(Uma versão bastante resumida deste artigo foi publicada na Gazeta do Povo em 28.10.2008; cf. aqui.)
Para iniciar este artigo, convido o
leitor a considerar as seguintes situações:
- Em um final de semana em Curitiba, vou a um supermercado e sou
abordado por servidores de uma universidade paranaense pedindo doações
para o hospital universitário; ao fazer minhas compras, procuro colaborar
com a campanha e separo feijão e leite mas, ao entregar as doações, sou
saudado com um “deus lhe pague”.
- Cotidianamente os servidores dessa mesma universidade usam o
serviço institucional de correio eletrônico para fazerem propaganda
religiosa ou tendo versículos bíblicos com assinatura institucional.
- Comissões internas de caráter técnico-administrativo iniciam ou
terminam seus relatórios rogando a deus seus favores.
- Tendo que usar os serviços do hospital universitário, ao sair fui
presenteado por servidores dessa universidade com alguns folhetos explicativos,
entre os quais se encontrava um papel com alguns versículos bíblicos,
explicando como deus é bom.
- Na biblioteca dos cursos das Ciências Naturais e das Engenharias,
logo na entrada, em uma mesa em destaque e decorada com uma toalha de
renda e um ramo de trigo, há uma grande bíblia, aberta em um “capítulo
edificante”.
- Na biblioteca dos cursos de Ciências Humanas, sozinho em uma parede
e com grande destaque, há um crucifixo com cerca de um metro de
comprimento, belamente entalhado.
- Nos corredores do prédio que abriga os cursos de Ciências Humanas
há vários cartazes em que se lê: “Missa”, “Culto”, “Encontre Jesus”.
- Para comemorar o cinqüentenário da Capela Universitária, a Reitoria
da universidade encomendou uma missa e deu grande destaque a esse evento.
- Ao perguntarmos se essas situações são corretas, as respostas que
ouvimos são no sentido de que isso é correto, ou que “sempre foi assim”,
ou recebemos um raivoso descaso.
O leitor deve pensar
que se trata ou de uma universidade católica ou de alguma outra instituição
confessional de ensino superior. No entanto, todas as situações descritas acima
são verídicas e ocorrem na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Além disso,
todas elas são absolutamente corriqueiras, ou seja, estão longe de serem
exceções ou de serem fatos isolados. Aliás: elas são corriqueiras em inúmeras
outras universidades e outras instituições públicas do Brasil, de tal sorte
que a UFPR é apenas um exemplo de uma situação generalizada no Estado
brasileiro.
E daí que essas situações ocorrem na
UFPR? Daí que a UFPR é uma instituição laica, que não professa nem pode
professar nenhuma crença religiosa. Isso significa que a Universidade
não pode ostentar crucifixos nem colocar bíblias para “reflexão pública” nas
bibliotecas ou em qualquer outro recinto; também significa que a Universidade
não pode encomendar missas ou cultos religiosos para o que quer que seja;
também significa que os servidores da Universidade não podem referir-se a deus
ou a suas crenças pessoais enquanto estiverem trabalhando na Universidade ou
estiverem representando-a. As universidades particulares ou as confessionais
têm total liberdade para exprimirem as crenças que lhes aprouverem, das
maneiras que considerarem corretas: essa é uma possibilidade que as
universidades públicas, entretanto, não possuem. Por que não?
Porque as universidades públicas
integram o Estado brasileiro e o Estado brasileiro é laico, ou seja, não tem
crença nenhuma. Há quem afirme, com bastante maldade, que o Estado laico é um
“Estado ateu”, mas isso é falso. O Estado laico estaria mais para “Estado
agnóstico”: afinal, o ateísmo consiste em negar deus, o que equivale a assumir
uma posição religiosa, ao passo que o “Estado agnóstico” seria aquele que não
decide a respeito das crenças individuais e, portanto, nesse sentido,
não assume nenhuma perspectiva.
