O Conselho Nacional do Ministério Público lançou o livro "Ministério Público em defesa do Estado laico". No seu v. 1 ("Coletânea de artigos"), a partir da página 179 encontra-se o artigo de minha autoria "Sobre as relações entre igreja e Estado: conceituando a laicidade".
O artigo pode ser lido aqui.
Este blogue é dedicado a apresentar e a discutir temas de Filosofia Social e Positivismo, o que inclui Sociologia e Política. Bem-vindo e boas leituras; aguardo seus comentários! Meu lattes: http://lattes.cnpq.br/7429958414421167. Pode-se reproduzir livremente as postagens, desde que citada a fonte.
17 setembro 2014
Falecimento do dr. Paulo de Tarso Monte Serrat
O que é, o que é?
Paulo de Tarso Monte Serrat
Publicado em 16/09/2014 | ALINE PERES ALINEP@GAZETADOPOVO.COM.BR
A trajetória do médico psiquiatra Paulo de Tarso Monte Serrat pode ser traduzida em uma simples música, cantada pelo compositor Gonzaguinha, que mostra em prosa e verso a dinâmica da vida. “O que é, o que é?” reproduz tantas e tantas perguntas que o médico e professor usou para guiar suas relações ao longo de nove décadas. Era um filósofo. Quando lhe perguntavam como estava, afirmava categoricamente: “vivendo com alegria”.
Todas as experiências adquiridas desde o momento em que deixou a cidade de Sorocoba (SP), com pouco mais de 18 anos, para aventurar-se na capital paranaense em busca de estudo, estão de certa forma entremeadas em seu livro, ainda não editado, Psicanálise: o 14 Bis de Freud. A obra pretende discutir os conflitos humanos e a relação com o masculino e feminino. A filha Laura conta que o livro era um projeto incentivado pela esposa, Isis; Paulo começou a trabalhar nele depois que ficou viúvo, em março de 2010.
O primeiro emprego foi como fiscal de cinema, depois de passar em um concurso público. Paulo ficava à noite para fazer a contagem das entradas – além de ser uma espécie de “lanterninha”. Enquanto se preparava para o curso de Medicina, mantinha a atividade que o aproximava da Sétima Arte. Após a formação na UFPR, especializou-se em Psiquiatria no Rio de Janeiro, quando já tinha três das nove filhas. Como bom orador, fez palestras, apresentou-se em programas de televisão como Encontros e Desencontros, trazendo orientações para casais; e no programa Linda, de Linda Saparolli, da Rede CNT, com entrevistas semanais.
Com extenso currículo, trabalhou no atendimento de pronto-socorro e ambulatório do extinto Serviço de Assistência Médica Domiciliar Urgente (Samdu), médico dos hospitais Cajuru e Evangélico, diretor do Manicômio Judiciário, nas décadas de 60 e 70, e diretor do Instituto dos Cegos. Contribuiu consideravelmente como membro do distrito Curitiba Oeste do Rotary Club.
Dinâmico, Paulo mantinha ainda o atendimento em consultório. Até a quinta-feira passada, recebeu seus pacientes. Tinha o trabalho como missão. Como um bom conselheiro, estava sempre disposto a ouvir e falar. Não cansava de dizer que as pessoas viviam uma crise moral com tanta violência e descontrole. “Assim, ele trabalhava para tentar amenizar os conflitos humanos”, conta Laura, ao lembrar do que o pai repetia ao falar sobre o seu trabalho. Paulo baseou sua vida nas máximas da Igreja Positivista do Brasil e da Igreja de Curitiba, como a que lembrava que “a morte era uma passagem da vida objetiva para a vida subjetiva porque quem constrói durante a vida continua vivo na lembrança daqueles que o conheceram”. Deixa nove filhas, 23 netos – e seus pares, que considerava como tal – e 19 bisnetos.
Dia 16, aos 91 anos.
08 setembro 2014
Conselho Nacional do Ministério Público e laicidade
Reproduzo abaixo notícia publicada na página do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP); o original encontra-se disponível aqui.
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CNMP promove Encontro Nacional em Defesa do Estado Laico
Assessoria de Comunicação Social
Conselho Nacional do Ministério Público
Fone: (61) 3366-9124
ascom@cnmp.mp.br
Twitter: cnmp_oficial
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CNMP promove Encontro Nacional em Defesa do Estado Laico
- Publicado em 25 Agosto 2014
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), por meio de suas comissões de Defesa dos Direitos Fundamentais e de Planejamento Estratégico, realiza, nos dias 18 e 19 de setembro, na sede, em Brasília, o Encontro Nacional: Em Defesa do Estado Laico. O evento tem como objetivo promover articulação entre os ramos do MP com órgãos ligados a defesa da laicidade, a fim de combater a violação de diversos direitos humanos fundamentais, como liberdade de expressão, liberdade de crença e de não-crença e direitos sexuais e reprodutivos.
O encontro é dirigido aos membros do Ministério Público com atuação e/ou distinto conhecimento pertinente aos direitos humanos, em especial no que se refere à liberdade religiosa e à defesa do Estado laico. As inscrições estão abertas à todos os membros do Ministério Público até o dia 12 de setembro, pelo e-mail: estadolaico@cnmp.mp.br. O custeio da participação será de responsabilidade do órgão de origem.
Durante o encontro será lançada a publicação “Ministério Público em Defesa do Estado Laico”, com versão impressa e eletrônica em dois volumes, produzida pelo grupo de trabalho de combate à violência doméstica e defesa dos direitos sexuais e reprodutivos da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do CNMP.
