30 janeiro 2024

Sobre inter, multi e transdisciplinaridade - parte 1

No dia 2 de Homero de 170 (30.1.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua nona conferência (dedicada ao regime público).

No sermão abordamos os temas da inter, da multi e da transdisciplinaridade.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/E6kXX) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/2ZifK). O sermão iniciou-se aos 36 min 07 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

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Sobre inter, multi e transdisciplinaridade 

-        Alguns temas que há várias décadas têm sido enfatizados são o da inter, multi e transdisciplinaridade

o   Basicamente esses temas são próprios a ambientes científicos, ou melhor, acadêmicos; nesse sentido, eles apresentam um aspecto cientificista e até academicista, quando se vinculam a questões puramente ou majoritariamente intelectualistas

o   Entretanto, esses temas em si são importantes e, quando se desvinculam do aspecto intelectualista, eles passam a evidenciar grandes aplicações

-        No ambiente acadêmico, a palavra “positivismo”, por motivos torpes, é sinônima de “unidisciplinaridade estrita”, ou seja, de aversão à inter, à multi e à transdisciplinaridade

o   Entretanto, essa concepção é puramente preconceituosa e originada da má-fé de adversários, que buscam um bode expiatório fácil: nesse caso, é a má-fé “habitual”

o   Por outro lado, há pensadores e correntes de pensamento que, desejando afirmar a inter, a multi e a transdisciplinaridade, adotam o sofisma do espantalho e usam uma contraposição forçada ao Positivismo apenas com o objetivo de dizerem que eles, os adversários, são os únicos e verdadeiros promotores da visão não unidisciplinar

§  Mas, com freqüência, os dois casos acima (má-fé; transdisciplinares do espantalho) raramente ultrapassam os limites do cientificismo e, ainda mais, do academicismo

o   O Positivismo de verdade, isto é, a Religião da Humanidade não somente tem muito a dizer a respeito desses conceitos como, além disso, ela afirma e baseia-se na multi e na transdisciplinaridade!

-        Consideremos, então, conceitos básicos de cada uma dessas possibilidades

o   Vale notar que não procuraremos ser exaustivos a respeito; o que nos interessa é considerar conceitos úteis para as nossas presentes reflexões

o   O conceito fundamental é o da especialização, da “disciplinaridade”

o   Em oposição parcial e crescente à disciplinaridade, temos o seguinte:

§  Interdisciplinaridade: é a reunião de duas áreas do conhecimento (por ex., a neuroquímica), para o estudo de questões abstratas ou concretas

§  Multidisciplinaridade: é a reunião de várias áreas do conhecimento para o estudo de alguma situação concreta

§  Transdisciplinaridade: é a aplicação de critérios extracientíficos às concepções científicas – geralmente concepções de cunho social-moral

-        Algumas características das categorias acima e que são notáveis, para os nossos propósitos:

o   Conceitos cientificistas, ou, de modo geral, academicistas (na medida em que muitas vezes abrangem também ramos das belas-artes);

o   Baseiam-se na existência das disciplinas acadêmicas (nas “disciplinaridades);

o   Forte presença de um racionalismo que lida relativamente mal com a filosofia e as questões morais e que, em virtude disso, no âmbito da transdisciplinaridade, muitas vezes descamba para o misticismo (e, portanto, até para o irracionalismo);

o   Freqüentes confusões entre o que é abstrato e o que é concreto

§  Freqüentes renovações de propostas de “leis concretas”

o   De qualquer maneira, da inter para a transdisciplinaridade, há uma progressiva rejeição do materialismo e do reducionismo

o   Além disso, quando se pratica a inter, a multi e a transdisciplinaridade, costuma-se haver afirmações de “elaborações superiores”, “sínteses amplas” etc.

§  Entretanto, essas afirmações são meras expressões de desejos e de intenções, sem maiores conseqüências

§  Podemos, e mesmo devemos, suspeitar que a ausência de “maiores conseqüências” deve-se não à impossibilidade ou à dificuldade de realizarem-se tais “maiores conseqüências”, mas, sim, ao secreto desejo de não realizar tais sínteses amplas

§  Em outras palavras, o que se deseja é manter-se no âmbito da especialização e da disciplinaridade, além de não se submter a parâmetros superiores e reguladores (morais e religiosos)

·         Daí, aliás, um dos motivos secretos por que o Positivismo é mal visto na academia

