28 junho 2024

Orações cotidianas de Augusto Comte

Orações cotidianas de Augusto Comte[1]

 

ORAÇÕES COTIDIANAS

O Amor por princípio,

E a ordem por base;

O progresso por fim

 

Ordem e progresso.

Viver para outrem.

Viver às claras.

 

Instituídas no Venerdia-Santo, 10 de abril de 1846

Revistas primeiro a 6 de abril de 1849, depois a 26 de agosto de 1853, enfim a 25 de dezembro de 1855 (após o depósito do meu testamento), e completamente reescritas no Venerdia-Santo, 10 de abril de 1857.

 

Oração da manhã

(Das 5h 30 às 6h 30)

 

Comemoração (40 min), de joelhos diante do seu altar

 

Preâmbulo

 

1º Imagem normal da véspera

Este culto de amor e reconhecimento não pode jamais cessar de aliviar-me e sobretudo de melhorar-me.

Amar ainda é melhor que ser amado.

Não há nada real no mundo senão amar.

 

Oh, amanza del solo amore, o diva,

Non é l’affezione mia tanto profunda

Che basti à render voi grazia per grazia.

 

2º Imagem excepcional da véspera

É unicamente a ti, minha santa Clotilde, que eu devo não deixar a vida sem haver dignamente experimentado as melhores emoções da natureza humana. Um ano incomparável fez espontaneamente surgir o único amor, ao mesmo tempo puro e profundo, que o meu destino comportava. A excelência do ente adorado permitiu à minha maturidade, mais bem tratada do que a minha juventude, entrever, em toda a sua plenitude, a verdadeira felicidade humana: Viver para outrem. Eis aí a verdadeira felicidade, como o verdadeiro dever! Só tu me ensinaste a fundir as suas fórmulas! Que prazeres podem sobrepujar os da dedicação? Para tornar-me um verdadeiro filósofo, faltava-me sobretudo uma paixão, ao mesmo tempo profunda e pura, que me fizesse assaz apreciar a parte afetiva da natureza humana.

A gente se cansa de pensar, e mesmo de agir; jamais se cansa de amar, nem de o dizer.

No meio dos mais graves tormentos que possam jamais resultar da afeição, não cessei de sentir que o essencial para a felicidade é sempre ter o coração dignamente cheio... mesmo de dor, sim, mesmo de dor, da mais amarga dor.

 

Sagrada es ya mi passión.

La divinizó la muerte!

 

Comemoração especial (15 min)

 

Meditação sobre as nossas principais lembranças peculiares a este dia da semana, sob as imagens normais que a ele se referem.

 

Sagrada es ya mi passión.

La divinizó la muerte!

 

Mai non t’appresentò natura odarte

Piacer, quanto le belle membra in ch’io

Rinchiusa fui e che son terra sparte:

E se’l sommo piacer si ti fallio

Per la mia morte, qual cosa mortale

Dovrà poi trarre te nel suo disio?

 

Comemoração geral (20 min)

 

Imagem principal deste dia

 

Non, quella che’mparadisa la mia mente, a tua morte mesmo não quebrará jamais o vínculo fundado na minha afeição, a minha estima e o meu respeito.

Revista cronológica de todas as nossas lembranças essenciais mediante as passagens correspondentes das nossas cartas.

Vim agradecer-vos, Senhor, o vosso encantador mimo. (A sua visita do lunedia 2 de junho de 1845, com a sua mãe e o seu irmão.)

 

Iniciação fundamental

 

Junho – Estima. Deixai-me livremente trabalhar no vosso aperfeiçoamento, pois que é a minha principal maneira de ocupar-me com a vossa felicidade, que me será sempre cara, sejam quais forem o grau e a forma pelos quais possa concorrer para ela. (A minha carta de 6 de junho.)

É indigno dos grandes corações derramar as perturbações que sentem. (A sua Lúcia, publicada a 20 de junho.)

 

Julho – Confiança. O meu coração vê finalmente em vós, na realidade presente, uma perfeita amiga, e, nos meus sonhos de futuro, uma santa esposa. (A minha carta de 3 de julho.)

Eu vos estendo a mão bem sinceramente, eu vos sou ternamente devotada, e terei sempre prazer em proporcionar-vos, nas nossas relações, toda a felicidade de que posso dispor: vossa de coração. (A sua carta de 4 de julho.)

 

Agosto – Afeição. O meu surto direto do amor universal se consuma sob a estimulação contínua do nosso puro apego. (A minha carta de 5 de agosto.)

Adeus, caro e digno amigo; vedes que eu vos aprecio e creio em vós: contai com o coração de Clotilde de Vaux. (A sua carta de 11 de agosto.)

A cada suspensão do meu trabalho, a vossa cara imagem volta docemente a apoderar-se de mim: longe de prejudicar depois a minha meditação, ela a sustenta e a anima. (A minha carta de 26 de agosto.)

 

Crise decisiva

 

Setembro. Se credes poder aceitar todas as responsabilidades que se prendem à vida de família, dizei-mo, e decidirei da minha sorte... Eu vos confio o meu resto de vida. (A sua carta de 5 de setembro.)

Eis o meu plano de vida: a afeição e o pensamento. (A sua carta de 6 de setembro.)

Sinto-me ainda desgraçadamente impotente para o que ultrapassa os limites da afeição. Ninguém apreciar-vos-á como eu o faço; e o que não me inspirais, nenhum homem mais mo inspira; porém o passado faz-me ainda mal, e foi um erro meu querer arrostá-lo. Sede generoso a todos os respeitos, como o sois a certos. Deixai-me o tempo e o trabalho, expor-nos-íamos agora a cruéis pesares. (A sua carta de 8 de setembro.)

Desde a Santa Clotilde, verdadeiro início das nossas relações seguidas, nenhum pensamento carnal tinha até então, quer na vossa presença, quer mesmo na vossa ausência, jamais perturbado a minha íntima adoração. Retomo pois, sem esforço, os meus caros hábitos de ternura cavalheiresca. (A minha carta de 10 de setembro.)

Sinto quanto vos amo de coração vendo-vos sofrer. (A sua carta de 13 de setembro.)

Compreendi, melhor do que ninguém, a fraqueza da nossa natureza, quando ela não é dirigida para um alvo elevado, que seja inacessível às paixões... Restam-me aos menos fontes de ensinamento para os outros; é ainda um interesse real na minha vida; quero explorá-lo... Contai com tudo que eu tenho de bom e de afetuoso no coração. (A sua carta de 14 de setembro.)

Envio-vos o dom do coração com simples atavios que lhe deu a natureza; o pensamento é o único artista capaz de ornar semelhantes nadas. O meu proveito próprio está em ser-vos agradável, e compenetrar-me da sinceridade do vosso apego, ao qual ligo todo o apreço que merece. (A sua carta de 25 de setembro.)

Não encontrei ainda senão em vós a eqüidade unida a amplas exigências do coração... Por que não vos conheci mais cedo? (A sua carta de Garges!)

Amemo-nos profundamente, cada um à sua maneira, e poderemos ainda ser verdadeiramente felizes um pelo outro. (A minha carta de 2 de outubro.)

 

Transição Final

 

Outubro – Expansão total. Caminhemos apoiados um ao outro, meu caro filósofo, deixemos que o tempo nos guie e nos forme. (A sua carta de 2 de outubro.)

As vossas cartas causam-me sempre prazer e sempre me fazem bem... Adeus, caro homem, amai-me e ficai certo que vo-lo retribuo bem. (A sua carta de 18 de outubro.)

A nossa espécie, mais do que as outras, precisa de deveres para fazer sentimentos. (A sua carta de 25 de outubro.)

 

Eis aí o que eu compreendo melhor do XIX século: é a tendência universal dos seres para a razão em toda a sua simplicidade. Vendo as mais modestas inteligências participarem naturalmente e sem esforço de todas as luzes obtidas, sinto cada dia mais que a ciência não carece senão residir no ápice das sociedades para enriquecê-las na sua massa inteira: e, palavra, que me consolo de não ter sido iniciada nas maravilhas do quadrado de hipotenusa. (A sua carta de 30 de outubro.)

 

Novembro – Abandono sem reserva. Se fosse preciso que não me amásseis senão um quarto de hora por dia para o vosso repouso, eu desejaria, de todo o meu coração, que isso se desse desde amanhã. (A sua carta de 2 de novembro.)