O princípio da laicidade do Estado é
tão simples de enunciar quanto, à primeira vista, difícil de praticar. Como
vimos, ele consiste simplesmente em que o Estado não tem religião, o que
equivale dizer que as estruturas políticas e burocráticas – os órgãos públicos,
em outras palavras – não podem beneficiar nenhuma religião nem podem professar
nenhuma fé.
A crença religiosa dos cidadãos
brasileiros é matéria de foro íntimo, não de foro público. Isso tem uma
conseqüência muito clara e direta para o que se refere ao Estado: nem os
servidores públicos nem os ocupantes de cargos públicos podem referir-se às
suas crenças íntimas enquanto estiverem no exercício de suas funções. Afinal de
contas, enquanto estão no exercício de suas funções, esses cidadãos referem-se
ao conjunto da coletividade, isto é, a todos os brasileiros, e não apenas aos
membros de suas próprias igrejas[1].
Embora a laicidade baseie-se em uma
negação – a proibição de o Estado professar qualquer crença –, os benefícios
que ela traz são enormes; na verdade, o Estado laico é o garantidor das
liberdades que podemos chamar, sem margem para dúvidas, de liberdades
verdadeiramente fundamentais, que são as de pensamento e de
expressão: sem elas, ou seja, sem que seja possível a cada indivíduo pensar
por si próprio e dizer o que pensa sem medo de retaliação, nenhuma outra
liberdade é possível e a cidadania torna-se apenas uma palavra.
O Estado laico não é uma instituição
gratuita. Isso quer dizer que ele não é nem fruto do acaso nem que não ele não
tem valor – nem, além disso, que ocorra sem custos.
Ele começou a ser praticado e teorizado
quanto as guerras motivadas pelas religiões cessaram na Europa, no século XVII.
Até então, ser cidadão de um país equivalia a professar uma crença específica;
a partir de então, que cada cidadão devia ao seu governo obediência às leis,
mas não necessariamente devia seguir a mesma religião que seu governante. Foi
mais ou menos nessa época que as religiões tornaram-se tema de foro íntimo,
ficando no foro público os temas propriamente políticos[2].
Ainda assim, apenas no transcurso das revoluções Americana e Francesa, no final
do século XVIII, é que surgiram os primeiros estados completamente laicos, em
que o Estado não obriga os cidadãos a seguir nenhuma religião porque o
próprio Estado não professa nenhuma religião.
No Brasil, o Estado laico foi
instituído em 1890, com a proclamação da República, contra o privilégio que a
Igreja Católica possuía como religião oficial. Com Benjamin Constant à frente,
os participantes da proclamação buscavam uma sociedade de liberdades, com
desenvolvimento e justiça social. Nos Estados Unidos, a separação entre a
Igreja e o Estado foi uma solução de compromisso, pois não se determinou
nenhuma religião como oficial porque não houve acordo a respeito de qual seria
a melhor: aqui, ao contrário, consagrou-se desde o início como princípio
norteador do Estado republicano que a garantia fundamental para as liberdades
seria o Estado não possuir nenhuma religião.
Os fundadores da UFPR tinham exatamente
os mesmos valores: há quase um século, ao criarem em 1912 a então
Universidade do Paraná, Benjamin Lins, Victor Ferreira do Amaral e, mais do que
todos, Nilo Cairo queriam desenvolver a sociedade paranaense em termos
materiais, intelectuais e morais por meio dos estudos de nível superior.
Juntamente com esses valores fundamentais, tinham clareza de que a separação
entre a Igreja e o Estado é uma condição fundamental para que qualquer
sociedade progrida. Não seria exagero dizer que eles tinham horror à idéia de
um Estado que patrocinasse ou permitisse em seu interior práticas religiosas –
mas, detalhe: práticas religiosas no e pelo Estado, mas não na
sociedade.