Ação Nacional em Defesa dos Direitos Fundamentais
A publicação “Ministério Público em Defesa do Estado Laico” é produto do Projeto Nacional "Defesa do Estado Laico e dos Direitos do LGTB", que integra a Ação Nacional em Defesa dos Direitos Fundamentais. Iniciativa do CNMP, por meio da CDDF, a ação tem como objetivos fortalecer a unidade nacional do MP na defesa dos direitos fundamentais, além de contribuir para a concretização dos resultados institucionais e o retorno para a sociedade afirmados pela Ação Nacional do Ministério Público – 2011/2015.
A programação será publicada em breve. Informações adicionais podem ser esclarecidas pelo telefone (61) 3366-9272 ou pelo e-mail direitosfundamentais@cnmp.mp.br
Foto: Sérgio Almeida (Ascom/CNMP)
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7 de setembro – Comemoração de José Bonifácio
7 de setembro –
Comemoração de José Bonifácio
Gustavo Biscaia de Lacerda
(José
Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência do Brasil, pintado
por Benedito Calixto; fonte: Wikipédia.)
No dia 7 de setembro, como se sabe, comemoramos no Brasil a Independência nacional; assim, é uma data importante, na medida em que celebra a constituição do país como unidade política autônoma. Para os positivistas, essa data – como todas as demais que comemoramos – tem um duplo aspecto, abstrato e concreto: abstrato em relação ao aspecto histórico-sociológico em pauta, concreto a respeito dos tipos humanos envolvidos na questão. Os indivíduos que agiram concretamente em 1822, nos anteriores e nos subseqüentes, resumem em si as dificuldades, as possibilidades e as soluções para os problemas envolvidos; lembrando o método histórico de Augusto Comte, suas ações foram preparadas pelas conjunturas anteriores – ou seja, pelas ações daqueles que vieram antes – e, por sua vez, prepararam as conjunturas posteriores.
Assim, embora tenha sido d. Pedro de
Alcântara – futuro d. Pedro I – quem proclamou a Independência nacional
brasileira em 7 de setembro de 1822, a ação do descendente dos reis de Portugal
só foi possível porque foi preparada por seu conselheiro, o cientista e
estadista nascido na cidade paulista de Santos, José Bonifácio de Andrada e
Silva: por esse motivo, os positivistas comemoramos em 7 de setembro a figura
desse grande brasileiro.
Passemos, então, a
apresentar alguns dos elementos da teoria positivista da independência nacional
brasileira, conforme exposta por Raimundo Teixeira Mendes, exposta
principalmente na biografia que ele escreveu de Benjamin Constant Botelho de
Magalhães (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892])[1].
Seguindo a teoria
comtiana, Teixeira Mendes observa alguns aspectos a respeito da expansão
territorial européia desde o século XV e os processos de independência dos
séculos XVIII e XIX. De acordo com A. Comte, as grandes nações modernas
surgiram devido à decadência do ascendente religioso existente na Idade Média,
seja porque os reis passaram a manter o controle territorial via força das
armas, sem reguladores morais, seja porque a própria ausência da regulação
moral deixou os reis entregues a si próprios, preocupados apenas com a expansão
territorial: em outras palavras, prolongando a política guerreira em termos
internacionais (ainda que desenvolvendo a política pacífica internamente). Ao
mesmo tempo, a expansão marítima e comercial levou os europeus a procurarem
novos territórios fora da Europa, conduzindo aos ciclos das grandes navegações
e da colonização das Américas.
Por outro lado, para
Comte as pátrias da sociedade pacífico-industrial devem ser pequenas, com áreas
variando entre as dos Países Baixos (41,5 mil km2) e de Portugal (92,4
mil km2). Essa pequena extensão corresponderia a um vínculo político
forte, que deve basear-se na associação livre dos cidadãos irmanados pela
atividade pacífica e por história e valores comuns; além disso, e de modo mais
importante, a pequena extensão territorial permite um conhecimento mais direto
dos cidadãos entre si, o que aumenta a confiança mútua e também a
responsabilidade dos gestores públicos e privados dos diversos tipos de
capital.
No que se refere ao
continente americano, os europeus realizaram a colonização da América desde o
século XVI de diferentes maneiras e com variados objetivos, mas no fim do
século XVIII as antigas colônias já se encontravam relativamente estruturadas e
conscientes de si. Nesse período, as metrópoles passaram a cobrar cada vez mais
tributos das colônias, ao mesmo tempo que a impor mais e mais restrições às
suas vidas autônomas: controle das alfândegas, restrições às liberdades de
pensamento e discussão etc. Aliás, em parte o aumento das exigências
metropolitanas deveu-se exatamente à estruturação e à riqueza das colônias, sem
que, em contrapartida às taxações adicionais, as metrópoles preocupassem-se com
o desenvolvimento das terras d’além-mar: para Londres, Lisboa e Madri, a
América era fonte de riquezas e eventualmente foco de conflitos, mas não
parceira na vida nacional da Europa.
A despeito dos
esforços de muitos dos habitantes das colônias americanas com vistas a manterem
a unidade política, as ações metropolitanas eram claramente no sentido de
aumentarem as restrições e as taxações, resultando em tirania. Como se sabe, a
primeira colônia da América a declarar-se e a fazer-se independente, nesse
quadro, foram os Estados Unidos[2];
nesse período, as idéias críticas de A. Sidney, J. Locke e de outros pensadores
contratualistas – metafísicos, de acordo com as concepções comtianas – foram
instrumentais para a crítica ao governo metropolitano. A luta pela
independência estadunidense, bem como o seu sucesso, influenciaram bastante
tanto os outros países europeus quanto as demais colônias americanas.
No que se refere aos
colonos portugueses na América, Teixeira Mendes caracteriza-os como sendo populares
que buscavam em terras d’além-mar o melhoramento de suas condições. Além disso,
como a igreja era subordinada ao rei, a maior fonte de prestígio estava,
precisamente, no rei: essas duas circunstâncias uniram-se para que “[...] a
nação brasileira se formou na ausência quase total de qualquer das classes
dirigentes do regime católico-feudal e, portanto, livre das enérgicas
tendências retrógradas de tais classes” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 3).