Aqueço-me e visto-me como mulher delicada, graças a vós. (A sua carta de 8 de novembro.)

A vós, em troca, o pensamento tão doce de haverdes reanimado um ente aniquilado, e vertido o bálsamo em um coração ulcerado. (A sua carta de 9 de novembro!)

Oxalá estivesse eu certa de tornar-vos feliz por vínculos mais íntimos! Eu não hesitaria em formá-los. (A sua carta de 18 de novembro.)

Sois o melhor dos homens; tendes sido para mim um amigo incomparável; e sinto-me tão honrada como feliz pelo vosso apego. (A sua carta de 23 de novembro.)

É, pois, unicamente a vós, minha Clotilde, que deverei não mais deixar a vida sem ter dignamente experimentado as melhores emoções da natureza humana. (A minha carta de 24 de novembro.)

 

Dezembro – Familiaridade contínua. Congracemo-nos habitualmente, minha Lúcia, em torno dessas sublimes concepções, que ligam diretamente a nossa afeição mútua ao conjunto da evolução humana. (A minha carta de 9 de dezembro.)

Contai com o apego mais terno que possa experimentar... Tenho por vós hoje mais do que o coração de uma parenta... É preciso que não esteja em meu poder o tornar-vos feliz para não o fazer... Seja qual for a nossa sorte, espero que só a morte quebrará o laço fundado na minha afeição, a minha estima, e o meu respeito. (A sua carta de 10 de dezembro.)

Esse incomparável ano fez surgir em mim o único amor, a um tempo puro e profundo, que comportava o meu destino. A excelência do ente adorado permite à minha madureza, mais bem tratada do que a minha juventude, de entrever em toda a sua plenitude, a verdadeira felicidade humana. (A minha carta de 26 de dezembro.)

 

Estado Normal

(Imagens especiais e fixas.)

 

Janeiro – Intimidade completa. Tendes o coração de um cavalheiro, meu excelente filósofo. (A sua carta de 8 de janeiro.)

Todos nós temos ainda um pé no ar sobre o limiar da verdade... Só posso haurir a minha moral no meu coração, e edificá-la sobre o puro sentimento. É esse, de resto, o quinhão de uma mulher, e basta. Ela ganha em caminhar modestamente atrás do préstito dos renovadores, embora tenha de perder assim um pouco do seu elance... Se eu fosse homem, teríeis em mim um discípulo entusiasta: ofereço-vos, como indenização, uma sincera admiradora. (A sua carta de 15 de janeiro.)

O vosso nobre ascendente ligou profundamente o surto habitual dos meus mais altos pensamentos aos dos meus mais ternos sentimentos. Não fiqueis pois surpresa que eu queira secretamente inaugurar este décimo sexto serviço anual por uma lembrança especial da minha bem-amada. Esta curta efusão deve me preparar melhor para o ministério que vou desempenhar, fazendo espontaneamente prevalecer a disposição d’alma mais favorável ao meu ofício filosófico. (A minha carta de 25 de janeiro.)

 

Fevereiro – Perfeita identidade. O vosso coração é o santuário onde deposito tudo o que constitui a minha vida: os pequenos como os grandes acontecimentos, tudo dela vos é conhecido; e sabeis que ainda não fiz mal senão a mim. (A sua carta de 12 de fevereiro.)

Nas minhas horas de sofrimento, a vossa imagem paira sempre diante de mim. (A sua carta de 23 de fevereiro.)

As almas ardentes e escrupulosas encontram muitos Gólgotas neste mundo; mas, pelo menos, elas escapam amiúde aos pesares como aos remorsos. (A sua carta de 24 de fevereiro.)

 

Março – União definitiva. Os maus precisam muitas vezes mais de piedade do que os bons. (A sua carta de 2 de março.)

Tenho muitas coisas amigáveis a dizer-vos. É força cessar por hoje. Recebei a eterna segurança da minha ternura. (Fim da sua 86ª e última carta, de 8 de março de 1846.)

Para tornar-me um perfeito filósofo, faltava-me sobretudo uma paixão, ao mesmo tempo profunda e pura, que me fizesse assaz apreciar a parte afetiva da natureza humana. (A minha carta de 11 de março.)

No meio dos mais graves tormentos que possam jamais resultar da afeição, não cessei de sentir que o essencial para a felicidade é sempre ter o coração dignamente cheio. (A minha 95ª e última carta, de 18 e 20 de março de 1846.)

Vós me haveis de dar um cacho dos vossos cabelos. (A sua efusão verbal de 20 de março.)

Hoje me fizestes profundamente sentir o valor da vossa nobre pureza, que nos permitiu, perante a vossa mãe, conservar ternamente a vossa mão nas minhas, enquanto em contemplava a angélica fisionomia cuja suave beleza torna-se mais tocante pela sua alteração passageira. (Fim da minha última carta.)

Não tenho beleza alguma, tenho apenas um pouco de expressão. (A sua efusão verbal de 22 de março.)

 

Conclusão!

 

Abril! – Eu quisera bem ir dormir em vossa casa. (O seu voto de 1º de abril diante de sua mãe.)

Fostes desconhecida, mas eu vos farei apreciar... Não, jamais nenhuma outra... (A minha efusão verbal de 2 de abril, perante a sua família, depois da sua extrema unção.)

Não terei tido uma companheira por muito tempo! (Durante a nossa única noite, de 2 para 3 de abril de 1846!)

Senhora, vós amais a vossa filha como um objeto de dominação, e não como um objeto de afeição. (A minha exprobração à sua mãe, perante ela, a 4 de abril.)

Comte, lembra-te que eu sofro, sem o haver merecido!... (As suas últimas palavras distintas, nitidamente repetidas cinco vezes seguidas, no domingo à tarde 5 de abril de 1846, por volta das 3 horas da tarde, uma meia hora antes de expirar!!!)

Sim, a tua morte mesma consolida ara sempre o laço fundado na minha afeição, e minha estima, e o meu respeito!

 

Sagrada es ya mi passión.

La divinizó la muerte!

 

Efusão (20 minutos)

 

1º de joelhos diante das suas flores (5 minutos)

 

Imagem de 27 de agosto de 1851

Nobre e terna padroeira, quella ch’imparadisa la mia mente, a tua adorável influência eterna melhorou profundamente o conjunto da minha natureza, moral, intelectual, e mesmo física. Agradeço-te sobretudo o me haveres espontaneamente inspirado essa pureza, cujo verdadeiro valor, até ti, ignorava, mas que, espero eu, continuará a sobreviver-te sem alteração, graças à persistência natural do teu involuntário ascendente. A tua angélica inspiração deve de mais em mais dominar todo o resto da minha vida, tanto pública como privada, para presidir ainda ao meu inesgotável aperfeiçoamento apurando os meus sentimentos, engrandecendo os meus pensamentos, enobrecendo a minha conduta.

 

Imagem final. Morta, como viva, minha santa Lúcia, tu deves sempre permanecer o verdadeiro centro da segunda vida de que te sou essencialmente devedor. A tua dolorosa transformação de uma triste existência em uma gloriosa eternidade não deve jamais alterar a divisa familiar que eu te fiz aceitar, amor e respeito eternos!

 

Imagem de 27 de agosto de 1856

Ah! Se’l sommo piacer si mi fallio

Per la tua morte, qual cosa mortale

Potrà mai trarre me nel suo disio?

Oh, nulla, nulla, giammai,

Es hombre vil, es infame,

El que, solamente atento

A lo bruto del deseo,

Viendo perdido lo mas

Se contenta com lo menos!

 

2º de pé junto do altar (10 minutos)

 

Imagem de 5 de outubro de 1851

Minha cara filha, como foi cedo destruída a incomparável felicidade que te trouxe tão tarde um laço santamente excepcional (já me lamentei bastante, é a ti que eu devo lamentar)! Para mim mesmo, ela não está destruída, ela está apenas transformada; ela é agora inalterável. Apesar da catástrofe, a minha situação final ultrapassou cada vez mais tudo o que eu podia esperar, e mesmo sonhar, antes de ti. Sobretudo, a minha virtuosa paixão não deve jamais perder a sua aptidão natural para secundar ativamente a alta missão social que, desde então me absorvendo todo inteiro, me pode só oferecer uma santa compensação pessoal, cada vez mais preciosa à medida que tu te achas nela mais bem incorporada. Os deveres do casto esposo continuarão a fortificar os do filósofo, quando tive de cessar de trabalhar no teu aperfeiçoamento para aspirar à tua glorificação.

