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O original encontra-se disponível aqui.
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Ensino religioso confessional, uma catástrofe anunciada
O ideal seria simplesmente suprimir da Constituição (e, por extensão, da LDB) a exigência de ensino religioso nos currículos das escolas públicas
Gustavo Biscaia de Lacerda
[08/10/2017] [10h00]
A recente decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal
(STF), segundo o qual é constitucional o ensino religioso confessional nas
escolas públicas brasileiras, é desastrada – ou melhor, é catastrófica; não há
como qualificá-la em termos mais brandos. Pura e simplesmente, a maioria da
corte – composta, no caso, pela presidente do tribunal, a ministra Cármen
Lúcia; pelo “filopetista” Ricardo Lewandowski; pelos petistas Edson Fachin e
Dias Toffoli; e pelos paragovernistas Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes –
errou e esse erro custará caro ao país, em diversos sentidos. Antes de
prosseguirmos, convém notar que a maioria favorável ao ensino religioso
confessional votou contrariamente ao parecer do relator, o ministro Luís
Roberto Barroso (embora este tenha tido o apoio dos ministros Luiz Fux, Rosa
Weber, Marco Aurélio Mello e Celso de Mello).
Qual a polêmica? A possibilidade ou não de as aulas de
Ensino Religioso nas escolas públicas terem um caráter laico ou confessional:
no caso de serem laicas, seriam cursos que conjugariam história, filosofia e
antropologia das religiões, com um caráter comparativo e científico; no caso de
serem confessionais, seriam aulas ministradas por sacerdotes das várias
religiões, mormente os cristianismos (católico, luterano e evangélicos de modo
geral). Na opinião do Ministério Público Federal, que iniciou a ação em 2010,
essa disciplina teria de ser laica, entendendo que a versão confessional
feriria a laicidade do Estado e permitiria o proselitismo.
Qual a necessidade de inscrever na Constituição Federal a obrigatoriedade de lecionar uma disciplina qualquer?
A base para essa polêmica está na Constituição Federal de
1988, a que se segue, como consequência, a Lei 9.394/1996, a Lei de Diretrizes
e Bases da educação nacional (LDB): ambas citam expressamente a disciplina de
“Ensino Religioso”, a ser ministrada nas escolas públicas nos horários
regulares, embora com caráter facultativo. O que se deve notar é que a
Constituição Federal de 1988 estabelece em seu artigo 19 – como uma de suas
cláusulas pétreas – a impossibilidade de o Estado professar, apoiar ou obstar
qualquer fé ou doutrina religiosa, o que consiste precisamente na laicidade do
Estado. Mas, ao mesmo tempo, a única disciplina expressamente citada na
Constituição, no artigo 210, é a de Ensino Religioso: nem Português, nem
Matemática, nem História, Geografia ou qualquer outra goza desse monstruoso
privilégio. Deve-se notar que, se houvesse a necessidade de citar na
Constituição alguma disciplina obrigatória, ela deveria ser a Língua
Portuguesa, que, afinal de contas, é definida como a língua oficial da
República (artigo 13).
E é mesmo um privilégio. Afinal de contas, qual a
necessidade de inscrever na Constituição Federal a obrigatoriedade de lecionar
uma disciplina qualquer? Será que havia, ou há, algum medo de que, sem a
imposição da força do Estado, a “religião” perdesse influência social e
política? Ora, ninguém tem medo de que a língua portuguesa vá “perder
influência” social no Brasil; ou, por outra, ninguém teme que a matemática se
torne um conhecimento obsoleto: por esses motivos, ninguém se deu ao trabalho
estapafúrdio de torná-las disciplinas constitucionalmente obrigatórias.
Mas por que é “monstruoso” esse privilégio? Porque ele se
utiliza da força do Estado para impor aos estudantes (jovens e adultos) as
doutrinas teológicas, conforme ensinadas e propaladas pelos respectivos
sacerdotes. Sem dúvida alguma os ministros do STF que defenderam o ensino
religioso confessional observaram, todos, que esse ensino não pode ser
proselitista; entretanto, a esse respeito, ou os ministros são ingênuos ou são
ignorantes. Embora a decisão do STF seja federal, a disciplina de Ensino
Religioso deve ser oferecida e regulamentada pelas redes municipais e estaduais
de ensino; nesse sentido, há estados brasileiros que estabeleceram um Ensino
Religioso claramente confessional, com sacerdotes fazendo concursos públicos
para serem professores: é o caso do Rio de Janeiro, que, sabidamente, há
décadas é governado por evangélicos (de direita ou de esquerda, tanto faz). É
certo que também há estados que definiram o ensino religioso em bases laicas,
como no caso exemplar de São Paulo. Entre esses dois extremos, as unidades da
Federação definiram diretrizes “pluriconfessionais”, sempre com a restrição que
veda o proselitismo; todavia, o mais das vezes essa limitação é pura letra
morta, com padres e pastores (ou seus epígonos) fazendo pregação em sala de
aula à custa do erário. Isso, é claro, para não falar dos crucifixos
onipresentes nas escolas, nas orações (cristãs) antes das aulas etc. Nesses
termos, a ressalva de que o ensino religioso não deve ser proselitista deve ser
entendida meramente como uma forma de os ministros do STF terem um mínimo de
paz de espírito enquanto violam claramente a laicidade do Estado.