Nesse quadro, o
exemplo das colônias inglesas na América do Norte e o garroteamento imposto por
Portugal ao Brasil tiveram como primeira conseqüência a Inconfidência Mineira e
a conseqüente morte solitária do Tiradentes. No caso de Tiradentes, Teixeira
Mendes comenta que ele não era o líder da insurgência nem se destacava por suas
habilidades políticas, mas a coragem e o desprendimento que exibiu no processo
criminal e na sua execução tornaram-no um símbolo da independência do país. Por
outro lado, observa Teixeira Mendes que, no ano em que a Inconfidência foi
tornada pública, iniciava-se também a Revolução Francesa, passando a França a
influenciar mais diretamente os rumos do Brasil doravante: fosse com o
Positivismo a partir de meados do século XIX, fosse mais diretamente no início
do século XIX, quando Napoleão Bonaparte invadiu a Península Ibérica,
acarretando a migração forçada da família real portuguesa para o Brasil.
A vinda da família
real e da corte para a América trouxeram consigo várias medidas que equipararam
os dois países em termos políticos e que aliviaram as pressões sofridas pela
antiga colônia. Mesmo assim, problemas de longa data acarretaram em Pernambuco,
em 1817, sublevações republicanas, o “[...] que veio identificar ainda mais o
sentimento popular da independência com as aspirações republicanas da parte
mais avançada da nação” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 6).
Assim, as medidas
tomadas ao longo da década de 1810 resultaram em que “A separação política das
duas porções da raça portuguesa parecia conjurada pela satisfação dada às
aspirações nacionais, quer do povo, quer da massa dirigente. Quebradas as
opressões mais intoleráveis, a monarquia lusitana apresentava o aspecto de uma
livre federação sob a presidência de uma realeza tradicionalmente venerada”
(TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 6-7).
A revolução do Porto,
de 1820, reverteu esse quadro, trazendo consigo o retorno do Brasil ao statu quo ante, na condição de colônia
estreitamente controlada: com isso, o movimento independentista
reapresentou-se.
Para Teixeira Mendes, face
às condições sociais e políticas vividas pelo Brasil desde meados do século
XVIII, a independência do Brasil era questão de encontrar-se um líder capaz de
empolgar a nação e realizar o movimento. Após a inconfidência mineira, a vinda
da família real tornou aceitáveis as condições em que vivia o Brasil, mas o
retorno do rei a Portugal reverteu o quadro: nesse momento apresenta-se a
figura de José Bonifácio. “José Bonifácio, o tipo mais eminente da raça
portuguesa naquele tempo, reconhecendo a gravidade da situação, pôs-se à testa
dos patriotas. Um pensamento o domina. Frustrada a união política dos
portugueses de ambos os hemisférios, o velho cidadão preocupa-se com salvar
pelo menos a unidade da América portuguesa. Essa unidade se lhe oferece no seu
duplo aspecto: manutenção da integridade política das pátrias brasileiras e
fusão completa das três raças que as constituem, de modo a formar com elas uma
nação homogênea” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 7).
No que se refere à
unidade política do Brasil, Teixeira Mendes nota que a colonização do Brasil
foi “empírica” e “não-sistemática”, ou seja, foi feita de maneira irregular, de
acordo com as possibilidades, as necessidades e as oportunidades; com isso, os
vários núcleos de povoamento tinham poucos contatos entre si e nenhum deles
centralizava e coordenava, de fato, todos eles[3];
muitas províncias comunicavam-se mais repetida e facilmente com a Europa que
com o Rio; finalmente, algumas províncias eram suspicazes em relação a outras,
como no caso de Pernambuco em relação à Corte (devido ao movimento republicano
de 1817); por fim, em todo o território havia tropas militares de origem
européia. O problema de José Bonifácio, nesse sentido, era tornar o Brasil
independente e ao mesmo tempo manter todas as províncias unidas, a despeito dos
poucos e frágeis laços que as uniam entre si.
No que se refere à
unidade étnica, Teixeira Mendes define assim o problema: “Examinada na sua
composição, a população incorporada à civilização ocidental, dividia-se em duas
castas: uma de senhores, outra de escravos. E a população indígena, que
escapara às devastações, vagava errante pelo interior em tribos mais ou menos
desmoralizadas pelos contatos ocidentais” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 7).
Nesses termos, as
dificuldades estavam em acabar com a divisão entre senhores e escravos, que,
econômica e jurídica, perpetuava-se no tempo e era consagrada pelo catolicismo,
chegando a constituir duas diferentes castas
sociais. Da mesma forma, era necessário incorporar os índios à sociedade
nacional sem os erradicar fisicamente nem os degradar moral e culturalmente, ou
seja, permitindo ao mesmo tempo as trocas culturais e a digna autonomia das
tribos indígenas.
Para Teixeira Mendes,
a solução obtida por José Bonifácio para esses dois problemas foi a instalação
da monarquia constitucional no Brasil. Essa monarquia seria encabeçada pelo
príncipe regente, herdeiro presuntivo do rei: o respeito tradicional à
monarquia bragantina garantiria de um lado a unidade política e, por outro
lado, a reprodução no país da doutrina constitucionalista européia seria a
forma por que as liberdades públicas seriam consagradas. Ainda assim, a essa
proposta a resistência pernambucana tanto à monarquia quanto à centralização no
Rio de Janeiro seria uma dificuldade.