 

Imagem de 11 de fevereiro de 1852

Caro anjo menosprezado, o teu admirável ascendente não se tornou dignamente apreciável senão dispondo-me sempre a melhor servir o Grão-Ser ao qual te sinto irrevogavelmente incorporada e cuja melhor personificação me ofereces. Durante um ano sem par, o teu doce impulso espontâneo facilitou profundamente o pleno surto do verdadeiro caráter finalmente peculiar à minha filosofia: a sistematização real de toda a existência humana mediante a preponderância fundamental do coração sobre o espírito, consagrando a inteligência ao serviço contínuo da sociabilidade.

O Amor por princípio, e a Ordem por base; o Progresso por fim. O Amor procura a ordem e impele para o progresso; a Ordem consolida o amor e dirige o progresso; o Progresso desenvolve a ordem e reconduz para o amor.

Um, união, unidade, continuidade; dois, arranjo, combinação; e três, evolução, sucessão.

O amor universal, assistido pela fé demonstrável, dirige a atividade pacífica.

O homem torna-se cada vez mais religioso.

Agir por afeição e pensar para agir.

Referindo tudo à Humanidade, a unidade torna-se mais completa e mais estável do que nos esforçando por tudo religar a Deus.

A submissão é a base do aperfeiçoamento.

Adeus, minha casta companheira eterna! Adeus, minha bem-amada Lúcia! Adeus, minha discípula querida e minha digna colega!

(Lembranças intercaladas do meu velho amigo Carlos Bonnin e da sua desventurada filha Vitória.)

A mim cumpre obter, pelos meus nobres trabalhos, que o teu nome se torne inseparável do meu, nas mais longínquas lembranças da Humanidade reconhecida.

A pedra do sepulcro é o teu primeiro altar.

Addio, sorella! Addio, cara figlia! Addio, casta sposa! Addio, sancta madre! Vergine madre, figlia del tuo figlio, Addio!

 

Oh, amanza del solo amore, o diva,

Non é l’affezione mia tanto profunda

Che basti à render voi grazia per grazia.

 

(Reprodução, de joelhos, com os olhos abertos, da segunda parte do preâmbulo, sob a imagem fixa de 11 de fevereiro de 1852.)

 

3º Conclusão (5 minutos)

 

De joelhos diante do altar recoberto

 

I – (Quadro da minha verdadeira família, objetiva e subjetiva, reunida, com os meus principais discípulos, no domingo 4 de setembro de 1870, em Montpellier[2] no único domicílio a que se referem as minhas lembranças do país natal.)

A venerável imagem de Rosália Boyer foi se combinando de mais em mais com a amável presença de Clotilde de Vaux, primeiro na minha visita hebdomadária à tumba querida, em seguida durante as minhas orações quotidianas.

 

II – Imagem da tumba querida. Rosália, Lúcia, Sofia, o vosso virtuoso conjunto, doravante inalterável, deve sempre oferecer-me o melhor tipo da verdadeira natureza feminina. Sob a vossa inspiração contínua, sistematizei melhor a influência, pública e privada, do sexo afetivo, como o primeiro fundamento da regeneração final.

Aquela de vós que sobrevive reanima, sem o saber, o santo impulso das outras duas, pelo doce espetáculo contínuo do nosso estado normal, a inteligência e a atividade livremente subordinadas ao sentimento. Possa a minha justa gratidão pública tornar os vossos três nomes igualmente inseparáveis do meu para a Posteridade reconhecida! Ousei publicamente terminar a minha construção religiosa encarregando todos os meus discípulos de ambos os sexos de obter, como principal recompensa dos meus serviços, a minha solene inumação no meio de vós três, em nome do Grão-Ser, ao qual seremos irrevogavelmente incorporados[3].

O que não faria eu, minha Santa Lúcia, para merecer plenamente a tumba comum diante da qual virá dignamente inclinar-se a bandeira coletiva do Ocidente regenerado!

 

III – (À minha eterna companheira.) Amem te plus quam me, Nec me nisi propter te![4]

(À Humanidade no seu templo, diante do seu altar-mor.) Amem te plus quam me, Nec me nisi propter te!

(À minha nobre padroeira, como personificando a Humanidade.) Vergine-madre, Figlia del tuo figlio, amem te plus quam me, Nec me nisi propter te!

 

Tre dolci, nome ha’ in te raccolti

Sposa, madre, e figliuola!

(Petrarca)

 

(Introduzido no domingo 25 de César de 69)[5]

 

Imagens hebdomadárias (51)

 

31 normais

Lunedia – 2 de junho de 1845, 30 de junho, 25 de agosto.

Martedia – 29 de abril de 1845, 12 de agosto, 26 de agosto, 31 de março de 1846, (14 de abril de 1846).

Mercuridia – 27 de agosto de 1845, 12 de novembro, 14 de janeiro de 1846, 11 de fevereiro, 1º de abril.

Jovedia – 26 de junho de 1845, 28 de agosto, 16 de outubro, (28 de agosto de 1851)[6].

Venerdia – 16 de maio de 1845, 18 de julho, 8 de agosto, 29 de agosto, 20 de março de 1846.

Sábado – 11 de outubro de 1845, 7 de fevereiro de 1846, 28 de fevereiro, 7 de março, 28 de março.

Domingo – 7 de setembro de 1845, 5 de outubro, 29 de março de 1846, (4 de abril de 1847).

 

20 excepcionais

Lunedia – 9 de junho de 1845, 30 de março de 1846.

Martedia – 13 de maio de 1845, 25 de novembro, (3 de junho de 1851), (3 de junho de 1856).

Mercuridia – 2 de julho de 1845, 20 de agosto, 3 de setembro, (15 de abril de 1846), (11 de abril de 1855)

Jovedia – 24 de abril de 1845, 2 de abril de 1846!

Venerdia – 3 de abril de 1846! (11 de janeiro de 1856), (10 de abril de 1857).

Sábado – 6 de dezembro de 1845, 14 de fevereiro de 1846, 4 de abril!

Domingo – 5 de abril de 1846!!!

 

Oração da noite

(Uma meia hora)

 

(Na cama, sentado.)

 

1ª Comemoração (10 minutos)

 

Lembrança preciosa da minha mocidade, companheiro e guia das horas santas que soaram para mim, evoca sempre ao meu coração as cerimônias grandes e suaves da capela do convento!... (A sua inscrição de 1837 na Journée du chrétien que ela me deu, no domingo 29 de março de 1846, como o seu livro usual no convento da Legião de Honra, rua Barbette.)[7]

Comte, lembra-te que eu sofro sem o haver merecido!!! (As suas últimas palavras, que eu inscrevi nesse mesmo livro, diante de Sofia, hora e meia depois que as ouvimos.)

Imagem principal do dia – Sim, a tua morte mesma consolida para sempre o laço fundado na minha afeição, a minha estima, e o meu respeito.

 

Mai non t’appresentò natura odarte

Piacer, quanto le belle membra in ch’io

Rinchiusa fui e che son terra sparte:

E se’l sommo piacer si ti fallio

Per la mia morte, qual cosa mortale

Dovrà poi trarre te nel suo disio?

 

Oh, amanza del solo amore, o diva,

Non é l’affezione mia tanto profunda

Che basti à render voi grazia per grazia.

 

2ª Efusão (15 minutos)

 

Imagem de 28 de fevereiro de 1852 – Sob a tua poderosa invocação, a mais dolorosa crise da minha vida íntima me tornou finalmente melhor, a todos os respeitos, desenvolvendo, embora só, os santos germes cuja evolução tardia porém decisiva devi sobretudo a ti. A idade das paixões privadas ficou então terminada para mim: podia ela acabar mais dignamente? Devi a partir desse momento entregar-me exclusivamente à eminente paixão, que, desde a minha adolescência, votou sempre a minha vida ao serviço fundamental da Humanidade. Prosseguindo a minha sublime missão, devo constantemente abençoar a tua salutar influência, que não poderá jamais cessar de presidir ao meu principal aperfeiçoamento. A preponderância sistemática do amor universal, gradualmente emanada da minha filosofia, não teria podido sem ti se me tornar assaz familiar, apesar da feliz preparação já resultante do surto espontâneo dos meus gostos estéticos.

