26 março 2024

Que é a "ditadura republicana"?

No dia 2 de Arquimedes de 170 (26.3.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, agora em sua décima conferência (dedicada ao regime privado).

No sermão abordamos a proposta de "ditadura republicana".

Antes do sermão, comentamos o livro O homem e sua ficha, do positivista cearense Jesus Pereira Soares (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1988), que é um belo e interessante relato e profissão de fé do autor como servidor público inspirado e orientado pelo Positivismo e como integrante da assessoria econômica da Presidência da República nos anos 1940 e 1950.


Fonte: https://bonifacio.net.br/interpretes-do-brasil-assessoria-economica-do-segundo-governo-vargas/

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/4fjrm) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/wkWus). O sermão começou em 58 min 40 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

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O que é a ditadura republicana? 

-        Como sabemos, quando se fala popularmente no Positivismo, pensa-se de modo geral em alguns chavões, com freqüência mal explicados ou simplesmente errados: a lei dos três estados, o “Ordem e Progresso”, alguns militares positivistas – e, no que depende dos liberais, também a “ditadura republicana”

o   A associação contemporânea da palavra “ditadura” com autoritarismos, com violência, com truculência (e, não por acaso, com os militares e com a violência policial), torna o conceito de “ditadura republicana” algo bastante delicado de ser tratado

o   De qualquer maneira, há algumas semanas um interessado no Positivismo pediu que tratássemos desse tema: assim, aqui estamos[1]

-        Para limparmos o terreno, antes de começarmos a tratar do que é a ditadura republicana, é importante sabermos o que ela não é[2]

o   A ditadura republicana não é um autoritarismo

§  Pode não parecer muito evidente, mas Augusto Comte não usava a palavra “autoritarismo”, que é de uso bastante contemporâneo (posterior à II Guerra Mundial)

§  Para nós, “autoritarismo” é um regime político moderno, mantido pela força, isto é, pela violência militar, policial e civil-burocrática

·         O autoritarismo, nesse sentido, equivale à “ditadura”, e é oposto à “democracia”

·         A “democracia”, por sua vez, consiste em um regime de liberdades, em que o governo obedece à “vontade popular”; em que o governo é eleito periodicamente e em que a atuação do Estado é limitada tanto por uma carta constitucional quanto pela “separação dos poderes”

§  Seguindo a tradição filosófico-política vigente no século XIX, os regimes políticos autoritários, ou melhor, os regimes políticos negativos para Augusto Comte eram a tirania, o despotismo, o absolutismo político e a opressão

·         As características desses regimes políticos negativos eram o emprego político da violência, a ausência de liberdades, a imposição de crenças e também um caráter retrógrado geral – e a união dos dois poderes (Temporal e Espiritual)

§  Augusto Comte, na Política positiva (1851-1854), emprega habitualmente a expressão “ditadura” em um sentido neutro, ou seja, como sinônima de “governo” ou de “regime político”

·         Assim, há ditaduras progressistas, ditaduras liberais (no sentido de que apóiam as liberdades), ditaduras pacíficas; inversamente, há ditaduras retrógradas, ditaduras violentas, ditaduras militares etc.

·         Entre o rol de ditaduras, há a “ditadura republicana”

·         A palavra ditadura é empregada por Augusto Comte no sentido de “ditar”, isto é, de indicar as regras e as leis – ou seja, no sentido de “governar”

-        A expressão “ditadura” tem origem romana; ela consistia em uma magistratura excepcional[3]

o   (As magistraturas eram os cargos públicos de Roma)

o   Na República romana, em situações de grande perigo público – como no caso de guerras em que estivessem à beira da derrota, ou em caso de invasões do seu território, ou mesmo no caso de graves distúrbios civis –, escolhia-se um “ditador”

o   O ditador tinha um mandato fixo (seis meses, prorrogáveis por mais seis) e seus poderes eram os mais amplos possíveis (vida e morte, decisões com aplicação imediata, justiça irrecorrível), mas não eram ilimitados: ele não podia mudar as instituições fundamentais da República