-        Passemos então a tratar dessas questões à luz do Positivismo; comecemos por aspectos estáticos, de caráter filosófico-científico:

o   Antes de mais nada, o Positivismo afirma com todas as letras a importância da visão de conjunto; na verdade, ele constituiu-se desde o início como a afirmação da visão de conjunto sobre a realidade humana, em termos sócio-históricos, filosóficos e morais

o   A afirmação da visão de conjunto é o princípio fundamental que permite e justifica a inter, a multi e a transdisciplinaridade

o   Na verdade, Augusto Comte sempre disse para quem quisesse ouvir (e ler) que o Positivismo surgiu como uma filosofia derivada da e aplicada às ciências – ou seja, o Positivismo é desde à partida uma transdisciplinaridade

§  Essa transdisciplinaridade caracteriza-se desde o início não apenas porque o Positivismo é uma filosofia, mas também porque ele aplica claramente – e cada vez mais claramentecritérios morais em suas concepções e ações

§  A visão de conjunto filosófica sobre as ciências serviu tanto como uma reflexão geral sobre as ciências quanto como uma base para a criação de uma nova ciência, a Sociologia

·         A Sociologia foi criada como ciência autônoma, com a delimitação de seus métodos, seus objetos, suas aplicações, seus limites, suas relações com as demais ciências – tudo isso a partir do exame de conjunto das demais ciências, da realidade humana em termos históricos e da realidade em termos “gerais”

·         A criação da Sociologia consistiu também na sistematização da visão de conjunto e da aplicação da perspectiva filosófica, sócio-histórica e moral aplicada ao conjunto das ciências inferiores

·         Ao mesmo tempo em que Augusto Comte criou a Sociologia, ele criou a História das Ciências, entendida não como o simples relato das atividades científicas, mas como a compreensão dos fatores que conduzem ao desenvolvimento das ciências

o   Em outras palavras, a História das Ciências criada por Augusto Comte é uma “história” porque se trata de uma história sociológica das ciências

o   Com o desenvolvimento do Positivismo, isto é, com o seu amadurecimento, a “visão de conjunto” passou também a implicar necessariamente as noções de “subjetividade”

§  O Positivismo aplica pelo menos duas noções de subjetividade, ambas plenas de conseqüências:

·         A primeira é a subjetividade social, que afirma as concepções próprias e a realidade específica do ser humano, em contraposição ao mundo externo e, daí, às ciências inferiores

·         A segunda é a subjetividade individual

§  As duas subjetividades acima englobam os sentimentos e as idéias

·         Há também o âmbito da imaginação, que está no escopo das belas-artes

·         Enquanto as subjetividades indicadas acima têm um papel estruturador do ser humano, a imaginação (na medida em que se vincula às artes) assume uma característica mais subordinada

o   A subordinação da imaginação deve-se à necessidade mais pronunciada de sua regulação, para que não se desvirtue e não descambe para o irracional, o imoral, o puramente fantástico, o alucinado etc.

o   A visão de conjunto amadurecida, ao constituir a Religião da Humanidade, também passou a abarcar mais claramente as noções de “sínteses”

§  As sínteses são concepções gerais que afirmam e estabelecem princípios gerais de entendimento e avaliação da realidade

§  Como sabemos, as sínteses podem ser objetivas ou subjetivas, absolutas ou relativas; na verdade, as sínteses só podem ser subjetivas e relativas, mas podem pretender-se absolutas e objetivas ou subjetivas

-        Vale a pena insistirmos em algumas características das disciplinas criadas por Augusto Comte:

o   O fundador da Religião da Humanidade criou pelo menos duas, talvez três, disciplinas científicas, todas elas tomando necessariamente como base a visão de conjunto:

§  As disciplinas criadas foram (1) a Sociologia, (2) a Moral e (3) a História das Ciências

§  A criação dessas disciplinas com base na visão de conjunto deu-se contrariamente à tendência da fundação de todas as outras ciências, em particular em termos acadêmicos:

·         A tendência academicista consiste na rejeição da visão de conjunto e, inversamente, com enorme freqüência na afirmação do reducionismo (ou materialismo)

-        Ao fundar a Sociologia e, depois, a Moral, Augusto Comte constituiu e concluiu a escala enciclopédica; essa escala afirma a existência de sete ciências abstratas fundamentais, cujos objetos e cujos tipos de abstração são irredutíveis uns aos outros:

o   O que a escala enciclopédica faz, portanto, é insistir na existência de fenômenos abstratos irredutíveis uns aos outros

§  Augusto Comte definia uma ciência como um conjunto de investigações abstratas sobre um determinado âmbito da realidade

