24 junho 2015

Declaração da União Humanista sobre o massacre contra Charlie Hebdo

Reproduzo abaixo a declaração da União Humanista Ética Internacional (IHEU, na sigla em inglês) a propósito do massacre realizado por fanáticos muçulmanos em 7.1.2015, contra o semanário francês Charlie Hebdo. O original pode ser lido aqui.

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Twelve people including two police officers, three cartoonists, and seven journalists have been killed today, with at least 5 other victims in critical condition. The gunmen, who were filmed shouting “Allahu Akbar” and “We have avenged the prophet” as they stormed the offices of the satirical magazine Charlie Hebdo, can be assumed to be Islamist terrorists responding to satirical images published in the magazine.
Stéphane "Charb" Charbonnier, publisher of Charlie Hebdo, has been named among those killed today
Stéphane “Charb” Charbonnier, publisher of Charlie Hebdo, has been named among those killed today
“The International Humanist and Ethical Union (IHEU) is appalled and deeply saddened by the attack on the offices of the magazine Charlie Hebdo in Paris, France, today.
This is an horrific and profoundly illiberal attack. It is an act of Islamo-fascist terrorism, aimed at silencing freedom of expression about religious beliefs, and about Islam in particular.
No person who genuinely recognises the humanity of their fellow citizens, or who is remotely interested in the good of society at large or for any section of society, could ever justify this terrorism. Reading words and seeing images that satirise your beliefs is as far removed from a warrant to murder as it is possible to get.
Europe has a tradition of humanism, in which both freedom of expression, and freedom of thought and belief, including freedom of religion, are respected and upheld in law. To criticise beliefs, including through satire and ridicule, does not contravene others’ freedom of belief. Rather, criticism is essential to freedom of expression. Murder on the other hand is the ultimate nullification of all a person’s freedoms and being.
It is our true hope that Europe will neither bow to this violence, nor rise to it. We will not be provoked into an equal savagery. We will resist all terror, and we will defend freedom of thought and expression: essential values for free and meaningful lives.”
— Sonja Eggerickx, president of the International Humanist and Ethical Union (IHEU)



Logomarca da União Humanista Ética Internacional em homenagem aos mortos no massacre contra o semanário Charlie Hebdo, em 7.1.2015

22 junho 2015

Respostas comtianas às críticas do interpretativismo


[O meu artigo "Respostas comtianas às críticas do interpretativismo" foi temporariamente tirado do meu blogue, a fim de ser submetido a avaliação por uma revista científica. Tão logo eu tenha um posicionamento a respeito, ele será postado novamente, seja como artigo publicado, seja como simples postagem. 31.3.2016]

Sobre o “empiricismo” qualitativista

Há um mito segundo o qual o mero acúmulo de dados quantitativos – números, tabelas, estatísticas – corresponderia a um conhecimento social científico. Isso é um mito, que poderíamos qualificar de “empiricismo quantitativo”.

Isso, de modo geral, ninguém contesta. O que provavelmente incomodará muitos é que também há um “empiricismo qualitativo”. Com uma freqüência alarmante, ele é vendido como “ciência” social, por vezes com o nome imponente de “microssociologia”. Ele consiste no acúmulo de narrativas sobre os hábitos de grupos, de indivíduos, de interações variadas; também acumula depoimentos, narrativas “nativas” e assim por diante. Como é “qualitativo” e como “dá voz ao povo”, ganha ares de boa prática sociológica. Mas é só isso: a versão qualitativa do mesmo “empiricismo” indicado na forma numérica acima.


Infelizmente, só se reconhece como “empiricista” – isto é, só se reconhece os vícios intelectuais próprios ao empirismo extremado – o “empiricismo quantitativo”. Sua versão qualitativa é amplamente respeitada e praticada em todas as Ciências Sociais – não apenas na Sociologia e na Ciência Política, mas também na Antropologia e na História. (É verdade que menos na Ciência Política, na qual é mais fácil detectar o “empiricismo quantitativo”. Mas na área da Teoria Política “normativa” o “empiricismo qualitativo” é muito fácil de ser notado.)

18 junho 2015

Livro eletrônico: "Pan-americanismos entre a segurança e o desenvolvimento"

Divulgo aqui o livro eletrônico "Pan-americanismos entre a segurança e o desenvolvimento: a Operação Pan-Americana e a Aliança para o Progresso", resultante da minha dissertação de mestrado em Sociologia Política (UFPR, 2004), publicado pela editora Poiesis. O livro tem o gentil prefácio do Prof. Dr. Alexsandro Eugênio Pereira, também da UFPR.

O livro pode ser adquirido por meio deste vínculo, na livraria eletrônica Amazon.com.br.

