Desde então - e já se vão mais de dez anos - o problema das relações entre Ocidente e Islamismo continuou e, em alguns aspectos, até aumentou, embora em certo sentido a sua urgência tenha diminuído.
Por esses motivos, creio que pode ser útil reproduzir o meu texto. A versão impressa do artigo pode ser lida aqui.
* * *
“CRUZADA” COMO
ENCONTRO CIVILIZACIONAL
Na noite do sábado, dia 7 de maio, assisti ao
filme Cruzada e gostei muito dele. Fui
vê-lo pelos motivos básicos e evidentes (filme épico e do bom circuito
comercial), mas também por ser um filme histórico e ser a respeito de um
período de que gosto bastante, a Idade Média das cruzadas.
Ora, tendo visto o filme no sábado dia 7, na quarta-feira anterior li
um comentário de página inteira na Folha
de S. Paulo, assinado por Sérgio Dávila, em que o autor afirma que o filme
é um elogio velado à era George W. Bush[1].
Fiquei interessado no comentário, li-o inteiro e achei uma besteira: considerei
que o articulista está tomado por uma obsessão anti-estadunidense, mas resolvi
que o melhor, antes de dar um veredito sobre o artigo e, em última instância,
sobre o filme, seria assistir à própria obra do diretor Ridley Scott.
Bem, visto o filme, eis minha opinião: ele é ótimo, vale a pena e
Sérgio Dávila deveria ler o livro de Jean-François Revel, A obsessão anti-americana (Rio de Janeiro, Univercidade, 2004).
Muito ao contrário do que o articulista da Folha dá a entender, o filme é muito bom, não apresenta nenhum
elogio à guerra ao terror (como, aliás, afirmou o próprio diretor[2])
e, se fosse para jogarmos com títulos de livros famosos, diríamos que trata
muito mais da crítica ao “choque de fundamentalismos” (Tariq Ali) que da
apologia ao “choque de civilizações” (Samuel Huntington).
De fato, o filme deixa muito claro quais são
seus valores: a racionalidade, a cortesia, a tolerância religiosa e filosófica,
a honradez, a responsabilidade pessoal pelas ações. Dirão alguns, talvez, que a
honradez e a responsabilidade pessoal são características norte-americanas
e que isso poderia ser uma pista para o “bushismo”; é claro que isso seria um
completo disparate. Indo exatamente na contramão dos radicalismos atuais, que
têm no obscurantismo religioso sua justificação e sua legitimação, o filme
afirma a importância de considerar a racionalidade como guia das ações, medindo
cada um de nossos atos ao mesmo tempo de acordo com suas conseqüências
políticas e também morais (se se desejar: “éticas”). Parafraseando o grande
José Bonifácio, o filme deixa claro que a “sã política é filha da moral e da
razão”.
Há, sem dúvida, alguns estereótipos
discutíveis, como o de os franceses como os malucos beligerantes do lado dos
católicos (embora o mocinho do filme, Balian, interpretado por Orlando Bloom,
também seja francês, como se vê logo na primeira cena), mas, mais do que isso,
não se vê os muçulmanos como radicais desmiolados querendo dizimar tudo e
todos. Certo: há um líder muçulmano com essa característica, mas claramente ele
é subordinado; quem de fato manda no lado do islã é Saladino, cujos valores
são, como já indiquei, os mesmos que os do mocinho: a honradez, a
racionalidade, o respeito mútuo.
O que dissemos acima permite-nos comparar
esse filme com dois outros: A paixão de
Cristo e Herói. A paixão de Cristo, independentemente de
seu conteúdo, veio em um momento em que os valores religiosos, a tão falada “fé”,
tem ganho uma importância desmesurada no mundo inteiro. Ora, a fé, em Cruzada, freqüentemente é posta como
secundária ou desimportante, ou mesmo como fator de imbecilização; as únicas
manifestações aceitáveis de fé, como se percebe no filme, são aquelas mediadas
pela razão e pelo senso de comedimento.