-        Até o final do século XIX, a palavra ditadura tinha um sentido neutro ou mesmo positivo[4]; foi com o comunismo que isso mudou, seja com a proposta de “ditadura do proletariado” (cujo sentido de “autoritarismo do proletariado” nunca foi fingido por Marx), seja com a Revolução Russa em 1917

o   A ditadura nazista (1933-1945) foi a pá de cal final sobre os sentidos neutros ou positivos para a palavra “ditadura”

o   Após a II Guerra Mundial, os estadunidenses popularizaram a “ditadura” como conceito antinômico em relação à “democracia”, fosse para defender a sua democracia no âmbito da Guerra Fria, fosse para caracterizar as ditaduras opostas (nazista e/ou soviética)

-        Agora que vimos o que a ditadura republicana não é, podemos com tranqüilidade passar para o que ele é

-        Ainda com o objetivo de limparmos o terreno, convém apresentarmos alguns aspectos gerais da ditadura republicana, antes de abordarmos seus elementos específicos[5]

o   É um regime de liberdades: liberdades civis (ir e vir, devido processo legal, habeas corpus) e, ainda mais, de plenas liberdades de consciência, de expressão e de associação

o   Considerando a separação dos dois poderes, é um regime de governo limitado

o   É o regime político próprio à sociocracia, isto é, à organização social positiva, baseada na prevalência da opinião pública

o   Ainda vinculados à sociocracia estão os elementos do pacifismo (e da rejeição da violência), do fim do militarismo, da confiança mútua (entre o governo e os cidadãos; entre os cidadãos entre si), da responsabilidade social e política, dos estados de pequena extensão, da afirmação das mátrias, da afirmação da Humanidade sobre as pátrias/mátrias

-        Para entendermos a ditadura republicana, temos que ter clareza e lembrar que, assim como não se pode ter o espírito absoluto na filosofia, não se pode ter o espírito absoluto na política

o   Assim, não faz sentido a pesquisa puramente abstrata e de caráter teológico-metafísico sobre “o melhor tipo de governo”: cada sociedade tem seu tipo adequado de governo

o   Durante a Idade Média e, de modo geral, durante os períodos teológicos, o governo foi absoluto, no sentido de que suas ordens eram indiscutíveis; além disso, o governante era visto como o representante da divindade na Terra

o   Em uma sociedade positiva e relativa, as decisões do governo têm que ser passíveis de exame e de crítica pública; o governo é o agente do interesse público; a importância da confiança pública e da responsabilidade social é plenamente reconhecida e valorizada

o   No meio do caminho entre a teologia e a positividade há a metafísica – e a teoria política metafísica atualmente é liberal e democrática

§  Lembremos: a metafísica é destruidora, dissolvente, “crítica”; em termos políticos, uma outra característica da metafísica é considerar como permanente instituições puramente transitórias (em particular aquelas destinadas a destruir as instituições anteriores)

§  O aspecto mais claramente metafísico no liberalismo é a desconfiança radical em relação ao poder: essa desconfiança vincula-se à decadência dos poderes antigos, que, após a Idade Média, passaram a tornar-se desregulados e opressivos

·         A idéia, e até o sentimento, de que o poder sempre será ruim está na base dos raciocínios dos liberais (políticos e/ou econômicos) e apóia o individualismo liberal

§  No que se refere à metafísica democrática, ela apresenta-se com clareza ao considerarmos a concepção da “soberania popular”

·         Entendida de maneira positiva (ou melhor, positivada), ela pode ser entendida como o governo da opinião pública

·         Nos textos de Rousseau, a soberania popular é a consideração de que o “povo” sempre sabe tudo, sempre sabe o que quer, nunca erra e exige que todos creiam em uma religião civil

o   A ditadura republicana surge como uma instituição intermediária e temporária entre a fase atual, da metafísica democrático-liberal, e a fase sociocrática plenamente positiva

