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Burquíni, liberdade de costumes e liberdades políticas
À primeira vista, pode ser estranho discutir no Brasil o
uso, a proibição e a liberação do “burquíni” na França, pois seria esse um
problema francês e não brasileiro. Mas esse problema envolve questões que
também dizem respeito, direta e indiretamente, ao Brasil: convém refletir a
respeito do tema para, na medida do possível, evitarmos as dificuldades
d’além-mar.
Criou-se o burquíni para permitir que as muçulmanas de mais
estrita obediência frequentem a praia, com liberdade de movimento. O nome é uma
combinação de “burca” com “biquíni”; rigorosamente não se trata da burca, que
cobre o corpo inteiro, mas do xador, que cobre o corpo com exceção da face.
Burca, xador e outras peças da indumentária feminina islâmica seguem o hijab, o
código de vestimentas; ele visa a garantir a modéstia das mulheres no trajar,
que varia segundo a interpretação específica do Islã e o país. Note-se que o
burquíni deixa mãos e pés à mostra e muitas mulheres arregaçam as mangas,
evidenciando o antebraço.
Na França, muitas cidades costeiras proibiram o uso do
burquíni; logo após as proibições, essas municipalidades voltaram atrás e
permitiram esse traje. As proibições foram adotadas devido ao temor de que o
burquíni conduzisse à – ou se constituísse na – afirmação do extremismo
religioso muçulmano. Para isso, valeram-se de leis nacionais, como a de 2010
que proíbe o uso da burca e a de 2004 que proíbe o uso ostensivo de símbolos
religiosos em espaços especificamente públicos. Em todo caso, é necessário
lembrar que a França tem sido alvo de atentados de radicais islâmicos: desde o
massacre do Charlie Hebdo até o caminhão de Nice, passando pelos ataques de
novembro de 2013 em Paris.
Primeira questão: a proibição do burquíni foi correta? Como
as praias são espaços de lazer e quem as frequenta o faz em caráter particular
e ainda, no caso do burquíni, mostrando o rosto, não é sustentável afirmar nem
a segurança pública nem a laicidade para proibir. Assim, parece-nos que proibir
o burquíni foi errado e suspender a proibição foi acertado.
Segunda questão: como entender o uso do burquíni? Ele foi
criado para as muçulmanas aproveitarem um espaço de lazer; deixando à mostra
mãos, pés e até antebraços, e sendo uma roupa colada ao corpo, pode ser visto
como uma feliz concessão de certas seitas islâmicas para o Ocidente.
Inversamente, o burquíni é um item estranho aos hábitos ocidentais, motivado
por instituições e valores contrários aos ocidentais: seria uma islamização da
Europa? Aí está o problema com o burquíni. As opções acima não são excludentes
e, no momento, não há como decidir qual é a correta historicamente: o que
fazer?
Não tenho a menor simpatia pelo burquíni e desagradam-me as
instituições e correntes muçulmanas que reafirmam o caráter teocrático do Islã.
Se o diálogo intercivilizacional é importante e necessário, que seja para
aumentar a liberdade, não para diminuí-la. A filósofa Catherine Kintzler
observa que o burquíni pertence ao âmbito privado (logo, não se trata de
laicidade), mas refere-se à liberdade das mulheres e aos valores políticos
compartilhados: o burquíni indicaria a submissão das mulheres e o seu afastamento
da esfera pública; em última análise, ele é sinal de um tipo específico de
Islã, o totalitário. É uma questão cultural, não jurídica: tem de ser
combatido, não proibido. Isso dá o que pensar.
Gustavo Biscaia de Lacerda é pós-doutor em Teoria Política e
sociólogo da UFPR.
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