Não há outra palavra para descrever a propaganda religiosa praticada: ela é escandalosa. Ou melhor, há outras palavras, sim: despudorada, desrespeitosa da laicidade, atentatória das liberdades, inconstitucional.
Para quem quiser confirmar essas práticas, basta ver a matéria de capa da atual edição do Iátrico, disponível aqui.
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Há vários anos o
CRM-PR manifesta uma evidente predileção pela crença cristã, especialmente a da
igreja católica romana. Publicações oficiais do Conselho, notadamente o
periódico Iátrico, têm sido usadas
para veicular matérias que, direta ou indiretamente, louvam valores e símbolos
cristãos e católicos, como “fé”, Jesus Cristo, “leis divinas” etc. O
proselitismo católico praticado pelo CRM-PR é tão escandaloso que as gravuras
escolhidas para ilustrar as páginas do Iátrico
mostram, em um número assustador, figuras católicas, como o próprio Jesus
Cristo, Maria, santos e papas. Não é incomum ver-se na sede do CRM-PR símbolos
e flâmulas que aludem ostensivamente ao catolicismo, como os crucifixos
existentes na repartição e uma figura de Lucas (um santo católico) que é
exposta no auditório do Conselho. Além disso, foi prática do presidente do
CRM-PR de algumas gestões atrás enviar mensagens alusivas a datas católicas
para os médicos da jurisdição do CRM-PR por meio da mala direta do CRM-PR, em
nome do CRM-PR.
O Estado brasileiro e, por extensão,
o CRM-PR, é laico; não é “laico-cristão” nem “laico positivo”. Isso significa
simplesmente que o Estado brasileiro (e o CRM-PR) não deve (e nem pode) seguir
nenhuma doutrina oficial, no sentido de que seus cidadãos não precisam
perfilhar nenhuma doutrina a fim de terem o status
político-jurídico de cidadãos; por outro lado, nenhuma igreja ou doutrina é
beneficiada pelo Estado. Semelhantemente, o estatuto de médico não depende da
profissão de qualquer fé, bastando estar inscrito regularmente no CRM-PR.
A laicidade do estado brasileiro e,
por extensão, do CRM, não foi determinada como nos Estados Unidos da América,
onde, pela impossibilidade de escolher uma dentre as inúmeras seitas cristãs,
optou-se por não se privilegiar nenhuma. No Brasil, a separação entre igreja e
Estado é um princípio que independente de quaisquer religiões concretas. O CRM
é uma autarquia do Estado, o seu poder de regular a conduta dos médicos foi
concedida pelo Estado. As suas manifestações em favor do catolicismo são modos
de impingir aos médicos, como forma de discurso oficial do CRM, o catolicismo.
Isso é muito claro.
Se o CRM-PR está interessado e
receptivo ao acolhimento de outras opiniões, que publique, como já sugeri em
outras ocasiões aos editores das publicações do CRM-PR, textos de teor ateu,
agnóstico ou positivista (ou budistas, ou hinduístas). Ou ainda melhor: não
publique nenhum deles sobre nenhuma religião. Não entendo o que a discussão
sobre fé e dúvida tem a ver com a medicina ou com a eticidade da prática
médica. Além disso, o ordenamento legal brasileiro proíbe textualmente as
festividades religiosas de caráter estatal, das quais os feriados religiosos
municipais são exemplos flagrantes. Alegar que a população brasileira é
religiosa como justificativa para o proselitismo católico é usar de um cinismo
impressionante. Esse argumento procura justificar práticas discriminatórios a
partir de alusões a vagas e propositadamente confusas “tradições”; essas mesmas
“tradições” são usadas como formas de tornar aceitáveis práticas como a coivara
ou a circuncisão feminina. No fundo, são práticas tão populares e tradicionais
como o homicídio e o estupro.
Os médicos paranaenses não pagam a
anuidade do CRM-PR para verem elogios mensais ao cristianismo. A função do
CRM-PR, a menos que esteja enganado, é fiscalizar a eticidade da conduta dos
médicos sob sua jurisdição. Qualquer manifestação de opinião que não trate
dessa matéria deve ser excluída dos meios de comunicação disponíveis ao
Conselho. Se os editores da revista Iátrico
desejam abordar a fé, a devoção ou o sagrado, que o façam em publicações que
não tenham qualquer relação com o CRM-PR; publiquem, por exemplo, na Gazeta do Povo. O discurso que procura
justificar esse comportamento é cínico e intolerante, pois força argumentos
para justificar a sua propaganda católica, ridicularizando a verdadeira
liberdade de expressão.
Leonardo Biscaia
Médico
Doutorando em
Sociologia-UFPR.