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PAN-AMERICANISMOS ENTRE A SEGURANÇA E O DESENVOLVIMENTO: 

A Operação Pan-Americana e a Aliança para o Progresso



Autor(es): 
Gustavo Biscaia de Lacerda
Alexsandro Eugenio Pereira (Prefácio)
Volume: 
1
Ano: 
2015
Formato: 
eBook
Página: 
96
Assunto: 
Ciência política
ISBN: 
978-85-61210-43-4
Preço: 
R$9,90
Sinopse: 
O Brasil passou por um momento de diversificação das relações exteriores. Contudo, isso não significou romper com os estadunidenses, mas ampliar o leque de opções com parceiros estratégicos tendo em vista os propósitos do desenvolvimento. As relações com os Estados Unidos constituem, portanto, um dos temas perenes da política externa brasileira, inclusive neste início de século XXI. Por isso, ao destacar essas relações como objeto de análise privilegiado, o livro de Gustavo Biscaia de Lacerda apresenta uma importante contribuição para os estudos de políticas externas em perspectiva comparada ao oferecer aos seus leitores uma análise das perspectivas distintas alimentadas pelos dois países na cena internacional dos anos 1950 e 1960: a visão estadunidense sobre a América Latina e, particularmente, o Brasil; a visão brasileira sobre a funcionalidade das relações brasileiras com os Estados Unidos no contexto de enfrentamento de um dos principais gargalos do nosso desenvolvimento econômico: a ausência de capitais necessários para alavancar o processo substitutivo de importações inaugurado a partir dos anos 1930. A visão dos Estados Unidos emergiu na iniciativa intitulada “Aliança para o Progresso” de 1961, enquanto a visão brasileira apareceu, antes, na iniciativa da “Operação Pan-Americana”, de 1958, lançada pelo governo Juscelino Kubitschek (1956-1961). As duas iniciativas estão situadas no contexto da Guerra Fria, caracterizado pelo conflito entre a União Soviética e os Estados Unidos. Ambas tiveram como propósito pensar estratégias para o desenvolvimento da América Latina, afastando os países dessa região do comunismo e da influência soviética. São, portanto, duas iniciativas marcadas pelo contexto internacional da bipolaridade, mas que são apresentadas por países em posições muito distintas no sistema internacional: de um lado, a maior potência bélica e econômica do mundo; de outro lado, um país subdesenvolvido e orientado por uma estratégia de desenvolvimento, compreendida, por muitos intelectuais do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) nos anos 1950, como Álvaro Vieira Pinto e Roland Corbisier (para citar alguns deles) como o meio a partir do qual o Brasil ingressaria no seleto grupo das grandes potências em condição menos subalterna. As duas iniciativas, ainda, estão orientadas por objetivos distintos: os Estados Unidos visavam a manter sua influência na América Latina por intermédio do afastamento dos países da região da ameaça comunista; o Brasil, por sua vez, orientava e instrumentalizava sua política externa na direção do desenvolvimento, procurando jogar segundo as regras estabelecidas pelo conflito – que era, sobretudo, ideológico e político – entre as superpotências. 

17 junho 2015

Resumos das exposições sobre a audiência sobre ensino religioso confessional

Indico abaixo várias matérias produzidas pela assessoria de comunicação do Supremo Tribunal Federal ao longo do dia 15.6.2015 a respeito da audiência sobre ensino religioso obrigatório confessional.

Como são muitas matérias, não as reproduzirei integralmente; apenas indicarei os títulos e os vínculos.

Alguns comentários gerais.

Evidentemente, os grupos humanistas acadêmicos e da sociedade civil puseram-se contrários tanto ao ensino religioso obrigatório quanto ao ensino confessional. Entram nessa categoria cinco ou seis expositores, o que revela uma concordância generalizada contra o clericalismo pedagógico.

É digno de nota que também judeus, batistas e espíritas são completamente contrários ao ensino religioso obrigatório e, ainda, ao confessional.

Os representantes dos chamados cultos afrobrasileiros e da ioga foram ambivalentes, ao proporem que o ensino religioso contemple todas as religiões. O representante do budismo, segundo a matéria, foi genérico e não expôs de verdade nenhuma posição a respeito do tema em pauta.

Os representantes das Assembléias de Deus não tiveram unidade de idéias: dois foram fortemente contrários ao ensino confessional e outro foi favorável.

Os católicos, os muçulmanos, a Igreja Universal e - pasme-se! - a Câmara dos Deputados (!!!) são a favor do ensino religioso obrigatório e confessional. A "Frente Parlamentar Mista em Defesa da Família" - nome pomposo que aglutina os teológicos monoteístas no Congresso Nacional - também defendeu o clericalismo. O Conselho Nacional de Secretários de Educação foi ambíguo a respeito, tendendo a ser favorável ao clericalismo pedagógico.

Não se entende porque houve dois representantes católicos (CNBB e Arquidiocese do Rio de Janeiro), três representantes das Assembléias de Deus (Igreja de Belém e Convenção Nacional), dois representantes judeus (Juristas Brasil-Israel e Confederação Israelita), além de vários grupos jurídicos.

Inversamente, a Igreja Positivista do Brasil e a Igreja Positivista de Porto Alegre - que pleitearam representação na audiência e que desde sempre são algumas das mais importantes defensoras da laicidade do Estado - tiveram negadas suas representações.