Como dissemos, a laicidade não ocorre
sem custos. Qual o seu custo? É este: cada indivíduo e cada igreja deve limitar
suas ações no que se refere ao Estado, no sentido de respeitar a laicidade: não
impor sua crença ao Estado nem usar o Estado para impor sua crença. No que se
refere às igrejas, como há um aspecto institucional, é mais simples de perceber
quando ocorre a sua interferência, mas no que se refere aos indivíduos a
fiscalização da sociedade é bem mais difícil. Ainda assim, é necessário
formular sem rodeios como deve ocorrer a autolimitação da parte dos indivíduos.
De maneira bastante direta: os
indivíduos que atuam no Estado têm que ter claro que, como servidores ou
agentes públicos, não podem professar nenhuma religião: não podem falar em
deus, não podem distribuir panfletos de caráter religioso, não podem exibir
símbolos religiosos em seus ambientes de trabalho. Isso pode parecer um esforço
muito grande, mas não é – e por dois motivos.
Em primeiro lugar, quando um cidadão
comum vai a uma repartição pública e vê um servidor público falando em deus,
portando símbolos religiosos ou distribuindo panfletos com esse teor, o que o
cidadão percebe não é um outro cidadão manifestando sua fé particular,
mas o Estado como um todo, representado pelo servidor, demonstrando
sua adesão a determinados princípios religiosos. Em outras palavras, o cidadão
comum verá que as autoridades beneficiam uma crença e, portanto, afirmam que
essa crença é a “correta” para ser seguida. Não há dúvidas de que essa é uma
forma de constrangimento, de imposição de crenças, de opressão.
O segundo motivo porque a autocontenção
de servidores e agentes públicos não exige um grande esforço ou não é muito
pesada é o seguinte. Imagine-se um trabalhador no mercado de trabalho: ao
ingressar em qualquer emprego, ele submete-se a uma disciplina específica – a
um código de conduta. São regras escritas e não-escritas que devem ser seguidas
para o bom desempenho das atividades, com procedimentos a realizar e ações a
evitar. Eis alguns exemplos simples mas que ilustram com clareza a idéia: não
se pode falar palavrões, não se pode ir mal-vestido (ou, por outra: em vários
casos é necessário usar determinados tipos de roupas), não se pode ir trabalhar
alcoolizado e assim por diante. Todos esses exemplos são proibições que os
trabalhadores aceitam como corretas para o bom desempenho de suas funções.
Essas proibições ocorrem para o ambiente do trabalho, não para o espaço
doméstico: em suas casas, no foro íntimo, os indivíduos têm
liberdade para fazer mais ou menos tudo o que desejam.
Ora, se é aceitável que os indivíduos
adaptem suas condutas para o trabalho em geral, deixando de agir de
determinadas maneiras e agindo de outras formas em relação a como procedem em
suas famílias, é ainda mais aceitável que os servidores públicos tenham
um comportamento claro para realizarem suas atividades: afinal de contas, de
modo geral é possível aos cidadãos escolherem uma empresa ou outra, mas os
serviços públicos são universais. A bem da verdade, no âmbito do serviço
público federal, existe uma lei que estipula precisamente esses comportamentos
aceitáveis e inaceitáveis: trata-se do Decreto n. 1 171/94, o Código de Ética do
Servidor Público Civil Federal. No caso da religião, se mesmo em empresas
privadas é consensual que não se deve conversar esse assunto, o que se dirá no
âmbito do Estado!
Apesar de todos esses motivos para a
laicidade do Estado, há dois argumentos especialmente daninhos que se utiliza
para tentar justificar o uso de símbolos e a prática de cultos religiosos no
âmbito público: digo “argumentos”, mas são mais sofismas políticos.
O primeiro diz respeito às crenças da população em geral; o segundo baseia-se em
uma certo tradicionalismo.