As minhas íntimas satisfações não deverão desde então provir senão de um culto assíduo das puras e nobres lembranças que me deixou, para sempre, o nosso incomparável ano de virtuosa ternura recíproca. Esse culto de amor e reconhecimento não pode jamais cessar de aliviar-me e sobretudo de melhorar-me. Sob as tuas diversas imagens tu nele me lembrarás sempre quanto, malgrado a catástrofe, a minha situação final ultrapassa tudo o que eu podia esperar, e mesmo sonhar, antes de ti. Quanto mais se desenvolve a harmonia sem exemplo que te devo entre a minha vida privada e a minha vida pública, tanto melhor tu te incorporas, aos olhos dos meus verdadeiros discípulos, a cada modo da minha existência. A nossa perfeita identificação tornar-se-á a melhor recompensa de todos os nossos serviços, talvez mesmo antes que a bandeira universal venha solenemente inclinar-se sob o nosso comum esquife.

 

Imagem de 20 de agosto de 1851

Ah! Se’l sommo piacer si mi fallio

Per la tua morte, qual cosa mortale

Potrà mai trarre me nel suo disio!

 

(Reprodução da segunda parte do preâmbulo da manhã.)

Addio, la mia Béatrice! Addio, Clotilde! Addio, Lucia! Addio, quella che’mparadisa la mia mente, Addio!

(Imagem da tumba querida.) A pedra do sepulcro é o teu primeiro altar.

 

Tre dolci, nome ha’ in te raccolti

Sposa, madre, e figliuola!

(Petrarca)

 

A submissão é a base do aperfeiçoamento.

 

3º Conclusão (5 minutos)

 

(Deitado)

 

(Imagem principal do dia.) É indigno dos grandes corações derramar as perturbações que sentem.

A nossa espécie, mais do que as outras, carece de deveres para fazer sentimentos.

Os maus têm amiúde mais precisão de piedade do que os bons.

O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim.

Virgine-Madre, Figlia del tuo figlio, Amem te plus quàm me, nec me nisi propter te!

Viver para outrem – A Família, a Pátria, a Humanidade – Viver às claras.

 

Oração do meio do dia

(Às 10h 30 em ponto – 20 minutos)

 

1ª Comemoração (10 minutos)

 

Imagem de 7 de março de 1846

Oh, amanza del solo amore, o diva,

Non é l’affezione mia tanto profunda

Che basti à render voi grazia per grazia.

 

(A sua última carta.) Meu caro amigo, eis aqui o resto das forças das quais contava dar-vos a melhor parte. A boa Sofia teve as alvíssaras delas, e ter-vos-á contado o meu ato de autoridade quanto às rosas: estou me dando muito bem com as ter substituído pela água de arroz e o marmelo.

Queria, há muito tempo, falar-vos de vós, e ontem esperava ter forças para tal: mas, é uma coisa assentada, malgrado toda a ternura que me impele para vós, a vossa exaltação obriga-me a voltar à pena.

Caro amigo, o vosso apego torna-me bem venturosa, e por vezes bem pensativa: pergunto-me a mim mesma se algum dia não me pedireis contas dessas distrações violentas atiradas no meio da vossa vida pública; de um laço que devia ser todo doçura, fazeis uma sorte de adstringente apimentado que dissipa o vosso tempo, o vosso pensamento, e que não reage senão sobre mim... Enganai-vos quando dizeis que a amizade não ama: eu nunca ousei ser eu mesma convosco (e não volteis às coisas vulgares ou grosseiras que supusestes outrora). Quando me sirvo da palavra ousar, é que ela convém perfeitamente. Se estivéssemos ambos calmos, eu vos provaria que a amizade sabe ser terna ardente; eis porque patrocino o nosso apego com todos os nomes mais doces e mais santos: é para conduzi-lo a fazer-me lugar ao vosso lado junto do fogo.

Tudo isso pede ser desenvolvido, e eu vos prometo ocupar-me de tal logo que o puder. Tenho visitas de sabre para dois dias: nem sei mesmo se isso me fará bem.

Tenho muitas coisas amigáveis a dizer-vos. É força cessar por hoje. Recebei a eterna segurança da minha ternura.

Sim, minha nobre padroeira, eu a recebo respeitosamente, como o principal tesouro de toda a minha segunda vida.

 

(Imagem final.)

Illa, graves oculos conata attollere, rursùs

Deficit; infixum stridit sub pectore vulnus.

Ter sese attollens, cubieoque adnixa, levavit:

Ter revoluta toro est, oculisque errantibus alto

Quœsivit cœlo lucem, in gemuitque repertâ.

(Virgílio.)

 

(Beijando o meu cacho portátil dos seus cabelos.) Reconhecimento, Saudades, Resignação. – A submissão é a base do aperfeiçoamento.

 

Imagem de 29 de abril de 1845 – A vista completou o encanto do ouvido... Gli occhi smeraldi!

(A sua primeira carta.) As vossas bondades tornam-me bem feliz e orgulhosa, senhor, e não me sinto com paciência de esperar melhor ocasião para dizer-vos todo o prazer que me causou Tom Jones.

Pois que a vossa superioridade não vos impede de fazer tudo para todos, regozijo-me com a esperança de conversar convosco acerca dessa pequena obra-prima, e poder recolher por vezes no meu coração e nome espírito os vossos belos e nobres ensinamentos.

Aceitai, senhor, com a expressão de todo o meu reconhecimento, a da grandíssima consideração.

 

(A minha resposta.) Senhora, não posso tampouco esperar até a venturosa ocasião de vos tornar a ver, para testemunhar-vos quanto me tocou o precioso acolhimento com que vos dignais gratificar um leve sinal de atenção, apenas recomendável por uma pressurosa oportunidade, aliás demasiada natural para convosco.

O apreço que tendes a benevolência de ligar à minha conversação, anima-me a declarar-vos que eu veria com muita satisfação multiplicarem-se tais relações tanto quanto o crerdes conveniente. Fui muitas vezes julgado pouco sociável, por falta de achar, nos outros, uma disposição de espírito, e sobretudo de coração, suficientemente em harmonia com a minha. Mas nem por isso apreciei sempre menos, no fundo, essa doce troca de sentimentos e pensamentos como a principal fonte da felicidade humana, quando as condições de tal comércio podem ser dignamente preenchidas. O confiante abandono que praz-me experimentar junto dos vossos pais deve indicar-vos assaz a minha tendência natural a saborear convenientemente o vosso amável entretenimento. Além da elevação de idéias e da nobreza de sentimentos que parecem peculiares a toda a vossa interessante família, uma triste conformidade moral de situação pessoal constitui ainda, entre vós e mim, uma aproximação mais especial.

Aceitai, senhora, de novo a segurança bem sincera do afetuoso respeito do vosso devotado criado.

 

2ª Efusão (7 minutos)

 

Imagem de 7 de março de 1846.

 

(De joelhos.)

 

DANTE

 

Donna, se’ tanto grande et tanto vali

Che, qual vuol grazia e a te non ricorre,

Sua disianza vuol volar senz’ali.

La tua benignità non pur soccorre

A chi dimanda, ma molte fiate

Liberamente AL dimandar precorre.

In te misericórdia, in te pietate,

In te magnificenza, in te s’aduna

Quantunque in creatura è di bontate.

 

PETRARCA

 

Dolci durezze e placide repulse,

Piene di casto amor e di pietate,

Leggiadri sdegni, che le mie infiammate

Vlglie tempraro (or me n’accorgo) e’nsulse.

Gentil parlar, ovi chiaro rifulse

Com somma cortesia somma onestate,

Fior di virtù, Fontana di beltate,

Ch’ogni basso pensier dal cor m’avulse.

Divino sguardo, da far l’uom Felice,

Or fiero in affrenar la mente ardita

A quel che giustamente si disdice,

Or presto a confortar mia frale vita:

Questo bel variar fu la radice

Di mia salute, chaltramente era ita.

 

3º Conclusão (3 minutos)

 

(Imagem da tumba querida.) Quella ch’mparadisa la mia mente! Viver para outrem. Eis a verdadeira felicidade como o verdadeiro dever. Só tu me ensinaste a fundir as suas fórmulas! Que prazeres podem exceder os da dedicação?

 

(À minha eterna companheira.) Amem te plus quàm me, nec me nisi propter te!

