No dia 10 de novembro de 2025, o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o nosso artigo intitulado "Ainda a Operação Contenção: reflexões sobre a cidadania".
O original pode ser lido aqui: https://monitormercantil.com.br/ainda-a-operacao-contencao-reflexoes-sobre-a-cidadania/.
Reproduzimos abaixo o texto.
Vale notar que o texto abaixo é uma versão muito resumida da prédica positiva de 28 de Descartes de 171 (4.11.2025), disponível aqui e aqui.
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| Retirada de corpos na Operação Contenção (foto de Tomaz Silva, ABr) |
Ainda a Operação Contenção: reflexões sobre a cidadania
Fascistas são retrógrados e totalmente contrários aos hábitos modernos: uma análise sociológica da Operação Contenção. Por Gustavo Biscaia de Lacerda.
Embora já se tenham passado duas semanas após a escandalosa Operação Contenção, realizada em favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro em 28/10/2025, cremos que podemos ainda a comentar. Na verdade, mais que podemos, cremos que devemos comentá-la, tal a barbárie ali cometida. Além disso, embora tenhamos boas notícias desde então (pensamos no início da 30ª Conferência sobre o Clima da Organização das Nações Unidas, em Belém do Pará), o fato é que se passaram apenas duas semanas e não podemos perder de vista os graves problemas envolvidos no episódio.
O que desejamos aqui é refletir um pouco sobre o tipo de polícia de que precisamos, a partir de considerações históricas, sociológicas e filosóficas. É claro que serão apenas indicações muito gerais.
Antes de mais nada, é importante reafirmarmos: a Operação Contenção foi escandalosa em si mesma, e a afirmação subsequente do governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, de que ela, “com exceção da morte dos quatro policiais, foi um sucesso”, é igualmente escandalosa.
A justificativa oficial da operação, que mobilizou um efetivo policial de 2.500 homens, foi a execução de mandados de prisão de vários líderes do Comando Vermelho; com isso, nominalmente se desejava estrangular a liderança da organização e impedir que ela avançasse sobre territórios de favelas nos complexos do Alemão e da Penha.
A “contenção” da operação consistia em evitar que o Comando Vermelho avançasse sobre territórios controlados por milícias (ou seja, por policiais corruptos). Os mandados não foram executados, os líderes buscados fugiram, e 117 civis foram executados, além de quatro policiais.
Argumentou-se depois que muitos dos civis mortos eram criminosos com ficha na polícia e/ou mandados de prisão; entretanto, não apenas o objetivo da Operação Contenção não era ir atrás desses peixes pequenos, como, de qualquer maneira, a polícia não pode agir tendo em vista a execução da população que supostamente deveria proteger.
Assim, falar que muitos dos assassinados eram criminosos é uma forma cruel de evitar a conclusão evidente: a Operação foi um fracasso retumbante e, mais uma vez, afirmou-se o princípio de que, no Brasil, os pobres e favelados são culpados mesmo que se prove o contrário, sujeitos à pena de morte com execução sumária.
(Para os pobres e favelados vale a máxima do deputado-delegado Sivuca, “bandido bom é bandido morto”; os criminosos ricos que atuam nas avenidas Faria Lima e Rio Branco não são “bandidos”, não são julgados, não são presos e muito menos são executados.)
Dito isso, vale a pena refletirmos sobre porque consideramos a Operação Contenção uma barbárie. O melhor nesse caso (como em muitos outros) é retomarmos as reflexões históricas de Augusto Comte, o fundador da Sociologia.
Comte contrapunha a sociabilidade moderna à sociabilidade antiga. A “sociabilidade” são as formas como as pessoas se relacionam entre si e aos objetivos gerais das sociedades. Os “antigos” são principalmente os antigos gregos e romanos, além de outros povos em situações sociológicas semelhantes; já os “modernos” somos inicialmente os ocidentais e, a partir disso, os povos influenciados pelos hábitos desenvolvidos depois da Idade Média.
A sociabilidade antiga baseava-se na guerra, ou seja, na violência sistemática; os critérios de distinção social em tais sociedades eram militares (honra, coragem, força física); a conquista política e territorial tinha primazia sobre a produção econômica sistemática, que, não por acaso, era considerada como atividade subalterna e/ou degradante. A simplicidade das atividades militares tornava muito fácil a avaliação dos méritos individuais; o caráter militar dessa sociabilidade implica sempre que uma pátria dominará as demais, seja por meio de dominação direta, seja por meio de hegemonia (e hegemonia militar, em particular).
Já a sociabilidade moderna é pacífica e industrial, baseada em relações fraternas, na liberdade e na dignidade humana. Como as operações sociais são complicadas e exigem a intermediação de inúmeros agentes e procedimentos, a avaliação dos méritos individuais é muito mais difícil; os méritos individuais e coletivos são mais variados mas também menos definidos. A riqueza é produzida de maneira compartilhada, seja entre indivíduos e classes, seja entre países; isso implica responsabilidade e confiança mútuas, da mesma forma que exige pátrias pequenas.
Até a modernidade, a ordem civil era mantida pelos exércitos, que tinham uma atuação dupla (interna e externa); mas como os exércitos servem para matar e destruir, sua atividade interna era (como é) sempre violenta. Em contraposição, a polícia é uma instituição moderna, dedicada à manutenção da ordem civil; em clara contraposição aos exércitos, a polícia não emprega prioritariamente a violência em suas atividades.
De maneira ideal e sintomática, a noção de polícia cidadã (e não violenta) foi proposta pelo primeiro-ministro inglês Robert Peel, em 1829, quando ele criou a Scotland Yard. Assim, a polícia foi criada como consequência da mudança das sociabilidades, claramente no sentido de que a atuação da polícia não pode ser militaresca, mas deve ser cidadã.
A polícia cidadã tem que atuar pautada pelo respeito à dignidade humana e às liberdades, pela preservação da vida e do patrimônio. Além disso, mantendo um caráter social, a polícia cidadã deve zelar, proteger e buscar a prosperidade, em particular do proletariado. Evidentemente, o caráter cidadão da polícia implica que as ações violentas devem ser substituídas pelas chamadas “ações de inteligência”, sendo que as penalidades devem concentrar-se em aspectos educativos.
Ações como a Operação Contenção são entendidas como bárbaras porque são retrógradas, que aplicam hoje parâmetros arcaicos e ultrapassados, que devem permanecer na lata do lixo ou no museu da história. Os antigos (na verdade, até depois da Idade Média) consideravam que chacinas eram terríveis, mas, apesar de tudo, eram fatos da vida: para chorar e lamentar, mas inescapáveis.
Ora, exatamente porque a sociabilidade moderna desenvolveu-se e aprofundou-se é que consideramos que as chacinas são bárbaras e totalmente inaceitáveis. A Operação Contenção foi exemplar: ela representou o exato oposto de todos os parâmetros da polícia cidadã.
A celebração da chacina da Operação Contenção, da parte do governador Cláudio Castro e de muitos outros políticos, evidencia o quanto eles e os fascistas são retrógrados e totalmente contrários aos verdadeiros hábitos modernos.
Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

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