13 janeiro 2016

Jean-Michel Muglioni: a França define-se por "uma" cultura?

Reproduzo abaixo uma interessante postagem do filósofo francês Jean-Michel Muglioni, que se questiona se a França republicana e laica define-se por uma "cultura francesa" ou se define-se pelas instituições universais próprias à República. 

A resposta, como é evidente, consiste em que a França é uma República universalista, não uma cultura particularista. Esse é um dos elementos subjacentes à laicidade e é um importante aspecto para considerar-se no combate aos integrismos teológicos, sejam cristãos, sejam muçulmanos, que têm agitado tão tristemente a França.

O original encontra-se disponível aqui.

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La France se définit-elle par « une » culture ?

La République Française ne se définit pas par « une » culture, par opposition aux sociétés multiculturelles, mais par la citoyenneté, qui est la reconnaissance de principes. Une certaine droite refuse l’idée républicaine et réduit en fin de compte l’identité française au simple rang de folklore, oubliant l’exigence d’universalité qui caractérise nos institutions.
Bruno Lemaire a fait de brillantes études littéraires, sanctionnées par une réussite aux concours les plus difficiles. Il a écrit notamment Musique absolueune répétition avec Carlos Kleiber (Gallimard, 2012) – Carlos Kleiber chef d’orchestre européen et citoyen du monde. Bruno Lemaire est cultivé. Or dans un débat1 où Jean-Luc Mélenchon répondait à la représentante du Front National que la laïcité de l’État ne juge pas des cultures et que la France est multiculturelle, Bruno Lemaire l’a interrompu, pour opposer au « modèle multiculturel » la croyance en « une culture française », « culture nationale ». Bref, il opposait au multiculturalisme un monoculturalisme. Or Jean-Luc Mélenchon ne défendait pas un multiculturalisme contraire à l’idée républicaine : il disait que les Français n’ont pas en commun « une » culture, mais des lois et des principes – liberté, égalité, fraternité. Il eut donc beau jeu de dénoncer le « catéchisme d’extrême droite » de son interlocuteur et de provoquer sa colère.
Bruno Lemaire a caractérisé alors la culture française par des grands hommes, de Gaulle, Bonaparte, des écrivains, Montaigne, Hugo, Camus, ce qui n’est pas sans vérité, mais il a répondu à Jean-Luc Mélenchon qui lui demandait si Kant appartient à la culture française : « c’est une culture qui appartient à la culture européenne, ce n’est pas la culture nationale », ou encore : c’est la « culture allemande » et non la « culture française ».
Ce qui m’a remis en mémoire une vieille affaire. Dans un lycée international, les directeurs des sections nationales réunis pour organiser leurs bibliothèques respectives déterminaient quels ouvrages ranger dans la bibliothèque générale. Le directeur de la section allemande demanda Dürer pour la bibliothèque allemande. Le représentant de la section anglaise dit calmement qu’il lui laissait l’art nazi et gardait Dürer dans la bibliothèque générale.
Je ne nie pas l’équivoque du terme « multiculturel » qu’on peut confondre avec « multiculturaliste », d’autant qu’aucune desdites cultures n’est « pure » : toutes sont mélangées, elles sont toutes mêlées les unes aux autres. Je soutiens que toute soumission de la loi républicaine aux exigences d’une culture est inadmissible. En fin de compte, c’est la notion de culture qui est confuse : Bruno Lemaire parlait « d’une » culture et non plus de « la » culture, comme si Montaigne, Hugo ou Camus relevaient « d’une » culture au sens ethnologique du terme. Était-ce ignorance ou démagogie ? Finira-t-il par soutenir qu’Achille appartient à la culture grecque et non à la culture française, et Gavroche seulement au folklore parisien ?
Ainsi ce débat permet au moins de savoir qu’il y a deux camps : d’un côté l’oubli ou même le refus de 1789, de l’autre une certaine façon de lui demeurer fidèle. Au moment où la plupart des partis et des politiques dits de gauche ont renoncé, comme la droite, à la culture – je dis bien « la » et non « une » -, Bruno Lemaire nous force à avouer que la distinction de la gauche et de la droite, même si elle ne correspond pas souvent à la place des députés au parlement, a un sens et permet bien d’opposer deux types de politiques.
Mais il y a peut-être des raisons d’espérer : le refus de la culture n’est pas universel. Je lis ici que le premier ministre italien a annoncé que l’Italie va dépenser à part égale deux milliards d’euros pour sa sécurité et pour sa vie culturelle, jugeant que la réponse au terrorisme n’est pas seulement sécuritaire : « La pensée de l’Italie, qui résonne fortement à travers l’Europe et le monde, est la suivante, dit-il : pour chaque euro supplémentaire investi dans la sécurité, il faut un euro de plus investi dans la culture ».
Lors de l’hommage national du 27 novembre dans la cour des Invalides, on a pu entendre outre laMarseillaise et une chanson française de Barbara, une chanson de Jacques Brel, une suite de Bach et un chœur de Verdi. Faut-il dire qu’il s’agit de culture belge, allemande et italienne, mais non française ?
PS. –  J’ai attendu la fin du 1er tour des élections régionales pour publier ces réflexions afin d’éviter tout malentendu.
© Jean-Michel Muglioni et Mezetulle, 2015.
Notes
  1. Des paroles et des actes, France 2, le 17 novembre 2015. [↩]

