17 abril 2024

Valorizar a Idade Média implica ser conservador?

No dia 23 de Arquimedes de 170 (16.4.2024) realizamos nossa prédica positiva. Demos então continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, concluindo a décima conferência (dedicada ao regime privado) e iniciando a undécima conferência (dedicada ao regime público).

No sermão respondemos a uma questão histórica, filosófica, moral e política: valorizar a Idade Média implica o conservadorismo?

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/Q5vGG) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/6isxj). O sermão começou aos 47 min 48 s.

As anotações que serviram de base para exposição oral estão reproduzidas abaixo.

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Valorizar a Idade Média implica ser conservador? 

-        A questão que intitula este sermão pode parecer curiosa, surpreendente e até meio deslocada: de onde teria saído essa relação entre Idade Média e conservadorismo? Aliás, por que isso seria importante?

o   De fato, essa não é uma questão evidente, nem é evidente as suas respostas, mas, ainda assim, ela é importante e tem grandes conseqüências intelectuais, morais e práticas

-        Por que essa questão apresenta-se? Na verdade, quem a formulou?

o   Há diversos críticos do Positivismo – e mesmo algumas pessoas próximas a ele, não raras vezes católicos – que afirmam que a valorização da Idade Média por Augusto Comte implica a valorização das concepções católicas e, portanto, implica um claro conservadorismo

§  Vale realçar: essa crítica é feita mesmo por autores católicos – que, de maneira incoerente, buscando criticar o Positivismo, não hesitam em criticar o catolicismo

§  A noção de “conservador”, aqui, significa “retrógrado” e/ou repressor, favorável à censura, autoritário, fanático, intolerante.

o   De maneira implícita (mas muitas vezes explícita) está o raciocínio de que ser “progressista” implica desvalorizar a Idade Média e/ou valorizar a Antigüidade e/ou a modernidade

o   Também está implícita a concepção de que a Idade Média teria sido a “noite dos mil anos”, um longo período de fanatismo e barbárie

§  A concepção da “noite dos mil anos” é defendida não somente pelos “progressistas” anti-históricos como, não por acaso, pelos anglossaxões (ingleses e estadunidenses em particular), que adotam uma visão protestante e anticatólica da Idade Média

o   Em suma: como Augusto Comte valorizou a Idade Média, ele teria valorizado a barbárie, o fanatismo, a estupidez etc., assim como teria desvalorizado o progresso, as luzes, o esclarecimento etc.

§  De maneira implícita, Augusto Comte também teria valorizado (ou defendido) algum “autoritarismo”

·         Essa valorização (ou defesa) de “autoritarismo” ocorreria porque a valorização da Idade Média, por Augusto Comte, ocorreu a partir da leitura dos autores católicos José de Maistre e Luís de Bonald

o   Comte valorizava em De Maistre a atuação do papado (e, de modo geral, do sacerdócio) como intermediário moral das relações sociais medievais, não o irracionalismo teológico nem o despotismo político

·         A associação maliciosa entre Comte e De Maistre-De Bonald foi afirmada, por exemplo, pelo ex-frade Roberto Romano – que, não por acaso, sempre fingiu ignorar que Augusto Comte valorizava Diderot, D’Alembert, Condorcet etc. e que (como veremos longamente abaixo) a opinião de Comte sobre a Idade Média era qualquer coisa menos “acrítica”

-        Para limpar o terreno e responder com clareza à pergunta inicial (“valorizar a Idade Média implica o conservadorismo?”):

o   Augusto Comte afirmou: Trata-se sobretudo, no fundo, de incorporar intimamente ao Positivismo, com melhoramentos radicais, tudo quanto o sistema católico da Idade Média pode realizar ou sequer esboçar de grande e de terno” (Correspondência Sagrada, 32ª carta, de Augusto Comte a Clotilde; de 5 de agosto de 1845[1])

-        Qual a importância, no âmbito do Positivismo, da valorização da Idade Média?