§  Isso significa que, sob uma denominação científica geral (e no singular) podem agrupar-se inúmeras ciências mais específicas

·         Dois exemplos com valores intelectuais heterogêneos: a Matemática engloba três ciências específicas (Aritmética, Geometria e Mecânica); a Sociologia, conforme é ordinariamente praticada nas academias brasileiras, engloba a Sociologia específica, a Antropologia e a Ciência Política

o   Ora, a escala enciclopédica, portanto, não nega a possibilidade de intere multidisciplinaridade:

§  A interdisciplinaridade dá-se de maneira evidente nas “franjas” de transição entre as ciências justapostas

§  A multidisciplinaridade, por seu turno, não se dá no âmbito das ciências fundamentais, ou, nos precisos termos da Religião da Humanidade, no âmbito da Filosofia Segunda (as ciências fundamentais)

·         A multidisciplinaridade ocorre na Filosofia Terceira, isto é, na aplicação prática das ciências fundamentais, que é o que se chama geralmente de “tecnologia”

o   A transdisciplinaridade no âmbito da Religião da Humanidade é afirmada com ainda mais clareza, estabelecida como parâmetro necessário de entendimento da realidade e como princípio epistemológico – e, evidentemente, também como princípio moral

§  Exatamente porque considera a visão de conjunto sobre a realidade humana; exatamente porque se dirige ao conjunto da existência humana é que a versão amadurecida do Positivismo é uma “religião” – necessariamente a Religião da Humanidade

§  No âmbito acadêmico, quem afirma a multi e mesmo a transdisciplinaridade mas rejeita a Religião da Humanidade, fá-lo devido a alguns motivos não muito bons e não necessariamente excludentes entre si:

·         Ignorância da obra de Augusto Comte

·         Ciúme da obra de Augusto Comte

·         Incoerência filosófica e/ou moral – que pode incluir como subtipos:

o   Apego à teologia e/ou aos hábitos críticos

o   Aceitação da teoria metafísica dos dois domínios (intelectual-científico e “espiritual”-teológico) – que é profundamente irracional e incoerente

-        Os comentários feitos até agora foram de caráter estático (científicas, filosóficas e morais); passemos a algumas reflexões dinâmicas (históricas e filosóficas)

o   A visão de conjunto de modo geral faz parte das reflexões humanas; na verdade, todos os seres humanos buscam ter uma visão de conjunto sobre o mundo e sobre o ser humano, incluindo os elementos dessa realidade e os princípios que a regem

§  Como sabemos, essas concepções gerais sobre o homem e o mundo constituem as sínteses e as regulações gerais da vida, baseadas nas sínteses, constituem as religiões

-        Como a busca de concepções gerais integra a natureza humana, é natural que todas as sociedades desenvolvam suas elaborações, isto é, suas sínteses

o   O fetichismo elabora espontaneamente uma síntese, ao atribuir à realidade externa as mesmas características que os seres humanos percebem em si mesmos

o   Mas é nas teocracias antigas que se tem uma regulação geral e sintética da existência humana, elaborada e mantida pelo sacerdócio

§  Essa regulação é característica do politeísmo e, em virtude de seu caráter estático, esse politeísmo é conservador

§  Embora seja uma forma errada, pois invertida, de entender a questão, com fins didáticos podemos dizer que a unidade sacerdotal teocrática era inerentemente “transdisciplinar”

§  O politeísmo conservador baseia-se na ascendência (ou dominação) dos sacerdotes sobre os guerreiros; quando os guerreiros afinal obtêm o poder, a unidade mantida pelo sacerdócio afinal se rompe e, a partir daí, surgem efetivamente aquilo que chamamos atualmente de “disciplinas”

o   No Ocidente, a seqüência seguida na emancipação do jugo sacerdotal teocrático – ou, de maneira equivalente, a seqüência na fragmentação da unidade teocrática – foi a seguinte: as artes; a filosofia; a ciência

§  A indústria sempre teve uma existência à parte, embora, é claro, dependente tanto da regulação social teocrática quanto dos conhecimentos elaborados, conservados e difundidos pelo sacerdócio

o   A seqüência de emancipação arte-filosofia-ciência é ilustrada exemplarmente na evolução grega e indicada no calendário positivisa concreto por Homero, Aristóteles e Arquimedes

o   A emancipação de cada uma dessas atividades permitiu, evidentemente, o seu livre desenvolvimento