 

(À Humanidade, no seu templo, diante do seu altar-mor.) Amem te plus quàm me, nec me nisi propter te!

 

(As sete máximas da minha padroeira.) É indigno dos grandes corações derramar as perturbações que sentem.

Que prazeres podem exceder os da dedicação?

Compreendi, melhor do que ninguém, a fraqueza da nossa natureza, quando não é dirigida para um alvo elevado, que seja inacessível às paixões.

A nossa espécie, mais do que as outras, carece de deveres para fazer sentimentos.

Não há, na vida, nada irrevogável senão a morte.

Nós temos todos ainda um pé no ar sobre o limiar da verdade.

Os maus têm amiúde mais precisão de piedade do que os bons.

(À minha padroeira, como personificando a Humanidade.)

 

Vergine-madre, Figlia del tuo figlio,

Amem te plus quàm me, nec me nisi propter te!

 

Tre dolci nomi hà’in te raccolti

Sposa, madre, e figliuola!

 

Paris, 10, Rua Monsieur-le-Prince,

Venerdia, 16 de Arquimedes 69

(10 de abril de 1857.)

 

Augusto Comte

Fundador da Religião da Humanidade.

Nascido a 19 de janeiro de 1798, em Montpellier.



[1] Fonte: Raimundo Teixeira Mendes, Comte e Clotilde, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1903, p. 85-126.

Teixeira Mendes baseou-se, em particular para as orações cotidianas, no Testamento de Augusto Comte (Augusto Comte, Testament, 2e. ed, Paris, Execution Testamentaire d’Auguste Comte, 1896, p. 81-99).

[2] Nota de Raimundo Teixeira Mendes: “4 de setembro é o dia em que a igreja católica celebra a festa de Santa Rosália; em 1870 caía em domingo. Esse quadro referia-se a um ideal que o nosso mestre fazia da sua velhice e que a morte não permitiu realizar-se”.

[3] Nota de Raimundo Teixeira Mendes: “Desde 1849 que o nosso Mestre terminava a sua Oração da manhã com esse voto que infelizmente não pôde ser cumprido até hoje. (Vide a Política positiva, IV, p. 553 e 554)”.

[4] Nota de Raimundo Teixeira Mendes: “Ame-te a ti mais do que a mim, e não me ame a mim senão por amor de ti”.

[5] Nota de Raimundo Teixeira Mendes: 17 de maio de 1857.

[6] Introduzida em 1º de César de 69.

[7] Nota de Raimundo Teixeira Mendes: “O nosso Mestre lia algumas páginas desse livrinho todos os domingos à tarde, desde a morte de Clotilde. (Vide Volume Sagrado, Testamento, p. 18.)”

Live AOP: Ricardo Cortez Lopes apresenta a Represontologia

No dia 11 de Carlos Magno de 170 (27.6.2024) realizamos uma Live AOP com o Prof. Dr. Ricardo Cortez Lopes, que apresentou sua Represontologia. O evento durou cerca de uma hora e meia e foi uma exposição e uma conversa muito agradável e instrutiva.

O evento foi transmitido no canal Positivismo (aqui: https://encr.pw/tclSz).

Para realizar a divulgação da Represontologia, o dr. Ricardo elaborou alguns materiais, disponíveis gratuitamente na internet:

- o livro apresentando a Represontologia está disponível aqui: https://encr.pw/4yTre

- um curso gratuito sobre a Represontologia está disponível aqui: https://l1nq.com/cGLxt

- um glossário da Represontologia está disponível aqui: https://l1nq.com/V6VVd.



26 junho 2024

Transição para o Positivismo no politeísmo e no fetichismo

No dia 9 de Carlos Magno de 170 (25.6.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, concluindo a sua undécima conferência, dedicada ao regime público.

Como a leitura comentada esteve um pouco travada nas prédicas anteriores, decidimos novamente nesta semana não realizar o sermão - que, de qualquer maneira, como indicamos anteriormente, apresenta apenas um caráter complementar na prédica. 

Assim, pudemos estender-nos nos comentários ao Catecismo positivista, que, nessa prédica, referiram-se à transição para a Religião da Humanidade nos países politeístas (Índia, por exemplo) e nas sociedades fetichistas (por exemplo, tribos centro-africanas). 

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/xbZ6g) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/QwnEk).

A leitura comentada começou aos 21 min 28 s.

 


25 junho 2024

Raimundo Teixeira Mendes: Orações para as refeições

Orações para as refeições

 

Oração para antes das refeições

(De pé)

 

Em nome da Humanidade.

(Fórmula e sinal positivistas.)

Ao sentarmo-nos a esta mesa, agradeçamos, com toda sinceridade de coração, à Humanidade, mais este benefício que a sua santa Providência nos concede. Estendamos também a nossa gratidão à Terra, cuja fecunda e amorosa atividade o trabalho da Humanidade se limita a sistematizar. Abençoemos igualmente o Espaço, cuja inalterável benevolência permite que a Humanidade desenvolva, cada vez melhor, o império do seu Amor, aumentando os encantos da submissão voluntária e reparando a cegueira da ação benfazeja da Terra, como da passiva solicitude do Espaço.

Recordemos especialmente que o alimento, que tão generosamente nos é dado, custa a dedicação da imensa multidão dos nossos irmãos proletários, cuja maioria não tem neste momento senão uma alimentação insuficientíssima, e muitos padecem mesmo [d]os horrores da fome. Que esta lembrança nos ajude a imitar os Fundadores da Religião Universal, Clotilde e Augusto Comte, restringindo o consumo das provisões, que a Humanidade confia à nossa guarda, ao que é estritamente necessário para – viver para outrem. Amém.

 

Oração para depois das refeições

(De pé)

 

Ao levantarmo-nos desta mesa, agradeçamos novamente à Humanidade o alimento que a sua santa Providência generosamente concedeu-nos, e prometamos consagrar ao seu serviço as forças que, com o seu auxílio, acabamos de reparar. Lembremo-nos especialmente que toda a nossa atividade deve ter por fim estender à totalidade dos nossos irmãos proletários os benefícios de que se acham privados e sem os quais não podem convenientemente cumprir a lei do dever e da felicidade – viver para outrem. Que este pensamento nos ajude a seguir os ensinos que, com o seu inexcedível exemplo, nos legaram os Fundadores da Religião Universal, Clotilde e Augusto Comte. Que prazeres podem exceder aos da dedicação? Amém.

 


Raimundo Teixeira Mendes: "Hino ao Amor"

Hino ao Amor

(Raimundo Teixeira Mendes)

 

(Ensaio de uma paráfrase positiva do cap. V, livro 3º, da Imitação, de Tomás de Kempis, segundo a tradução em verso de Corneille.)

 

Ave! Cara Humanidade!

Virgem-Mãe! Nossa Senhora!

Fonte de toda bondade

Que nossa alma entesoura!

Terna e humilde Divindade

Que tudo no mundo adora!

 

Sempre os olhos compassivos

Postos em nós com brandura,

Nos transes mais aflitivos

Com que a dor nos amargura,

Nos trazes os lenitivos

Da tua infinita ternura.

 

Te sejam dadas mil graças,

Oh! Mãe de misericórdia,

Que nossas almas congraças,

Em tua eterna concórdia,

Serenando as ameaças

Do egoísmo em discórdia.

 

Ora e sempre os teus louvores

Não cessarão de arroubar-nos,

Rememorando os favores

Que nunca deixam de dar-nos

Teus carinhos, teus amores,

Para felizes tornar-nos.

 

Por ti se expande fervente

Da gratidão alma essência,

À Terra beneficente,

Cuja perene assistência

Forma a base providente

De tua excelsa existência.

 

A mesma santa homenagem

Nos recorda jubilosa

Do Sol a possante imagem,

Da Lua a face mimosa,

E a celeste linhagem

Da nossa Terra amorosa.

 

E nesse ditoso enleio

Do sentir alto e fecundo,

Também ao benigno Meio

Que te envolve e ao nosso Mundo

Se eleva do nosso seio

Um grato afeto profundo.

 

Vem! Oh! Vem! Deusa querida,

Virgem-Mãe! Nossa Senhora!

Exultar a nossa vida,

Alentando em cada hora

A nobre chama acendida

Nesse amor que te devora.

 

És tu só a nossa glória

E toda a nossa alegria!