o   São vários os sentidos; podemos indicar os seguintes: (1) afirmação da continuidade humana, com o vínculo entre a Antigüidade e a modernidade; (2) estabelecimento do terceiro termo do progresso; (3) desenvolvimento moral, após os desenvolvimentos intelectual e social

o   Talvez o aspecto mais importante seja a afirmação da continuidade humana, com todas as conseqüências disso

§  A noção de continuidade humana indica que a Idade Média seguiu-se de maneira orgânica à Antigüidade e que dela seguiu-se a Idade Moderna

§  Lembremos que a reação à decadência do catolicismo, a partir do século XIV, passou a desvalorizar a Idade Média com a noção de “renascimento”

§  Essa concepção foi entronizada mesmo por autores que afirmaram o progresso humano, como no caso exemplar de Condorcet e seu “Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano”

o   Reafirmada a continuidade humana, Augusto Comte estabelece que a Idade Média é o terceiro termo de uma série progressiva

§  Uma progressão, ou, em todo caso, uma série qualquer só pode ser estabelecida quando há três termos; assim, para que fosse possível realmente afirmar o progresso humano, a partir do caso exemplar do Ocidente, a apreciação da Idade Média era necessária

o   Deixando de lado as concepções segundo as quais a Idade Média foi uma “noite de mil anos”, o seu duplo aspecto católico-feudal constitui para Augusto Comte o desenvolvimento moral, com conseqüências sociais bem marcadas

§  Assim como a Idade Média correspondeu ao desenvolvimento moral, a Grécia correspondeu ao desenvolvimento intelectual e Roma, ao desenvolvimento prático

o   Algumas citações interessantes:

§  Comenta o Prof. David Carneiro (Civilização católico-feudal, São Paulo, Athena, 1940; p. 125): “Foi Augusto Comte quem veio mostrar, contrariando os seus precursores sociológicos, que a Idade Média não constituía rotura da continuidade humana e que emanava do regime precedente; que a sua função era provisória e não definitiva e que enfim a Idade Moderna proveio da Idade Média”

§  Frederic Harrison (em The New Calendar of Great Men, 2ª ed., MacMillan, London, 1920; p. 273) resume da seguinte maneira as missões da Idade Média:

 

 

Missão

Agente principal

1)                   

Purificar e disciplinar as mais ferozes paixões humanas, especialmente a desumanidade, o orgulho e a luxúria

Igreja Católica

2)                   

Como meio e corolário da missão anterior, elevar a posição da mulher

3)                   

Proteger os fracos, dignificar a gentileza e elevar o valor da natureza humana

4)                   

Suprimir a prevalência da guerra universal e transformar a guerra de conquista em guerra de defesa

Feudalidade/cavalaria

5)                   

Estabelecer verdadeiros governos locais, sob a sanção de deveres recíprocos, em vez da submissão a um império centralizado

6)                   

Suprimir a escravidão e fundar a instituição do trabalho livre

 

§  Ainda observa Harrison: “O resultado foi atingido, é verdade, muito imperfeitamente: com muita confusão, crueldade e loucura; mas também com magníficos heroísmo e autodevotamento. Se em última análise [o esforço da Idade Média] foi um fracasso, isso ocorreu porque o sucesso era impossível com tão limitado conhecimento e falsas idéias. Mas ela foi o ponto de virada da história; foi a transição cardeal e produziu algumas grandes coisas que nunca foram vistas na Terra antes ou desde então. As memórias amargas que seus fracassos deixaram são devidas a isto: que nunca se reconheceu quão inteiramente provisório ela foi” (p. 273).

o   Em suma: a valorização da Idade Média por Augusto Comte assume pelo menos dois aspectos: (1) afirmação da continuidade histórica (em que a Idade Média é uma transição orgânica e necessária entre a Antigüidade e a Idade Moderna) e (2) desenvolvimento moral (ocorrido necessariamente após e a partir dos desenvolvimentos anteriores, intelectual e prático)

o   Todos esses aspectos evidenciam com uma clareza ofuscante que a valorização da Idade Média por Augusto Comte foi sempre no sentido do progresso

§  O progresso aí é tanto o desenvolvimento do ser humano quanto a regulação dos atributos humanos