Comecemos pelo segundo sofisma. Para
justificar a celebração pelo Estado de determinada crença religiosa, muitos
afirmam que se tratam de práticas há muito tempo praticadas e que já se
tornaram tradicionais. Exemplos: a transmissão em emissoras públicas (isto é,
estatais) de missas e cultos e a presença de crucifixos em bibliotecas
públicas, tribunais, parlamentos e espaços públicos de modo geral. O problema
aqui é que essa “tradição” baseia-se no desrespeito a um dos princípios
fundamentais da República brasileira: é como querer justificar o coronelismo ou
a corrupção ou a miséria no país afirmando que eles são “tradicionais”; é
querer justificar algo errado porque esse errado existe faz tempo e é mais ou
menos comum. Além disso, essas “tradições” são vistas como imutáveis e,
literalmente, sacrossantas, isto é, intocáveis: é o raciocínio que se utiliza
para justificar, por exemplo, o uso da violência física no trote aos calouros
das universidades; ou para que bares, lanchonetes e restaurantes sofram enormes
calotes por estudantes de Direito no dia 11 de agosto (o “dia do pindura”); ou
que mulheres sejam espancadas por maridos supostamente traídos; ou que, em
países que aceitam a xaria – a lei tradicional do islã –
ladrões tenham as mãos decepadas e mulheres consideradas adúlteras sejam
apedrejadas até a morte.
O argumento que se refere à religião da
população brasileira é mais especioso, mas não é menos falso. O fato de a
maioria da população brasileira ter uma determinada crença é freqüentemente
invocado como justificativa para que o Estado adote práticas derivadas
diretamente dessa crença; em outras palavras, a “vontade da maioria da
população” é uma justificativa para que a (vontade da) minoria seja
desconsiderada. “Maioria” e “minoria”, aqui, podem variar, é claro: no caso
específico do Brasil podemos considerar a “maioria católica” – cerca de 73% da
população – ou a “maioria cristã” – cerca de 90% da população –; assim, apenas
em casos específicos é possível falar simplesmente em “maioria”, de tal sorte que
na prática há apenas maiorias, no plural. Mas a questão é que
tanto faz quem é maioria ou quem é minoria: o que importa é que as minorias
devem ser respeitadas como cidadãs, ou seja, em seus valores e, portanto, a
maioria não pode usar sua força numérica para impor suas crenças à minoria.
A relação entre maioria e minoria
remete a uma diferença entre “democracia” e “república”. Enquanto a democracia
é o governo da maioria, a república é o governo baseado na lei e que respeita
as minorias. Sem dúvida que essa definição que apresentei de democracia é
sujeita a polêmicas, mas a verdade é que não existe uma democracia tout
court, exceto se considerarmos a experiência da Atenas antiga, que foi
celebrizada durante a magistratura de Péricles, no século V a. c.; por outro
lado, se pensarmos nos grandes teóricos republicanos, especialmente os das
revoluções Francesa e Americana, eles sempre objetaram à democracia a
possibilidade de tirania das maiorias que ela pode criar.
Para evitar mal-entendidos, quero
deixar claro que de maneira alguma considero que a democracia, como ela
é percebida nos dias atuais, seja simplesmente a imposição das vontades da
maioria sobre a minoria oprimida. Entretanto, a verdade é que o argumento
que justifica ser legítimo, no Brasil, o Estado assumir ares cristãos baseia-se
exatamente nessa concepção de democracia, ignorando os elementos republicanos
de respeito às diferenças e de Estado de Direito. Essa concepção de democracia,
claro, é bastante conveniente, pois beneficia quem pode mais e manda às favas
quem pode menos, desconsiderando a idéia de cidadania, isto é, o respeito
universal aos membros de uma coletividade política.
Essa idéia de democracia religiosa
majoritária já foi utilizada no Brasil: durante a Guerra Fria, governos progressistas,
como o de Juscelino Kubitschek, e governos autoritários, como os dos militares,
fizeram apelo constante ao caráter supostamente cristão do país. O problema que
surge é o seguinte: se tivermos que escolher – e não há dúvidas de que se trata
aqui, precisamente, dessa escolha – como definiremos o Brasil, como um
país republicano ou um país cristão? O que nos
define como comunidade política é uma crença compartilhada pela população ou é
o respeito universal a leis universais?