A monarquia
constitucional também permitiu “solucionar”, ou melhor, encaminhar o outro problema,
qual seja, o da unidade étnica. Teixeira Mendes faz duas observações sobre José
Bonifácio a esse respeito: por um lado, o político santista não concebia uma
república com escravos; por outro lado, ele tinha projetado a emancipação
gradual mas rápida dos escravos brasileiros; da mesma forma, ele projetara a
incorporação dos índios com base na ciência, em vez de com base na catequese
teológica. Uma república não poderia ser escravista (mesmo que por pouco
tempo): a monarquia podia. Dessa forma, sem poder de fato acabar (pelo menos
imediatamente) com o tráfico negreiro e com a escravidão, a monarquia serviu
para manter ambas as práticas[4].
Mesmo com essas
importantes limitações, Teixeira Mendes julga que José Bonifácio merece o
título de estadista – na verdade, o único estadista brasileiro até 1891-1892 –,
em virtude de ele ter compreendido os problemas brasileiros mais profundos: “Foi
assim que José Bonifácio patenteou ter sido até hoje o único estadista de nossa
pátria. Depois dele se procura em vão quem tenha apanhado em toda a sua
plenitude o conjunto do problema brasileiro. As suas soluções foram empíricas e
por isso quiméricas ou insuficientes; mas é força convir que as luzes de então
dificilmente comportavam outras. Infelizmente só poude o patriota realizar a
parte mais secundária de seus projetos, instituindo a unidade política das
pátrias brasileiras” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 8).
Na biografia de
Benjamin Constant, a narrativa de Teixeira Mendes segue tratando das
vicissitudes da política imperial – isto é, expondo-as e avaliando-as –, nos
seus três grandes períodos (o I Império, o interregno regencial e o II
Império). Ela é interessante, seja devido à exposição factual, seja devido aos
comentários avaliativos sobre cada um desses momentos; todavia, não trataremos
deles, na medida em que desejávamos apresentar, nesta seção, a interpretação
que fez Teixeira Mendes da teoria comtiana da história e sua aplicação na
história brasileira, a respeito do contexto e dos problemas enfrentados no
período da independência nacional.
De qualquer forma,
cabem ainda alguns comentários a respeito da “teoria das pátrias brasileiras”,
conforme proposta por Teixeira Mendes. Nas exposições acima, aqui e ali usou-se
essa expressão – “pátrias brasileiras” –; o plural aí não é acidente: o
vice-Diretor da Igreja Positivista, ao empregá-la, considera duas acepções,
pelo menos. A primeira é histórico e descritivo, correspondente à pluralidade
de províncias brasileiras, surgidas ao longo da colonização: essas várias
províncias, como indicamos há pouco, surgiram e desenvolveram-se de maneira “empírica”
e “não sistemática”, conforme a avaliação de T. Mendes, mantendo entre si e
entre elas e as capitais (fosse metropolitana, no caso de Lisboa, fosse
colonial, nos casos de Salvador e, depois, do Rio de Janeiro) vínculos bastante
frouxos: em vez de ligações verdadeiramente orgânicas entre as províncias e
entre elas e a capital, o que existiria no Brasil seria mais uma “colcha de
retalhos” política.
A segunda acepção é de
caráter normativo e baseia-se na definição comtiana das “pátrias”, conforme
visto acima: devem ser unidades políticas de tamanho reduzido, em que a
cooperação material (isto é, política e econômica) seja pacífica e plenamente
voluntária e em que seja possível o contato pessoal entre os líderes políticos
e o corpo de cidadãos, entre os chefes industriais e o proletariado e,
portanto, seja efetivamente possível cumprir as responsabilidades sociais do
poder, da riqueza e do controle social dos recursos públicos.
Ao referir-se a “pátrias
brasileiras” em meio às suas narrativas a respeito da formação territorial e
étnica do Brasil, bem como do processo de independência nacional, Teixeira
Mendes evidencia que reconhece a pluralidade das formações sociais e políticas
brasileiras – incluindo aí as tribos indígenas – e que, rejeitando o unitarismo
político, advoga o federalismo ou o confederalismo[5].
A defesa do federalismo ou do confederalismo não é absoluta, no sentido de que
os consideraria válidos a qualquer instante ou a qualquer transe: seguindo o
relativismo comtiano, em sua discussão sobre a independência nacional e sobre
as propostas de José Bonifácio, Teixeira Mendes demonstra que reconhece a
centralização política como o instrumento, de caráter transitório, encontrado
naquele momento para (1) obter-se a independência das pátrias brasileiras, (2)
de maneira pacífica (fosse mais ou menos em relação a Portugal, fosse das
províncias entre si, fosse mesmo do Brasil em relação aos países vizinhos); da
mesma forma, essa centralização seria aceitável desde que respeitasse as
liberdades civis, políticas e sociais (o que foi prometido em 1822, mas
desrespeitado no período posterior a 1823 (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p.
12-13)).
Referências bibliográficas
COMTE, A. 1929. Système
de politique positive ou traité de Sociologie instituant la Religion de l’Humanité.
4ème ed. 4 v. Paris: Larousse.
LACERDA,
G. B. 2010. O momento comtiano:
república e política no pensamento de Augusto Comte. Florianópolis. Tese
(Doutorado em Sociologia Política). Universidade Federal de Santa Catarina.
Disponível em: http://www.tede.ufsc.br/teses/PSOP0369-T.pdf.
Acesso em: 24.jan.2012.
_____.
2014. Política e instituições na “teoria
do Brasil” dos positivistas ortodoxos brasileiros. Comunicação apresentada
no IX Encontro Anual da Associação Brasileira de Ciência Política, realizado
entre 4 e 7 de agosto, em Brasília. Digit.
LEMOS, M. & TEIXEIRA MENDES, R. 1890. Bases de uma Constituição política
ditatorial federativa para a república brasileira. (2ª ed.: 1934.) Série da Igreja Positivista do Brasil, n. 82. Rio de
Janeiro: Igreja Positivista do Brasil. Disponível em: http://bd.camara.leg.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/15236/bazes_constituicao_politica.pdf?sequence=3.