§  Para quem conhece o Positivismo e a Religião da Humanidade, é tão evidente que chega a ser escandaloso que digam ou sugiram o contrário, mas, ainda assim, é necessário reafirmá-lo: todo progresso implica, como pré-condição, a liberdade, que, aliás, é condição da ordem e não do progresso

-        A valorização da Idade Média e da continuidade histórica não é algo secundário, não é detalhe nem é mero ornamento:

o   O Positivismo não pode desprezar ou negligenciar as religiões preliminares, devendo incorporar seus avanços: “o Positivimso não poderia ser a verdadeira religião se ele não pudesse sempre aceitar plenamente a sucessão do teologismo, e mesmo do fetichismo, que devem ser, em todos os aspectos, os seus precursores naturais ” (Política[2], II, p. 346)

o   Nesse sentido, vale lembrar adicionalmente que há um impulso contemporâneo em favor da valorização de todas as religiões e perspectivas; esse impulso tem um aspecto multicultural e, nesse sentido, é pleno de problemas e incoerências, mas, de qualquer maneira, ele visa a de fato fazer respeitar todas as religiões: em face desse impulso, por que estaria errado o Positivismo?

-        Exposta a parte negativa deste sermão (em que demonstramos que é falsa e de má fé a acusação de conservadorismo feita a Augusto Comte devido ao seu elogio da Idade Média), podemos passar para a parte positiva do sermão, examinando rapidamente como de fato Augusto Comte apreciava a Idade Média

o   Faremos na seqüência várias citações indiretas de Augusto Comte, tanto para apresentar o seu pensamento a respeito da Idade Média quanto para indicar o quanto é errada e maliciosa a crítica de que o Positivismo seria conservador ao avaliar a Idade Média

-        Em primeiro lugar, Augusto Comte considera que a Idade Média durou 900 anos, entre os séculos V e XIII, ou, grosseiramente, entre os anos 400 e 1300

o   A Idade Média divide-se, então, em três fases, cada uma de três séculos de duração:

§  “Estabelecimento fundamental”[3]: dispersão política, com ênfase na autonomia local; séculos V a VII

§  “Guerras defensivas contra os politeístas do Norte e sua incorporação pela força e pela religião”[4]: coordenação central: séculos VII a X

§  “Guerra defensiva contra o monoteísmo islâmico, em que há o estabelecimento do papado como maior poder e em que o poder temporal se distingue do espiritual”[5]: conjugação da autonomia local com a coordenação central: séculos XI a XIII

-        Como vimos, a Idade Média apresentava um duplo aspecto: o católico e o feudal

o   Ambos esses elementos foram responsáveis por um dos mais importantes resultados da Idade Média: a preponderância dos sentimentos sobre a ação e sobre a inteligência (Apelo[6], p. 30)

o   Cada um desses elementos foi o responsável principal – mas não único, nem exclusivo – por alguns desenvolvimentos ocorridos durante o período

o   A ação do catolicismo deveu-se em parte à sua doutrina, mas em parte muito maior à ação de seu sacerdócio

§  A doutrina católica foi importante para a afirmação do universalismo doutrinário; para a afirmação direta da moralidade humana; de maneira um tanto confusa, para a separação dos dois poderes (Temporal e Espiritual)

§  A emancipação feminina e a valorização das mulheres; a emancipação dos trabalhadores; a adoçamento dos hábitos; a separação entre os dois poderes: isso foi obra do sacerdócio

·         Como observa Augusto Comte, a sabedoria prática do sacerdócio, a começar pelo papado, foi a principal responsável por alguns dos mais importantes progressos ocorridos na Idade Média

·         O sacerdócio, além disso, foi o responsável pela aplicação atenuada, racional e relativa do dogma católico; sem essa sabedoria prática, o dogma seria aplicado em sua inteira irracionalidade, com os previsíveis piores resultados possíveis (como, diga-se de passagem, em escala muito aumentada e piorada, vê-se hoje em dia)

§  Outros aspectos importantes sobre a ação social e moral do catolicismo indicados por Augusto Comte, em particular em relação às limitações e aos defeitos da doutrina católica:

·         A moral universal baseada nos deveres é instituição católica (Política, II, p. 120)

·         A transição realizada pelo Positivismo visa a reconstruir, melhor que na Idade Média, a República Ocidental (Política, IV, p. 501)

·         O catolicismo fez prevalecer a repressão do egoísmo, mas o desenvolvimento do altruísmo é mais eficaz, pois a melhor restrição de um impulso é o desenvolvimento de seu antagonista, como feito pela cavalaria na Idade Média (Política, IV, p. 282)

·         O catolicismo não produziu as mudanças medievais, mas apenas as consagrou (Política, II, p. 109)

·         O catolicismo é incapaz de regular a vida pública, limitando-se à doméstica (Política, II, p. 112)

·         Na Idade Média, embora a vida privada fosse regrada pelo viver às claras, a vida pública continuava regrada pelos mistérios e pelas intrigas (Política, IV, p. 460)

·         Além disso, há a necessidade de uma concepção geral do futuro para que se possa efetivamente viver às claras – algo que só o Positivismo pode fazer (Política, IV, p. 460)

·         O catolicismo foi contraditório ao querer sistematizar a moral mas retirando o homem do mundo (Apelo, p. 30-31)

·         O Positivismo deve reparar os estragos católicos, em particular ao afirmar a existência natural do altruísmo (Apelo, p. 31)

§  Retomando o tema da crítica católica à valorização positivista da Idade Média:

·         No final das contas, isso não é casual

·         Vale notar que foram as reflexões da reação católica à Revolução Francesa que permitiram a Augusto Comte apreciar a Idade Média (Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo[7], p. 421)

o   Mas – o que é notável e que era notável no século XIX como, de modo geral, ainda o é hoje em dia – o Positivismo faz mais justiça a De Maistre que o catolicismo (Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo, p. 87)

o   O Positivismo é a única religião capaz de glorificar sem incoerência todas as etapas preliminares da Humanidade (Apelo, p. 85-86)

o   Ainda assim, os retrógrados (e os revolucionários) são ingratos em relação ao Positivismo, não retribuindo a justiça praticada pela religião positiva (Apelo, p. 86)

o   O Positivismo deve obter apoios entre os retrógrados, desde que isso não seja entravado por fanatismos que realcem os meios em vez dos fins (Apelo, p. 86)

o   A retrogradação não possui nunca um caráter orgânico (Apelo, p. 87)

o   Os retrógrados são contraditórios, pois exigem a unidade mas não cumprem as suas principais condições da unidade (Apelo, p. 87)

o   Os retrógrados concebem o século XIX isolando-o do século XVIII, assim como concebem a Idade Média sem a filiar à Antigüidade: sem considerarem a totalidade histórica (ou seja, do passado), são incapazes de conceber o futuro e elaboram uma síntese parcial, local e temporária (Apelo, p. 89)

·         A anarquia metafísica nega a influência histórica (Apelo, p. 43)

·         O espírito revolucionário devastou o sentido de continuidade, especialmente a partir da Idade Média e em relação a ela (Apelo, p. 43)

·         O catolicismo negou a continuidade, ao repudiar seus antecessores (Apelo, p. 44)

·         O catolicismo é tão culpado disso quanto o protestantismo ou o deísmo, pois foi o primeiro a romper a cadeia da continuidade, ao negar seus antepassados antigos (Política, IV, p. 371)

·         Depois do catolicismo, foram os protestantes e os deístas que negaram seus antecessores, cometendo a mesma injustiça em relação ao catolicismo que este cometera em relação ao seu próprio passado (Apelo, p. 44)

·         A Idade Média tendia, em termos espirituais (catolicismo), para a teocracia, ao passo que, em termos temporais (feudalidade/cavalaria), tendia para a modernidade (Apelo, p. 47)

·         Os únicos que são capazes de compreender a Idade Média são os positivistas, ao ligá-la aos seus antecedentes e aos seus sucessores (Apelo, p. 95)

o   O elemento feudal desenvolveu outros traços importantes:

§  Desenvolveu a cavalaria e os hábitos sistemáticos de gentileza, cuidado com os fracos e os pobres, veneração e dedicação às mulheres

§  Também desenvolveu o governo local, com a necessária coordenação com o poder central

·         Esse traço, importante por si só, também resultou em hábitos de autogoverno e na chamada “emancipação das comunas”, que foram os germes das cidades industriais e republicanas posteriores

-        Sobre a cavalaria, Augusto Comte observa o seguinte:

o   O catolicismo desenvolveu a pureza, mas foi a cavalaria que desenvolveu a ternura (Apelo, p. 53-54)

o   A cavalaria é que operou empiricamente a conciliação entre a espiritualidade católica e a temporalidade feudal (Apelo, p. 94)

o   O impulso regenerador da cavalaria foi interrompido bruscamente pelo protestantismo (Apelo, p. 117)

§  Os ideais cavaleirescos ainda eram vivos e pulsantes no século XVI, como ilustra a vida e a atuação de Pierre Terrail, o Cavaleiro Baiardo (1473-1524)

o   A cavalaria manteve e desenvolveu o preceito de subordinar dignamente a vida privada à pública, como indicado pela Antigüidade (Política, IV, p. 292)

o   Inácio de Loiola buscou retomar os esforços da cavalaria, além do culto à Virgem; mas seus esforços fracassaram e sua tentativa transformou-se em uma hipocrisia opressiva e degradante (Apelo, p. 117)

o   Vale lembrar que os cruzados (atuantes na terceira fase medieval) paulatinamente substituíram a ficção extra-humana de deus pela idealização humana da Virgem Maria (Apelo, p. 118)

o   Uma prova de que o culto da Virgem Mãe é mais devido à ternura feudal que à pureza católica é o fato de ele não se ter desenvolvido entre os bizantinos, a despeito da identidade doutrinária (Política, IV, p. 412)

o   Sem o instinto cavalheiresco, isto é, sem a atuação da cavalaria, a Idade Média teria entravado o dogma do Grande Ser (Apelo, p. 37-38)

-        Em suma:

o   A valorização da Idade Média por Augusto Comte assume pelo menos dois aspectos:

§  (1) afirmação da continuidade histórica (em que a Idade Média é uma transição orgânica e necessária entre a Antigüidade e a Idade Moderna)

§  (2) Desenvolvimento moral (ocorrido necessariamente após e a partir dos desenvolvimentos anteriores, intelectual e prático)

§  Todos esses aspectos evidenciam com uma clareza ofuscante que a valorização da Idade Média por Augusto Comte foi sempre no sentido do progresso, não no do “conservadorismo”

§  A valorização da Idade Média por Augusto Comte implicava necessariamente a seleção dos aspectos positivos desse período, que devem ser incorporados com “melhorias radicais”

o   A Idade Média constituiu-se pela fusão do catolicismo e do feudalismo

§  O catolicismo teve aspectos positivos principalmente devido à atuação prática do seu sacerdócio, que regulou principalmente a vida privada e estimulou a pureza (a contenção, ou, no caso, a repressão do egoísmo)

§  O feudalismo teve efeitos positivos principalmente devido à cavalaria, estimulando a ternura (o estímulo direto do altruísmo) e subordinando a vida privada à vida pública

 



[1] Ver também, de R. Teixeira Mendes, O ano sem par (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900), p. 295.

[2] Augusto Comte, Système de politique positive ou traité de Sociologie instituant la Religion de l’Humanité. 5. ed. Paris: Larousse, 1929.

[3] Fonte: David Carneiro, Civilização católico-feudal (São Paulo, Athena, 1940), p. 125.

[4] Fonte: David Carneiro, Civilização católico-feudal (São Paulo, Athena, 1940), p. 125.

[5] Fonte: David Carneiro, Civilização católico-feudal (São Paulo, Athena, 1940), p. 125.

[6] Augusto Comte, Apelos aos conservadores. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil, 1899.

[7] Augusto Comte, Discours préliminaire sur l’ensemble du Positivisme, in: Système de politique positive ou traité de Sociologie instituant la Religion de l’Humanité. 5. ed. Paris: Larousse, 1929, v. I.