§  Uma forma alternativa de dizê-lo é o seguinte: o livre desenvolvimento das produções intelectuais humanas exigiu o rompimento dos parâmetros gerais de regulação, tanto os intelectuais quanto os morais

§  Os parâmetros intelectuais incluíam a visão de conjunto; os parâmetros morais incluíam as preocupações sociais

o   O rompimento dos padrões teocráticos deu livre curso aos ramos intelectuais, conduzindo então, progressivamente, à especialização dos conhecimentos – o que, no jargão atual, consiste na “disciplinarização” dos conhecimentos

o   A dominação romana, ao estabelecer o desenvolvimento prático, subordinou as elaborações gregas às necessidades morais e práticas, ou seja, restabeleceu um pouco os parâmetros morais e sociais

§  Em outras palavras, a dominação romana impôs uma visão de conjunto às elaborações gregas

o   A partir da sociabilidade romana, por fim a Idade Média desenvolveu a moralidade, cultivando diretamente os sentimentos (ainda que a partir de uma síntese fictícia, absoluta e egoísta; que se concentrasse na pureza e não no altruísmo; que tivesse que ser auxiliada pelo elemento cavalheiresco da feudalidade)

§  Da mesma forma, a partir de uma síntese fictícia, absoluta e egoísta, a Idade Média também impôs uma visão de conjunto à existência humana

o   O desenvolvimento básico da inteligência (Grécia), da atividade prática (Roma) e dos sentimentos (Idade Média) realizou-se sob o patrocínio da teologia, nas formas do politeísmo progressista e do monoteísmo católico; a partir de então a teologia encontrou-se esgotada, sendo necessário o desenvolvimento direto do dogma positivo com o objetivo de elaborar-se uma síntese relativa e subjetiva

§  A elaboração do dogma positivo baseou-se em um novo rompimento dos parâmetros sintéticos, agora do monoteísmo

§  Enquanto auxiliou o desenvolvimento humano, ou seja, enquanto a síntese monoteica não se deparou com concepções francamente contrárias a si, ela teve um caráter progressista; entretanto, à medida que o dogma positivo ampliou-se e avançou, ficou cada vez mais claro que a síntese monoteísta é incompatível com a realidade, o relativismo e o subjetivismo dos conhecimentos – daí que a teologia tornou-se cada vez mais e progressivamente retrógrada e reacionária

o   O dogma positivo constituiu-se na forma do desenvolvimento de novas áreas das ciências preexistentes e na criação de novas ciências

§  Como Augusto Comte notava, um dos mais importantes traços desse movimento foi a introdução de perspectivas dinâmicas às investigações reais, em contraposição ao caráter estático das pesquisas antigas

§  Além disso, cada vez mais o relativismo das investigações evidenciou-se, abandonando-se a metafísica do “por quê?” em favor da positividade do “como?”

o   O desenvolvimento do dogma positivo foi, em si mesmo, algo necessário e bom, mas teve algumas características inescapáveis que, a longo prazo, tornaram-se negativas:

§  A progressiva especialização, no sentido de progressiva rejeição da visão de conjunto, entendida como algo inerentemente bom

§  A concepção de que a visão de conjunto – àquela altura entendida como sinônimo de aplicação da síntese monoteísta – seria algo necessariamente negativo (repressivo e/ou místico), portanto a ser evitado e/ou combatido

§  O necessário reducionismo (ou materialismo) de cada ciência que progressivamente se afirmava, em relação às concepções superiores a si

·         O academicismo aprofunda os vícios indicados acima

§  É a partir de e contra a “disciplinarização”, a especialização e o reducionismo próprios ao desenvolvimento do dogma científico que se pode falar, então, em “inter”, “multi” e “transdisciplinaridade”

·         É por isso que temos insistido em que a inter, a multi e a transdisciplinaridade são propostas carregadas de cientificismo e, ainda mais, freqüentes vezes, de academicismo

o   Essa marcha, como se sabe, abrangeu a Matemática, a Astronomia, a Física, a Química e a Biologia

§  A Biologia é a última das ciências inferiores, ou a primeira das ciências superiores: em todo caso, ela estabelece a transição entre o mundo externo (o mundo) e o mundo interno (o ser humano)

§  Enquanto as ciências inferiores, da Matemática à Química, adotam perspectivas de detalhe, a Biologia inverte a perspectiva, exigindo visões de conjunto: em outras palavras, ela é a primeira ciência que exige a retomada da visão de conjunto