Acesso em: 25.jun.2014.
TEIXEIRA
MENDES, R. 1880. Discurso
comemorativo do tricentenário de morte de Luís de Camões. (2ª ed.: 1977).
Série da Igreja Positivista do Brasil, n. 1. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil.
_____.
1892. Benjamin Constant.
Esboço de uma apreciação sintética da vida e da obra do fundador da República
Brasileira. Série da Igreja Positivista do Brasil, n. 120. 3ª ed.: 1936.
Rio de Janeiro: Igreja
Positivista do Brasil.
_____.
1913. O império brasileiro e a república
brasileira perante a regeneração social. A propósito do “Manifesto de S. A.
I. o sr. d. Luiz de Bragança”, publicado no Diário
do Congresso Nacional, de quarta-feira, 27 de agosto de 1913. Série da
Igreja Positivista do Brasil, n. 350. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do
Brasil.
_____.
1915. O Positivismo e a questão social.
A propósito da questão anarquista. Série da Igreja Positivista do Brasil, n.
383. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil.
(Permitida a livre reprodução, desde que citada a fonte.)
[1] As
anotações abaixo reproduzem em grandes traços a seção 3.2 de Lacerda (2014). Em
todo caso, deve-se notar que os positivistas escreveram muitos discursos e
artigos, tanto sobre a independência nacional quanto sobre José Bonifácio.
Assim, a exposição que se seguirá é bastante tímida em relação à produção
positivista a respeito.
[2]
Augusto Comte considerava que, mesmo antes da independência dos EUA, o processo
de fragmentação das grandes nações começou com a luta neerlandesa por sua
independência em relação à Espanha, nos séculos XVI e XVII. De qualquer forma,
o caso dos Estados Unidos é mais ilustrativo, pois tratou-se da separação entre
dois povos de mesma língua, mesma fé e mesma cultura (cf. COMTE, 1929, v. IV,
p. 460-467; LACERDA, 2010, p. 352).
[3] Essa falta de coordenação entre os núcleos de
povoamento, nota de passagem T. Mendes, persistia até pelo menos o momento em
que redigia a biografia de Benjamin Constant, ou seja, até pelo menos 1891-1892:
“[...] o Brasil não possuía então, como realmente não possui hoje, uma
verdadeira capital” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 7).
[4]
Mais adiante, Teixeira Mendes nota que os novos países americanos surgiam como
repúblicas, embora fossem repúblicas muito
imperfeitas: com escravidão no caso dos Estados Unidos, com religião de Estado
no caso dos países hispano-americanos (“verdadeiras monarquias constitucionais
sem rei”); além disso, a instituição das repúblicas, novamente no caso da
América hispânica, deu-se com a ocorrência de grandes conflitos com a metrópole
e, depois, de guerras civis (TEIXEIRA MENDES, 1936
[1892], p. 9-10).
[5] O
federalismo seria claramente defendido no projeto de constituição federal
apresentado por Miguel Lemos e Teixeira Mendes em 1890, logo em seguida à
Proclamação da República, no famoso documento intitulado “Bases de uma
Constituição política ditatorial federativa para a república brasileira”.
Sendo mais específicos, nos artigos 1º e 2º, Lemos e Teixeira Mendes defendem
tanto o federalismo quanto o confederalismo: uma federação entre os “estados
ocidentais brasileiros” (as antigas províncias do Império) e os “estados
americanos brasileiros” (as tribos indígenas dispersas pelo território
brasileiro) e uma confederação entre os vários “estados ocidentais brasileiros”.
Cf. Lemos e Teixeira Mendes (1890).
05 setembro 2014
5 de setembro - comemoração do passamento de Augusto Comte
Augusto Comte (19.1.1798-5.9.1857) |
Augusto Comte refletindo sob a inspiração de seus três anjos (quadro a óleo de Ete x) |
5 de setembro - comemoração do passamento de Augusto Comte
Gustavo Biscaia de Lacerda
O dia 5 de setembro marca o passamento de Augusto Comte (1798-1857), fundador do Positivismo, da Sociologia, da História da Ciência e da Religião da Humanidade.
Comte é popularmente conhecido por ter fundado a Sociologia e pelas suas reflexões histórico-filosóficas sobre as ciências em geral, mas sua obra consiste muito mais em compreender as condições da vida humana em uma sociedade imanente e relativista, ou seja, em como os seres humanos devem relacionar-se entre si em uma sociedade que reconheça o irrealismo das crenças sobrenaturais e absolutas.
Para isso, com base no estudo da história e da natureza humanas, ele propôs um sistema de valores e de organização social em que a vida é valorizada em seus mais diversos aspectos: individuais, familiares, nacionais e universais; passados, futuros e presentes; filosófico, artístico, científico, político, econômico – tudo isso baseado no estímulo do altruísmo.
O seu conjunto de idéias sobre o relacionamento humano imanente e relativista consubstanciou-se na “Religião da Humanidade”, cujas máximas mais importantes resumem o sistema:
O Amor por princípio e a Ordem por base; o
Progresso por fim
Viver às claras
Viver para outrem
Ordem e Progresso
Agir por afeição e pensar para agir
“Cansamo-nos de agir / E até de pensar cansamos; / Só não cansamos de amar / E nem de dizer que amamos” (Teixeira Mendes, a partir de Augusto Comte)
Os vivos são sempre e cada vez mais, necessariamente, governados pelos mortos
Entre suas várias lições, Augusto Comte mostrou como o culto aos mortos é uma das partes mais importantes das nossas vidas.