13 abril 2024

"Profilaxia da neurose (Imitação de Cristo para humanistas)": sumário

Apresentamos abaixo o sumário do livro Profilaxia da neurose (Imitação de Cristo para humanistas), elaborado pelo psiquiatra e psicólogo positivista Paulo de Tarso Monte Serrat em 1980 e publicado em 1983.

Essa versão, que, devido a diversos motivos, é um enorme desafio para qualquer pessoa que o empreenda, foi recomendada por Augusto Comte como fonte de reflexões morais. O livro original, A imitação de Cristo, foi escrita por Tomás de Kempis (1380-1472) em 1424. Ele é composto por quatro livros:

- Livro I: Avisos úteis à vida espiritual (25 capítulos)

- Livro II: Avisos concernentes à vida interior (12 capítulos)

- Livro III: Da consolação interior (59 capítulos)

- Livro IV: Exortação à vida interior (18 capítulos)

Desses quatro livros, o dr. Paulo de Tarso elaborou a versão humanista dos dois primeiros.




LIVRO I – AVISOS ÚTEIS PARA A VIDA ESPIRITUAL

Capítulo I – Da imitação dos santos e do desapego das vaidades

Capítulo II – Do humilde sentir de si mesmo

Capítulo III – Dos ensinamentos da verdade

Capítulo IV – Da prudência nas ações  

Capítulo V – A verdade como mensagem da Humanidade é superior ao indivíduo que a proclama

Capítulo VI – Das afeições desordenadas

Capítulo VII – Como se deve fugir à vã esperança e presunção

Capítulo VIII – Como se deve evitar a excessiva intimidade

Capítulo IX – Da obediência e submissão

Capítulo X – Como devemos evitar as palavras inúteis

Capítulo XI – Como devemos adquirir a paz e desejar o progresso na virtude

Capítulo XII – Do proveito das adversidades

Capítulo XIII – Da resistência às tentações

Capítulo XIV – Como se deve evitar o julgamento apressado

Capítulo XV – Das obras que procedem do altruísmo

Capítulo XVI – Como aturar os defeitos alheios

Capítulo XVII – Da vida religiosa

Capítulo XVIII – Dos exemplos dos santos

Capítulo XIX – Dos exercícios da pessoa sociável

Capítulo XX – Do amor, da solidão e do silêncio

Capítulo XXI – Da humildade do coração

Capítulo XXII – Da consideração da miséria humana

Capítulo XXIII – Da meditação da morte

Capítulo XXIV – Do julgamento e dos sofrimentos das pessoas anti-sociais

Capítulo XXV – Da fervorosa emenda de toda a nossa vida

 

LIVRO II – EXORTAÇÕES À VIDA INTERIOR

Capítulo I – Da vida interior

Capítulo II – Da humilde submissão aos valores da Humanidade

Capítulo III – Do homem bom e pacífico

Capítulo IV – Da pureza da mente e da intenção reta

Capítulo V – Da consideração de si mesmo

Capítulo VI – Da alegria da boa consciência

Capítulo VII – Do amor à Humanidade sobre todas as coisas

Capítulo VIII – Da amizade familiar com os bons

Capítulo IX – Da privação de todo conforto

Capítulo X – Do agradecimento pelos benefícios da Humanidade

Capítulo XI – Dos poucos que aceitam o sofrimento como fonte maturadora

Capítulo XII – O verdadeiro caminho da dedicação

11 abril 2024

Teixeira Bastos: Princípios de filosofia positiva

Publicamos no Internet Archive os dois volumes dos Princípios de filosofia positiva, publicados em 1883 pelo positivista, republicano e filósofo português Francisco José Teixeira Bastos (1857-1902).

Os arquivos estão disponíveis aqui:


Monitor Mercantil: "Deltan Dallagnol sobre Elon Musk e laicidade do Estado"

O jornal Monitor Mercantil, do Rio de Janeiro, publicou um artigo de minha autoria intitulado "Deltan Dallagnol sobre Elon Musk e laicidade do Estado". 