·         Isso, todavia, não evita necessariamente os vícios próprios à ciência, como a “disciplinaridade” e, ainda mais, o reducionismo em relação à Sociologia e à Moral

o   A Sociologia aprofunda a exigência da visão de conjunto; na verdade, ela exige a visão de conjunto estática (na solidariedade) e, ainda mais, a dinâmica (na continuidade)

§  Como vimos, a Sociologia constituiu-se – mas que esteja bem claro: apenas e exclusivamente com Augusto Comte, não com outros autores! – como sendo ao mesmo tempo “transdisciplinar” e respeitando a dignidade das ciências inferiores!

o   A criação da ciência da Moral completa a escala enciclopédica e, assim, conclui e aperfeiçoa a síntese positiva, relativa e subjetiva

§  Ao mesmo tempo, a Moral consolida e amplia os parâmetros intelectuais, sociais e morais instituídos pela Sociologia

o   Os vícios intelectuais, morais e institucionais próprios às ciências conduziram Augusto Comte a perceber que seria necessário afirmar com clareza ainda maior a visão de conjunto, ou melhor, a unidade do ser humano

§  A afirmação da unidade do ser humano, todavia, não poderia dar-se com a negação da dignidade de cada uma das ciências fundamentais

§  Ao afirmar e aprofundar o espírito positivo, isto é, as suas características de relativismo e de subjetivismo, então, Augusto Comte reconheceu que é necessário distinguir duas formas, ou melhor, duas etapas sucessivas do espírito positivo: uma etapa analítica, disciplinarizada, e outra sintética, filosófica

·         Enquanto a primeira etapa permite a disciplinaridade, a interdisciplinaridade e, até certo ponto, a multidisciplinaridade, a segunda etapa é a única que pode ser chamada de transdisciplinar

§  Entretanto, é importante notar que a síntese positiva é superior à chamada transdisciplinaridade

·         O verdadeiro espírito positivo só se dá com a sua forma filosófica, pois é esta que estabelece, ou restabelece, a síntese positiva e, daí, a unidade humana

§  Uma forma ao mesmo tempo simples e bela de estabelecer a síntese positiva e a unidade humana é por meio da afirmação de que, na verdade, só existe uma ciência, a ciência do ser humano – ou melhor, só existe a ciência da Humanidade

-        Esta exposição está bastante longa, mas não é exaustiva; desde já posso indicar que deixei de lado, mas que não poderei desenvolver agora, pelo menos alguns temas que foram citados:

o   A falsa esperança das chamadas “ciências concretas”, que, no fundo, é o que fundamenta muitas das propostas de multidisciplinaridade

o   A relação entre a síntese subjetiva e as ciências abstratas, ou, dito de outra forma, a relação entre as perspectivas analíticas abstratas e a síntese concreta

o   Além disso, embora eu não tenha citado ao longo desta exposição, vale notar que a Trindade Positiva integra os elementos próprios à síntese positiva e que, nesse sentido (bem pobre, aliás), ela integraria uma transdisciplinaridade positivista

o   Da mesma forma, a Religião da Humanidade pode e deve ser entendida como um conjunto de indicações, sugestões, orientações e prescrições visando a regular e a lidar com os problemas afetivos, intelectuais e práticos da inter, da multi e, principalmente, da transdisciplinaridade

-        Em suma:

o   As propostas de inter, multi e transdisciplinaridade surgem a partir das especializações científicas e, ainda mais, das especializações acadêmicas

§  Essas propostas muitas vezes são generosas e corretas, ainda que apresentem limitações e sejam também muitas vezes eivadas de incoerências

§  Em última análise, o que fundamenta as propostas de inter, multi e transdisciplinaridade é a afirmação cada vez mais ampla da visão de conjunto e a busca de uma síntese humana – que, todavia, na prática são negadas pelos próprios cultores da inter, da multi e da transdisciplinaridade

o   O Positivismo é uma filosofia que claramente, desde o início, com todas as letras constituiu-se a partir da visão de conjunto; a partir disso ele elaborou uma filosofia histórica das ciências e, ao mesmo tempo, criou a Sociologia

§  A compreensão de que as ciências abstratas fundamentais devem ter suas dignidades respeitadas mas que, ao mesmo tempo, elas são insuficientes para a síntese e a unidade humanas levou Augusto Comte a dividir a etapa intelectual do espírito positivo em duas novas fases sucessivas: uma analítica, mais cientificista, e outra sintética, de caráter necessariamente filosófico

§  É claro que a etapa sintético-filosófica é superior à etapa analítico-cientificista

o   O aprofundamento progressivo da visão de conjunto e o evidenciamento dos seus aspectos morais conduziram Augusto Comte a criar a ciência da Moral e, entendendo a importância e a necessidade da síntese positiva e da unidade humana, a criar a Religião da Humanidade, epítome de todas essas exigências

24 janeiro 2024

Necessidades individuais satisfeitas pelas religiões

No dia 23 de Moisés de 170 (23.1.2024) iniciamos as atividades da Igreja Positivista Virtual no ano de 170 (2024). Nessa ocasião, demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua nona conferência, dedicada ao conjunto do regime.