Por fim, deve-se notar que, contrariamente ao que afirmou o representante batista, a proclamação da República em 1889 acarretou imediatamente a laicização do Estado e a inexistência de ensino religioso público, obrigatório ou não, confessional ou não. Essa disciplina só passou a existir após 1930, devido à pressão da Igreja Católica, na pessoa do cardeal Sebastião Leme, que conduzia desde 1916 o movimento da "neocristandade". 

Além disso, foi devido à pressão da Igreja Católica e dos evangélicos na Constituinte de 1987-1988 e da ação de Ulisses Guimarães, que há a referência ao "deus" no "Preâmbulo" da Constituição e a previsão constitucional de ensino obrigatório de uma única disciplina, que é a de "religião".

Abaixo, as matérias do STJ:

Ministro Roberto Barroso abre audiência pública sobre ensino religioso nas escolas públicas

Expositores iniciam apresentações na audiência pública sobre ensino religioso

Ensino religioso: no período da manhã, 14 entidades se pronunciam na audiência pública

Audiência pública sobre ensino religioso prossegue à tarde com 17 expositores

Mais especialistas expõem seus argumentos na audiência pública sobre ensino religioso

Expositores concluem apresentações na audiência pública sobre ensino religioso

Ministro Barroso encerra audiência pública e destaca enriquecimento intelectual proporcionado pela discussão

É possível assistir às exposições aqui: https://www.youtube.com/user/STF.

Resultados da audiência sobre ensino religioso

Reproduzo abaixo matéria publicada pela revista eletrônica Consultor Jurídico, sobre a audiência pública realizada em 15.6.2015 pelo Ministro Luís Roberto Barroso, sobre a constitucionalidade do ensino religioso público obrigatório confessional. O original pode ser lido aqui.

De qualquer maneira, devo admitir que fico muito, muito, muito satisfeito com a referência que o "consultor jurídico" da Câmara dos Deputados fez ao positivismo comtiano (em destaque meu, no final do texto). Na verdade, é uma honra, é um grande elogio e um grande reconhecimento afirmarem que o Positivismo é pela laicidade do Estado - mesmo que o "consultor jurídico" tenha feito a referência em tom acusatório.

Tenho apenas duas dúvidas:

(1) Por que é que um "consultor jurídico" da Câmara dos Deputados manifestou-se contra o ensino laico? O ensino confessional - ou seja, a imposição carola de uma crença para-oficial - é a posição oficial da Câmara?

(2) Quando foi que o Positivismo tentou ir contra a Constituição para "banir o ensino religioso"? Gostaria muito que ele mostrasse de onde tirou essa bobagem; é uma observação sofística, do tipo "é verdade que você não bate na sua esposa?", em que se nega apenas para afirmar sub-repticiamente.

O Positivismo sempre foi muito claro que isso não é matéria constitucional; na verdade, a Constituição de 1988 obriga as redes de ensino a terem uma única disciplina, que é religião (nem português, nem matemática são obrigatórios segundo a Constituição!): isso, evidentemente, é o resultado da pressão dos grupos de pressão católicos e evangélicos.