Pode parecer estranho comemorar o passamento – ou seja, a morte – de um ser humano; todavia, por paradoxal que possa parecer, isso é um dos atos mais humanos que há. Ao nascer, um indivíduo é apenas uma promessa, talvez uma esperança: é ao longo de sua vida, isto é, o conjunto de suas ações e decisões que indicará o valor de cada ser humano. Sendo a morte uma parte da vida, o conjunto da existência objetiva de cada um permite que se avalie de maneira global a sua vida: somente aí é possível determinar se o indivíduo foi bom ou mal, altruísta ou egoísta, e se merece de fato ser valorizado pelos seus contemporâneos e pelos pósteros.
Há outros dois aspectos importantes na comemoração dos mortos.
Por um lado, ao considerarmos a vida daqueles que já se foram, refletimos sobre suas condutas em determinadas situações; avaliamos suas dificuldades e suas possibilidades; lembramos os afetos que ofereceram: livres dos constrangimentos objetivos, a memória dos entes queridos dá-nos orientação, conforto, alegria; assim, embora objetivamente eles tenham passado, subjetivamente eles continuam entre nós.
Por outro lado, relembrar quem já passou lembra-nos também de que a sociedade humana é, acima de tudo, história, ou seja, é o conjunto sucessivo das várias gerações que nos permite sermos o que somos. Considerar os momentos específicos em que cada um viveu; as possibilidades e as dificuldades de cada situação; as soluções propostas: com uma correta perspectiva de longo prazo, tudo isso nos permite entender como é que chegamos a ser o que e quem somos e quais os rumos que segue a Humanidade. Dessa forma, o culto aos mortos é também, ao mesmo tempo, uma aula de História, de Sociologia e de Antropologia.
Fala-se com freqüência que a sociedade moderna não tem valores, que não tem "sentido" e assim por diante; também se fala que a responsabilidade dessa falta de sentido e de valores é da secularização, da ciência, da "técnica" etc.: a Religião da Humanidade é um poderoso antídoto, ou desmentido, contra o vazio moral e existencial. Augusto Comte mostrou como é possível ao mesmo tempo valorizar o próprio ser humano, não apelar aos deuses e ainda ter uma vida rica e plena.
Entre muitos outros, é por esses motivos que, no dia de hoje, 5 de setembro, cultuamos a memória de Augusto Comte.
(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)
03 setembro 2014
L. A. Becker sobre o clericalismo na UFPR
Ainda a respeito da existência de (1) uma capela (2) explicitamente católica na UFPR, meu amigo L. A. Becker leu os argumentos apresentados pelos defensores do clericalismo. Ele notou alguns vários e sérios problemas na argumentação dos clericalistas; como Becker foi tão claro nos comentários, reproduzi-los-ei ipsis literis abaixo.
O artigo dos defensores do clericalismo na UFPR - publicado na Gazeta do Povo curiosamente ao mesmo tempo que o meu em favor da laicidade - pode ser lido aqui.
Abaixo, os comentários de L. A. Becker, com realce verde escuro:
O artigo dos defensores do clericalismo na UFPR - publicado na Gazeta do Povo curiosamente ao mesmo tempo que o meu em favor da laicidade - pode ser lido aqui.
Abaixo, os comentários de L. A. Becker, com realce verde escuro:
- o fato de clérigos participarem da fundação de uma universidade pública não cria o "direito" de nela instalar um espaço religioso; se assim fosse, o fato de flamenguistas participarem criaria o direito de nela instalar uma filial da torcida organizada do Flamengo;
- laicidade não tem nada a ver com culto idólatra à razão - é questão conceitual;
- também não se trata de atrapalhar o rendimento acadêmico; muito menos fechar a universidade porque tem origem na Igreja; o autor inventa acusações não feitas para atacá-las; é como seu eu dissesse: "é mentira que existe um cavalo de duas cabeças lá em casa!";
- comparar a capela da UFPR com a Notre Dame é descabido; não só pela desproporção histórica e arquitetônica, mas porque a Notre Dame não está instalada dentro de uma universidade pública;
- porque o Estado reconheceu o valor histórico da capela não significa que se está proibido de reconhecer que o lugar é inadequado; um erro não justifica o outro;
- a proteção aos lugares de culto não significa a convalidação de sua instalação em lugares inadequados; caso contrário, instalemos o Templo de Salomão sobre as pistas do aeroporto Afonso Pena e, em seguida, proibamos que seja derrubado;
- não se trata de apagar os rastros da religião, mas de retirá-la dos espaços laicos; igrejas fora deles, nada contra elas;
- um espaço de laicidade não é o mais adequado a receber uma capela; assim como uma igreja não é o espaço mais adequado para instalar o gabinete de um prefeito: a Cesar o que é de Cesar.
Acrescento ainda quatro aspectos:
- os clericalistas, no artigo mencionado acima, reconhecem implicitamente que a capela universitária da UFPR seria da Igreja Católica, ao referirem-se à Concordata de 2010 para justificarem a obrigação do Estado brasileiro (e, por extensão, da UFPR) de defenderem templos católicos. Em outras palavras, eles levam tão pouco a sério a separação entre igreja e Estado; defendem com tanta naturalidade os privilégios da Igreja Católica, que não entendem (e nem querem entender) que o espaço da UFPR é um espaço do Estado brasileiro e não uma representação eclesiástica no ambiente universitário;
- a capela foi criada em 1958; todavia, desde 1950 a antiga Universidade do Paraná é uma autarquia federal: em outras palavras, a capela foi, desde o início, construída irregularmente e ofendendo francamente a laicidade do Estado;
- os clericalistas afirmam que, devido ao fato de a Capela Universitária ser tombada pelo Serviço de Patrimônio Histórico, não se pode mexer nela. Todavia, não é a capela, mas o complexo da Reitoria da UFPR que é tombado; além disso, o tombamento refere-se aos elementos arquitetônicos do prédio, não à decoração interna e ao uso que os prédios fazem de seus espaços internos. Nesse sentido, como argumentamos em nosso artigo inicial, não há absolutamente óbice algum à utilização do espaço para outros fins que não os cultuais, ou, por outro lado, para o uso de outros cultos e ritos;
- devido ao uso ostentatório do espaço da Capela Universitária pela Igreja Católica, muitos indivíduos têm a impressão de que esse espaço pertence a essa igreja, isto é, de que se trataria de um enclave católico na UFPR. Não: a Capela Universitária é um espaço da Universidade (o que equivale a dizer que é um espaço do Estado brasileiro, ou seja, da República Federativa do Brasil) e sua decoração católica é devida à ação completamente ilegal dos administradores da UFPR, tanto os de 1958 quanto os de 2014.