Antes da leitura comentada, indicamos diversas atividades realizadas no período do recesso: 

- a comemoração da Festa da Humanidade (1º de Moisés/1º de janeiro);

- a celebração do nascimento de Augusto Comte e também a celebração de Rosália Boyer (19 de Moisés/19 de janeiro);

- a criação da coleção "Positivism" na biblioteca virtual Internet Archive.

Depois desses anúncios, lembrando que o Positivismo é uma religião cívica, lemos o manifesto intitulado "Pela república, a favor da sociocracia, contra o terrorismo fascista", lançado em 8 de Moisés de 170 (8.1.2024) (disponível aqui: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2024/01/manifesto-pela-republica-favor-da.html).

Na parte do sermão, comentamos as necessidades individuais satisfeitas pelas religiões. As anotações que serviram de base para essa exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (disponivel aqui: https://l1nq.com/psLt3) e Igreja Positivista Virtual (disponível aqui: https://acesse.one/uBHLP).

A leitura do manifesto iniciou-se aos 13 min 56 s.

A leitura comentada do Catecismo positivista começou aos 34 min 25 s.

O sermão começou em 1h 12 min 05 s.

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-        Há algumas semanas tivemos uma observação, que é também uma espécie de dúvida, apresentada por um jovem que tem estudado o Positivismo:

o   Por vezes as teologias obtêm e mantêm seus aderentes devido à necessidade de muitos indivíduos de verem-se tutelados integralmente, o tempo todo, por entidades todo-poderosas

-        Em primeiro lugar, a percepção de que há teológicos que precisam desse tipo de tutela não pode conduzir-nos à ilusão, ou até ao preconceito, de que todos os teológicos buscam essa tutela

o   Em primeiro lugar, devemos lembrar que há diferentes tipos de teologia e que, portanto, elas geram ou estipulam diferentes tipos de comportamentos

§  A busca de tutela é mais própria ao monoteísmo – e, em particular, ao monoteísmo cristão – que ao politeísmo, em que os vários deuses têm comportamentos díspares mas que, com freqüência, não são exatamente tutelares (e as tutelas são particulares a grupos ou âmbitos específicos)

o   Mas, de qualquer maneira, mesmo no caso do monoteísmo cristão, diferentes tradições e diferentes indivíduos têm relações diferentes com a divindade

§  A relação de submissão solicitante mantém-se em geral, mas é claro que, por um lado, há indivíduos que requerem menos a tutela, assim como, por outro lado, há indivíduos que solicitam mais a tutela

-        A busca de uma divindade todo-poderosa que tutele o tempo todo os indivíduos é característica de naturezas mais frágeis, por vezes em termos objetivos (isto é, pessoas que vivem na pobreza ou na miséria), mas com freqüência em termos subjetivos

o   Em face disso, duas reflexões surgem:

§  (1) Pessoas mais frágeis precisam de mais apoio

·         Mas não devemos criticar essa necessidade em si mesma: isso é uma questão de respeito às características pessoais de cada um e mesmo às condições sociais em que vivem, além de isso evocar a regra do dever altruístico: a dedicação dos fortes pelos fracos

§  (2) Mas, por outro lado, em certas situações, essa busca de tutela tem de fato um aspecto de infantilidade, em que um adulto busca o apoio subjetivo de uma figura paterna (ou, mesmo, em termos mais amplos, de uma figura parental)

o   Ora, como indicamos antes, diferentes religiões estimulam diferentes sentimentos e, daí, conduzem a diferentes comportamentos: os monoteísmos efetivamente estimulam mais a busca de uma tutela absoluta:

§  As figuras patriarcais, tutelares e vingativas do judaísmo e do cristianismo, a divindade punitiva do Islã, mesmo as ambigüidades afetivas e apocalípticas da trindade cristã