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AUDIÊNCIA PÚBLICA

Barroso promete liberar ação do ensino religioso no segundo semestre

O ministro Luiz Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, afirmou que a ação direta de inconstitucionalidade que questiona a legalidade do ensino religioso nas escolas da rede pública deverá ser julgada já no segundo semestre deste ano.
Ele promoveu uma audiência pública sobre o tema nessa segunda-feira (15/6), em Brasília. Após ouvir posicionamentos de diversas entidades favoráveis e contrárias à inclusão dessa disciplina na grade curricular das instituições de ensino, ele afirmou estar mais apto para julgar. “Pessoalmente saio daqui muito mais capaz de equacionar as questões tratadas no processo do que antes da audiência”, afirmou.
Audiência convocada por Barroso confrontou correntes que defendem ensino religioso laico e confessional.
Fellipe Sampaio/SCO/STF
O ministro esclareceu que o questionamento feito na ADI restringe-se às escolas públicas. Portanto o julgamento não vai interferência nas instituições privadas, que poderão continuar ministrando livremente o ensino religioso confessional a quem se interessar. De acordo com o ministro, a audiência pública foi importante em razão dos valores constitucionais tratados na ação: a liberdade religiosa, o Estado laico e a previsão constitucional expressa de que haja ensino religioso nas escolas públicas.
A ADI em curso no STF foi ajuizada pela Procuradoria Geral da República, que defende que o ensino religioso seja ministrado de forma laica, sob um contexto histórico e abordando a perspectiva das várias religiões. A ação visa a conferir interpretação conforme a Constituição Federal a dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação e ao acordo firmado entre o Brasil e a Santa Sé (Decreto 7.107/2010).
Participaram da audiência 31 entidades. Uma delas foi o Conselho Nacional de Educação do Ministério da Educação. O representante Luiz Roberto Alves destacou que o artigo 33, da Lei de Diretrizes Básicas da Educação (Lei nº 9.394/96), estabelece que o ensino religioso é parte integrante da formação básica do cidadão. Por isso, deve ser ministrado de forma laica. “Deve ser um estudo aberto, criativo e autônomo do fenômeno cultural da religião ou das formas de religiosidades, portanto plenamente ligado ao ético, estético, linguístico e ao científico”, afirmou.
Para Gilbraz Aragão, representante do Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, o ensino religioso, em um estado laico como o Brasil, se justifica “pela necessidade de formação de cidadãos críticos e responsáveis, capazes de avaliarem as notícias religiosas em seu contexto, sem imposição de doutrinas e, portanto, de natureza não confessional”.
Já Wilhelm Wachholz, representante da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação e Pesquisa em Teologia e Ciências da Religião, defendeu proposições que busquem consolidar o ensino religioso não confessional como direito do cidadão em favor da promoção da liberdade religiosa e de uma sociedade democrática e ética.
Na avaliação do advogado Gilberto Antonio Viana Garcia, do Instituto dos Advogados Brasileiros, o Brasil não pode financiar o ensino de qualquer confissão religiosa em específico, e deve inevitavelmente adotar o modelo não confessional. De acordo com ele, é um dever do Estado resguardar e proteger todas confissões religiosas.
Divergências
Na opinião do membro da Associação Nacional de Advogados e Juristas Brasil-Israel, Carlos Roberto Schlesinger, o ensino religioso não deveria existir em forma alguma; mas se existir, a única forma de se compatibilizar o caráter laico do Estado é a adoção do modelo não confessional. Ele disse acreditar que o apropriado ao país seria a adoção do ensino da história das religiões de forma a se ensinar o respeito à crença e à cultura do outro. 
O integrante da frente parlamentar que reúne 268 deputados federais e senadores, deputado Pastor Eurico (PSB/PE), manifestou-se favoravelmente ao ensino religioso, por “levar as pessoas a aprender mais sobre valores e relacionamentos interpessoais”.
Já o diplomata Luiz Felipe de Seixas Corrêa defendeu, em nome da Arquidiocese do Rio de Janeiro, que o ensino religioso seja confessional. “Interpretar o ensino religioso como o da história das religiões não é compatível nem com a letra nem com o espírito da lei”, afirmou.
O consultor da Câmara dos Deputados Manoel Morais, por sua vez, criticou as posições “laicizantes”, que teriam viés ideológico, em contraposição aos movimentos pela laicidade. “O movimento laicizante é uma roupagem nova do positivismo comtiano, que tenta banir o ensino religioso das escolas públicas, à revelia da Constituição”, afirmou.
Já o professor de Direito Constitucional Daniel Sarmento, da Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ, ao manifestar-se pelo ensino religioso não confessional, afirmou que existem cerca de 30 milhões de crianças e adolescentes matriculados em escolas públicas que, quando a disciplina é ministrada por religiosos, estão expostas a visões dogmáticas e excludentes.
De acordo com ele, a mera possibilidade de o aluno se ausentar das aulas não é suficiente para garantir a liberdade de crença, em razão das pressões psicológicas, às quais crianças e adolescentes, como seres em formação, estão sujeitos.  Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.
ADI 4.439
Revista Consultor Jurídico, 16 de junho de 2015, 18h38

15 junho 2015

Luís Roberto Barroso: "Estado deve abster-se de promover religiões"

Reproduzo abaixo artigo publicado pelo Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), que organizou para o dia 15.6.2015 uma audiência pública sobre a constitucionalidade do ensino religioso público e obrigatório.

Evidentemente, tanto a audiência quanto a ação de inconstitucionalidade que a originou têm relação intensa e direta com a laicidade do Estado, com as liberdades públicas do país e também com a Concordata celebrada em 2008 entre o Brasil e o Vaticano (pela qual, aliás, Luís Inácio Lula da Silva deveria ser processado por crime de lesa-pátria). 

O texto foi publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo do dia 14.6.2015 e reproduzido no portal Consultor Jurídico.

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http://www.conjur.com.br/2015-jun-14/roberto-barroso-estado-abster-promover-qualquer-religiao

ENSINO RELIGIOSO
Estado deve se abster de promover ou dificultar o exercício de qualquer religião

14 de junho de 2015, 10h48
Por Luís Roberto Barroso

*Artigo publicado originalmente no jornal Folha de S.Paulo deste domingo (14/6)

Sou filho de mãe judia e pai católico. Cresci indo a sinagogas e igrejas. Aos 15 anos, fiz um intercâmbio no exterior e vivi com uma adorável família presbiteriana. Ao fazer meu mestrado na Universidade Yale, nos Estados Unidos, meu vizinho de porta e amigo era muçulmano, da Arábia Saudita.