O texto pode ser lido diretamente na página do jornal, aqui: https://monitormercantil.com.br/deltan-dallagnol-sobre-elon-musk-e-laicidade-do-estado/.

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Deltan Dallagnol sobre Elon Musk e laicidade do Estado 

Gustavo Biscaia de Lacerda

 

Em 7 de abril de 2024, o ex-procurador da República e ex-Deputado Federal Deltan Dallagnol palestrou no Massachussets Institute of Technology (MIT) (“Deltan dá razão a Musk em briga com STF e é vaiado nos EUA ao defender religião na política”, Folha S. Paulo, 7.4.2024). Os seus comentários suscitam muitas reflexões, que ultrapassam disputas episódicas e referem-se a elementos importantes da política nacional contemporânea.

Inicialmente, Dallagnol defendeu as críticas que o empresário Elon Musk fez contra Alexandre de Moraes, Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), sugerindo que o Ministro seria a favor da censura, que deveria sofrer impedimento e que ele, Musk, não respeitará as decisões da Justiça brasileira. Depois Dallagnol defendeu o emprego explícito de critérios teológicos na política e que a rejeição desses critérios seria um “preconceito secularizante” de origem “humanista”.

Deltan Dallagnol ficou famoso a partir de 2014, à frente da Operação Lava Jato. Ele e sua equipe evidenciaram que, muito além de buscarem identificar e processar judicialmente práticas de corrupção em empresas públicas, eram movidos por um desejo de fazer política (pública) atrás e por meio de instituições do Estado, ao mesmo tempo em que buscavam executar um anunciado plano de destruir as instituições públicas, vistas como corruptas em sua generalidade (com exceção dessa equipe iluminada). As investigações geraram merecido amplo apoio público; mas esse apoio era mantido com a “espetacularização” das investigações, realizadas com um agressivo espírito ultradraconiano e um objetivo de destruir (em um apocalipse?) as instituições públicas. Nisso, Dallagnol ocupou papel de destaque, embora não fosse o único líder, nem, talvez, o cérebro jurídico da equipe do fim do mundo. Ele também sempre deixou claros os seus valores político-teológicos evangélicos: na verdade, é possível conjecturar que suas crenças teológicas inspiram uma concepção teocrática que fundamenta sua orientação apocalíptica e ultradraconiana da política. 

Assim, o apoio de Dallagnol a Elon Musk é curioso, ou melhor, contraditório. Elon Musk é um bilionário sul-africano favorável a favor de golpes de Estado quando seus interesses comerciais são contrariados; é contra a regulação pública das Big Techs a respeito de discursos de ódio (ele é dono do Twitter); ele é contra os direitos trabalhistas; ele já se manifestou a favor de perspectivas políticas reacionárias; agora ele manifesta-se contra as legítimas instituições públicas brasileiras. Deveria ser evidente que se impõe ao ex-procurador da República Dallagnol manifestar-se pelo repúdio às declarações de Musk. O ex-Deputado Federal não atua como um defensor das leis, mas como integrante do establishment, em busca de apoio público e de votos – e também do apoio daqueles mesmos grupos e indivíduos que, quando liderava a equipe do fim do mundo, ele supostamente combatia. 

Passemos à defesa da teologia na política. Para Dallagnol, existiria um “preconceito” secularizante e “humanista” contra a afirmação política de valores teológicos; enquanto outras filosofias políticas teriam legitimidade para exprimir-se publicamente, a “religião” não a teria. Essas afirmações são todas altamente problemáticas. 

Comecemos pelo erro de confundir “religião” com teologia. A religião é a sistematização do conjunto da vida humana, para a harmonia coletiva e individual, a partir de alguma filosofia. Dessa forma, a religião é um conceito amplo, de que a teologia é apenas um tipo específico. O erro de Dallagnol é ainda maior porque ele compartilha o preconceito segundo o qual a “religião” (a teologia) é apenas o monoteísmo, em particular o monoteísmo cristão, e ainda mais em particular o monoteísmo cristão protestante – e ainda mais em particular o monoteísmo cristão protestante evangélico e de origem estadunidense. Mas se religião é sistematização da vida humana a partir de alguma filosofia, é correto considerar que há outras religiões (além da dos evangélicos dos EUA), incluindo os humanismos que Deltan Dallagnol critica. Assim, o que se nota em Dallagnol é uma visão de mundo estreita e particularista. 