Antes de prosseguirmos na argumentação mais teórica, convém
notar que o caráter confessional do ensino religioso exigirá dos estados e
municípios sacerdotes de todas as religiões professadas pelos alunos. Ora, isso
é completamente impraticável: nenhuma escola poderá perder tempo procurando
sacerdotes de cada uma das religiões dos seus alunos. Problemas
arquiconhecidos, como o absenteísmo dos professores, as questões salariais, a
violência nas escolas, as instalações precárias, o baixo aproveitamento dos
alunos e muitos outros ocupam à exaustão o dia a dia das escolas: a procura de
sacerdotes é um incômodo que diretores e pedagogos das escolas não quererão
ter. A consequência disso, sem dúvida, é que buscarão apenas dois ou três
sacerdotes, provavelmente um padre católico e um pastor de alguma seita
evangélica: alunos de outras religiões (incluindo aí os que não têm religião)
serão forçados a aceitar a solução imposta pelo menor esforço. Esses
sacerdotes, além disso, a despeito de suas divergências teológicas,
organizar-se-ão em associações de professores de Ensino Religioso e passarão a
atuar como grupos de pressão no sentido de tornarem-se funcionários públicos,
como ocorre no Rio de Janeiro.
Do ponto de vista pedagógico, mesmo que seja “facultativo” o
ensino religioso, e mesmo que se diga que ele não deve ser proselitista, o fato
é que ele criará uma distinção profundamente danosa para os alunos, geradora de
exclusão e preconceito – exatamente o oposto do que se pretende para a escola,
pública ou não. Por que terá esses efeitos? Porque, como a maioria dos alunos é
(nominalmente) cristã, alunos que professam outras doutrinas não participarão
das atividades da maioria: se a preocupação com a aceitação coletiva é grande
entre os adultos, entre crianças e adolescentes é gigantesca. Quem não
participar das atividades da maioria será e sentir-se-á excluído, percebido
como alguém “de fora”, que não participa da coletividade que é a turma. Em vez
de integrar, haverá exclusão; para evitar essa exclusão, muitos alunos fingirão
professar uma fé que, na verdade, não professam: hipocrisia institucionalizada
e incentivada pelo Estado. Isso não é uma simples hipótese: é prática corrente
em escolas do país inteiro; notícias de discriminação religiosa realizada entre
alunos – quando não estimulada francamente pelos professores – são lidas todos
os dias nos meios de comunicação.
Voltemos à argumentação dos ministros do STF. Os defensores
do ensino religioso confessional consideraram que o modelo laico não seria
apropriado devido a duas ordens gerais de motivos sociológicos: em termos
históricos, o catolicismo teria tido uma importância central na formação do
país, devendo-se valorizar e respeitar esse legado; em termos atuais, a maioria
dos brasileiros é cristã ou, de qualquer maneira, professa alguma religião.
Esses dois fatos estão vinculados e, sem dúvida, são verdadeiros: o problema consiste
em deduzir deles qualquer política pública. Alguns ministros do STF disseram
que a laicidade não pode ser entendida como a proibição das manifestações
públicas dos valores religiosos; daí a defesa do ensino religioso confessional.
Ora, de fato, a laicidade não proíbe a manifestação pública
dos valores e das práticas religiosas; bem ao contrário, é precisamente a
laicidade que garante a liberdade às religiões quaisquer para manifestarem-se
em público. A história do Brasil – que foi usada como esteio para a defesa
canhestra do ensino religioso confessional – é a maior prova de que a laicidade
é a garantia das liberdades: a primeira Constituição do Brasil foi a imperial,
de 1824. Nela afirmava-se o catolicismo como a religião oficial, permitindo-se
o exercício privado de outras religiões. O que significa o “exercício privado”
de outras religiões? Os adeptos de outras crenças poderiam realizar seus cultos
em suas casas; até poderiam ter seus próprios templos, desde que esses templos
não tivessem o “aspecto exterior” de templos, ou seja, desde que não
rivalizassem com as igrejas católicas. Além disso, os registros de nascimento,
casamento e óbito, bem como a administração dos cemitérios, cabiam todos à
Igreja Católica; apenas católicos podiam ser registrados como nascidos, casados
e mortos, além de enterrados em cemitérios oficiais.