-        Agora que limpamos o terreno, demos algumas indicações elementares sobre a política positiva e indicamos o aspecto de transição da ditadura republicana, torna-se mais simples, rápido e fácil apresentar seus elementos específicos[6]:

o   A ditadura republicana é um regime político republicano, em que o bem comum (“res publica”) é o parâmetro fundamental, afirmado pela opinião pública, e em que as liberdades devem ser, sempre, garantidas

o   Em particular, a separação entre os dois poderes (Temporal e Espiritual) deve ser cuidadosamente mantida: como o objetivo da ditadura republicana é realizar a transição, a sua atuação deve ser no sentido de garantir as condições sociais e políticas próprias à transição

o   Em que consiste a transição? A transição consiste no restabelecimento da ordem espiritual, ou seja, (1) no restabelecimento de um poder espiritual legítimo, verdadeiro e adaptado à sociedade e, portanto, (2) no estabelecimento de um poder espiritual positivo

o   O papel da ditadura republicana, então, é o de manter a ordem temporal em meio à anarquia espiritual, enquanto o poder espiritual positivo estabelece-se: evidentemente, a condição fundamental e necessária para isso é a liberdade espiritual (liberdades de consciência, de expressão e de associação)

o   Considerando por um lado o papel específico da ditadura republicana como regime de transição e por outro lado a necessidade permanente da separação entre os dois poderes nas sociedades modernas, o resultado é que a ditadura republicana deve assumir a característica da “laicidade do Estado”, conforme é habitualmente entendida

o   Augusto Comte determina três fases progressivas na transição:

§  (1) nem o conjunto da sociedade nem o governante é positivista, mas é possível e necessário adotar uma série de medidas: garantia clara e plena das liberdades de consciência, expressão e associação; fim do anonimato; fim dos orçamentos teóricos (igrejas, universidades); extinção da legislação de propriedade intelectual; sistema público de comemorações históricas

§  (2) a sociedade não é positivista, mas o governante é e por isso o governo assume um caráter progressista, ao adotar as seguintes medidas: supressão das Forças Armadas, transformação de Paris em metrópole ocidental, junção das máximas “Ordem e Progresso” e “Viver para outrem”

§  (3) tanto o governante quanto a sociedade são positivistas

o   Quando ocorrer a terceira fase da transição, será possível instalar o regime político normal, em que o poder do Estado será organizado em um triunvirato, ou seja, dividido entre três governantes, cada um deles oriundo de um ramo do patriciado bancário e responsável por uma área específica

§  Interior (proveniente da agricultura)

§  Finanças (proveniente da indústria)

§  Exterior (proveniente do comércio)

§  Os eventuais conflitos graves entre os triúnviros são mediados pelo poder Espiritual

-        Em termos institucionais, a ditadura republicana caracteriza-se pelo seguinte:

o   Governo unipessoal: ou seja, república presidencialista

o   Parlamento apenas orçamentário e reunido apenas durante suas atividades orçamentárias

§  O parlamentarismo apresenta uma série enorme de defeitos e problemas morais e políticos: dispersa (e/ou nega) a responsabilidade; divide e inutiliza o poder; finge que é um órgão espiritual; estimula a mesquinhez, a corrupção e as intrigas (apoiando e sendo apoiado pelo jornalismo político)

o   A “soberania” é da sociedade (logo, não é nem divina nem do “povo”): a sociedade manifesta-se sozinha e com autonomia, por si só, seja por meio do poder Espiritual, seja por meio de seus órgãos variados (clubes cívicos, associações, sindicatos etc.)

o   As leis são propostas pelo governo e submetidas à avaliação pública durante períodos variáveis durante alguns meses; a sociedade manifesta-se e, com base nas manifestações sociais e após elas, o governo decreta finalmente as leis

o   Os mandatos são vitalícios, até a idade da aposentadoria (Augusto Comte indica a idade de 63 anos); o governante indica o seu sucessor, que é sujeito à avaliação (e, portanto, à aceitação) pública

§  Esse é o instituto da “hereditariedade sociocrática”

o   Augusto Comte aceita a instituição do voto – voto universal, aliás –, apesar do seu caráter profundamente crítico e dissolvente, com três modificações fundamentais, introduzidas a fim de garantir-se a responsabilidade nas decisões:

§  Voto apenas a partir dos 28 anos

§  Voto público (isto é, a descoberto)