01 janeiro 2016

1º de janeiro - Festa da Humanidade

No dia 1° de janeiro - ou dia 1° de Moisés, no calendário positivista - comemora-se a Festa da Humanidade, que é a festa maior do Positivismo. 

A Humanidade é o conjunto de seres humanos convergentes, passados, futuros e presentes; ela é nossa verdadeira providência, pois todos os nossos recursos (morais, sociais, intelectuais) só são possíveis graças à ação da Humanidade, que evolui com o passar do tempo. 

Sermos dignos de integrarmos a Humanidade é o supremo ideal de todos os Positivistas; desenvolver o altruísmo, comprimir o egoísmo, promover as atividades pacíficas em prol do bem comum: eis o que a Festa da Humanidade resume.



Cartaz gentilmente elaborado por João Carlos Silva Cardoso.

17 dezembro 2015

Juiz "filho de Ogum" nega a laicidade do Estado

Sendo claro e direto: não importa se esse juiz é filho de Ogum, pai de santo, crente ou carola. O Estado é laico, ele está errado e ele foi contra a lei. Aliás, ele foi duplamente contrário à lei: (1) ao profusamente embasar sua decisão em motivos religiosos e (2) ao considerar como aceitável o apoio público a uma igreja.

Pelo jeito, o desrespeito ao Estado laico praticado pelos cristãos já contamina as religiões afrobrasileiras.

A postagem original encontra-se disponível aqui.

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ARMAS DE JORGE

Ao julgar construção de igreja pelo Estado, ministro recita Oração de São Jorge


Antes de começar o voto em que defendia que manifestações religiosas não ferem o princípio da laicidade do Estado, o ministro Napoleão Nunes Maia Filho, do Superior Tribunal de Justiça, pediu licença. Queria recitar a Oração de São Jorge, aquela que fala das roupas e das armas de Jorge.
O caso discutia a construção da Igreja de São Jorge, no Rio de Janeiro, com dinheiro do Estado, autorizada pelo então governador César Maia. Napoleão, relator do recurso na 1ª Turma, foi o vencedor. Defendeu que o princípio da laicidade estatal não impede o Estado de promover ações em favor da religiosidade de uma comunidade.
“Eu andarei vestido e armado com as armas de São Jorge para que meus inimigos, tendo pés não me alcancem, tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me vejam, e nem em pensamentos eles possam me fazer mal. Armas de fogo o meu corpo não alcançarão, facas e lanças se quebrem sem o meu corpo tocar, cordas e correntes se arrebentem sem o meu corpo amarrar”, entoou.
Depois, fez um retrospecto da história das religiões e das manifestações religiosas no Brasil. “Eu mesmo sou filho de Ogum”, disse, lembrando dos orixás do Candomblé para falar do sincretismo religioso no país. Ogum é o senhor da guerra e do ferro, comumente associado a São Jorge, o santo guerreiro da Igreja Católica.

 é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.

15 dezembro 2015

Comemorações de 228 (2016)

NOME
VIDA
CALENDÁRIO
J.-G.
384 ac-322 ac
Aristóteles
26.fev-25.mar
1266-1290
19 de São Paulo
8.jun
1547-1616
4 de Dante
19.jul
384 ac-322 ac
10 de César
2.maio
1466-1536
5 de Descartes
12.out
1723-1816
25 de Descartes
1.nov
253 ac-184 ac
12 de César
4.maio
129-216
5 de Arquimedes
30.mar
1516-1565
26 de Dante
10.ago
1737-1816
18 de Bichat
20.dez
1161-1216
21 de Carlos Magno
8.jul
1766-1844
20 de Gutenberg
1.set
1646-1716
21 de Descartes
28.out
1766-1817
24 de Dante
8.ago
254 ac-184 ac
16 de Homero
13.fev
1653-1716
6 de Bichat
8.dez
1564-1616
Shakespeare
10-set-7.out
1616-1703
9 de Bichat
11.dez
FONTE: Wikipédia; “Apêndice” de Apelo aos conservadores (autoria de Augusto Comte; Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil, 1899), organizado por Miguel Lemos.
NOTAS:
1.     As datas de vida foram pesquisadas na internet (basicamente na wikipédia), considerando que esse procedimento permitiria obter o que há de mais atualizado a respeito das diversas biografias; além disso, cotejaram-se essas datas com as disponíveis no “Apêndice” do Apelo aos conservadores.
2.     Letras maiúsculas em negrito: nomes de meses.
3.     Letras maiúsculas simples: chefes de semanas.
4.     Letras em itálico: tipos adjuntos, considerados titulares nos anos bissextos.
5.     Os artigos da Wikipédia foram selecionados basicamente em português, mas em diversos casos ou só havia em outra(s) língua(s) ou eram melhores em outra(s) língua(s) (francês, inglês, espanhol).