Valorizar a história não é o mesmo que a aceitar
passivamente, como dão a entender os ministros da mais alta corte do país. Um
exemplo banal, ainda que polêmico: em suas obras infantis, Monteiro Lobato
expressou, por meio da Emília, ideias e valores que hoje chamamos de
preconceituosas, denegrindo Dona Benta, que era negra. Embora haja diversos
movimentos sociais favoráveis à exclusão desses belos livros das bibliotecas
públicas, ou seja, a favor da censura, o mais correto é manter esses livros nas
bibliotecas e nos currículos, ao mesmo tempo em que, nas salas de aula e nos
textos que circulam pela sociedade, faz-se a contextualização das palavras da
Emília, o reparo de que são palavras injuriosas etc. Aliás, o mesmo pode ser
dito a respeito da Bíblia: nela há dezenas de passagens assustadoras, como
apostas entre Deus e o diabo, o elogio da escravidão, do genocídio, da venda de
filhos, do assassinato de primogênitos etc.; ou, então, com prescrições que
hoje consideramos risíveis, como a impossibilidade de comer frutos do mar;
mesmo as supostas mensagens de amor do essênio Jesus Cristo eram dirigidas aos
seus irmãos judeus, tendo sido necessário que Paulo de Tarso (re)inventasse o
mito de Cristo para que sua religião fosse propagada. Em suma: respeitar o
papel histórico de Monteiro Lobato ou até da Bíblia e do catolicismo não
equivale a aceitar suas observações como válidas perenemente.
O argumento demográfico é o mais perigoso e o mais
especioso. Afirmar que a maioria da população brasileira é cristã, ou, de modo
equivalente, que ela tem crenças “religiosas” é o primeiro passo para acabar
com a laicidade, ou seja, para instituir a religião oficial de Estado: esse é o
primeiro – na verdade, o único – argumento de quem é contrário à laicidade. Mas
esse argumento estabelece que o mero peso numérico de uma determinada crença
torna aceitável que ela seja imposta a todos os indivíduos em matérias de foro
íntimo. Mais do que isso: esse raciocínio estabelece que o mero peso numérico
de uma concepção estabelece a verdade, a realidade dessa concepção. Dessa
forma, porque caso (digamos) 99% dos brasileiros acreditem que todas as maçãs são
rosa-choque, o 1% restante também deverá necessariamente acreditar nisso. Em
outras palavras, são as liberdades de pensamento e de expressão que estão em
jogo aí: não é precisamente esse um dos argumentos do movimento “Escola sem
Partido” (o fato contraditório de que esse movimento é favorável ao ensino
religioso confessional diz bastante a seu respeito)? Afastando-nos um pouco do
Brasil: não é exatamente esse o raciocínio dos líderes muçulmanos do Estado
Islâmico, da Arábia Saudita e de outros lugares?
Valorizar a história não é o mesmo que a aceitar passivamente, como dão a entender os ministros da mais alta corte do país
Assim, o que subjaz ao “argumento demográfico” é uma
concepção profundamente equivocada do que significa o “governo pela opinião pública”.
Essa concepção postula que a “opinião pública” é a mera soma aritmética dos
humores individuais a respeito de algum assunto, em algum momento – e que tal
soma tem valor normativo. Diga-se de passagem, esse mesmo raciocínio serviu de
base para a recente e desastrada iniciativa de um ministro do Supremo Tribunal
de Justiça para avaliar, na internet (!), o apoio popular a uma eventual
intervenção militar na República.
Justamente ao contrário, o “governo pela opinião pública”
consiste em que as ações dos governantes têm de se pautar pela moralidade
humana e pela busca do bem comum, com políticas e valores universais,
universalistas e includentes, assim como pelo diálogo com a sociedade. Sem
dúvida que o escrutínio público contínuo das ações governamentais integra o
“governo da opinião pública”, mas, como estamos vendo, a parte mais importante
deste conceito consiste em que as diretrizes políticas dele decorrentes não
ficam à mercê de humores momentâneos das disputas políticas, nem consistem em
versões gigantescas do assembleísmo. A crítica à laicidade é feita justamente
por intelectuais e grupos que, embora digam-se “populares” ou “progressistas”,
na verdade são excludentes, particularistas e que buscam a obtenção do poder,
para imporem seus valores.
Assim, a laicidade é um dos parâmetros fundamentais do
“governo pela opinião pública”; como observamos antes, ela garante as
liberdades de pensamento e de expressão e evita que questões de foro íntimo
sejam impostas pelo Estado e/ou decididas pelo peso numérico dos demais
concidadãos. Não é à toa que, integrando o artigo 19 da Constituição Federal de
1988, ela é uma cláusula pétrea da nossa pólis.
Face a isso, é claro que o ideal seria simplesmente suprimir
da Constituição (e, por extensão, da LDB) a exigência de ensino religioso nos
currículos das escolas públicas; mas, como isso é virtualmente impossível no
Brasil atual, a solução menos daninha é, ou seria, implantar um ensino
religioso laico. Como o STF decidiu em contrário, tendo à frente no
clericalismo de Estado os ministros Cármen Lúcia e Gilmar Mendes, as
perspectivas sociais e políticas que se descortinam para o país são as piores
possíveis: é um completo desastre que se anuncia.
Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Teoria Política e
sociólogo da UFPR.
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