva Cardoso.

Origem histórica da data

No dia 2 de novembro comemora-se o Dia de Finados. Essa data tem uma origem católica que recua no tempo até o século II, quando os cristãos primitivos rezavam pelos mortos; no século V a Igreja solicitava que um dia do ano fosse dedicado àqueles que não era possível identificar. Essa prática atravessou os séculos e, no século XIII, definiu-se o dia 2 de novembro para essa homenagem, logo após o Dia de Todos os Santos, que é em 1° de novembro.

A bem da verdade, as orações cristãs no dia 2 de novembro não consistiam em "homenagens", mas em intercessões em favor das "almas" dos mortos. Essas intercessões, claro está, eram bem intencionadas mas eram, ao mesmo tempo, mais ou menos inúteis, considerando as doutrinas da predestinação e onisciência divina. O culto católico aos santos, existente desde o início do cristianismo, assim como o culto à Virgem Maria, que surgiu ao longo da Idade Média, são duas formas de contornar a impossibilidade prévia de remissão das almas dos mortos.


Concepção positiva do dia dos mortos

A Sociologia e a Moral Positiva indicam que, apesar de as "almas" como emanações etéreas não existam, o respeito aos mortos é um ato profundamente sociológico e altruísta. É sociológico porque as sociedades que existem atualmente devem sua existência, seus valores, seus recursos tecnológicos e materiais, suas idéias a todos aqueles que vieram antes. Aliás, essa é uma outra forma de dizer que o ser humano é um ser histórico.

Por outro lado, a homenagem aos antepassados e, de modo mais amplo, a todos os seres humanos convergentes que nos antecederam é uma forma de reconhecimento de nossas enormes e crescentes dívidas para com eles; é uma forma de estimularmos a veneração e a humildade, de reconhecermos nossa fraqueza atual face ao conjunto do passado. Em suma, essa homenagem é um poderoso instrumento de desenvolvimento do altruísmo e de compressão do egoísmo.

Assim, embora as motivações teológicas de respeito aos mortos sejam pura e simplesmente equivocadas, o fato é que o ato em si de homenagear é correto e salutar. O duplo aspecto da homenagem aos mortos – sociológico e moral – foi resumido pelo profundo gênio de Augusto Comte na seguinte máxima:

Os vivos são sempre e cada vez mais, necessariamente, governados pelos mortos.


Essa frase, não por acaso, está no portão da Igreja Positivista do Brasil, conforme pode-se ver na imagem abaixo.

Fonte: http://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com.br/2015/11/dia-dos-mortos-2-de-novembro-cartaz.html.

Governo subjetivo dos mortos, não objetivo

Não se deve encarar essa máxima como sendo "macabra". Algo é macabro quando faz o elogio da morte e do morrer, em detrimento da vida: como vimos, a frase de Augusto Comte celebra justamente a vida. Da mesma forma, convém ressaltar: o "governo" que os mortos realizam sobre os vivos é um governo subjetivo, não objetivo: isso quer dizer "apenas" que a sociedade de hoje é o resultado da ação das dezenas, centenas, milhares de gerações que nos precederam e que, nesse sentido, somos hoje o resultado da ação dos que vieram antes de nós[1]. Dessa forma, concretamente, o que ocorre é que, com base nos materiais morais, tecnológicos, teóricos provenientes do passado (legados pelos mortos), os vivos dão continuidade à vida coletiva e individual e governam seus assuntos.

Dia dos Mortos no Positivismo

Nos dois calendários positivistas, de caráter sociológico – o calendário abstrato e o calendário concreto –, o último dia do ano é dedicado à comemoração geral dos mortos, de acordo com os parâmetros indicados acima. No calendário júlio-gregoriano, esse dia corresponde a 31 de dezembro e, nos anos bissextos, a 30 de dezembro.

Dia de Finados como proposta positivista

Como vimos, há uma coincidência parcial entre o Dia de Finados católico e o Dia Geral dos Mortos positivista. No caso brasileiro, como no final do século XIX a maioria da população brasileira era católica, a Igreja Positivista do Brasil resolveu aproveitar essa coincidência e buscar a positivização de um hábito já difundido na população: por esse motivo, propôs que o dia 2 de novembro fosse feriado nacional, de caráter cívico.






