Reproduzo abaixo texto publicado no portal jurídico Conjur, da autoria de Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, que é professor de Direito na USP. O texto original encontra-se disponível aqui.
O texto citado reproduz extensamente um parecer do Procurador-Geral da República, Ministro Rodrigo Octávio, a respeito da constitucionalidade da construção da estátua "Cristo redentor", no Morro do Corcovado, no Rio de Janeiro. Esse parecer foi emitido em 1921, quando se planejava a construção do dito monumento. Rodrigo Octávio opinou pela inconstitucionalidade da estátua com apoio do Estado brasileiro, pois ia frontalmente contra a separação entre Igreja e Estado, ou seja, feria a laicidade do Estado. Tal situação, aliás, manteve-se ao longo dos anos e, como é público e notório, piorou cada vez mais.
É importante notar que o parecer citado abaixo apresenta argumentos extremamente próximos aos usados pelos positivistas para defender a laicidade do Estado.
Aliás, exatamente devido a esse motivo, Ivan Lins, no seu monumental História do Positivismo no Brasil, cita esse parecer e outros. (Todavia, o autor do artigo que cita Rodrigo Octávio não indica de onde tirou esse parecer: uma das possíveis fontes - não citadas - evidentemente é o livro de Ivan Lins.)
(Convém notar que, mesmo assim, há gente que afirma que não havia laicidade na I República, ou que esse tema surgiu no debate público brasileiro apenas depois de 1930.)
O livro de Ivan Lins pode ser consultado, em sua versão original, aqui: http://www.brasiliana.com.br/ brasiliana/colecao/obras/269/ Historia-do-positivismo-no- Brasil
Quem quiser encomendar a terceira edição do livro (incorretamente indicado pelo Senado Federal como sendo a sua primeira edição), pode encontrá-lo aqui: http://livraria.senado.gov.br/ todos-os-livros/historia-do- positivismo-no-brasil.html
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PASSADO A LIMPO
Cristo Redentor fere espírito da Constituição, diz parecer de 1921
No início da década de 1920, o então Consultor-Geral da República respondeu consulta a propósito de projeto referente à construção de um monumento ao Cristo Redentor, no alto do Corcovado. Registra-se que houve, à época, alguma dúvida sobre a constitucionalidade da iniciativa. O Consultor-Geral da República opinou pela impossibilidade de se erguer o referido monumento, que significaria resistência ao Estado laico. O Governo não ouviu a opinião do Consultor-Geral. O monumento foi erguido. E hoje é símbolo da cidade do Rio de Janeiro. Segue o parecer.
Gabinete do Consultor-Geral da República — Rio de Janeiro, 17 de outubro de 1921.
Excelentíssimo Senhor Ministro de Estado dos Negócios da Fazenda — Com o Ofício, sem número, de 6 do corrente, submeteu Vossa Excelência a meu estudo o processo relativo ao requerimento da Comissão que pretende erigir um “Monumento a Jesus Cristo Redentor” no alto do Corcovado.
Parece-me, Senhor Ministro, que há evidente embaraço constitucional para o deferimento do pedido. O Cristo é o símbolo de uma religião. O Poder Judiciário já aqui o reconheceu quando, em consequência dos incidentes de 1892, teve de se pronunciar sobre a legalidade da permanência de sua imagem nas salas do Júri. O caso foi que, negado o pedido de retirada dessa imagem feito por um jurado não católico, foi um dia essa imagem destruída por outro jurado violento e fanático.
Eu mesmo tive de me pronunciar a respeito, por isso que, sendo então Procurador da República neste Distrito, foi-me o inquérito remetido para a instauração do processo pela Justiça Federal e eu deixei de oferecer denúncia por entender que o caso não incidia no art. 111 do Código Penal, em que havia sido capitulado, por me parecer contraria à Constituição a ordem para permanência de símbolos religiosos no Júri. Em meu despacho, que foi longo, eu escrevi estas palavras que podem ter aplicação ao caso atual:
Os publicistas que mais competentemente têm estudado a questão oferecem muitos bons argumentos mesmo para provar que fato algum fora dos templos ou dos lugares reservados ao culto se deve permitir, porque esses fatos, mesmo quando o culto seja o da grande maioria da população, ofendem e oprimem a consciência da minoria, e em matéria de consciência não pode prevalecer o direito da maioria, que é a força do número, porque as questões de consciência são questões essencialmente individuais.
Definido meu modo de ver, o caso, entretanto, não morreu com essa minha promoção, pois que os promotores públicos de então promoveram o processo perante a justiça local, onde, aliás, o meu modo de ver foi sancionado, pois que, denunciados os figurantes no caso, um como mandante ou inspirador do inqualificável procedimento do outro, foi o delito desclassificado do art. 111, porque se julgou que a ordem para colocação do Cristo no Júri “não era conforme a Constituição e as Leis”. Essa decisão foi proferida pelo Conselho Supremo da Corte de Apelação concedendo habeas corpus ao jurado processado como mandante e preso preventivamente, e mais tarde o mesmo princípio foi sustentado pelo despacho de pronúncia do autor do atentado, não nesse artigo, pelo mesmo fundamento da decisão do Conselho, mas no art. 185 que se refere a “ultraje à confissão religiosa, desacato ou profanação de seus símbolos, publicamente”.
Parece que esse caso pode ser considerado como precedente em relação ao caso atual. Considerado o Cristo como símbolo religioso não pode o Poder Público deferir o pedido para sua colocação num logradouro, que é bem público e, como tal, de uso comum do povo e inalienável (Código Civil, art. 66, nº I, e 67). O Estado é leigo. A Constituição lhe veda manter com qualquer igreja ou culto “relações de dependência ou aliança ou conceder-lhe subvenção oficial”. Bem certo o deferimento do pedido para permitir a ereção de uma estátua do Cristo num logradouro público não entra literalmente, em qualquer dos dispositivos constitucionais; mas para mim é incontestável que esse deferimento fere o seu espírito porque sem dúvida importa na concessão de um favor do Estado em benefício de uma Igreja, a concessão de uma parte de bem público para ereção de um dos seus símbolos mais significativos.
É este, Senhor Ministro, o parecer que submeto ao critério superior de Vossa Excelência a quem, devolvendo os papéis, tenho a honra de reiterar meus protestos de elevada estima e distinta consideração.
Rodrigo Octavio
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP. Doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).
Revista Consultor Jurídico, 28 de maio de 2015, 8h00
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