17 fevereiro 2009

Questionamento necessário

O artigo abaixo foi publicado no jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, em 17.2.2009. Está disponível no seguinte endereço: http://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/opiniao/conteudo.phtml?tl=1&id=858582&tit=Questionamento-necessario.

(Infelizmente, o jornal adota o acordo ortográfico, de modo que algumas palavras estão escritas incorretamente.)

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“O pensamento humano é primeiro teológico, em seguida metafísico e por fim positivo” (A. Comte)
A recente campanha deflagrada na Europa pela Associação Humanista Britânica, tendo à frente o biólogo Richard Dawkins, mais que uma provocação, é um convite simpático para as pessoas refletirem a respeito de suas vidas e de seus valores, individuais e coletivos. Essa campanha, que ocorrerá ainda na Espanha, na Itália e talvez na França (mas também no Brasil), dá-se em um momento em que se vê um retorno da teologia – que dura já quase 20 anos – e em que os humanistas, ateus e agnósticos procuram não apenas defender a laicidade e o secularismo, mas também a validade política e filosófica de suas posições e perspectivas.
Há duas ou três questões envolvidas na “polêmica” dos anúncios veiculados nos ônibus: 1) as escolhas individuais sobre crenças e valores; 2) a pseudodiscussão sobre a imoralidade de quem não crê em deus; 3) a importância pública (política) da religião. Apesar de a campanha britânica tratar apenas da primeira questão, as polêmicas que surgiram ao seu redor envolvem as três – sendo, no final das contas, esse o objetivo de Dawkins, dos ateus, dos agnósticos e dos humanistas de modo geral – mas também dos religiosos. Vamos nos ater a duas outras questões, em que a análise sociológica e filosófica é inseparável da afirmação moral.
A primeira refere-se ao avanço da teologia na vida pública e privada, no mundo inteiro e no Ocidente em particular. As marchas concomitantes da laicização e da secularização no Ocidente (mesmo no mundo) foram fatores de progresso social, moral e intelectual, com a atenção dos seres humanos voltando-se para o próprio ser humano e para sua realidade cósmica, social e individual. Isso inclui não apenas (por exemplo) o desenvolvimento da Medicina, das telecomunicações, da Sociologia, da Psicologia, do Welfare State e das preocupações ambientais, mas, acima de tudo, permitiu o desenvolvimento de um ambiente social e político favorável à livre expressão das ideias, mesmo aquelas mais contrárias aos “poderes dominantes”. Em outras palavras, foi o afastamento da religião que permitiu ao ser humano conhecer-se melhor e à sua realidade, além de ter-lhe criado as condições intelectuais e políticas necessárias para manter-se livre e combater crimes e excessos.
Assim, sem rodeios, o retorno da teologia é um retrocesso nessa marcha, com a afirmação de obscurantismos e “vontades” absolutas e arbitrárias como justificativa tanto para regimes sociopolíticos dominadores quanto para decisões individuais e coletivas daninhas para o ser humano e para o planeta Terra. Além de problemas facilmente perceptíveis como os excessos muçulmanos do Talibã ou cristãos de G. W. Bush, há derivações mais sutis: por exemplo, a afirmação do presidente francês Nicolas Sarkozy de que em uma república a crença na transcendência é um pré-requisito: essa é uma forma velada de dizer que um bom cidadão deve ser um fiel, deve acreditar em deus (mas qual deus? Aquele que o Estado defende?).
A segunda questão refere-se à necessidade de moral humana. Diversos pensadores de origem religiosa afirmam que, sem a crença em deus (mas qual deus?), o ser humano é imoral e criminoso. Ora, tal afirmação é um duplo erro: crer em deus não garante a moralidade nem descrer significa imoralidade. Os exemplos novamente são fáceis e variados: a quantidade de criminosos tementes a deus é enorme (na verdade, quase a totalidade deles), assim como a quantidade de humanistas e beneméritos ateus, agnósticos é também enorme – e, em particular, em uma porcentagem muito maior daqueles que creem em deus.
Essas são questões polêmicas, que suscitam fortes paixões. Para tratar delas, é necessário cuidado intelectual, respeito pela posição alheia e compromisso com as liberdades públicas. Respeitadas essas condições, todos temos a ganhar, agora que o debate está aberto.

04 fevereiro 2009

A soberba de Cláudio Lembo

Recentemente o ex-Governador de São Paulo, Cláudio Lembo, publicou um artigo no portal Terra (ver aqui) acusando quem não crê em deus de ser anti-ético e antissocial. Uma afirmação dessas é terrível, é detestável e não pode passar incólume. Assim, enviei ao ex-Governador a carta abaixo.

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Prezado Professor Lembo:


Li em um artigo publicado no portal Terra que, para o senhor, a recente campanha atéia é uma "explosão de soberba"; além disso, atribui aos "ateus" e "agnósticos" a atual crise financeira mundial.