(A primeira versão desta posta é de 3.9.2014; em 5.9.2014 fiz uma atualização.)
02 setembro 2014
Artigo na Gazeta do Povo: "Novamente: UFPR clerical?"
Artigo de minha autoria publicado na Gazeta do Povo de 2.9.2014. O original pode ser lido aqui.
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Novamente: UFPR clerical?
No dia 7 de agosto, ocorreu no câmpus da Reitoria da Universidade Federal do Paraná (UFPR) uma cerimônia curiosa: a reinauguração da capela universitária, realizada pelo magnífico reitor em pessoa. Após um longo processo de reforma, o curioso em tal evento não foi a sua reabertura ao público, mas a reabertura com a sua “reconsagração”, por meio da realização de uma missa católica conduzida pelo bispo auxiliar dom Rafael Biernaski. Além disso, em todo esse espaço há, de modo ostensivo, imagens de santos católicos e símbolos cristãos. Talvez, à primeira vista, pareça não haver nada errado com isso; entretanto, como já indicamos em outros momentos neste espaço da Gazeta do Povo, é tudo altamente problemático.
A UFPR é uma autarquia federal e deve seguir as leis gerais da República e as específicas que regulam o Estado brasileiro. Dessa forma, a UFPR deve pautar-se pelo cuidadoso e rigoroso respeito à laicidade do Estado. A laicidade do Estado brasileiro foi definida pelo Decreto 119-A, de 1890, bem como afirmada e reafirmada por todas as Constituições republicanas, incluindo a de 1988 (em seus artigos 5.º e 19). De acordo com essas leis, não é facultado a nenhum órgão e/ou servidor público – presidente da República, reitor de universidade ou o mais humilde servidor do menor município do país – apoiar ou subvencionar qualquer religião.
Ora, a “reconsagração” especificamente católica, os símbolos presentes e, aliás, o próprio nome da capela, “Nossa Senhora do Carmo”, constituem apoios claros a uma religião por um órgão público. Como conciliar os preceitos legais com a existência da capela na UFPR?
Em primeiro lugar, em face da laicidade, a UFPR não deveria ter capela. Nesse sentido, deve-se notar que a universidade apresenta uma séria falta de espaço para alojar gabinetes de professores, grupos de pesquisa, grupos artísticos e de extensão, órgãos administrativos: o amplo espaço da capela poderia ser utilizado para qualquer uma dessas utilidades.
Mas, caso aceite-se a existência da capela como um fait accompli – o que não é nenhuma obrigação política ou jurídica –, para que ela respeite a laicidade são necessárias mudanças ao mesmo tempo radicais, mas simples: a retirada de todos os símbolos religiosos, guardados para uso quando da prática episódica dos cultos católicos e/ou cristãos; a mudança do nome, para simplesmente “Capela Universitária”; a definição urgente de critérios de utilização do espaço pelos diversos grupos religiosos e filosóficos (convém notar que, entre 2012 e 2014, solicitamos inúmeras vezes à administração da UFPR a apresentação dos critérios de utilização da capela; ou as respostas eram evasivas ou não havia resposta).
A religião é uma questão de foro íntimo e é ilegítimo ao Estado – e às suas autarquias – promover qualquer uma delas. Por outro lado, não se sabe a que ou a quem serve essa capela: se à comunidade universitária que deseja um espaço de reflexão íntima ou ao proselitismo paraoficial de determinados credos e igrejas. Se a UFPR deseja realmente ser um espaço da prática e da reflexão democráticas, cidadãs e republicanas; se deseja ser um símbolo do que o Paraná e o Brasil produzem de melhor, é imperativo que a capela seja efetivamente um espaço laico.
Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor e pós-doutor em Teoria Política pela UFSC.
Carlos Eduardo Oliva: "deve-se compreender melhor o Estado laico"
Reproduzo abaixo alguns comentários que meu amigo Carlos Eduardo Oliva fez em 1º.9.2014, a propósito da idéia de "laicidade" defendida por alguns grupos sociais e por alguns políticos. Essas observações foram feitas no facebook, mas seu valor transcende a imediatez dessa rede social.
O original pode ser lido aqui.
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O Estado laico nunca precisou ser tão melhor compreendido! Eu já havia notado isso desde 2010, quando conheci o Observatório da Laicidade do Estado, que hoje se tornou o Observatório da Laicidade na Educação.
[O Deputado Federal] Jean Wyllys, por exemplo, fala em "Estado laico" basicamente quando quer reclamar dos evangélicos, e defender um Estado pluriconfessional (!) que, de laico, não tem nada! Afinal, um candidato que defende o Estado laico não votaria a favor do ensino religioso no Congresso, como ele fez bem recentemente.
Mesmo os termos "fundamentalismo", "laicismo" e "laicidade" também têm sido usados para expressar o que nunca expressaram, como se "fundamentalismo" fosse sinônimo de neopentecostalismo, "laicismo" de radicalismo na defesa da laicidade (um viés ateísta) e "laicidade" a defesa de um Estado pluriconfessional. A maneira como hoje se busca relacionar evangélicos a "fundamentalismo", a racismo e a machismo, como se a cultura brasileira só passasse a ser "fundamentalista", racista e machista quando passou a ser marcada por essa expressão religiosa, é de uma grande má-fé. E nada se diz dos católicos nos bastidores da política, garantindo atraso em pesquisas científicas, retrocesso na ampliação da cidadania das mulheres e seguidores de religiões de matriz africana, obstacularização dos direitos sexuais e reprodutivos. Critica-se muito os evangélicos no proscênio, de onde é até melhor controlá-los, e nada os católicos nos bastidores: isso é defender a laicidade? O Estado laico nunca precisou ser tão melhor compreendido!