[1] A concepção objetiva do governo dos mortos é a apresentada pelas várias teologias, segundo as quais os mortos não estariam de fato mortos, mas estariam vivos em um outro "plano", "além" deste em que vivemos. Claro que essa concepção, apesar de pretender-se objetiva, baseia-se apenas na mais pura crença subjetiva; além disso, não apresenta prova nenhuma de que ocorre; por fim, em última análise, nos dias atuais, é uma forma de consagrar a irresponsabilidade individual e coletiva, ao atribuir ao "além" a condução efetiva dos assuntos humanos.

22 outubro 2015

Laércio Becker: "Escola sem partido - e sem igreja"

Reproduzo abaixo um texto de meu amigo Laércio Becker a respeito do projeto de lei sobre a "Escola sem Partido" (ver esta matéria da Gazeta do Povo). 

É um artigo claro, sucinto e que vai diretamente ao ponto.

O original foi publicado em 22.10.2015 no portal Recanto das Letras e está disponível aqui.

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Escola sem partido - e sem igreja
Laércio Becker                               

Na década de 90, quando se discutia o projeto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), os grupos mais afeiçoados à esquerda lutaram contra a implantação do ensino religioso nas escolas públicas.


Na década atual, há vários projetos de leis estaduais, municipais e um nacional, inspirados pelo movimento de perfil conservador Escola sem Partido, contra a doutrinação ideológica nas escolas públicas.


Se vocês buscarem a argumentação de ambos os grupos, verão que o raciocínio é basicamente o mesmo; só muda o objeto do debate. 


Vale dizer: nas escolas públicas, a esquerda não quer ensino religioso mais ou menos pelo mesmo motivo básico que a direita não quer doutrinação ideológica. E esse motivo básico é: precisamos “purificar” o ensino público.


No entanto, em regra, quem não quer ensino religioso defende a doutrinação ideológica (ao argumento da liberdade de cátedra), enquanto quem não quer doutrinação ideológica defende o ensino religioso (ao argumento da liberdade de crença). 


É como se um grupo fosse o negativo da foto do outro.


De minha parte, acho que ambos os grupos estão parcialmente corretos. A escola pública é custeada pelo Estado, que não deveria patrocinar ideologias nem religiões. Se o governante tem partido e religião, bom para ele, mas o Estado não deveria ter. 


Mas que fique claro, estamos falando das escolas públicas. Que, no Brasil, em regra, são a opção para quem não tem opção. Justamente por isso é que seria uma covardia impor-lhes uma ideologia ou uma religião.


Quem quer que seus filhos virem militantes do Partido ou obreiros da Igreja, que busque as escolas particulares com o respectivo viés. Por quê? Porque doutrinação ideológica e proselitismo religioso não são atribuições do Estado. Então, não podem ser oferecidas pelo Estado, muito menos dele demandadas. Por isso, quem quer doutrinação ideológica e proselitismo religioso deve buscá-los fora do Estado, nas escolas privadas.


A escola pública não deveria ser diretório de partido político - nem templo religioso.


Suas salas não deveriam ser palanques - nem púlpitos.


Suas aulas não deveriam ser comícios - nem cultos.


Seus professores não deveriam ser cabos eleitorais - nem missionários.


Simples assim.

18 outubro 2015

Pela Sociologia do conhecimento, contra a "regra Saramago"

Circula na internet, faz tempo, uma suposta citação de José Saramago, segundo a qual não se deve escrever para influenciar pessoas, mas para compartilhar opiniões; a "regra Saramago" ainda afirma que quem deseja influenciar os demais, na verdade, pratica uma espécie de "colonialismo mental".

Essa "regra Saramago", embora impressionante, parece-me ser uma bobagem demagógica e uma bobagem sem tamanho. Da minha parte, eu escrevo, sim, para influenciar pessoas: da mesma forma como leio o que os outros escrevem para eventualmente ser influenciado, eu escrevo para poder influenciar os demais.