Suas opiniões são fantasticamente imaginativas.


Para começar, repete o bordão de que é necessário acreditar em divindades para ser ético e ter um comportamento moralmente orientado e aceitável. Isso é mentira e é um duplo erro: seja porque atribui à crença em deus o comportamente ético, seja porque atribui à descrença em deus o comportamento anti-ético. Senão, vejamos.


Os maiores fascínoras do mundo eram TODOS crentes ou saídos de seminários, estando à frente, é claro, a trinca Stálin, Hitler e Mussolini - mas não nos esqueçamos de todos os criminosos comuns de todos os países do mundo, que aparecem na televisão e nos jornais rezando e pedindo clemência a deus; também não se esqueça dos criminosos políticos e de colarinho branco, que fazem as mesmas coisas. Também não nos esqueçamos dos criminosos políticos brasileiros, a começar pelos militares que torturaram e mataram (aliás: durante os seus mandatos parlamentares e executivos): todos eles formados nas tradições dos anos 1920 e 1930, todos eles bons devotos.


Por outro lado, grandes beneméritos da Humanidade são ateus, agnósticos ou humanistas. Fiquemos apenas no Brasil: Benjamin Constant e Rondon (para citar dois que já morreram e cujos valores ninguém - nem o senhor - discutem) e Dráuzio Varela. Mas também o Gal. Pery Bevilácqua que, sem acreditar em deus, combateu o despotismo do regime de 1964 no Supremo Tribunal Militar.


Se o senhor parasse para refletir e deixasse seus preconceitos cristãos de lado, perceberia que é exatamente a crença em deus que permite que os crentes ajam de maneira anti-ética, imoral e completamente antissocial: afinal de contas, prestam contas a uma "autoridade maior". A preocupação com esta vida e o respeito ao ser humano é o que leva os descrentes no deus a adotarem um comportamento ético e respeitoso aos seus semelhantes: afinal de contas, vivem em sociedade, vivem apenas nesta vida e têm responsabilidades afetivas, práticas, intelectuais e - por que não? - jurídicas com os seres humanos.


Dessa forma, o senhor consegue a proeza de repetir o sofisma segundo o qual "acreditar em algo" é sinônimo de "acreditar em deus". Eu não acredito em deus: isso equivale a não acreditar em nada? Eu acredito no ser humano, eu acredito que há leis naturais no mundo, eu acredito que estou vivo, eu acredito (por mais difícil que seja) que o senhor falou as bobagens acima e, por fim, eu acredito que as idéias que o senhor expôs são todas elas preconceituosas, mistificadoras e intolerantes.


Mas o senhor também afirma que a atual crise econômico-financeira é devida à "falta de valores" dos "ateus". Pois bem: se não se baseasse em preconceitos e parasse para pensar e observar o que de fato ocorre à sua volta, perceberia que a crise surgiu nos Estados Unidos, onde a população é fortemente cristã e, de qualquer forma, crente em deus; exatamente porque crêem em deus é que se sentem autorizados a agirem de maneira irresponsável. Duvida disso? Pois bem: faça uma pesquisa sobre crenças religiosas nos Estados Unidos. Ah, lembrei: ela já existe e, não sendo apenas uma mas várias, comprovam elas o que disse.


Além disso, as crenças nos deuses não garantem um comportamento ético por si: o crente, quando é "ético", de modo geral não o é porque entende a importância e os próprios conceitos de "ética" e de "moralidade". Os crentes são "éticos" porque, literalmente, têm medo do inferno: basta o senhor sair às ruas de São Paulo para ver as pichações nos muros; ou, talvez, vá ao Rio de Janeiro ler esse "raciocínio" exposto em quantidade assustadoramente maior. Ou, ainda, fique insone uma noite e assista à programação dos pequenos canais abertos da televisão.


É necessário também corrigir uma imprecisão conceitual: o agnosticismo não é um ficar em cima do muro, uma indecisão sobre a existência ou não do deus por debilidade de caráter; é uma tomada firme de posição no mundo e a favor do ser humano, em que o problema de deus é deixado de lado como insolúvel e inútil. Mas o senhor deve saber disso: para o senhor, é melhor o ateísmo, que põe em questão o seu deus, que o agnosticismo, que simplesmente o deixa de lado.


Last but not the least, é importante notar que o senhor, sendo fiel ao seu pensamento e crente em deus, é profundamente intolerante com aqueles que não acreditam naquilo em que o senhor acredita. Mas isso não lhe faz diferença, não é mesmo? Afinal de contas, o senhor responde a uma autoridade maior, não se importando com os seres humanos.


Humanamente,


Gustavo Biscaia de Lacerda

Sociólogo e Cientista Político