Só arrimo da vitória

Nas lutas que a simpatia

Nesta vida tormentória

Tem de travar noite e dia.

 

Com a meiga solicitude

Socorre a fragilidade

Da nossa pobre virtude,

E com a doce potestade

O nosso amor tíbio e rude

Sustém na adversidade.

 

Visita freqüentemente

Nosso filial coração,

Pois és tu unicamente

Quem lhe traz consolação,

Quem lhe ensina eternamente

Os verbos da perfeição.

 

Das más paixões nos liberta

Com tua grata presença;

Ela só o amor desperta

Esvaindo a névoa densa

Que nossa mente acoberta,

Nos velando a santa crença.

 

Só assim serão sentidos

Enlevos do puro amor!

Santos gozos espargidos

Por teu sublime esplendor!

Almos prazeres hauridos

No teu contínuo labor!

 

Deusa de amor, nos abrasa

No teu afeto sublime;

Desse gelo que atenaza

Com teu fervor nos redime:

Dá que somente nos praza

Santo ardor que mal s’exprime.

 

Na tua alma extremosa

A nossa pobre incorpora;

E dilata caridosa

Um coração que te implora

Vastidão mais espaçosa

Para conter-te, Senhora.

 

Dá que encontremos suplícios

No que não for te adorar;

Que se abram só precipícios

Onde quer que se afastar

De teus bondosos auspícios

Nosso contínuo pensar.

 

Jamais seja o esforço falho

No teu bendito labor:

E, qual o fecundo orvalho

Que perfuma a grata flor,

Se torne o nosso trabalho

Num puro hino de amor!

 

E seja um concerto infindo

De perenal gratidão

Em tudo que produzindo

For da Terra a perfeição,

Em tudo que for surgindo

Do Espaço pela amplidão.

 

Dá, oh! Mãe estremecida,

Que tudo em ti adoremos;

Qu’em ti nossa alma embebida,

Mais a ti que a nós amemos;

Que só por ti redimida,

A própria vida prezemos.

 

Tal é o voto contín’o

Dum coração que se deu

Ao teu serviço divino,

Sem nada guardar de seu;

Que não tem outro destino

Senão o que tenhas por teu.

 

Bendita a Fé que só nos dá de amar assim

Desde o raiar da vida até da vida o fim.

23 junho 2024

Transição para o Positivismo no monoteísmo extraocidental

No dia 2 de Carlos Magno de 170 (18.6.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência, dedicada ao regime público.

Como a leitura comentada esteve um pouco travada nas prédicas anteriores, decidimos não realizar o sermão - que, de qualquer maneira, apresenta apenas um caráter complementar na prédica. 

Assim, pudemos estender-nos nos comentários ao Catecismo positivista, que, nessa prédica, referiram-se à transição para a Religião da Humanidade nos países monoteístas que não integram o Ocidente, ou seja, em particular a Rússia (na época em que o Catecismo foi escrito, o Império Russo), a Turquia (na época em que o Catecismo foi escrito, o Império Turco-Otomano) e o Irã (na época em que foi escrito o Catecismo, a Pérsia). 

Antes de iniciarmos a leitura comentada do Catecismo, fizemos comentários adicionais sobre alguns livros:

- A esquerda não é woke, de Susan Neiman

- O momento comtiano, Laicidade na I República e Comtianas brasileiras, além de outros, de Gustavo Biscaia de Lacerda

- O léxico de Augusto Comte, de Ângelo Torres.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/sX11C) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/Mnayr).

A leitura comentada começou aos 43 min 43 s.



11 junho 2024

Síntese subjetiva e relativa como quarto estado

No dia 23 de São Paulo de 170 (11.6.2024) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência (dedicada ao regime público).

No sermão abordamos uma questão central para o Positivismo e para todos os seres humanos: a noção de positividade filosófica, superior à mera positividade científica, como um quarto estado da lei dos três estados.

Antes do sermão comentamos alguns livros:

- Ascensão e reinado dos mamíferos, de Steve Brusatte

- A esquerda não é woke, de Susan Neiman

 A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/ArsP0) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/hmfvr).

A leitura comentada começou aos 48 min 05 s; o sermão começou a 1h 09 min 43 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas (e atualizadas) abaixo.

*   *   *

A síntese subjetiva como quarto estado

(23.São Paulo.170/11.6.2024) 

1.      A prédica de hoje trata de um assunto que é da maior importância para o Positivismo, isto é, para a Religião da Humanidade e, por extensão, para o ser humano, para o bem-estar público e para a felicidade individual

1.1.   Trata-se da incorporação da síntese subjetiva na lei dos três estados, ou melhor, da atualização da lei dos três estados em face da síntese subjetiva

1.2.   Essa atualização é importante porque corrige uma ambigüidade daninha presente desde o início da lei dos três estados

2.      Antes de passarmos à parte mais substantiva deste sermão, podemos responder a uma pequena dúvida que, por vezes, apresenta-se aos leitores de Augusto Comte (incluindo, evidentemente, os positivistas)

2.1.   A dúvida é a seguinte: devemos dizer “estados” ou “estágios”?

2.2.   A formulação de Augusto Comte é bem clara: ele usa “état”, ou seja, “estado”: é a “loi des trois états

2.3.   Mas se na formulação ele usa “estado”, em seus escritos ele não se apega a essa palavra, usando alternadamente “estado”, “estágio”, “fase”, “modo” etc.

2.3.1.     Os positivistas, da mesma forma, adotam essas várias palavras

2.4.   Para além da palavra consagrada no enunciado, o que evidentemente importava para Augusto Comte, conforme depreendemos de seus escritos, é que cada um dos estados descritos na lei dos três estados (1) representa um modo distinto de conceber e interpretar a realidade, (2) que segue uma determinada seqüência lógica e histórica em seu desenvolvimento

2.5.   Assim, na prática, podemos dizer que o enunciado deve ser feito com “estados” (por motivos de respeito e de uniformidade), mas que ao longo das exposições e das reflexões podemos usar sem maiores dificuldades as outras palavras

3.      A lei dos três estados a que nos referimos é a lei intelectual dos três estados

3.1.   Ela foi primeiramente enunciada em 1822, no texto, ou livro, chamado “Plano dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade”

3.1.1.     Esse livro era chamado por Augusto Comte também de “opúsculo fundamental”

3.1.2.     Além disso, é popularmente conhecido apenas como “Reorganizar a sociedade”

3.1.3.     Ele teve uma reedição aumentada em 1824, em que Augusto Comte chamou-o – prematuramente, como ele mesmo depois reconheceu – de “Sistema depolítica positiva

3.2.   Ao apresentar a lei dos três estados, inserindo-a em uma reflexão histórica mais ampla, o “Reorganizar a sociedade” tem o mérito e a glória de ao mesmo tempo fundar a Sociologia e o Positivismo

3.3.   O enunciado dessa lei mudou com o passar do tempo, refletindo mudanças, ou melhor, a evolução das concepções de nosso mestre

3.4.   O enunciado final, “canônico”, é o que aparece no corpo da Filosofia Primeira, conforme publicado no Catecismo positivista:

3.4.1.     “Cada entendimento oferece a sucessão dos três estados, fictício, abstrato e positivo, em relação às nossas concepções quaisquer, mas com uma velocidade proporcional à generalidade dos fenômenos correspondentes”

3.4.2.     Vale lembrar que essa é a sétima lei do total de 15 leis da Filosofia Primeira; ela integra o segundo grupo de leis, “essencialmente subjetivo”, na sua segunda série, que compreende as leis dinâmicas do entendimento

3.4.3.     Essa segunda série apresenta as três leis dos três estados (intelectuais, afetivos e práticos)

3.5.   As idéias da lei intelectual dos três estados são bem claras:

3.5.1.     Toda concepção humana passa por três fases, ou seja, três modos de entender o mundo

3.5.2.     Esses três modos são, sucessivamente, o fictício, o abstrato e o positivo

3.5.2.1.           Insistamos: os modos são três, são sucessivos, são os indicados acima e desenvolvem-se nessa ordem

3.5.3.     A velocidade da passagem de um modo de conceber a realidade para outro varia de acordo com a generalidade objetiva de cada concepção, o que também equivale a dizer: conforme a generalidade subjetiva e o grau de complicação das concepções

