15 novembro 2021

Diário de Caratinga - entrevista sobre Positivismo e República

O jornal Diário de Caratinga, do interior de Minas Gerais, fez uma entrevista por escrito comigo sobre o Positivismo e a República, para ser publicado em sua edição de final de semana, de 13 e 14 de novembro de 2021. Realizada pelo jornalista José Horta da Silva, essa longa entrevista foi publicada na íntegra; eu reproduzo-a abaixo.


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O que é Positivismo?

Essa pergunta é simples mas exige uma resposta que pode ser um pouco complexa.

Ele é uma filosofia, uma política e uma religião, ou seja, é um sistema de pensamento que busca explicar o conjunto do mundo e do ser humano e, a partir daí, busca orientar as condutas humanas (individuais e coletivas). O Positivismo baseia-se na realidade e na importância do amor e do altruísmo para orientar a conduta humana; como precisamos conhecer a realidade para satisfazer as nossas necessidades, o conhecimento científico é a base desse conhecimento. Isso tudo é sintetizado na Religião da Humanidade, que é uma religião humanista, secular e laica, que afasta o absoluto e busca a fraternidade universal.

 

Como o Positivismo influenciou a Proclamação da República?

O Positivismo influenciou pelo menos de duas maneiras.

Por um lado, ele criou um forte ambiente progressista, modernizador, secular, laico, que propunha a ultrapassagem dos traços profundamente atrasados da sociedade brasileira do século XIX, como a monarquia e a sua base social, política e econômica, a escravidão.

Por outro lado, o positivista Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) era professor de matemática na Escola Militar; suas aulas eram consideradas excelentes, por seu estilo e por sua profundidade filosófica. Além disso, o Positivismo afirma que a ciência pela ciência é imoral, ou seja, que a ciência tem que ter uma preocupação, uma orientação social. Tudo isso foi reconhecido por seus alunos (entre os quais estavam, por exemplo, Rondon e Euclides da Cunha) como importante e correto, o que os levou a empolgarem-se politicamente; naquela época, a militância social e política era bastante clara: contra a escravidão e a favor da república.

Aqui é necessário narrar vários fatores daquela época. Após a abolição da escravidão em 1888, as pressões em favor da república cresceram muito, devido a vários motivos. Em parte porque muitos reconheciam que a monarquia sacraliza uma sociedade atrasada, baseada em privilégios de casta, isto é, vinculados ao nascimento, e que deveria ser substituída por uma sociedade de isonomia (igualdade perante a lei), socialmente inclusiva e que valorize o mérito, não o berço. Vinculado a isso está o fato de que a monarquia nunca foi solidamente implantada no Brasil; havia um certo respeito pela figura de d. Pedro II, mas a monarquia em si era vista em termos meramente instrumentais: não havia uma adesão à monarquia como um princípio moral a ser seguido. O fato de a monarquia ter-se baseado durante toda a sua duração na escravidão indicava o quanto ela era retrógrada, assim como a ausência de indústrias no Brasil e a falta de trabalho livre (e da dignidade do trabalho e dos trabalhadores). A princesa Isabel era clericalista e, ainda por cima, era casada com um francês: mesmo quem não era republicano tinha medo do possível terceiro reinado (o possível futuro reinado da princesa Isabel), que viam como retrógrado ou até reacionário. O excessivo centralismo monárquico, em prejuízo das autonomias provinciais (isto é, dos estados), era bastante criticado, como nos casos de São Paulo e, ainda mais, do Rio Grande do Sul. Da mesma forma, os antigos donos de escravos, principalmente da atual região Sudeste (São Paulo em particular) ficaram muito irritados com o fim da escravidão, ou seja, com seus prejuízos econômicos.

Há outros fatores, mas importa também indicar a situação dos militares. Havia também um forte ressentimento dos militares contra a monarquia: soldos baixos, desprestígio político e social, falta de reconhecimento pelos seus esforços na violentíssima Guerra da Tríplice Aliança (“Guerra do Paraguai”). A Guerra da Tríplice Aliança foi uma aventura militar imperialista do Brasil contra o Paraguai e a favor do intervencionismo brasileiro nos países platinos, especialmente no Uruguai. Durante o conflito os soldados brasileiros travaram contato com as repúblicas platinas livres, isto é, repúblicas sem escravidão; isso os impressionou muito, bem como a resistência heróica dos cidadãos livres do Paraguai e as promessas (cumpridas pela metade) de alforria dos soldados brasileiros escravos. Por fim, a guerra acabou com a caçada a Solano López, ordenada pelo próprio d. Pedro II ao Conde d'Eu, consorte da princesa Isabel.

Na década de 1880 os militares quiseram expressar-se politicamente e foram seguidamente reprimidos, na chamada “Questão militar”; em um regime que se baseava no militarismo mas que se proclamava civilista, isso foi fatal.