Não duvido de que haja pessoas que não querem influenciar e que desejam apenas trocar idéias, entenderem-se em comunidade com outras e assim por diante. Mas daí a dizer que todos os que desejam influenciar são "colonizadores" é um salto gigantesco e um disparate.

Eu tenho minhas opiniões e julgo-as mais ou menos adequadas. Elas são "mais ou menos" adequadas porque é sempre possível que haja argumentos, perspectivas e fatos que possam indicar alguma inadequação no que penso: é por esse motivo que leio e escuto as idéias alheias, para confrontá-las às minhas e melhorar minhas concepções. Inversamente, acredito que meus conhecimentos, minhas perspectivas e meus raciocínios têm algum valor político, intelectual e, portanto, social: quero participar dos debates públicos e, dessa forma, quero, sim, influenciar os demais.

Se a "regra Saramago" for para valer, o resultado será um hiper-individualismo, em que há apenas idéias individuais, em que há apenas pessoas fechadas em si mesmas, em que não há troca de idéias, valores e perspectivas, em que as pessoas buscam apenas o reconhecimento individual e mútuo. A "regra Saramago" é a afirmação e a consagração do mais puro solipsismo, isto é, da concepção segundo a qual existe apenas eu no universo e que eu crio isoladamente todas as minhas opiniões, valores e idéias.

Quem, em alguma parte do planeta Terra, em algum momento da história, já teve qualquer opinião que não tenha sido fruto do diálogo e da influência alheia? Por outro lado, qual progresso (moral, mental, material, social) já surgiu em decorrência do fechamento dos indivíduos em seus felizes e egoístas solipsismos? Convém dizê-lo com todas as letras: o recusar a ser influenciado é uma forma aparentemente elegante de justificar a ortodoxia e o absolutismo mental.

Por outro lado, na medida em que Saramago era escritor e era comunista, a observação que ele fez parece-me profundamente hipócrita.

Em suma, a "regra Saramago" é sociologicamente errada, é moralmente indefensável e é pessoalmente hipócrita.

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P. S.: Alguns conhecidos observaram-me que Saramago ter sido o autor da frase indicada no início desta postagem é algo duvidoso e que, mesmo no caso de ele ter sido o seu autor, a frase deve estar fora de contexto. Isso é possível, sem dúvida alguma: afinal de contas, a internet é um vespeiro de boatos. Por outro lado, vejo essa frase há questão de alguns anos e até o momento não vi nenhuma retificação a seu respeito, seja sobre a autoria, seja sobre o contexto.

P. S. 2: A observação de que Saramago pode não ter sido o autor e o "P. S." redigido acima somente confirmam as minhas observações e põem em questão na prática o que chamei (de maneira certa ou errada) de "regra Saramago".

12 outubro 2015

12 de outubro: descoberta da América


12 de outubro: Comemoração da Descoberta da América

No dia 12 de outubro comemora-se a Descoberta da América. Essa é uma comemoração que está bem longe de ser secundária, ainda que esteja um pouco distante dos hábitos mentais e sociais brasileiros.

Após partir de Palos de la Frontera (na Andaluzia, Sul da Espanha), em 3 de agosto de 1492, o navegador genovês Cristóvão Colombo (1451-1506) chegava em 12 de outubro a uma ilha nas Bahamas, como parte de um projeto mais amplo - e mais audacioso - de promover a circum-navegação, isto é, dar a volta ao mundo por via marítima, partindo da Europa e chegando à Ásia, viajando sempre para Oeste. Além de buscar uma rota comercialmente viável que ligasse a Europa à Índia, o projeto colombiano tinha um elemento de busca da glória (ao ser o primeiro a descobrir esse caminho, em uma viagem desconhecida e plena de perigos) e até mesmo de pesquisa científica (ao provar que a Terra é, de fato, redonda).