27 novembro 2015

Reginaldo Prandi: "Terrorismo contra o Estado laico"

Artigo de opinião publicado em 27.11.2015, na Folha de S. Paulo; a versão eletrônica original pode ser lida aqui.

Um aspecto central da argumentação de R. Prandi e R. W. Santos é a seguinte: não foi a civilização "cristã" que foi alvejada no dia 13.11, mas a instituição da laicidade. Além disso, noto que esse aspecto é determinante, tanto para o Ocidente quanto para os terroristas: há séculos o Ocidente não se caracteriza mais pelo "cristianismo", mas pela laicidade crescente e pela tolerância. A laicidade do Estado, aliás e não por acaso, é repudiada pelo Islã.

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REGINALDO PRANDI E RENAN WILLIAM DOS SANTOS

Terrorismo contra o Estado laico

Ouvir o texto

Além do abominável dano real das vidas perdidas, os ataques terroristas têm um efeito essencialmente simbólico. Seu verdadeiro alvo é a autoimagem da sociedade golpeada. Em um ato que se expande para além dos corpos mortos e feridos, o objetivo fundamental é atingir, pelo terror, a alma da própria civilização do país agredido.

Foi assim com as torres gêmeas, derrubadas no 11 de Setembro de 2001. Suas ruínas simbolizaram o fim do sentimento norte-americano de invulnerabilidade.

Já a França, o país com maior população muçulmana da Europa ocidental, atacada de novo, agora pelo Estado Islâmico, representa historicamente o que esses fanáticos mais querem ver destruídas: as barreiras que separam o Estado da religião. Para esse terrorismo, que ataca em qualquer lugar, porque por toda parte pode enxergar a negação de seus valores, a França é o ícone máximo da civilização edificada com aquela separação. O ataque a Paris é, acima de tudo, um ataque ao Estado laico.

Esqueça a liberdade de pensamento, a liberdade de ter qualquer crença, ou nenhuma. Esqueça a igualdade de direitos e deveres entre cidadãos, independentemente da filiação religiosa. Esqueça a autonomia do Estado frente à religião.

O que esses terroristas querem é um mundo "livre" de tudo isso, no qual é justo matar quem tenha crenças diferentes das deles. No qual seja legítimo excluir quem não professe a religião "certa". No qual o Estado seja o braço armado a serviço da perseguição de fins religiosos, ou inspirados por uma leitura particular da religião.

Nas democracias do mundo secularizado, intoleráveis para aqueles religiosos intolerantes, o que evidentemente não inclui todos os religiosos, as religiões podem ter participação ativa na esfera política, desde que aceitem as regras do jogo: seus representantes devem ser democraticamente eleitos, pelo voto, e não conduzidos ao poder pelo carisma religioso ou cargo eclesiástico.

Mesmo aderindo às regras da representação democrática, contudo, os fundamentalistas, islâmicos ou não, ainda se enfrentariam com um Estado laico, que garante a livre escolha religiosa, mas submete as "leis de Deus", estabelecidas pela resolução teológica baseada em verdades imutáveis e mandamentos escritos em um texto sagrado, ao crivo das "leis dos homens", criadas pela deliberação política e sempre sujeitas a mudanças.

Um Estado que certamente condenaria Abraão por tentativa de infanticídio, por mais que ele acreditasse estar seguindo uma ordem divina ao pretender sacrificar o próprio filho.

No fim das contas, essa variante da religião que se manifesta no terror teria, para se firmar, que pôr a sociedade ocidental, e outras, de cabeça para baixo. Como fez o cristianismo, com ações não menos agressivas, com sociedades indígenas e do velho paganismo.

De todo modo, a matança em Paris pode ter feito crescer, aos olhos do mundo ocidental, a aversão a essa mistura promíscua entre religião e poder político. Ao invés de destruir, a ação terrorista pode ter acrescentado algumas fileiras de tijolos nos muros que separam o Estado da religião nas democracias do mundo contemporâneo. E tijolos mais firmes do que nunca, porque assentados com argamassa do sangue de inocentes.


REGINALDO PRANDI, 69, é professor sênior do Departamento de Sociologia da USP e autor, entre outros livros, de "Os Mortos e os Vivos" (ed. Três Estrelas).
RENAN WILLIAM DOS SANTOS, 23, é mestrando em sociologia na USP e bolsista da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).