§  Voto transferível (ou seja, a possibilidade de um eleitor atribuir a própria capacidade de votar a outro cidadão – que, por sua vez, passa a poder contar com dois votos – e assim sucessivamente)

o   Como deve ter ficado evidente, todas as instituições propostas acima para a transição (e, aí, para a ditadura republicana) ficam na dependência de o poder Espiritual fazer valer a preponderância do altruísmo sobre o egoísmo



[1] A presente exposição baseia-se longamente no livro de nossa autoria, ou seja, de Gustavo Biscaia de Lacerda, O momento comtiano: república e política no pensamento de Augusto Comte (Curitiba: UFPR, 2019). Nesse livro eu cito longa e textualmente Augusto Comte e discuto em detalhes cada um dos aspectos considerados, incluindo os temas contemporâneos que geram confusão (como, por exemplo, a equivalência contemporânea entre “ditadura” e “autoritarismo”).

[2] Cf. Lacerda, seção 5.1.

[3] Cf. Lacerda, seção 5.1.

[4] Cf. Lacerda, seção 5.1.

[5] Cf. Lacerda, cap. 3, cap. 5 (em particular seções 5.2-5.3) e cap. 6.

[6] Cf. Lacerda, seção 5.3.

20 março 2024

Henri Gouhier: Augusto Comte, ordem social e críticas à economia política

Henri Gouhier comenta Augusto Comte sobre a noção de ordem social e as críticas à economia política

 

O trecho abaixo corresponde à tradução de um trecho do capítulo VI, “La Sociologie”, seção IV, “La préhistoire de la Religion de l’Humanité”, presente no livro La Jeunesse d’Auguste Comte et la formation du Positivisme – v. III: “Auguste Comte et Saint Simon”, de Henri Gouhier (Paris, J. Vrin, 1970, 2e ed., p. 328-330). (Tradução de Gustavo Biscaia de Lacerda.)

De modo específico, os trechos abaixo afirmam a importância irrecorrível do poder espiritual (ou dos elementos morais, ou dos valores e das idéias) na constituição de qualquer sociedade. Essa afirmação ocorre em contraposição às concepções dos economistas, segundo quem a sociedade constitui-se somente da justaposição dos interesses materiais individuais; além disso, ainda para os economistas, essa justaposição dos interesses individuais constituiria uma ordem natural que, por ser natural, não precisaria de regularização nem de disciplina – nem, em particular, da afirmação das perspectivas sociais contra os interesses individuais. Em outras palavras, trata-se ao mesmo tempo da afirmação do poder espiritual e, em conseqüência, da rejeição do “Estado mínimo” propugnado pelo liberalismo econômico.

Nos trechos abaixo, Henri Gouhier comenta o opúsculo Considerações sobre o poder espiritual, de 1826, escrito como continuação tanto do Conjunto dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade, de 1822 (com reedição aumentada em 1824), quanto do opúsculo Considerações sobre as ciências e os cientistas, de 1825. Esses documentos foram publicados durante a fase adulta jovem de Augusto Comte (dos seus 21 aos 30 anos de idade), embora sejam popularmente conhecidos como “opúsculos de juventude”. Elas são seis publicações em um total de dezenas mais publicadas nessa época; eles correspondem aos únicos textos que Augusto Comte julgou dignos de serem preservados e que, de qualquer maneira, indicam com clareza sua preocupação precoce com o poder espiritual. Esses textos foram publicados como “Apêndice geral” do v. IV do Sistema de política positiva, de 1854. Em português há duas traduções desses textos: a primeira é de Dinarte Ribeiro (Porto Alegre, Globo, 1899) e a segunda é de Ivan Lins e de João Francisco de Souza (São Paulo, USP, 1972).

As notas de rodapé abaixo são de Henri Gouhier. A paginação indicada por H. Gouhier nessas notas de rodapé, por sua vez, refere-se a esta edição dos opúsculos de juventude de Augusto Comte: Opuscules de philosophie sociale –1819-1828 (Paris, E. Leroux, 1883 – disponível por exemplo aqui: https://archive.org/details/opusculesdephil00comtgoog).


Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Henri_Gouhier


Fonte: https://www.amazon.com.br/Jeunesse-DAuguste-Comte-Formation-Positivisme/dp/271160313X

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A ordem é de essência moral. Seu princípio é o interesse geral; ele transcende o plano do temporal em que a utilidade é a lei dos indivíduos e das classes[1]. Economistas e industrialistas têm o defeito de remeterem-se demasiadamente de bom grado à natureza porque eles conhecem-na mal.

A moral positiva é terrestre; ela reina sobre uma humanidade virada para este mundo e destinada a viver o melhor possível ao explorar suas riquezas; não há mais pecado original; não há mais superstições angustiantes. O homem sem alma é entretanto um ser dividido; a sociedade inscreve em sua existência mesmo uma transcendência dramática; se não há nada acima da natureza, a exigência de superação subsiste no seio da natureza: ela revela-se no sacrifício. Quaisquer que sejam os progressos da civilização, a legítima preocupação do interesse pessoal torna-se normalmente uma tendência antissocial; entre a ordem e a felicidade, o conflito é então toda uma outra coisa que um acidente: a necessidade do sacrifício é uma lei da natureza[2].

À dualidade do bem geral e da utilidade particular corresponde a do espiritual e do temporal. É uma ilusão acreditar que os interesses industriais vão, por si sós, constituir uma ordem social: interesses temporais são interesses temporais; o espírito industrial “é como todo outro espírito puramente temporal”: o egoísmo é sua lógica[3]. Assim, os economistas desconhecem a natureza. Eles bem reconheceram nos agrupamentos humanos uma tendência espontânea e permanente de organização: eles supuseram rapidissimamente que ela coincidia com o interesse bem entendido; ela não tem então nenhuma necessidade, a seus olhos, de instituições governamentais e espirituais para assegurar sua predominância; bastaria esclarecer os produtores sobre as verdadeiras condições de sua felicidade. “Isso seria contar demais com o poder das demonstrações da economia política, retruca Augusto Comte, para provar a conformidade necessária dos diversos interesses industriais, que de esperar que ela possa bastar para sempre para discipliná-los”. Essas demonstrações talvez não tenham a eficácia que seus autores prometem; de uma outra parte, “o homem não é sempre, nem mesmo com freqüência, suscetível de calcular com justiça”; sobretudo, “ele não se conduz unicamente, nem mesmo principalmente, com base em cálculos”, como se ele estivesse “conduzido apenas pelo móvel do interesse pessoal”[4]. A sociabilidade é natural; o interesse pessoal é naturalmente antissocial; há uma contradição na natureza: os economistas não podem superá-la pois eles não a vêm.

A tendência muito real da humanidade para a ordem significa simplesmente que a ordem é possível e não que ela deva naturalmente se estabelecer apenas pelo jogo dos interesses econômicos bem compreendidos. A sociedade não se organiza no nível da produção. Não há ordem no plano temporal. Ter desconhecido a transcendência do princípio moral, tal é, no fundo, “o vício fundamental da economia política, vista como teoria social”[5]: em outras palavras, é isso que impede a economia política de tornar-se a ciência social.

  


[1] Considerações sobre o poder espiritual, p. 247-248, 282.

[2] Ibidem. Eis aqui este texto importantíssimo para compreender o poderoso impulso moral que conduzirá Comte na direção do positivismo religioso: “Quaisquer que possam ser os progressos da civilização, será sempre verdadeiro que, se o estado social é, em certos aspectos, um estado contínuo de satisfação individual, ele é também, sob outros aspectos não menos necessários, um estado contínuo de sacrifício. Em termos mais precisos, há para cada um, em todo ato particular, um certo grau de satisfação sem o qual a sociedade não seria possível e um certo grau de sacrifício sem o qual ela não poderia manter-se, vista a oposição das tendências individuais, que é absolutamente inevitável em uma proporção qualquer” (p. 273).