Indiscutivelmente, a viagem de Colombo inscreve-se no movimento das grandes navegações, iniciadas no começo do século XIV pelos portugueses, que começaram a explorar a costa da África, resultando, no final dos 1400, na audaz ação de Bartolomeu Dias, que em 1487 dobrou (isto é, ultrapassou) no Sul da África o então chamado "Cabo das Tormentas" (após o quê passou a ser chamado de "Cabo da Boa Esperança") e permitiu, em 1498, o estabelecimento por Vasco da Gama de uma primeira rota marítima entre a Europa e as Índias.

Assim, a descoberta da América participa do grande movimento de conhecimento e integração do planeta Terra pelo ser humano. No final do século XX esse processo de integração passou a ser conhecido por "globalização", ou "mundialização" para os franceses. Em que pese os eventuais elementos daninhos desse processo - e, infelizmente, há inúmeros e pesados aspectos daninhos -, a integração mundial dos povos e dos estados é um alto ideal a ser buscado e valorizado.

É exatamente nesse sentido que deve ser valorizada a ação de Colombo, a despeito dos terríveis atos realizados em seguida pelos vários povos europeus, que consistiram na escravização e extinção de grande parte dos povos ameríndios, seguida pela implantação forçada dos escravos provenientes da África.

Mas, ainda assim, é de notar-se que foi no continente americano, ou melhor, nos continentes colombianos que o ideal republicano manifestou-se com maior clareza e intensidade, começando pela Revolução Americana, culminada em 1776, e seguida pelas independências dos países iberoamericanos (na primeira metade do século XIX). Além disso, foi nas Américas que se constituiu a primeira república de ex-escravos, no Haiti, sob a liderança do "general de ébano", Toussaint L'Ouverture, em 1793. 

Da mesma forma, uma das únicas monarquias do continente produziu algumas das mais belas e profundas fórmulas políticas: José Bonifácio, o patriarca da independência brasileira, dizia que uma verdadeira república não podia admitir escravos (esse foi um dos motivos profundos por que o Brasil nasceu monárquico), assim como "a sã política é filha da moral e da razão".

Em suma, a Descoberta da América é uma data a ser plenamente comemorada, seja pelo que significou pela integração da Humanidade, seja pelos resultados políticos e sociais do continente colombiano. É devido a esses motivos que a Igreja Positivista do Brasil estabeleceu essa data como um dos momentos de comemoração e sempre a sugeriu como feriado cívico.


Cartaz gentilmente elaborado por João Carlos Silva Cardoso.


Cristóvão Colombo

08 outubro 2015

Demétrio Magnoli: "História sem tempo"

Embora este blogue dedique-se a temas bastante específicos - em particular o Positivismo de Augusto Comte e a separação entre Igreja e Estado -, o texto abaixo expõe um problema suficientemente sério e grande para que abramos uma exceção em nossa política editorial.

Na verdade, o problema descrito no texto de Demétrio Magnoli e Elaine Senise Barbosa refere-se diretamente ao Positivismo, seja porque há uma referência explícita ao que cientistas sociais e historiadores erroneamente chamam de "positivismo", seja porque a política educacional decretada pelo Ministério da Educação durante o curtíssimo mandato do "filósofo" Renato Janine Ribeiro põe-se radicalmente contra os valores e as propostas positivistas.

Quais são os valores e as propostas positivistas negados pelas novas diretrizes pedagógicas? Entre inúmeros outros, podemos indicar pelo menos estes:

  • o universalismo nos valores sociais, sociológicos e nas políticas públicas; 
  • a concepção de que o ser humano é um ser histórico; 
  • a rejeição da importância política e sociológica das "raças" e das "culturas" (perenes); 
  • a afirmação da fraternidade universal; 
  • a concepção de que o Brasil resulta da interação combinada e desigual entre três grandes sociais (portugueses, índios e negros africanos), sob a liderança do elemento português, no movimento de expansão política, social e econômica da Europa, a partir do século XV;
  • a concepção de que, apesar dos sérios crimes e problemas envolvidos na constituição social e política do Brasil, a interação entre esses grupos sociais tem resultados positivos e deve ser valorizada e incentivada;
  • a concepção de que as interações humanas e as trocas culturais, sociais, políticas e econômicas devem ser incentivadas e que, com base nos valores do humanismo e da fraternidade universal, são em última análise o único instrumento verdadeiro para solução dos problemas humanos.