§  Tudo isso, próprio a uma época que já se encerrou há muito e muito tempo, ainda hoje estimula bastante muitos comportamentos irresponsáveis, seja porque são “fanáticos”, seja porque são infantilizados

-        Feitos esses comentários, devemos ter cuidado com outra coisa: não devemos apenas criticar a situação dos monoteístas que buscam a tutela; devemos considerar que essa busca em si mesma corresponde a uma necessidade humana verdadeira e legítima, mas cuja solução teológica (em particular monoteísta), como de hábito, é inadequada

o   Antes de prosseguirmos, devemos lembrar que as divindades monoteicas – seja a do judaísmo, seja a do catolicismo, seja a islamismo – estão radicalmente separadas dos seres humanos, não precisam dos seres humanos para nada e, ante elas, os seres humanos estão solitários e desamparados

§  A solidariedade terrena é certamente estimulada pelo altruísmo inato ao ser humano, mas, do ponto de vista dogmático, tal solidariedade é apenas uma forma de aumentar o exército de indivíduos isolados (e interesseiros) perante a divindade que não tem nenhum interesse real em nós

-        A noção de “Humanidade” tem, e tem que ter, um aspecto de conforto, de apoio; esse elemento é tanto objetivo quanto subjetivo

o   Antes de mais nada, devemos ter clareza de que o apoio fornecido pela Humanidade é de caráter relativo e não absoluto, ou seja, não é todo-poderoso e em larga medida depende das ações dos seres humanos

o   Augusto Comte referia-se por vezes à Humanidade como a nossa “providência real”: esse aspecto de “providência” já deixa claro que é ela, a Humanidade, que nos cria e que, em última análise, fornece-nos tudo aquilo de que precisamos

§  A imagem que representa a Humanidade (a mulher com cerca de 30 anos, segurando em seu colo um bebê) sugere diretamente o apoio, o carinho, o afeto, o conforto que a Humanidade provê e inspira-nos

o   Mas a Humanidade é relativa e é composta; como dizia Augusto Comte a partir de Dante, ela é “filha de seu filho”: a Humanidade tem vários âmbitos de atuação

-        Por um lado, a Humanidade é um ser composto: seus mínimos elementos são as famílias e as mátrias; nas famílias e nas mátrias – e também, cada vez mais, no que se chama atualmente de “sociedade internacional” – buscamos e obtemos os apoios de que necessitamos

o   O centro moral de cada família é a mulher, seja como esposa, seja como mãe: assim, o conforto moral que ela provê é uma prefiguração da deusa positiva

o   Além disso, em parte generalizando o apoio doméstico, em parte solucionando as dificuldades que, concretamente, todos podemos enfrentar na obtenção de apoio e amparo doméstico, Augusto Comte elaborou a concepção dos “anjos da guarda”

§  Os anjos da guarda consistem precisamente naquelas figuras que nos ampara(ra)m afetivamente e que, por isso, são merecedoras da nossa idealização pessoal

§  Essas idealizações são esforços conscientes da nossa parte de homenagear essas figuras, estabelecendo-as como importantes e poderosos apoios subjetivos em nossas vidas, o que resulta, além disso, em estímulos contínuos para o nosso desenvolvimento e aperfeiçoamento moral, intelectual e prático

-        Por outro lado, a ação da Humanidade é tanto objetiva quanto subjetiva:

o   Citamos há pouco as famílias e as mátrias (e até a sociedade internacional): elas têm um caráter objetivo, ao fornecer-nos o amparo material em nossas vidas

o   Mas as famílias, as mátrias e a Humanidade, evidentemente, também atuam de maneira subjetiva, ao estimular, alimentar e regular nossos sentimentos e nossas idéias

§  Aliás, é exatamente dessa forma e a partir dela – isto é, da característica subjetiva – que cada um de nós pode ter o apoio e o amparo da Humanidade:

·         Seja por meio da inspiração da figura abstrata da Humanidade, seja por meio da ação mais direta e concreta das nossas mães, das nossas esposas, das nossas irmãs, a Humanidade acolhe-nos e conforta-nos

·         Por outro lado, as famílias, as mátrias, a Humanidade inspiram-nos a noção de dever, isto é, de responsabilidades de todos para com todos, em particular dos fortes para com os fracos

o   O resultado dos aspectos objetivos e subjetivos é que a Humanidade:

§  Conforta-nos ativa e passivamente, direta e indiretamente

§  Cria, mantém e desenvolve as condições para esse conforto

§  Esse conforto não é só subjetivo, mas é também objetivo, na medida em que a realidade humana não é a de um isolamento individual radical, mas é a de relações permanentes por todos os lados – relações que, aliás, não se limitam aos seres humanos, mas estendem-se aos animais domésticos e, por meio do fetichismo, também a muitos objetos, ao Sol, à Lua, ao fogo etc.