Enfim: em 1887 foi fundado o Clube Militar, com Deodoro da Fonseca como presidente e Benjamin Constant como vice-presidente; eles eram os dois militares fora do governo que gozavam de maior prestígio, representantes das duas principais alas dos militares, os vinculados à vida na caserna (Deodoro) e os que buscavam fundamentos científicos para sua atuação (Benjamin Constant). Com isso os militares passaram a manifestar-se politicamente de maneira organizada, atuando nas duas principais questões da época, a abolição e a república. Em 1887 eles recusaram-se a caçar os escravos fugitivos; depois disso, a pressão política pela república aumentou cada vez mais e Benjamin Constant tornou-se o foco dessas pressões.

Embora pessoalmente Benjamin Constant não quisesse participar das conspirações, naquela conjuntura ele era realmente o foco das atenções e um líder natural; buscando evitar o caudilhismo, o militarismo na política e a violência, ele aceitou. Com isso, ele convenceu Deodoro a participar da ação e, juntamente com outros líderes militares e civis, planejavam proclamar a república na segunda quinzena de novembro. Entretanto, os acontecimentos precipitaram-se e na madrugada de 15 de novembro houve, afinal, a proclamação.

Essas várias críticas são importantes também porque atualmente há uma expressiva mas estranha revalorização da monarquia e, em particular, de d. Pedro II. Essa revalorização é bastante romântica e deixa de lado todos os problemas criados e mantidos pela monarquia (e pelo próprio d. Pedro II).

 

Ainda sobre a questão da influência do Positivismo na Proclamação da República, muito se fala do lema “O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”. Porque 'amor' ficou fora da bandeira nacional?

Essa é uma boa questão.

A atual bandeira nacional foi tornada oficial em 19 de novembro de 1889, ou seja, apenas quatro dias após a proclamação. O esboço é da autoria de Raimundo Teixeira Mendes (fundador e vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil) e a sua pintura ficou a cargo do também positivista Décio Villares, importante pintor e escultor da I República.

A frase central do Positivismo é um pouco diferente da que você indicou; é assim: “O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”. Essa é a fórmula religiosa mais importante do Positivismo; já o “Ordem e Progresso” corresponde a uma fórmula política, que indica os anseios de todos os cidadãos por ordem e progresso, isto é, por uma ordem que propicie o progresso e um progresso que respeite a ordem (é claro que, nesse sentido, a “ordem” não pode ser estática). Tanto a fórmula “O amor por princípio...” quanto o “Ordem e Progresso” foram propostas desde o início por Augusto Comte, fundador do Positivismo, em suas obras; o que Teixeira Mendes fez foi seguir as indicações de Comte para a bandeira do Brasil, em que há a permanência da sociedade brasileira (com o fundo verde e o losango amarelo, que já estavam na bandeira do império) e também a evolução nacional (com a esfera azul e a faixa branca com o “Ordem e Progresso” em letras verdes).

Em outras palavras, na bandeira o “amor” não ficou de fora, pois o “Ordem e Progresso” é um programa político e não religioso.

Dito isso, eu tenho que admitir que vejo com grande simpatia as propostas de incluir o “amor” na bandeira nacional. O único erro de tais propostas é considerar que Teixeira Mendes teria “errado”, teria “alterado” as propostas originais de Comte ao deixar lado – querendo com isso dar-se a impressão de que Teixeira Mendes teria desprezado – o “amor”.

 

Hoje é muito comentada a questão o Estado Laico, mas o Positivismo já tratava dessa separação do Estado com a Religião. Poderia nos explicar?

Um dos princípios políticos mais elementares do Positivismo é a separação entre o poder Temporal e o poder Espiritual, isto é, entre o governo e todos aqueles que emitem opiniões. Isso significa que o Estado não pode ter religião oficial, ou seja, não é aceitável que o Estado imponha alguma doutrina sobre o conjunto da sociedade. Se pensarmos na situação do império brasileiro, o catolicismo era a religião oficial do Estado: havia uma limitada tolerância, em que os protestantismos eram aceitos (em grande parte devido à imigração de alemãoes e suíços para o Rio de Janeiro e para a atual região Sul) e também os positivistas; mas as religiões de origem africana, o espiritismo e muitas outras eram simplesmente proibidas e tratadas com base em prisões e espancamentos. (Os templos não católicos eram permitidos, desde que suas fachadas não exibissem o aspecto de templo.) Além disso, só eram aceitos como cidadãos brasileiros quem professasse o catolicismo. Algo muito parecido ocorre ainda hoje na Inglaterra: como a religião oficial de Estado lá é o anglicanismo (e a rainha é a chefe da igreja), somente anglicanos podem ser primeiros-ministros.

A separação entre os dois poderes também implica, inversamente, que nenhuma doutrina pode valer-se do Estado para sua promoção, para seu financiamento. Isso significa que é inaceitável que as igrejas (como instituições e como prédios físicos) usem o Estado para financiarem-se; ou seja, os impostos não podem ser empregados na promoção das doutrinas. Isso vale tanto para as teologias quanto para as doutrinas metafísicas quanto para as doutrinas científicas.