As novas diretrizes pedagógicas decretadas pelo MEC apresentam, portanto, sérios problemas científicos e políticos, em que a ciência torna-se servil a projetos políticos exclusivistas e excludentes.

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O texto abaixo foi publicado em 8.10.2015 no jornal Gazeta do Povo; o original encontra-se disponível aqui.

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ARTIGO

História sem tempo

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Texto publicado na edição impressa de 08 de outubro de 2015

Renato Janine, o Breve, transitou pela porta giratória do MEC em menos de seis meses. No curto reinado, antes da devolução do ministério a um “profissional da política”, teve tempo para proclamar a Base Nacional Comum (BNC), que equivale a um decreto ideológico de refundação do Brasil. Sob os auspícios do filósofo, a História foi abolida das escolas. No seu lugar, emerge uma sociologia do multiculturalismo destinada a apagar a lousa na qual gerações de professores ensinaram o processo histórico que conduziu à formação das modernas sociedades ocidentais, fundadas no princípio da igualdade dos indivíduos perante a lei.
O ensino de História, oficializado pelo Estado-nação no século 19, fixou o paradigma da narrativa histórica baseado no esquema temporal clássico: Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna, Idade Contemporânea. A crítica historiográfica contesta esse paradigma, impregnado de positivismo, evolucionismo e eurocentrismo, desde os anos 60. Mas o MEC joga fora o nenê junto com a água do banho, eliminando o que caracteriza o ensino de História: uma narrativa que se organiza na perspectiva temporal. Segundo a BNC, no 6.º ano do ensino fundamental, alunos de 11 anos são convidados a “problematizar” o “modelo quadripartite francês”, que nunca mais reaparecerá. Muito depois, no ensino médio, aquilo que se chamava História Geral surgirá sob a forma fragmentária do estudo dos “mundos ameríndios, africanos e afrobrasileiros” (1.º ano), dos “mundos americanos” (2.º ano) e dos “mundos europeus e asiáticos” (3.º ano).
O esquema temporal clássico reconhecia que a mundialização da história humana derivou da expansão dos Estados europeus, num processo ritmado pelas Navegações, pelo Iluminismo, pela Revolução Industrial e pelo imperialismo. A tradição greco-romana, o cristianismo, o comércio, as tecnologias modernas e o advento da ideia de cidadania difundiram-se nesse amplo movimento que enlaçou, diferenciadamente, o mundo inteiro. A BNC rasga todas essas páginas para inaugurar o ensino de histórias paralelas de povos separados pela muralha da “cultura”. Os educadores do multiculturalismo que a elaboraram compartilham com os neoconservadores o paradigma do “choque de civilizações”, apenas invertendo os sinais de positividade e negatividade.
No altar de uma educação ideológica, voltada para promover a “cultura”, a etnia e a raça, o MEC imolava o universalismo