Cada uma dessas definições tem
conseqüências claras e muito diversas entre si. Se o Brasil é definido pelo
respeito às leis, para ser brasileiro basta respeitar as leis brasileiras e
cumprir as obrigações cívicas definidas por essas leis: esse é o conceito de
cidadania definido durante a Revolução Francesa. De acordo com essa
perspectiva, a partir de 1792 – ano da proclamação da I República francesa –
para ser francês não importava mais se cada indivíduo era judeu, católico,
huguenote (protestante) ou se nascera na Alemanha, na Inglaterra, na China ou
no Zaire: bastava aceitar e seguir as leis e os usos franceses (além de falar
francês).
Por outro lado, se o que define o
brasileiro é a adesão à religião cristão, a conseqüência direta é que os
não-cristãos não são brasileiros, ou melhor, não são “verdadeiros” brasileiros;
discordar de ou criticar alguma das religiões cristãs é alta traição, é crime
de lesa-pátria. No contexto da Guerra Fria, era comum denunciar os crimes que
os soviéticos praticavam contra quem discordava dos dogmas comunistas – afinal
de contas, o comunismo era a doutrina oficial do Estado –, incluindo aí todos
os que confessavam crenças religiosas; mas muitas das pessoas que denunciavam
esses distantes crimes do comunismo praticavam as mesmas ações em casa, ou seja,
para o que nos interessa, o Brasil: os não-cristãos eram sujeitos a suspeitas a
que os cristãos não estavam.
Outros exemplos semelhantes são as
perseguições que religiosos nos Estados Unidos promovem contra quem discorda
deles ou simplesmente não é da mesma religião que eles (nos dias atuais, em
particular os muçulmanos): não é o que a candidata a vice-Presidente na chapa
de John McCain, Sara Palin, tem feito a respeito de Barack Obama, ao sugerir
que “ele não é como nós [cristãos]”? Ou, ainda, os atos de profunda
intolerância praticados pelos talibãs no Afeganistão ou pelo regime dos
aiatolás no Irã[3]?
A verdade é que os governantes
brasileiros não estão muito atrás desses exemplos e dão péssimo exemplo à
população, rejeitando de maneira demagógica a laicidade do Estado: sejam os
presidentes da República que inscreveram nas cédulas “Deus seja louvado” e,
depois, deixaram essa frase em negrito; sejam os autores da Constituição
Federal de 1988 que inseriram um agradecimento a deus no “Preâmbulo” da Carta
Magna; sejam governadores, senadores, deputados, prefeitos, vereadores que
afirmam governar com base na vontade divina; seja o Presidente da República que
a todo instante fala em deus; sejam os ministros de Estado que usam verbas
públicas para viajarem a encontros religiosos ou para patrocinar encontros de
suas seitas; seja o governador do Paraná que em 2003 resumiu as comemorações
dos 150 anos do estado a uma missa pública e a palavras de ódio contra empresas
transnacionais de soja transgênica.
Mais do que isso. Nas recentes eleições
para vereadores municipais, os analistas políticos indicaram uma série de
fatores interessantes: as conseqüências eleitorais dos mecanismos de votação;
as “vontades populares” expressas pelas novas bancadas de vereadores e assim
por diante. Entretanto, um elemento central foi completamente ignorado ou
desprezado: a quantidade assustadora de candidatos que fizeram suas campanhas
apelando diretamente para os valores religiosos. “Acredita em deus e valoriza o
ser humano”, “Evangelizando na política”, “Com deus, por você” foram alguns dos
motes das campanhas não apenas em Curitiba, mas, pelo que se pôde perceber
pelas matérias jornalísticas divulgadas nos meios de comunicação, no país
inteiro. Considerando que os parlamentares devem representar interesses, a
pergunta que não quer calar-se é a seguinte: quais os interesses que os
candidatos religiosos representam? Quaisquer que sejam, certamente que a
laicidade do Estado não está entre eles[4].