A separação entre igreja e Estado foi uma das primeiras medidas adotadas pela República, dois meses após a proclamação, por meio do Decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890. A proposta inicial era de Demétrio Ribeiro (positivista gaúcho) e previa a separação entre igreja e Estado, o fim do catolicismo como religião oficial, as liberdades de consciência, expressão e organização, a instituição dos registros civis de nascimento, casamento e morte e a manutenção dos salários dos sacerdotes católicos que até então eram pagos pelo Estado. O texto que finalmente foi aprovado é da lavra de Rui Barbosa e, além dos dispositivos iniciais, apresenta um forte caráter anticlericalista (isto é, contrário às igrejas, em particular a católica) – anticlericalismo que era ausente do projeto positivista.

Vale notar que a separação entre igreja e Estado, com as liberdades civis, era pedida fazia muitos anos por muitos grupos políticos e que, após 1890, não houve nenhuma reação popular contra ela. A igreja católica reclamou da perda dos seus privilégios, mas, anos depois, reconheceu que a laicidade do Estado deu-lhe a liberdade para reorganizar-se; a partir de 1916, com a proposta de “neocristandade” de Sebastião Leme uma nova ofensiva sobre o Estado teve início e foi coroada de êxito em 1931, quando esse cardeal intimou Getúlio Vargas, na inauguração do Cristo Redentor, a apoiar a igreja para que Vargas tivesse apoio político (a Revolução de 1930 ocorrera um pouco antes e Getúlio Vargas precisava muito de apoio).

 

Algumas correntes filosóficas costumam marcar um determinado período. E hoje, ainda podemos notar traços do Positivismo no mundo?

Sim e não. É bem verdade que o período de maior importância do Positivismo no Brasil e no mundo foi entre o final do século XIX e o início do século XX – digamos, entre 1870 e 1914. De lá para cá muitas outras correntes políticas, sociais e filosóficas surgiram, a maior parte delas negando o Positivismo, seja por meio do irracionalismo, seja por meio do culto à violência, seja por meio da busca do absoluto, seja por meio do cientificismo. Além disso, o período que vai da I Guerra ao fim da II Guerra foi muito difícil para o mundo e para a Europa em particular; esse período exterminou as elites sociais européias e no fim marcou a ruína da Europa e do mundo legado pelo século XIX como parâmetros para o mundo. O que surgiu com clareza após a II Guerra foi um mundo realmente diferente, com a hegemonia dos EUA – e da sua superficialidade filosófica – e o conflito da Guerra Fria, seguidos pela descolonização da Ásia e da África e a crítica correta e cada vez maior ao colonialismo ocidental. Embora o Positivismo não seja eurocêntrico, é certo que o declínio da Europa teve um impacto poderoso sobre seus destinos. Em termos intelectuais, o século XX apresentou uma série de correntes que negam o Positivismo: as filosofias do entre-guerras, como os irracionalismos dadaísta e existencialista, o culto à violência próprio aos fascismos, os totalitarismos nazi-soviéticos; depois da II Guerra, ainda o totalitarismo soviético, o liberalismo materialista dos EUA, as críticas “descoloniais”, o pós-modernismo inaugurado em 1968, o neoliberalismo vitorioso a partir da década de 1980 e, mais recentemente, as políticas identitárias antiuniversalistas desde os anos 1990...

Mas, por outro lado, outras tendências políticas, sociais e filosóficas retomam valores claramente positivistas: políticas sociais combinadas com as liberdades, como nos casos do Welfare State e/ou da proclamação presente em nossa Constituição Federal de 1988 que a propriedade privada tem que ter objetivos sociais (concepções que foram resgatadas no Hemisfério Norte depois da crise de 2008 e, no Brasil e no mundo em geral, com a atual pandemia); o pacifismo cada vez mais generalizado; a preocupação cada vez maior com as gerações futuras, na forma do ambientalismo; o respeito à autonomia dos povos indígenas; a busca de vidas humanas plenas de sentido mas seculares, com a afirmação generalizada da importância dos sentimentos na vida humana... mesmo o desenvolvimento de práticas religiosas seculares nos EUA e na Europa vai na direção do Positivismo.

É certo que as tendências positivas indicadas acima têm muitas lacunas e muitas vezes são pouco sistemáticas; mas, no conjunto, elas realizam o que o Positivismo afirma como certo e como o futuro do ser humano. Em outras palavras: as tendências acima indicam que o Positivismo está certo, embora a doutrina positivista em si muitas vezes não seja seguida.

Sobre o legado do Positivismo hoje: há uma importante e crescente atividade positivista no Rio Grande do Sul, na igreja positivista de lá (e que fica em Porto Alegre).

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