A ordem do dia é esculpir um Brasil descontaminado de heranças europeias. Na cartilha da BNC, o Brasil situa-se na intersecção dos “mundos ameríndios” com os “mundos afrobrasileiros”, sendo a Conquista, exclusivamente, uma irrupção genocida contra os povos autóctones e os povos africanos deslocados para a América Portuguesa. A mesma cartilha, com a finalidade de negar legitimidade às histórias nacionais, figura os “mundos americanos” como uma coleção das diásporas africana, indígena, asiática e europeia, “entre os séculos 16 e 21”. O conceito de nação deve ser derrubado para ceder espaço a uma história de grupos étnicos e culturais encaixados, pela força, na moldura das fronteiras políticas contemporâneas.
A historiografia liberal articula-se em torno do indivíduo e da política. A historiografia marxista organiza-se ao redor das classes sociais e da economia. Nas suas diferenças, ambas valorizam a historicidade, o movimento, a sucessão de “causas” e “consequências”. Já a Sociologia do Multiculturalismo é uma revolta reacionária contra a escritura da história. Seus sujeitos históricos são grupos etnoculturais sempre iguais a si mesmos, fechados na concha da tradição, que percorrem como cometas solitários o vazio do tempo. Na História da BNC, o que existe é apenas um recorrente cotejo moralista entre algoz e vítima, perfeito para o discurso de professores convertidos em doutrinadores.
Na BNC, não há menção à Grécia Clássica: sem a Ágora, os alunos nunca ouvirão falar das raízes do conceito de cidadania. Igualmente, inexistem referências sobre o medievo das catedrais, das cidades e do comércio: sem elas, nossas escolas cancelam o ensino do “império da Igreja” e das rupturas que originaram a modernidade. O MEC também decidiu excluir da narrativa histórica o Absolutismo e o Iluminismo, cancelando o estudo da formação do Estado-nação. A Revolução Francesa, por sua vez, surge apenas de passagem, no 8.º ano, como apêndice da análise das “incorporações do pensamento liberal no Brasil”.
Sob o sólido silêncio de nossas universidades, o MEC endossa propostas pedagógicas avessas à melhor produção universitária, que geram professores “obsoletos” em seus conhecimentos e métodos. Marc Bloch disse que “a História é a ciência dos homens no tempo”. Suas obras consagradas, bem como as de tantos outros, como Peter Burke, Jules Michelet, Perry Anderson, Maurice Dobb, Eric Hobsbawm, Joseph Ki-Zerbo, Marc Ferro, Albert Hourani, Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda e José Murilo de Carvalho, não servem mais como fontes de inspiração para o nosso ensino. A partir de agora, em linha com o decreto firmado pelo ministro antes da defenestração, os professores devem curvar-se a autores obscuros, que ganharão selos de autenticidade política emitidos pelo MEC.
Não é incompetência, mas projeto político. Num parecer do Conselho Nacional de Educação de 2004, está escrito que o ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana “deve orientar para o esclarecimento de equívocos quanto a uma identidade humana universal”. Equívocos! No altar de uma educação ideológica, voltada para promover a “cultura”, a etnia e a raça, o MEC imolava o universalismo, incinerando a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A trajetória iniciada por meio daquele parecer conclui-se com uma BNC que descarta a historicidade para ocultar os princípios originários da democracia.
Doutrinação escolar? A intenção é essa, mas o verdadeiro resultado da abolição da História será um novo e brutal retrocesso nos indicadores de aprendizagem.
Demétrio Magnoli é sociólogo. Elaine Senise Barbosa é historiadora.

06 outubro 2015

TJ-RJ veta bíblia obrigatória nas escolas

O original da notícia abaixo encontra-se disponível aqui.

É necessário notar que o formalismo jurídico, por mais importante que seja, assume um aspecto completamente secundário face ao problema de princípio envolvido. Em outras palavras, se a lei ora julgada inconstitucional foi proposta por um deputado estadual ou pelo governador do estado, isso não tem a menor importância no presente caso: o que é importante é o respeito republicano ao princípio da laicidade do Estado. 

A forma de um ato jurídico sempre pode ser corrigida: mas a infração a um princípio da república é sempre uma afronta aos valores políticos básicos e uma forma de minar a cidadania.

Dessa forma, a ordem e a importância dos argumentos mobilizados pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro estão equivocados: o formalismo vem depois, o princípio vem antes.

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Órgão Especial do TJRJ considera inconstitucional lei que obriga Bíblia em escolas

O Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em sessão realizada nesta segunda-feira, dia 5, considerou inconstitucional a lei estadual, sancionada em 1º de julho de 2011, de autoria do deputado Edson Albertassi, que obrigava as escolas públicas e privadas a terem em sua biblioteca um exemplar da Bíblia. Os desembargadores do O.E., por maioria, acompanharam o voto do relator, desembargador Carlos Eduardo da Rosa da Fonseca Passos, e acolheram a ação direta de inconstitucionalidade (Adin) ajuizada pelo Ministério Público estadual.