Como ex-procurador da República, Dallagnol deveria conhecer o livro MinistérioPúblico: em defesa do Estado laico, publicado em 2014 pelo Conselho Nacional do Ministério Público. Nesse livro – de que participo com um capítulo – há textos históricos e filosóficos; Dallagnol deveria conhecer as reflexões presentes nele; ainda assim, vale expô-las aqui. 

No século XVI ocorreu o cisma protestante e surgiu um problema muito maior que uma disputa filosófica: havia um problema político. Considerava-se então que todo Estado deveria ter uma religião oficial para a ordem pública; essa religião seria a do governante (é a frase francesa: une foi, une loi, un roi – “uma fé, uma lei, um rei”). A disseminação do protestantismo e a reação católica converteram-se em guerras generalizadas e que duraram cerca de 150 anos (as “guerras religiosas”). Essas guerras só acabaram quando, ao término da Guerra dos 30 Anos (1618-1648), decidiu-se que a política internacional deveria basear-se em bases apenas políticas, deixando-se de lado os aspectos teológicos e com o respeito à autonomia de cada país. Não é que a religião tenha deixado de ser levada em consideração; mas os vários países tiveram que reconhecer que as disputas teológicas causavam danos políticos demais. Daí os países da Europa ocidental foram obrigados a instituir em diversos graus a tolerância religiosa, ou melhor, as liberdades de consciência, de expressão e de associação, resultando na separação entre o âmbito religioso e a vida política. Exatamente porque a manifestação pública das crenças teológicas conduziu às guerras que os países europeus decidiram que seria melhor que a “religião” deveria ser um assunto cada vez mais estritamente particular. Não se trata de “preconceito” contra a teologia, mas de um acordo tácito que buscou realizar a paz e evitar os conflitos: grosso modo, é a “laicidade do Estado”. 

Os seres humanos discordam pelos mais variados motivos, mas alguns motivos geram mais disputas que outros. O que pode ser discutido com liberdade e clareza produz menos conflito que aquilo que só pode ser aceito sem discussão, pela pura “fé”: as crenças absolutas (teológicas) são do último tipo. É claro que qualquer teológico pode discutir com liberdade suas crenças, mas a lógica interna das crenças teológicas rejeita essa liberdade – e essa lógica interna impõe-se aos indivíduos e tem efeitos concretos. Os crentes pessoalmente podem estimular a tolerância e a liberdade, mas por si mesmas as crenças rejeitam a discussão: quem não crê é um “infiel”, quem discorda é “herético”, “ateu”, “servo do demônio”. Assim, não foi por acaso que ocorreram as guerras religiosas: o absolutismo das crenças teológicos estimula a falta de tolerância, a imposição de crenças, a ausência de compromissos. Por outro lado, foi justamente a secularização da política (após e devido à Guerra dos 30 Anos) que passou a estimular a paz e a evitar os conflitos. A tendência secularizante da política, então, não é um preconceito contra a teologia; essa tendência é uma conseqüência da busca da paz e da rejeição da guerra. 

Retornemos a Dallagnol. Ao apoiar Musk, Dallagnol episodicamente referenda concepções e práticas que devemos chamar de golpistas. Isso por si só é muito preocupante. Por outro lado, em termos de mais longo prazo e mais profundos, é assustadora a idéia de que haveria um preconceito secularizante e humanista contra teologias políticas. Essa concepção, embora denuncie um suposto preconceito, é ela mesma preconceituosa e revela ignorância histórica, filosófica e política. Não sendo o ideal, é até aceitável que o comum dos cidadãos (e dos teológicos) não tenha conhecimentos históricos e filosóficos; mas o mesmo já não pode ser dito dos líderes políticos e espirituais, especialmente se eles são ex-procuradores da República.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é Doutor em Sociologia Política.