E ainda, p. 274: “A maior perfeição social imaginável consistiria evidentemente em que cada um cumpra sempre no sistema geral a função particular que lhe é mais apropriada. Ora, mesmo nesse exato extremo e que é puramente fictício (ainda que nos aproximemos dele sem cessar), os homens teriam necessidade de um governo moral, pois que ninguém saberia conter espontaneamente seus pendores pessoais nos limites conformes às suas próprias condições”. A natureza e a sociedade diversificam os papéis e, em conseqüência, as condições; ora, há entre todos um mesmo desejo de prazer. A educação moral deve limitar em cada um “o desejo de todos os prazeres que se pode observar nos outros, qualquer que seja a diferença das condições”, e esta, “habituando desde a infância à subordinação voluntária do voluntária do interesse particular em relação ao bem comum e ao reproduzir sem cessar na vida ativa, com todo o ascendente necessário, a consideração do ponto de vista social”.

[3] Considerações sobre o poder espiritual, p. 282.

[4] Ibidem, p. 281. Em nome da “fisiologia do século XIX”, ele denuncia aqui “a frivolidade dessas teorias metafísicas que representam o homem como um ser essencialmente calculador”. Ver também as exigências de ação que preservam o homem de uma “atividade esterilmente raciocinante”, p. 272-273.

[5] Ibidem, p. 281, nota 1. Eis este texto decisivo: “O vício fundamental da economia política, encarada como teoria social, consiste diretamente em que, por ter constatado, sob algumas relações particulares, que são bastante longe de serem as mais importantes, a tendência espontânea e permanente das sociedades humanas para uma certa ordem necessária, ela crê-se autorizada a concluir daí a inutilidade de regularizá-la por meio de instituições positivas; ao passo que essa grande verdade política, concebida em seu conjunto, prova somente a possibilidade de organização, ao mesmo tempo em que ela conduz a apreciar-lhe dignamente a importância capital”.

12 março 2024

O altruísmo é sempre apenas a satisfação do egoísmo?

No dia 16 de Aristóteles de 170 (12.5.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, agora em sua décima conferência, dedicada ao regime privado.

Na parte do sermão, devido à sua extrema importância, retomamos e respondemos pormenoridamente à questão: as nossas ações altruístas visam sempre a satisfazer o egoísmo dos outros?

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/2r8u0) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/Y4lxn). O sermão começou efetivamente em 1h 06 min 00 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se transcritas abaixo.

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O altruísmo é sempre apenas a satisfação do puro egoísmo? 

-        Durante a prédica do dia 9 de Aristóteles de 170 (5.3.2024) retomamos inicialmente as máximas morais apresentadas por Augusto Comte no início da décima conferência do Catecismo positivista, dedicada ao regime privado

o   Após retomarmos a máxima positivista – “Viver para outrem” –, surgiu uma interessante dúvida: as nossas ações altruístas visam sempre a satisfazer o egoísmo dos outros?

o   Essa dúvida não apenas é intelectualmente interessante; ela também é moral e praticamente importante, pois diz respeito a como realizamos o altruísmo e à orientação subjetiva que damos às nossas ações

o   Além disso, é importante notar que, também do ponto de vista intelectual, essa questão é central para o Positivismo, pois tem a ver com como descrevemos as relações entre o altruísmo e o egoísmo de diferentes pessoas

o   Assim, mesmo repetindo vários temas e várias observações que fizemos na semana passada e mesmo hoje, devido à importância central do tema julgamos importante dedicar todo um sermão a ele

-        Comecemos por lembrar as características da nossa máxima “Viver para outrem”:

o   Antes de mais nada: a palavra “outrem” significa “outro”, ou “outros”

o   A fórmula positivista é superior à máxima antiga (“Agir com os outros como gostaria de ser tratado”) e à medieval (“Amar o próximo como a si mesmo”)

§  Essas duas máximas apresentam uma certa evolução, na medida em que passam da conduta externa (na fórmula antiga) para a motivação subjetiva (fórmula medieval)

§  Entretanto, como é bastante claro, essas duas fórmulas concentram-se no egoísmo: não se trata de afirmar e realizar o altruísmo, mas apenas de satisfazer o egoísmo e de mais ou menos regular o egoísmo alheio