Na Adin, o MP apresentou como argumento o “vício de iniciativa”, considerando que o projeto de lei deveria ser apresentado pelo governador e não por um deputado. O MP também alegou que, por ser o estado laico, a lei feria o princípio de neutralidade entre as religiões. A lei, sancionada pelo então governador Sergio Cabral, determinava, ainda, o pagamento de multa de 1000 Uferj’s (Unidade Fiscal de Referência do Rio de Janeiro) ao estabelecimento que a desrespeitasse e o dobro em caso de reincidência.

27 setembro 2015

Ministério Público pede fim de obrigatoriedade de bíblias nas escolas públicas

O original da matéria abaixo está disponível aqui.

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Janot pede fim de obrigatoriedade da Bíblia em escolas e bibliotecas públicas

12 Março 2015 | 20:46

Procurador-geral da República alega que leis estaduais do RJ, RN, AM e MS ofendem o princípio da laicidade, previsto na Constituição Federal

Por Julia Affonso e Fausto Macedo
Em meio ao fogo cerrado da maior investigação sobre corrupção no País, em que mira 50 políticos, entre deputados, senadores, governadores sob suspeita de envolvimento com as propinas na Petrobrás, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, encontrou tempo e disposição para agir em outra área.
Perante o Supremo Tribunal Federal (STF) Janot ajuizou nesta quinta-feira, 12, quatro ações diretas de inconstitucionalidade que questionam leis estaduais do Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, de Mato Grosso do Sul e do Amazonas sobre a inclusão obrigatória da bíblia no acervo das bibliotecas e escolas públicas. Janot também propôs uma ação contra legislação de Rondônia que oficializa no Estado o livro como publicação-base de ‘fonte doutrinária para fundamentar princípios, usos e costumes de comunidades, igrejas e grupos’.
“O Estado de Rondônia não se restringiu a reconhecer o exercício de direitos fundamentais a cidadãos religiosos, chegando ao ponto de oficializar naquele ente da federação livro religioso adotado por crenças específicas, especialmente as de origem cristã, em contrariedade ao seu dever de não adotar, não se identificar, não tornar oficial nem promover visões de mundo de ordem religiosa, moral, ética ou filosófica”, afirma Janot.
Foto: Nilton Fukuda/Estadão
Foto: Nilton Fukuda/Estadão
Nas ações do RJ, RN, AM e de MS, o procurador alega que as leis ofendem o princípio da laicidade estatal, previsto na Constituição Federal. A legislação prevê que é vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, manter subsídios, atrapalhar o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, a colaboração de interesse público.
Segundo Janot, se por um lado os cidadãos detêm liberdades individuais que lhes asseguram o direito de divulgarem publicamente suas crenças religiosas, por outro, o Estado não pode adotar, manter nem fazer proselitismo de qualquer crença específica.
“O princípio da laicidade lhe impede de fazer, por atos administrativos, legislativos ou judiciais, juízos sobre o grau de correção e verdade de uma crença, ou de conceder tratamentos privilegiados de uma religiosidade em detrimento de outras”, alega o procurador.
Ele aponta que, além de impedido de adotar ou professar crenças, o Estado encontra-se impossibilitado de intervir sobre aspectos internos de doutrinas religiosas.
“Seu dever com relação aos cidadãos, nessa seara, é o de apenas garantir a todos, independentemente do credo, o exercício dos direitos à liberdade de expressão, de pensamento e de crença, de forma livre, igual e imparcial, sendo vedada, em razão da laicidade, que conceda privilégios ou prestígios injustificados a determinadas religiões”, argumenta.
Na avaliação de Rodrigo Janot, ao obrigar a inclusão da Bíblia em escolas ou bibliotecas públicas, os quatro estados fizeram juízo de valor sobre livro religioso adotado por crenças específicas, considerando fundamental, obrigatória e indispensável sua presença naqueles espaços. “Contudo, incumbe aos particulares, e não ao Estado, a promoção de livros adotados por religiões específicas”, sustenta.
O procurador-geral da República destaca que seu interesse é “unicamente proteger o princípio constitucional da laicidade estatal”, de modo a impedir que os estados promovam ou incentivem crenças religiosas específicas em detrimento de outras, sempre se resguardando, por outro lado, os direitos dos cidadãos de assim procederem, em decorrência do exercício das liberdades de expressão, de consciência e de crença.
VEJA AS LEIS DE CADA ESTADO
Rio de Janeiro
A Lei fluminense 5.998/2011 torna obrigatória a manutenção de exemplares da Bíblia nas bibliotecas situadas no estado, impondo multa em caso de descumprimento, é o alvo da ADI 5248.
Rio Grande do Norte
Na ADI 5255, Rodrigo Janot pede a declaração de inconstitucionalidade da Lei potiguar 8.415/2003, a qual determina a inclusão no acervo de todas as bibliotecas públicas do estado de, pelo menos, dez exemplares da Bíblia Sagrada, sendo quatro delas em linguagem braile.
Mato Grosso do Sul
Os artigos 1º, 2º e 4º da Lei sul-mato-grossense 2.902/2004, que tornam obrigatória a manutenção, mediante custeio pelos cofres públicos, de ao menos um exemplar da Bíblia Sagrada nas unidades escolares e nas bibliotecas públicas estaduais, são o alvo da ADI 5256.
Amazonas
Na ADI 5258, o procurador-geral da República requer a inconstitucionalidade dos artigos 1º, 2º e 4º da Lei Promulgada amazonense 74/2010, os quais obrigam a manutenção de ao menos um exemplar da Bíblia Sagrada nas escolas e bibliotecas públicas estaduais.
Rondônia
Os artigos 1º e 2º da Lei rondoniense 1.864/2008 são questionados na ADI 5257. O primeiro oficializa no estado a Bíblia Sagrada como livro-base de fonte doutrinária para fundamentar princípios, usos e costumes de comunidades, igrejas e grupos. Já o segundo estabelece que essas sociedades poderão utilizar a Bíblia como base de suas decisões e atividades afins (sociais, morais e espirituais), com pleno reconhecimento no Estado de Rondônia, aplicadas aos seus membros e a quem requerer usar os seus serviços ou vincular-se de alguma forma às referidas instituições.
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16 setembro 2015