O original pode ser lido aqui.
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O Estado laico nunca precisou ser tão melhor compreendido! Eu já havia notado isso desde 2010, quando conheci o Observatório da Laicidade do Estado, que hoje se tornou o Observatório da Laicidade na Educação.
[O Deputado Federal] Jean Wyllys, por exemplo, fala em "Estado laico" basicamente quando quer reclamar dos evangélicos, e defender um Estado pluriconfessional (!) que, de laico, não tem nada! Afinal, um candidato que defende o Estado laico não votaria a favor do ensino religioso no Congresso, como ele fez bem recentemente.
Mesmo os termos "fundamentalismo", "laicismo" e "laicidade" também têm sido usados para expressar o que nunca expressaram, como se "fundamentalismo" fosse sinônimo de neopentecostalismo, "laicismo" de radicalismo na defesa da laicidade (um viés ateísta) e "laicidade" a defesa de um Estado pluriconfessional. A maneira como hoje se busca relacionar evangélicos a "fundamentalismo", a racismo e a machismo, como se a cultura brasileira só passasse a ser "fundamentalista", racista e machista quando passou a ser marcada por essa expressão religiosa, é de uma grande má-fé. E nada se diz dos católicos nos bastidores da política, garantindo atraso em pesquisas científicas, retrocesso na ampliação da cidadania das mulheres e seguidores de religiões de matriz africana, obstacularização dos direitos sexuais e reprodutivos. Critica-se muito os evangélicos no proscênio, de onde é até melhor controlá-los, e nada os católicos nos bastidores: isso é defender a laicidade? O Estado laico nunca precisou ser tão melhor compreendido!
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01 setembro 2014
Irracionalidade administrativa: Marina Silva decide com a "fé"
Embora eu tenha muitas restrições à pessoa da Marina Silva, até o momento estava mantendo uma postura reservada a seu respeito.
Mas com declarações como as reproduzidas na matéria indicada abaixo não dá para calar-se e fingir que "está tudo bem".
Deixemos de lado, por ora, o problema da laicidade do Estado.
A administração pública brasileira tem feito, nos últimos 25 anos (para não dizer desde 1930, ou até mesmo desde 1889), um esforço hercúleo em direção à racionalidade administrativa, à previsibilidade e ao controle da discricionariedade dos atos dos agentes públicos, bem como à adoção de critérios humanos e universalmente compartilháveis. Mesmo o boquirroto e demagógico Lula mais ou menos seguiu esse parâmetro, que se afasta da astrologia imperial de Jânio Quadros e da arbitrariedade também imperial de Fernando Collor de Mello.
Aí, de repente, uma pessoa que tem chances reais de vir a tornar-se Presidente da República afirma tomar decisões na base da loteria, isto é, com base nas mais absolutas e completas arbitrariedade e, portanto, irresponsabilidade: qualquer servidor público que declarasse agir com base em tal (falta de) parâmetro correria o seriíssimo risco de sofrer um processo administrativo disciplinar. Mas cargo eleito com base na Bíblia pode... como assim? Que baderna é essa?
Por acaso Marina Silva adotará em última análise a tal da "roleta bíblica" para decidir a política econômica do país? Para decidir nossos posicionamentos na Organização Mundial do Comércio? Nossas relações com os países árabes, ou com os Estados Unidos? Ou será que ela buscará diretamente no Levítico as orientações para nossas políticas de saúde? Nem há nem laicidade, nem "universalismo", nem racionalidade nessa forma de "decidir".
Conferir a matéria "Decidindo com a fé", publicada em 1.9.2014 na Folha de São Paulo (disponível aqui).
Mas com declarações como as reproduzidas na matéria indicada abaixo não dá para calar-se e fingir que "está tudo bem".
Deixemos de lado, por ora, o problema da laicidade do Estado.
A administração pública brasileira tem feito, nos últimos 25 anos (para não dizer desde 1930, ou até mesmo desde 1889), um esforço hercúleo em direção à racionalidade administrativa, à previsibilidade e ao controle da discricionariedade dos atos dos agentes públicos, bem como à adoção de critérios humanos e universalmente compartilháveis. Mesmo o boquirroto e demagógico Lula mais ou menos seguiu esse parâmetro, que se afasta da astrologia imperial de Jânio Quadros e da arbitrariedade também imperial de Fernando Collor de Mello.
Aí, de repente, uma pessoa que tem chances reais de vir a tornar-se Presidente da República afirma tomar decisões na base da loteria, isto é, com base nas mais absolutas e completas arbitrariedade e, portanto, irresponsabilidade: qualquer servidor público que declarasse agir com base em tal (falta de) parâmetro correria o seriíssimo risco de sofrer um processo administrativo disciplinar. Mas cargo eleito com base na Bíblia pode... como assim? Que baderna é essa?
Por acaso Marina Silva adotará em última análise a tal da "roleta bíblica" para decidir a política econômica do país? Para decidir nossos posicionamentos na Organização Mundial do Comércio? Nossas relações com os países árabes, ou com os Estados Unidos? Ou será que ela buscará diretamente no Levítico as orientações para nossas políticas de saúde? Nem há nem laicidade, nem "universalismo", nem racionalidade nessa forma de "decidir".
Conferir a matéria "Decidindo com a fé", publicada em 1.9.2014 na Folha de São Paulo (disponível aqui).
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