Desde cedo aprendi a conviver com a diversidade e a apreciá-la. Ao longo do tempo, reforcei a minha convicção de que as pessoas são essencialmente iguais. Não consigo imaginar nada mais triste para o espírito do que uma pessoa se achar melhor do que a outra, seja por sua crença, cor, sexo, origem ou por qualquer outro motivo.

No Supremo Tribunal Federal, sou relator de uma ação direta de inconstitucionalidade na qual se discute o papel do ensino da religião nas escolas públicas. Há basicamente duas posições em debate.

De um lado, há os que defendem que o ensino religioso possa ser ligado a uma religião específica, sendo ministrado, por exemplo, por um padre, um pastor ou um rabino. É o que se chama de ensino religioso confessional.

De outro, há os que sustentam que o Estado é laico e que o ensino de religião tem de ser de caráter histórico e plural, com a apresentação de todas as principais doutrinas. Isto é: não pode ser ligado a um credo específico.

São diferentes formas de ver o papel da educação religiosa. Ao Supremo Tribunal Federal caberá determinar qual dessas duas posições realiza mais adequadamente a vontade constitucional.

A Constituição não tem uma norma expressa a respeito, mas prevê a existência de ensino religioso facultativo, assim como prevê que o Estado é laico e que não deve apoiar ou embaraçar qualquer culto.

Convoquei para esta segunda-feira (15/6), no Supremo, uma audiência pública para debater o tema e convidei representantes de todas as principais religiões no país. Com essa iniciativa, busco promover um debate aberto e plural, no qual pretendo colher a opinião de todos.

Também se inscreveram pensadores religiosos, leigos e ateus, que igualmente serão ouvidos. Em seguida, farei um relatório com as principais posições e apresentarei meu voto em Plenário.

Há três grandes valores em questão. O primeiro é a liberdade de religião, a possibilidade legítima de se professar uma crença e pretender conquistar adeptos para ela.

O segundo é o dever de neutralidade do Estado, que deve se abster de promover qualquer religião, bem como de dificultar o seu exercício.

O terceiro valor envolve o papel da religião na educação e no espaço público, no âmbito de um Estado democrático e de uma sociedade multicultural.

A vida civilizada aspira ao bem, ao correto e ao justo. Há os que buscam esse caminho em princípios religiosos. Há os que o procuram na filosofia moral. Muitas pessoas combinam ambas, a verdade revelada e a ética. E há muitos que professam um humanismo agnóstico ou ateu.

A verdade não tem dono, e o papel do Estado é assegurar que cada um possa viver a sua convicção, sem a exclusão do outro. O caminho do meio, feito do respeito ao próximo e da tolerância.

Como ensinam o Velho Testamento, os evangelhos, o budismo, Aristóteles, Immanuel Kant e todos aqueles que viveram para um mundo melhor e maior.


Luís Roberto Barroso é ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Revista Consultor Jurídico, 14 de junho de 2015, 10h48

30 maio 2015

Rodrigo Octávio: inconstitucionalidade do Cristo Redentor

Reproduzo abaixo texto publicado no portal jurídico Conjur, da autoria de Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, que é professor de Direito na USP. O texto original encontra-se disponível aqui.

O texto citado reproduz extensamente um parecer do Procurador-Geral da República, Ministro Rodrigo Octávio, a respeito da constitucionalidade da construção da estátua "Cristo redentor", no Morro do Corcovado, no Rio de Janeiro. Esse parecer foi emitido em 1921, quando se planejava a construção do dito monumento. Rodrigo Octávio opinou pela inconstitucionalidade da estátua com apoio do Estado brasileiro, pois ia frontalmente contra a separação entre Igreja e Estado, ou seja, feria a laicidade do Estado. Tal situação, aliás, manteve-se ao longo dos anos e, como é público e notório, piorou cada vez mais.

É importante notar que o parecer citado abaixo apresenta argumentos extremamente próximos aos usados pelos positivistas para defender a laicidade do Estado. 

Aliás, exatamente devido a esse motivo, Ivan Lins, no seu monumental História do Positivismo no Brasil, cita esse parecer e outros. (Todavia, o autor do artigo que cita Rodrigo Octávio não indica de onde tirou esse parecer: uma das possíveis fontes - não citadas - evidentemente é o livro de Ivan Lins.)

(Convém notar que, mesmo assim, há gente que afirma que não havia laicidade na I República, ou que esse tema surgiu no debate público brasileiro apenas depois de 1930.)