Artigo: "Vontades e leis naturais – liberdade e determinismo no positivismo comtiano"

Um artigo de minha autoria acabou de ser publicado na revista Mediações, da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Seu título é este: "Vontades e leis naturais – liberdade e determinismo no positivismo comtiano" e está disponível neste endereço: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/19818.

Modestamente, esse artigo é importantíssimo para teoria política e epistemologia (das Ciências Humanas e das Ciências Naturais).

Eis o resumo e as palavras-chave do artigo.

Resumo: Nas Ciências Sociais, o "positivismo" de modo geral implica naturalismo, i. e., objetivismo e determinismo. No Positivismo comtiano, porém, as leis naturais são compatíveis com subjetividade e historicidade, devido a uma série de motivos: (1) pressupõe-se a intervenção humana (afinal, conhecem-se as leis para melhor agir); (2) as Ciências Sociais, ou melhor, na terminologia comtiana, a Sociologia é uma das mais complexas ciências e, portanto, é uma das mais modificáveis em suas aplicações e manifestações concretas; (3) o acúmulo teórico, metodológico, histórico e moral da Sociologia permite-lhe e até a obriga a modificar os métodos e as teorias das Ciências Naturais. Assim, há amplos vínculos entre Epistemologia, Sociologia e política prática, em particular via idéia de "liberdade de ação", o que ordinariamente resulta na dicotomia determinismo-vontade. Interessa aí o conceito comtiano de "vontade positiva": vista inicialmente como teológico-metafísica, ela foi introduzida na fase mais madura de Comte, em que a preocupação não era estabelecer as condições de cientificidade e as características da Sociologia, mas já elaborar os termos concretos da intervenção humana na sociedade e no mundo. Dessa forma, o presente artigo apresentará as etapas do conceito comtiano de "vontade", conforme exposto acima, relacionando-o também com o conceito de "liberdade filosófica" (ou seja, a própria possibilidade de intervenção humana no mundo).


Palavras-chave: Augusto Comte; Positivismo; leis sociológicas; determinismo; liberdade; vontade.