4.      Pois bem: a ambigüidade que mais ou menos sempre se apresentou consiste, precisamente, no fato de que o estado positivo apresentava dois sentidos diferentes

4.1.   Esses dois sentidos são: (1) positivo como “científico” e (2) positivo como “filosófico”

4.2.   O sentido “científico” foi o que primeiro apresentou-se a Augusto Comte, refletindo o desenvolvimento das ciências; ele opõe-se de maneira bastante clara à teologia e à metafísica

4.3.   O sentido “filosófico”, nas primeiras formulações, não estava muito evidente – o que, é importante enfatizar, não significa que não se apresentasse de maneira nenhuma –, mas, à medida que nosso mestre desenvolveu sua obra, a importância da síntese filosófica foi evidenciando-se cada vez mais

4.4.   Assim, nas formulações iniciais – ou seja, nos opúsculos de juventude (como o “Reorganizar a sociedade”, de 1822-1824) e ao longo dos cinco primeiros volumes da Filosofia positiva (de um total de seis) (1830-1841) –, Augusto Comte afirmava ao mesmo tempo, a importância da cientificidade (usando, para isso, a lei dos três estados como apoio) e a necessidade de concepções gerais, sintéticas e francamente relativas

4.4.1.     A necessidade das concepções gerais, sintéticas e relativas era afirmada em conjunto com a cientificidade, mas ela não era plena e conscientemente integrada à lei dos três estados, que se limitava assim, em seu enunciado, ao positivo como cientificidade

4.5.   Conforme nosso mestre disse em carta ao dr. Audiffrent de 15 de Homero de 69 (12 de fevereiro de 1857), apenas a partir do último volume da Filosofia positiva (1842) é que o enunciado, ou melhor, que o sentido pura ou predominantemente científico na lei dos três estados mudou

4.6.   O relacionamento com Clotilde permitiu que Augusto Comte mudasse claramente o sentido, assumindo então que a positividade não pode ser apenas a cientificidade, mas deve ser, ainda mais, o aspecto sintético, subjetivo e relativo

4.7.   A Religião da Humanidade, proposta no Discurso sobre o conjunto do Positivismo (1848), fundada plenamente na Política positiva (1851-1854) e aprofundada na Síntese subjetiva (1856) consagrou definitivamente o sentido pleno da positividade, isto é, como síntese filosófica, relativa e subjetiva

5.      Pois bem: o ano de 1857 foi dedicado por Augusto Comte para reflexão e amadurecimento filosófico, preparando-se para a redação dos volumes seguintes da Síntese subjetiva

5.1.   No âmbito dessas reflexões, em conversas epistolares com seus discípulos, Augusto Comte apresentava e desenvolvia suas novas concepções

5.2.   Na já mencionada carta ao dr. Audiffrent, de 15 de Homero de 69 (12 de fevereiro de 1857), nosso mestre formaliza a concepção de positividade presente na lei intelectual dos três estados, desdobrando-a em uma lei dos quatro estados

5.2.1.     A positividade, assim, assume duas fases sucessivas: uma preparatória, a científica, e a outra verdadeiramente definitiva, a filosófica

5.2.2.     Além do aspecto filosófico, explicitamente ao mesmo tempo sintético, relativo e subjetivo, Augusto Comte indica que a verdadeira positividade exige que a utilidade seja claramente acrescida à realidade das concepções

5.2.2.1.           A mera realidade pode resultar – e, como sabemos, com freqüência resulta – no absolutismo científico

5.2.2.2.           Por outro lado, o pleno e conseqüente emprego da utilidade resulta em que é possível, e necessário, que criemos concepções que sejam fictícias mas úteis

5.2.2.2.1.                O critério da realidade não é final, mas não pode ser desprezado; assim, as ficções positivas, sem se limitarem à realidade, não podem negar as concepções reais

5.2.2.2.2.                Evidentemente, a subjetividade tem um largo papel aí, seja na forma da imaginação artística, seja na incorporação do fetichismo à positividade

5.2.2.2.3.                Isso tudo resulta em que, por um lado, as utopias positivas podem ser desenvolvidas com plena positividade e que, por outro lado, mesmo as concepções científicas abrem-se plenamente para enunciados simpáticos, isto é, ao mesmo tempo altruístas e artísticos

5.3.   Ao distinguir a positividade científica (que é preparatória e, portanto, provisória) da positividade plena, que é filosófica, nosso mestre também distingue a verdadeira positividade do mero cientificismo (e, por extensão, também do academicismo)

5.4.   Eis como Augusto Comte caracteriza cada um dos quatro estados:

5.4.1.      Teológico: provisório

5.4.2.      Metafísico: transitório

5.4.3.      Científico: preparatório

5.4.4.      Positivo (filosófico): definitivo

5.5.   Comentário estritamente pessoal: no fundo, podemos talvez considerar que o novo enunciado estabelece uma leis dos “dois estados”, indicando a gigantesca transição do absolutismo para o relativismo

5.5.1.     Ou, quem sabe, considerando a transição do absolutismo para o relativismo, uma outra lei dos três estados: fetichismo, teologia/metafísica, positividade

5.6.   Comentário feito pelo nosso amigo Hernani na tarde de hoje (23.São Paulo.170/11.6.2024), a título de auxílio para esta prédica:

“A caracterização intelectual da síntese subjetiva foi feita por Augusto Comte em suas últimas reflexões tomando por base dois pares de conceitos. A síntese positiva é (1) demonstrável e discutível e (2) relativa e subjetiva. Ora, com base apenas nessa dupla caracterização torna-se fácil justificar a lei dos três estados com o acréscimo de uma quarta fase, bastando decompor o estado metafísico em seus dois pólos opostos (o espiritualismo e o materialismo). Basta realizar a seguinte operação: ao teologismo corresponderia uma síntese a um tempo subjetiva e absoluta, donde seu caráter a um tempo indemonstrável e indiscutível.

Em seguida, à primeira expressão da metafísica, isto é, à metafísica espiritualista corresponderia uma tentativa de síntese objetiva e absoluta, donde seu caráter indemonstrável porém discutível.

Ao segundo e último estágio metafísico, isto é, ao cientificismo materialista, corresponde uma tentativa de síntese objetiva e relativa, donde seu caráter demonstrável porém ainda indiscutível.

E por fim, o quarto e último estado do entendimento, a síntese positiva, esta define-se como subjetiva e relativa, donde seu caráter demonstrável e discutível.

Repare que o caráter contraditório das duas sínteses metafísicas fica aí plenamente manifesto, assim como o contraste entre essas duas sínteses em comparação com o caráter orgânico das sínteses teológica e positiva”.

5.6.1.     A sugestão do Hernani é que o antigo critério de positividade – que, no final das contas, é o cientificismo – seja incorporado à metafísica (que, assim, desdobra-se em duas fases), deixando a positividade propriamente dita para a síntese subjetiva e relativa

5.7.   Mais algumas observações de nosso amigo Hernani, agora feitas durante a prédica:

“Em sua primeira fase, mais objetiva, Augusto Comte havia formulado a lei dos três estados a partir das produções exteriores da Humanidade. Ela é então uma apresentação eminentemente histórica e empírica. A teologia, a metafísica e a ciência são aí oferecidas como sinais empíricos reveladores dessa passagem íntima.

Na segunda de suas fases, progressivamente subjetiva, a formulação de Augusto Comte enuncia a mesma lei considerando antes o caráter interno de cada estado, ou seja, o caráter lógico inerente de cada um deles. Então se tratou de revelar o caráter fictício das construções da teologia, o caráter abstrato das especulações metafísicas e o caráter positivo das leis da ciência.

A morte privou Augusto Comte de uma terceira formulação da lei da evolução intelectual, na qual o conjunto do Positivismo já pudesse ser apresentado como livre dos últimos vestígios do cientificismo, o que já havia ocorrido a partir do quarto volume da Política positiva, de 1854, com a teoria subjetiva dos números, com a incorporação do fetichismo etc.

É curioso ver como o resumo de Harriett Martineau[1] foi elogiado por Augusto Comte, dentre outras virtudes, pelo fato de ela haver excluído daí o artigo escrito por Augusto Comte, em 1832, intitulado Memória sobre a hipótese cosmogônica de Laplace[2], adiantando-se assim à exclusão de um assunto que ainda estava presente no Sistema de filosofia positiva e que o Positivismo viria a considerar como mais uma especulação da metafísica cientificista”.