O livro de Ivan Lins pode ser consultado, em sua versão original, aqui: http://www.brasiliana.com.br/brasiliana/colecao/obras/269/Historia-do-positivismo-no-Brasil

Quem quiser encomendar a terceira edição do livro (incorretamente indicado pelo Senado Federal como sendo a sua primeira edição), pode encontrá-lo aqui: http://livraria.senado.gov.br/todos-os-livros/historia-do-positivismo-no-brasil.html

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PASSADO A LIMPO

Cristo Redentor fere espírito da Constituição, diz parecer de 1921

Arnaldo Godoy [Spacca]No início da década de 1920, o então Consultor-Geral da República respondeu consulta a propósito de projeto referente à construção de um monumento ao Cristo Redentor, no alto do Corcovado. Registra-se que houve, à época, alguma dúvida sobre a constitucionalidade da iniciativa. O Consultor-Geral da República opinou pela impossibilidade de se erguer o referido monumento, que significaria resistência ao Estado laico. O Governo não ouviu a opinião do Consultor-Geral. O monumento foi erguido. E hoje é símbolo da cidade do Rio de Janeiro. Segue o parecer.
Gabinete do Consultor-Geral da República — Rio de Janeiro, 17 de outubro de 1921.
Excelentíssimo Senhor Ministro de Estado dos Negócios da Fazenda — Com o Ofício, sem número, de 6 do corrente, submeteu Vossa Excelência a meu estudo o processo relativo ao requerimento da Comissão que pretende erigir um “Monumento a Jesus Cristo Redentor” no alto do Corcovado.
Parece-me, Senhor Ministro, que há evidente embaraço constitucional para o deferimento do pedido. O Cristo é o símbolo de uma religião. O Poder Judiciário já aqui o reconheceu quando, em consequência dos incidentes de 1892, teve de se pronunciar sobre a legalidade da permanência de sua imagem nas salas do Júri. O caso foi que, negado o pedido de retirada dessa imagem feito por um jurado não católico, foi um dia essa imagem destruída por outro jurado violento e fanático.
Eu mesmo tive de me pronunciar a respeito, por isso que, sendo então Procurador da República neste Distrito, foi-me o inquérito remetido para a instauração do processo pela Justiça Federal e eu deixei de oferecer denúncia por entender que o caso não incidia no art. 111 do Código Penal, em que havia sido capitulado, por me parecer contraria à Constituição a ordem para permanência de símbolos religiosos no Júri. Em meu despacho, que foi longo, eu escrevi estas palavras que podem ter aplicação ao caso atual:
Os publicistas que mais competentemente têm estudado a questão oferecem muitos bons argumentos mesmo para provar que fato algum fora dos templos ou dos lugares reservados ao culto se deve permitir, porque esses fatos, mesmo quando o culto seja o da grande maioria da população, ofendem e oprimem a consciência da minoria, e em matéria de consciência não pode prevalecer o direito da maioria, que é a força do número, porque as questões de consciência são questões essencialmente individuais.
Definido meu modo de ver, o caso, entretanto, não morreu com essa minha promoção, pois que os promotores públicos de então promoveram o processo perante a justiça local, onde, aliás, o meu modo de ver foi sancionado, pois que, denunciados os figurantes no caso, um como mandante ou inspirador do inqualificável procedimento do outro, foi o delito desclassificado do art. 111, porque se julgou que a ordem para colocação do Cristo no Júri “não era conforme a Constituição e as Leis”. Essa decisão foi proferida pelo Conselho Supremo da Corte de Apelação concedendo habeas corpus ao jurado processado como mandante e preso preventivamente, e mais tarde o mesmo princípio foi sustentado pelo despacho de pronúncia do autor do atentado, não nesse artigo, pelo mesmo fundamento da decisão do Conselho, mas no art. 185 que se refere a “ultraje à confissão religiosa, desacato ou profanação de seus símbolos, publicamente”.
Parece que esse caso pode ser considerado como precedente em relação ao caso atual. Considerado o Cristo como símbolo religioso não pode o Poder Público deferir o pedido para sua colocação num logradouro, que é bem público e, como tal, de uso comum do povo e inalienável (Código Civil, art. 66, nº I, e 67). O Estado é leigo. A Constituição lhe veda manter com qualquer igreja ou culto “relações de dependência ou aliança ou conceder-lhe subvenção oficial”. Bem certo o deferimento do pedido para permitir a ereção de uma estátua do Cristo num logradouro público não entra literalmente, em qualquer dos dispositivos constitucionais; mas para mim é incontestável que esse deferimento fere o seu espírito porque sem dúvida importa na concessão de um favor do Estado em benefício de uma Igreja, a concessão de uma parte de bem público para ereção de um dos seus símbolos mais significativos.
É este, Senhor Ministro, o parecer que submeto ao critério superior de Vossa Excelência a quem, devolvendo os papéis, tenho a honra de reiterar meus protestos de elevada estima e distinta consideração.
Rodrigo Octavio
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP. Doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).
Revista Consultor Jurídico, 28 de maio de 2015, 8h00

13 maio 2015

13 de maio - fraternidade dos brasileiros

O dia 13 de maio é celebrado no Brasil como o da abolição da escravidão. Por si só, sem dúvida alguma, isso deve ser celebrado e valorizado, pois foi o momento em que no país finalmente se encerraram séculos da exploração mais vil de seres humanos por outros seres humanos, em que uns eram propriedade de outros. A escravidão no Brasil deu-se inicialmente contra os indígenas autóctones e, depois, contra os africanos, que se tornaram imigrantes forçados.