À parte algumas importantes iniciativas
da sociedade civil – como as organizações não-governamentais Brasil para Todos
e Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos e o Observatório da Laicidade do
Estado, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) –, a única
iniciativa política de que temos conhecimento e que visasa a combater esse
gênero de desvio institucional é da autoria da ex-Deputada Federal e ex-Juíza
Denise Frossard, que propôs o Projeto de Lei Complementar n. 216/2004, vedando
aos sacerdotes o exercício de funções eletivas. Não por acaso, Denise Frossard
é da cidade e do estado do Rio de Janeiro, onde, como se sabe, há teocracias em
germe faz tempo. É forçoso reconhecer que, também não por acaso, o seu projeto
de lei foi rejeitado no Congresso Nacional, onde há crescentes bancadas
especificamente religiosas.
Começamos este artigo
fazendo referência à UFPR; é importante concluí-lo voltando a ela. Há algum
tempo a Universidade comemorou seus 90 anos: apesar da propaganda a favor do
“papel que desempenha na sociedade paranaense”, não houve uma única menção aos
seus fundadores; na verdade, exceto os historiadores e alguns especialistas em história
do Paraná, o fato é que a comunidade universitária ignora completamente quem
foram esses fundadores e quais os ideais que os moveram ao criar a então
Universidade do Paraná. Pois bem: face à missa que a Reitoria da UFPR mandou
rezar e face a todas as manifestações de imbricação entre igreja e Estado na
Universidade, essa ignorância não poderia ser mais emblemática. Passamos da
Universidade Federal do Paraná para a Universidade Confessional
Federal do Paraná.
[1] Isso tem uma outra conseqüência: as religiões não são temas
políticos, ou seja, não é possível e não é aceitável, nesse sentido,
que se faça campanhas políticas fazendo apelo às crenças individuais de cada
um.
[2] Conforme indicou meu amigo Valter Duarte, professor da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), na verdade o processo de
laicização como é conhecido atualmente começou no final da Idade Média – mais
precisamente na Inglaterra –, quando, por motivos políticos e filosóficos,
passou-se a buscar fundamentações não-religiosas para a autoridade política. As
obras de John Locke sobre a tolerância, sobre a organização política e sobre o
entendimento humano foram importância capital nesse sentido.
[3] Convém notar: esse mesmo raciocínio de comunidade política fundada
em valores religiosos – com as conseqüências indicadas acima – foi recentemente
utilizado pelo Presidente da República da França e pelo Papa
para proibir o ingresso da Turquia na União Européia. Ora, o que Nicolas
Sarkozy e Bento XVI pressupõem é que a Europa é essencialmente cristã, deixando
de lado 1) o profundo e crescente secularismo das sociedades européias; 2) o
caráter principalmente republicano das democracias européias; 3) a importância
capital que tiveram os muçulmanos para o desenvolvimento da Europa e mesmo do
catolicismo – afinal, sem os árabes não existiria São Tomás de Aquino –; 4) o
longo e multimilenar relacionamento político, econômico e
cultural entre os europeus e os muçulmanos (particularmente turcos) e 5) o fato
de que o único país muçulmano que assumiu convictamente os valores (ocidentais)
da secularização e da democratização foi a Turquia. Em suma: essa proibição é
uma pérola da intolerância religiosa convertida em argumento político, a
serviço do “choque de civilizações”. Não por acaso, por outro lado, Sarkozy e
Bento XVI têm defendido o conceito de “laicidade positiva”, segundo o qual é
lícito ao Estado professar alguma religião – o que, em outras palavras, é a
própria negação da laicidade.
[4] É tão grande a quantidade de infrações ao princípio da laicidade
do Estado que seria verdadeiramente cansativo tentar citá-las todas. Por isso,
para encerrar aqui essa lista, citamos apenas mais dois exemplos: 1) a
existência de capelães concursados na Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN) e, claro, nas Forças Armadas; 2) as reiteradas propostas de
“Ensino Religioso” obrigatório no Ensino Fundamental (e, se duvidar, também no
Ensino Médio), a ser ministrado, sem dúvida, por sacerdotes.