5.8.   A carta de 12 de fevereiro foi aprofundada em uma outra, de 27 de Aristóteles de 69 (24 de março de 1857)

6.      As cartas de A. Comte ao dr. Audiffrent foram publicadas pelo próprio dr. Audiffrent em 1880, no livro O Positivismo dos últimos tempos (LePositivisme des derniers temps) – embora tenham sido apenas trechos dessas epístolas

6.1.   Teixeira Mendes traduziu e publicou esses trechos em 1898 (As últimas concepções de Augusto Comte) e novamente em 1900 (O ano sem par)

6.2.   Finalmente, em 1990, Paulo Carneiro, dando seguimento e concluindo o principal de organização e publicação da correspondência de Augusto Comte, publicou-as na íntegra, no volume VIII da correspondência e das confissões anuais de nosso mestre (esse volume em particular contou com o auxílio de Angèle Kremer-Marietti)

7.      Eis os trechos da bela e importante carta de fevereiro de 1857 que o dr. Audiffrent publicou em 1880[3]:

“A respeito da principal parte de vossa memorável carta, devo sobretudo esboçar a sistematização direta das reflexões gerais que precedentemente vos indiquei sobre a emancipação científica especialmente instituída, conforme o caso mais decisivo, ainda que sob um modo espontaneamente latente no volume que vós reledes agora. É necessário perceber diretamente tal emancipação como o complemento normal da evolução fundamental que caracteriza a lei dos três estados. O último estado deve ser, a esse respeito, decomposto em seus dois modos sucessivos, um científico, o outro filosófico, respectivamente analítico e sintético. É somente ao segundo que pertence a qualificação de definitivo, inicialmente aplicado confusamente ao seu conjunto. No fundo, a ciência propriamente dita é tão preliminar quanto a teologia e a metafísica e deve ser finalmente tanto quanto [elas] eliminada pela religião universal, em relação à qual esses três preâmbulos são um o provisório, o outro, transitório, e o último, preparatório. Eu ouso mesmo recusar às ciências o atributo de plena positividade, que não consiste somente na realidade das especulações, mas em sua combinação contínua com a utilidade, sempre referida ao Grande Ser e desde então não podendo nunca ser dignamente apreciada senão conforme a síntese total, vale dizer, subjetiva e relativa. Na construção final, o início teológico da preparação humana não tem menos eficácia que seu término científico. Se este fornece os materiais exteriores, a outra esboça as disposições interiores, ao compensar a imaginaridade[4] pela generalidade, cuja ausência interdiz toda verdadeira racionalidade teórica.

Sob um aspecto mais sistemático, a primeira vida [teológica] é sobretudo distinguida no indivíduo, como na espécie, pela vã pesquisa contínua de uma síntese essencialmente objetiva, ao passo que a segunda [a positividade] constrói e desenvolve a síntese puramente subjetiva, de que a outra forneceu espontaneamente os materiais necessários. Mesmo quando a ciência já sentiu a inanidade das causas e fez gradualmente prevalecer as leis, ela aspira tanto quanto a teologia e a metafísica à objetividade completa, sonhando com a universalidade de explicação exterior segundo uma única lei, não menos absoluta que os deuses e as entidades seguindo a utopia acadêmica. A esse respeito, eu devo ingenuamente estender uma palavra de minha última circular que prolonga esse reproche até a mim mesmo, a respeito da minha obra fundamental [o Sistema de filosofia positiva], em que, não fosse senão a esse título, a posteridade não veria, como eu pude já o dizer nobremente, senão uma construção de estréia, um trabalho de primeira vida, não tendendo para a segunda senão no tomo final, todos os outros permanecendo mais ou menos submetidos ao prestígio científico de que somente o estado plenamente religioso libertou-me”.

8.      Eis o trecho da carta de março de 1857, também publicada pelo dr. Audiffrent em 1880[5]:

“O MESTRE – Vejo que apreciastes agora o meu novo volume [Síntese subjetiva], de maneira a utilizá-lo mais do que ninguém. A sua reação geral sobre a vossa final emancipação científica me é sobretudo preciosa, como garantindo a integridade das vossas disposições sintéticas e a sua eficácia religiosa. Sentistes dignamente que a ciência, longe de constituir o estado positivo, limita-se a fornecer-lhe, após a teologia e a metafísica, uma última preparação necessária que, como as outras duas, tem tanto seus inconvenientes como suas vantagens, e torna-se profundamente nociva prolongando-se fora de medida. Para caracterizar a positividade das nossas concepções, é preciso sempre que a sua realidade se combine com a sua utilidade, a qual não é verdadeiramente suscetível de ser julgada senão religiosamente, em virtude da relação de cada parte com o conjunto. Sente-se que a ciência seria menos apta do que a teologia para constituir um estado fixo, pois que o entendimento não poderia nunca tomar para uma verdadeira residência uma simples escala, unicamente apropriada para subir ou descer entre o mundo e o homem, quando as nossas necessidades o exigem, e de modo algum capaz de fornecer-nos um domicílio permanente. É tempo que os verdadeiros teoristas se libertem, a tal respeito, de uma dominação degradante, a fim de poderem dignamente instalar as grandes noções religiosas contra as quais a ciência será em breve insurgida com mais animosidade do que a teologia e a metafísica, porque ela aspira mais a perpetuar o interregno espiritual”

9.      Em suma:

9.1.   A verdadeira positividade é filosófica, relativa e subjetiva

9.1.1.     A verdadeira positividade não se confunde com o cientificismo – aliás, não se confunde nem com a mera ciência

9.1.2.     O que distingue a verdadeira positividade da ciência e do cientificismo são suas vistas gerais, o reconhecimento de que a inteligência é um atributo humano (embora, claro, não exclusivamente nosso) que está e deve estar a serviço do ser humano – portanto, também a utilidade do conhecimento deve limitar e orientar a aplicação da inteligência

9.2.   Essa distinção tem importância evidente para nós, positivistas, mas, como tudo o mais na Religião da Humanidade, tem importância para todos os seres humanos: tratam-se de concepções importantes para a Humanidade em geral e para cada sociedade e indivíduo em particular

9.2.1.     A correção e a justiça das concepções de Augusto Comte – incluindo a retificação formal da lei dos três estados, no sentido de recusar à mera ciência o caráter de positividade – é atestada pelas mais diferentes manifestações filosóficas e políticas feitas desde antes de Augusto Comte, passando por críticos e comentadores de sua época e chegando aos nossos dias

9.2.1.1.           Não apenas comentadores do Positivismo, mas filósofos que refletem em geral afirmam e exigem a ultrapassagem do cientificismo em favor de concepções mais amplas

9.2.1.2.           O Positivismo afirma tais concepções mais amplas com todas as letras mais ou menos desde sempre:

9.2.1.2.1.                A exigência das visões de conjunto, da síntese filosófica, subjetiva e relativa sempre esteve presente

9.2.1.2.2.                A Religião da Humanidade formaliza essa ultrapassagem

9.2.1.2.3.                Por fim, a incorporação formal (mas também substantiva) dessa ultrapassagem na lei dos três estados ocorreu em 1857




[1] Referência à condensação do Sistema de filosofia positiva feito por Harriet Martineau em 1855, em dois volumes, sob o título “A política positiva de Augusto Comte” (The Positive Philosophy of Auguste Comte). O v. 1 pode ser consultado aqui: https://archive.org/details/positivephilosop0000comt/page/n3/mode/2up.

[2] Referência ao documento Premier memóire sur la cosmogonie positive (“Primeira memória sobre a cosmogonia positiva”), conhecido popularmente como Memóire sur la cosmogonie de Laplace (“Memória sobre a cosmogonia de Laplace”), publicado em 1835 por Augusto Comte.

[3] A tradução é minha, a partir da correspondência de Augusto Comte organizada e publicada por Paulo Carneiro e Angèle Kremer-Marietti em 1990.

[4] Augusto Comte usa no original “imaginarité”, no sentido de “imaginação”; essa palavra foi empregada no original para ecoar, ou rimar, tanto “généralité” (generalidade) quanto “rationalité” (racionalidade). Usamos o neologismo “imaginariedade” a partir da palavra “imaginário”, a fim de seguir a rima de Augusto Comte.

[5] A tradução é de Teixeira Mendes, presente em As últimas concepções de Augusto Comte (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898, p. 286).