§  Mas temos que insistir neste ponto: o conforto objetivo e subjetivo provido pela Humanidade estimula e, na verdade, exige a noção de dever, isto é, de responsabilidade de todos para com todos

-        Como uma decorrência do aspecto anterior (objetividade/subjetividade), a ação da Humanidade dá-se tanto no presente quanto, ainda mais, no passado e no futuro:

o   A distinção entre passado/futuro e presente conduz-nos à distinção entre a vida objetiva e a vida subjetiva de uma forma mais precisa, ao indicar que na vida subjetiva estão todos os seres humanos convergentes que já morreram, além de aqueles todos que ainda não nasceram; na vida objetiva estão os servidores da Humanidade, os seus agentes concretos, que são todos os indivíduos que atuam em prol dos seres humanos e das coletividades

§  Não existem indivíduos por si sós; o que há são integrantes de famílias e de mátrias, que também colaboram para a Humanidade

o   Por um lado, os indivíduos, ou melhor, os agentes concretos da Humanidade são os titulares de deveres

§  Esses deveres, aliás, mudam de acordo com os grupos sociais que se considera; quanto mais recursos tiverem os grupos sociais, maiores são seus deveres e, portanto, maiores são as cobranças que devem ser feitas sobre eles

§  De qualquer maneira, como já indicamos algumas vezes: entre os deveres que cabem a todos estão os de atuarem em prol dos demais (é o objetivo concreto do “viver para outrem”) e, portanto, o de atuarem objetivamente como a providência que é a Humanidade

o   Por outro lado, os agentes concretos da Humanidade são confortados, inspirados, alimentados e orientados pela Humanidade em suas ações

§  A lei do dever, isto é, o “viver para outrem”, é também um ideal, um objetivo geral que orienta a vida de cada um de nós

§  Assim, sob a inspiração da Humanidade, colaboramos ativamente para o melhoramento e o enriquecimento da vida de todos como, em termos “puramente” individuais, temos sempre objetivos de vida: não ficamos nunca sozinhos no universo nem ficamos desorientados em nossas vidas

-        Para concluir:

o   Como dissemos antes, diferentes religiões estimulam diferentes traços da natureza humana

o   Os monoteísmos estimulam com freqüência – e talvez de maneira particular – a busca do tutelamento individual, ou melhor, a busca de uma tutela infantilizante

o   Mas se a tutela infantilizante é uma solução que, no final das contas, é degradante, ainda assim podemos considerar que ela baseia-se por vezes em necessidades legítimas – de apoio, de amparo, até mesmo de orientação na vida

o   A respeito de todos esses aspectos, a noção e a realidade da Humanidade satisfazem mais e melhor os seres humanos:

§  Os vários níveis concretos da Humanidade apóiam-nos e amparam-nos de verdade

§  A noção abstrata de Humanidade estabelece a lei do dever, que permite o apoio e o amparo e que dá sentido à vida de cada um de nós

§  Essas diversas concepções podem parecer muito abstratas à primeira vista, mas elas são radicalmente concretas: nossas mães são nossos amparos; cada família, cada mátria, cada indivíduo, cada animal, cada fetiche atua para melhorar nossas vidas: é assim, e é só assim, que age a Humanidade e que é possível termos apoio e amparo

·         Inversamente, cada ser humano que atua de maneira egoística e/ou destrutiva age contra a lei do dever e contra a Humanidade


21 janeiro 2024

Dois livros dos irmãos Lagarrigues na internet

Dois livros dos grandes positivistas chilenos, os irmãos Lagarrigues, foram há pouco carregados na internet:



O primeiro livro é um pequeno, belo e simpático ensaio moral, filosófico e religioso na forma de uma conversa entre homens e mulheres positivistas, católicos e livre-pensadores, cujo objetivo é mostrar o caminho das religiões teológicas (exemplificadas pelo catolicismo) e da metafísica (o ateísmo) em direção à positividade da Religião da Humanidade.

O segundo livro apresenta as concepções positivistas a respeito da incorporação do proletariado à sociedade moderna, incluindo aplicações práticas disso (na forma de inúmeros anexos ao texto principal). Vale notar que o autor, Luís Lagarrigue, foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz de 1929 pelo volume Politique Internationale.