§  Ambas as fórmulas, e em particular a segunda, baseiam-se no amor divino, que é especialmente egoísta, antissocial e anti-humano

o   O “viver para outrem” orienta a vida de cada um diretamente para o altruísmo

§  Lembrando a máxima de Clotilde (“Que prazeres podem exceder os da dedicação?”), resulta que a lei do dever é também a fórmula da felicidade

-        Passemos ao que nos interessa hoje; comecemos lembrando que o “viver para outrem” tem duas partes:

o   O “viver para outrem”, que consiste na orientação altruísta do conjunto da vida humana e na definição de um critério claro para definirmos todas as pequenas, médias e grandes decisões que temos que tomar no dia a dia

§  É nessa parte que consiste a lei do dever

o   O “viver para outrem”, que consiste em que cada um de nós tem que estar vivo, e em boas condições de saúde física e mental, para podermos dedicar-nos aos outros

§  Assim, essa parte consiste em garantir que os agentes humanos existam e, portanto, ela garante a satisfação do egoísmo de cada um

·         A esse respeito, nota Augusto Comte que a orientação para o altruísmo não pode consistir na negação do egoísmo, com isso indicando que não devemos autoflagelar-nos (e, ainda menos, não devemos suicidar-nos)

§  A satisfação do egoísmo, nesse sentido, portanto, consiste na condição objetiva (e até subjetiva) para a realização do altruísmo

§  Entretanto, é fundamental termos clareza de que essa satisfação do egoísmo tem que se submeter à regra do dever, ou seja, ao estímulo do altruísmo e à compressão do egoísmo

·         Sem tal entendimento, a fórmula torna-se incoerente e imoral

·         A satisfação do egoísmo subordina-se à realização do altruísmo; assim, tal satisfação consiste em uma condição (para o altruísmo) e não de um objetivo em si mesmo

·         A felicidade que devemos buscar não consiste na satisfação egoísta de algo abstrato chamado “felicidade”: a felicidade que devemos, e que podemos, buscar consiste em nossa dedicação para os demais

·         Todas as formas de hedonismo enquadram-se na satisfação do egoísmo por si só, mesmo que sob o rótulo enganador de “felicidade pessoal”

o   Em outras palavras, o hedonismo é uma via egoísta e individualista – e, portanto, ilusória – de busca da felicidade

o   Lembramos aqui o caráter profundamente egoísta do hedonismo porque ele é uma característica das sociedades ocidentais contemporâneas

§  As sociedades ocidentais assim combinam o estímulo sistemático de inúmeras formas de egoísmo e individualismo com o estímulo ao desejo de consumo (na maior parte das vezes de produtos e serviços inúteis), em algo que, adotando a terminologia metafísica do marxismo, poderíamos chamar de “capitalismo hedonista”

-        Enfrentemos, agora, a pergunta inicial: as nossas ações altruístas visam sempre a satisfazer o egoísmo dos outros?

o   Em uma primeira aproximação, sim: nossas ações buscam satisfazer necessidades alheias

§  Mas esta primeira aproximação é bastante grosseira e, como veremos, é também bastante superficial

o   Entretanto, não devemos nem podemos considerar que a lei do dever consiste em atos altruístas satisfazendo puros egoísmos, pois isso pressupõe (ou deixa de pressupor) várias coisas e implica (ou deixa de implicar) outras tantas:

§  Antes de mais nada, essa concepção – de que a lei do dever no fundo é um altruísmo satisfazendo egoísmos puros – desconsidera o caráter relacional do ser humano, em particular no sentido de que as concepções morais têm que ser generalizadas

·         Nesse sentido, essa concepção desconsidera a noção de dever, isto é, de responsabilidades mútuas, válidas de todos para com todos

§  Em segundo lugar, essa concepção desconsidera o aspecto elementar de que a lei do dever e da felicidade vale tanto para mim (que sou, ou que devo ser, altruísta) como para os demais, que também devem ser altruístas

§  Em terceiro lugar, temos que lembrar que a satisfação do egoísmo (no “viver” do “viver para outrem”) tem que se limitar pelo e subordinar-se ao altruísmo