Por outro lado, como também sabemos, a escravidão gerou efeitos persistentes na sociedade brasileira, de que o racismo contra os negros e a exclusão das populações descendentes dos antigos escravos são dois dos mais graves. Isso se deve à própria escravidão mas, também, ao fato de que a sua abolição, em 1888, não foi seguida por medidas públicas e privadas no sentido de integrar os antigos escravos à sociedade nacional, com ensino público, frentes de trabalho em condições dignas, moradias populares etc.

Ainda assim, é importante notar que a campanha abolicionista desenvolveu-se ao longo da década de 1880 e envolveu os mais variados setores da população brasileira, incluindo as elites, setores populares, ex-escravos, membros da “nobreza” nacional.

Entre todos esses grupos, os positivistas tiveram papel destacado, seguindo nesse sentido as orientações de Augusto Comte – fosse como favoráveis à abolição imediata sem reparação para os donos de escravos, fosse como favoráveis à incorporação social dos antigos escravos, fosse como cidadãos que não admitiam entre suas fileiras donos de escravos: por exemplo, Miguel Lemos e Teixeira Mendes, diretores da Igreja Positivista do Brasil, expulsaram de seu grêmio donos de escravos que se recusavam a alforriar seus cativos.

Da mesma forma, o Positivismo celebra a independência do Haiti, na figura do "general de ébano", Toussaint de L'Ouverture.

Além disso, o também positivista Benjamin Constant Botelho de Magalhães[1] e Deodoro da Fonseca, respectivamente na qualidade de vice-Presidente e Presidente do Clube Militar, recusaram em 1887, em nome da tropa, a usar o Exército a perseguir os escravos fugitivos.

Em outras palavras, é indiscutível que a abolição por si só foi um passo importantíssimo para o Brasil – mas, ainda assim, foi um passo insuficiente, pois não foi seguido das necessárias medidas de valorização e de integração social.

É exatamente como um esforço em favor da integração social dos descendentes dos antigos escravos que os positivistas propuseram desde o início da República a comemoração do dia 13 de maio. Na verdade, os positivistas propuseram essa data como celebrando a integração não apenas dos negros, mas de todos os elementos sociais e culturais da sociedade brasileira. Nessa utopia, não se contrapõem os "negros" contra os "brancos", mas eles unem-se e fundem-se, a fim de melhorar o Brasil, cada qual com suas características.

Assim, não deixa de ser motivo de profundo lamento que o dia 13 de maio não seja mais feriado nacional: essa perda de status dessa data indica o quanto a integração e o universalismo não são mais valores nacionais, cada vez mais substituídos pelos vários particularismos. 

É claro que não precisamos concordar com tais particularismos: é por isso que celebramos o projeto de um país que respeite e valorize toda a sua população, com suas particularidades entendidas como traços enriquecedores do patrimônio comum e não como motivos para segregacionismos.



Cartaz gentilmente criado pelo amigo João Carlos Silva Cardoso.





[1] Que, alguns anos depois, foi o fundador da República Brasileira, no glorioso movimento de 15 de novembro de 1889.

09 maio 2015

De Flávio Heinz: "Intelectuais na política"

Reproduzo abaixo a divulgação de um livro organizado pelo pesquisador gaúcho Flávio Heinz, cujo primeiro capítulo é da autoria de Mary Pickering, a respeito de Augusto Comte. Os dados do livro são estes:


HEINZ, Flavio M. (Org.) Dos intelectuais na política à política dos intelectuais. Pensadores, escritores e militantes no diálogo com o poder. São Leopoldo: Oikos, 2015. ISBN: 978-85-7843-459-5

Esse livro faz parte dos esforços do Laboratório de História Comparada do Cone Sul (LabConeSul).

Aliás, como amostra do livro, precisamente o capítulo sobre Comte está disponível para ser baixado (aqui ou no próprio portal do livro):



"Este livro é o terceiro e último de uma série que, ao longo dos últimos anos, buscou situar ao público acadêmico a ambição que orienta os trabalhos do Laboratório de História Comparada do Cone Sul, a saber, a de produzir uma história social de elites, intelectuais e grupos profissionais que seja metodologicamente clara e cujos resultados sejam escrutináveis, ampliando a possibilidade de comparação dos casos em estudo com aqueles de outros grupos de pesquisa, nacionais e internacionais, e assegurando a abertura para a rotinização do diálogo e de práticas interdisciplinares concretas, notadamente com a Sociologia e a Ciência Política. Para fazê-lo, publicamos, em 2011, a obra coletiva “História Social de Elites”, reunindo bons exemplos da opção metodológica fundadora de nosso coletivo de pesquisa, a prosopografia; em 2012 foi a vez da coletânea “Poder, Instituições e Elites – 7 ensaios de comparação e história”, que retomou a importância da dimensão comparativa em nosso trabalho. Superado esse momento de ‘inscrição do perfil metodológico’ do nosso grupo no meio profissional, este último livro vem trazer à apreciação da área um tema de pesquisa caro aos nossos pesquisadores e colaboradores eventuais: a relação entre os intelectuais – nas suas mais variadas formas e modos de apreensão – com a política e o poder. Com este livro, concluímos, portanto, a presente série. A agenda de pesquisa do LabConeSul permanece nas suas linhas de força – a prosopografia, a comparação, o estudo das elites e das profissões – mas avança em direção ao estabelecimento de novos vínculos e parcerias institucionais, além de uma ampliação na sua rede nacional e internacional de pesquisadores". 