Já a comparação com o filme Herói é mais difícil – não porque não
haja elementos mais ou menos evidentes para comparar-se ambos, mas porque o
filme chinês é excelente e não é tão facilmente criticável quanto A paixão de Cristo. Herói é a lenda nacional da China, é a China afirmando-se como um
país de longa tradição, que se define muito antes e muito além da longa
decadência por que passou desde o século XVI até chegar ao comunismo. Ora, há
um aspecto nesse filme que deve ser indicado: ele trata da tentativa que
um espadachim faria para assassinar um rei, que tenta unificar os vários reinos
em que se dividia a antiga China mas que, para tanto, adota, como seria difícil
não fazer, métodos violentos e não raro tirânicos. O aspecto que quero
realçar é o projeto de unificação da China e, ainda mais, os meios adotados: a
violência (a conquista) e a tirania: esse rei seria a versão chinesa do “príncipe
perfeito” que foi d. João II em Portugal, isto é, o príncipe perfeito a partir
dos critérios maquiavelianos e hobbesianos, que define um grande fim – a unificação
de vários reinos, isto é, a criação de uma nova pátria, com a conseqüente
cessação das lutas e das mortes e o progresso material (e, quiçá, também moral)
– e lança mão dos meios necessários para tanto. Em Cruzada vemos, sem dúvida, o tema da conquista, mas ele é muito
mais uma desculpa para tratar do relacionamento entre dois povos – ou melhor,
duas civilizações – e da “sã política” de José Bonifácio que qualquer outra
coisa. Especificamente, a conquista, quem faz, são os muçulmanos, que procuram reconquistar
a cidade de Jerusalém e obrigam os ocidentais a manterem uma posição defensiva[3].
Como se vê ao longo de toda a fita, a cordialidade mútua e o respeito ao
próprio código cavalheiresco pautam a disputa, reconhecidas as legitimidades de
ambos os pleitos (a pretensão de conquista dos muçulmanos – causada, aliás, por
uma provocação ocidental – e a defesa da cidade). Assim, sem desmerecer o filme
chinês, como ocidentais aprendemos muito assistindo ao Herói, mas, como ocidentais e como seres humanos que vivem em uma
época estranha, aprendemos (ou reaprendemos)
bem mais vendo Cruzada.
Cruzada indica com clareza que, se há “choque de civilizações” nos
dias correntes, ele deve-se muito ao radicalismo de alguns, mas que os meios
para evitar-se esse radicalismo e resolver os conflitos são algo presente na
civilização ocidental e também na
islâmica. Esse “algo” não é a crença religiosa (cristão ou islâmica, tanto
faz), mas a percepção de que todos somos seres humanos, de que todos queremos
viver e de que todos podemos viver em paz e harmonia se soubermos assim
proceder – além, é claro, de manterem-se os radicais claramente subordinados na
condução da política, tanto de um lado quanto de outro.
Assim, no final das contas, Cruzada não tem nada de “apologia velada
à era Bush”, mas um elogio claro, às escâncaras, a um relacionamento pacífico e
racional entre duas civilizações que compartilham muitos mais valores do que se
poderia pensar à primeira vista.
Em outras palavras, é uma aula de
civilidade: vale a pena.
[1]
DÁVILA, S. 2005. “Cruzada” faz apologia
velada da era Bush. Folha de S. Paulo,
4.maio. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0405200506.htm. Acesso em:
7.maio.2005.
[2]
SCOTT, R. 2005. “O filme não é sobre a
guerra ao terror!”. Folha de S. Paulo,
4.maio. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0405200507.htm. Acesso em: 7.maio.2005.
[3]
Lembremos a filosofia da história do grande Augusto Comte: a Idade Média
caracterizou-se, como a Antigüidade, pelas guerras, mas, ao contrário de gregos
e romanos, foram, exatamente, guerras defensivas.
Aliás, o mocinho Balian, enquanto não está preocupado com os conflitos
militares, dedica-se seriamente a esforços industriais bem-sucedidos, em que o
respeito aos pequenos e aos subordinados é um dos traços mais característicos.
Em outras palavras, o filme é um exemplo de conduta: como seria um elogio,
mesmo que velado, à doutrina Bush?
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