·         Nesse sentido, temos que lembrar que a satisfação do egoísmo alheio ocorre não para o estímulo desse egoísmo, mas como condição para que essas outras pessoas possam desenvolver o altruísmo

§  Em quarto lugar, devemos notar que as nossas ações altruístas não são sempre nem necessariamente dirigidas para indivíduos específicos, mas que muitas vezes elas têm um foco coletivo e menos específico (de tal sorte que, nesse sentido, elas não satisfazem nenhum egoísmo em particular)

·         As políticas públicas são exemplos fáceis desse caráter difuso de muitas das ações altruístas

·         Mas é claro que, tanto antes quanto depois das políticas públicas, muitas das nossas ações altruístas individuais também apresentam um caráter difuso

§  Em quinto lugar, considerando as características do regime público no Positivismo, devemos notar que a educação positiva tem que estimular o altruísmo; dessa forma, cria-se uma orientação geral na sociedade em favor do altruísmo, evitando que as ações altruístas individuais visem apenas, ou principalmente, a satisfazer o puro egoísmo dos outros

§  Em sexto lugar, também temos que lembrar que o altruísmo realiza-se na prática por meio de ações de aperfeiçoamento

·         Tais ações tornam concreto o altruísmo e evitam que ele degenere em vaguezas místicas

·         O aperfeiçoamento tem vários âmbitos: material, físico (biológico), intelectual e moral

·         Esses aperfeiçoamentos podem, e devem, tornar-se diretamente altruístas por si sós, mesmo que muitas vezes eles tenham que ocorrer em indivíduos específicos

-        Devemos reforçar três aspectos específicos ao apreciarmos a concepção de que “o altruísmo sempre satisfaz o puro egoísmo alheio”

o   Em primeiro lugar, afirmarmos a primazia do altruísmo sobre o egoísmo é algo tanto descritivo quanto prescritivo, ou seja, tanto corresponde à realidade dos fatos quanto, a partir desse caráter descritivo, é também uma recomendação moral e prática

§  Em outras palavras: a orientação moral e prática do “viver para outrem” não é uma fórmula puramente “filosófica”, puramente “teórica”: ela baseia-se na realidade dos fatos, ou melhor, na realidade da natureza humana, conforme ela desenvolveu-se transparece ao longo da história e com base em pesquisas sociológicas e da chamada neurociência

§  Como vimos nos itens acima, o altruísmo generalizado tem (1) uma base sociológica: ele baseia-se no desenvolvimento histórico, em pressões sociais, em valores compartilhados, em práticas coletivas

§  Além disso, esse altruísmo generalizado tem (2) uma base moral, neurocientífica: o altruísmo é generalizável em termos de natureza humana, ao contrário do egoísmo; o altruísmo consegue dominar e orientar o conjunto da existência humana (ou seja, realiza a unidade moral), ao contrário do egoísmo

o   Em segundo lugar, ainda em termos sociológicos e morais, a concepção do “altruísmo como apenas a satisfação do puro egoísmo alheio” deixa de lado o caráter relacional do ser humano, ou seja, deixa de lado o seu aspecto social e concentra-se na concepção “ego-cêntrica”, que entende que a sociedade é apenas a justaposição de indivíduos (que, portanto, reduzem-se aos seus egoísmos)

o   Em terceiro lugar, em termos de história das idéias, essa concepção individualista tem origem metafísica e, como sabemos, difundiu-se muito a partir do liberalismo, com todas as filosofias e “ideologias” de origem metafísica mais recente (como a doutrina dos “direitos humanos”, o marxismo, os próprios liberalismos econômico e político etc.)

§  Nesse sentido, a importância central de responder à questão baseia-se no fato de que ela surge naturalmente do ambiente metafísico que caracteriza o conjunto do Ocidente nas últimas décadas (ou seja, desde o final da II Guerra Mundial e que reforça tendências críticas e negativas que, por sua vez, têm alguns séculos de existência)

§  Podemos dizer, então, que a importância de responder à questão que motivou este sermão, mesmo repetindo temas e concepções que têm sido apresentados nas últimas semanas, deve-se a que é necessário afirmar as concepções positivistas contra a imaginação sociológica metafísica atualmente disseminada