02 maio 2015

Marxistas ricos e condenação moral da riqueza para Marx

Nos últimos meses, nas chamadas “redes sociais”, várias pessoas têm afirmado que nas obras de Karl Marx não há nenhuma afirmação que impeça socialistas, comunistas ou “marxistas” de serem ricos – ou, por outra, que não é incoerente ou hipócrita da parte dos marxistas, socialistas ou comunistas criticarem a riqueza concentrada e serem eles mesmos ricos: talvez essa inexistência de condenação seja verdade. O problema é que tal argumento é uma falácia, por definição destinada (1) a enganar (2) os incautos: o conjunto da obra de Marx pretende demonstrar que a concentração da riqueza – seja o processo de geração da riqueza, seja o processo de concentração da riqueza, seja a simples posse da riqueza concentrada – é imoral de qualquer maneira.

Em O capital e em outras obras, Marx argumenta que os ricos são ricos porque sistemicamente exploram os não-ricos. No capitalismo isso quer dizer que a burguesia explora o proletariado; tal exploração é “sistêmica” e objetiva: o funcionamento do sistema conduz os burgueses a explorar e os proletários a serem explorados, independentemente da vontade individual. Não importa a vontade, a consciência, os valores, a intenção de quem explora: a exploração ocorrerá quer os capitalistas queiram, quer não queiram. Em outras palavras, o que o marxismo pretende demonstrar é que ser rico é explorar o proletariado –  sempre.

Além de ser o produto da exploração, a riqueza também é o índice por definição da desigualdade social; a desigualdade, por sua vez, é ruim em si mesma. Por esse motivo, na sociedade socialista – nunca definida por Marx –, as desigualdades devem desaparecer, juntamente com a luta de classes que a produz, que a perpetua e que a justifica. A desaparição das desigualdades, das classes e da luta de classes fará desaparecer, também, a própria idéia de “riqueza”.

Em suas obras, Marx condena a exploração e a desigualdade: esse valor moral específico – condenação da exploração e da desigualdade – é um valor “aceitável”. Mas outros valores morais a respeito dos quais Marx não faz nenhuma ressalva são a hipocrisia e o cinismo; na verdade, o que se percebe nos escritos marxianos é a idéia de que a condenação e a rejeição da hipocrisia e o cinismo são valores morais burgueses ou até pré-capitalistas. 

Enquanto Marx pretende fazer uma crítica objetiva (que, como vimos, afirma que no capitalismo ocorre a eterna e necessária exploração do proletariado pela burguesia), as críticas "subjetivas" - que se baseiam em e que consistem na aplicação de valores morais a situações sociais - são sempre hipócritas, cínicas, ingênuas. Aliás, seguindo nessa mesma linha, para Marx, bem como para seus inúmeros seguidores, a crítica ao cinismo e à hipocrisia é “moralismo” e é ela mesma cínica e hipócrita.

Para Marx, a rejeição moral de idéias ou situações, de modo geral, é uma característica “burguesa” e, como tal, é desprezível e um instrumento da luta de classes – logo, é um instrumento da dominação burguesa de classe e da exploração do proletariado realizada pela burguesia. Em suma: rejeitar a hipocrisia e o cinismo (ou a corrupção) – em todo caso, rejeitar a falsidade – é um valor burguês que serve apenas para manter a exploração do proletariado e a desigualdade social.

O resultado disso tudo é que: (1) rigorosamente, pode ser que Marx não fosse contrário a socialistas serem “ricos”, mas (2) a riqueza é sistemicamente o resultado da exploração classista sofrida pelo proletariado. Ao mesmo tempo, contraditoriamente, (3) não há problema em socialistas serem ricos, pois (4) a rejeição da hipocrisia é um valor (ou preconceito) burguês.

As soluções habituais encontradas pelos marxistas (teóricos e/ou práticos) para tal situação profundamente “contraditória” – isto é, para essa incoerência – são as seguintes: (1) afirmar que a riqueza mantida pelo Estado (“propriedade coletiva dos bens de produção”) é progressista e libertadora, ao contrário da riqueza individual, vista como reacionária ou conservadora; (2) denunciar ou desprezar a denúncia moral como sendo burguesa, logo, como sendo ela mesma hipócrita e instrumento da luta de classes; (3) silenciar a respeito dessa incoerência. É claro que essas estratégias não são mutuamente excludentes.

É dessa forma que é possível aos marxistas, socialistas e/ou comunistas denunciarem a riqueza mas eles mesmos serem ricos.