16 novembro 2015

15 de novembro – Proclamação da República Brasileira (1889)



Cartaz gentilmente elaborado por João Carlos Silva Cardoso.

 

No dia 15 de novembro comemoramos no Brasil a Proclamação da República[1]. Esse belo e importante acontecimento ocorreu por meio da conjunção de inúmeros indivíduos e grupos que, de diferentes maneiras, baseados em diversos princípios e com variadas intensidades, desde pelo menos 1789 almejavam que o Brasil fosse uma república livre e progressista. O movimento que resultou no fim da monarquia em 1889 teve a importantíssima participação dos positivistas brasileiros, de Norte a Sul do país, e foi liderada pelo professor de Matemática e Coronel do Exército Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) – ele também positivista e adepto da Religião da Humanidade.

Benjamin Constant Botelho de Magalhães

Neste ano desejo celebrar a memória de Benjamin Constant por meio da apresentação de elementos da teoria republicana. Assim, creio, será possível entender um pouco das idéias que moveram esse grande cidadão e patriota; da mesma forma, creio que será possível percebermos que a República é um verdadeiro ideal político, capaz de orientar as ações dos cidadãos ainda por muitas e muitas gerações – se é que em algum dia ela deixará de ser um ideal.

Definindo a “República”

 

“Em seu significado negativo, o princípio republicano resume definitivamente a primeira parte da Revolução [Francesa], ao interditar todo retorno de uma realeza [...]. Por sua interpretação positiva, ele começa diretamente a regeneração final, ao proclamar a subordinação fundamental da política à moral, a partir da consagração permanente de todas as forças quaisquer ao serviço da comunidade” (Augusto Comte, Système de politique positive, v. I, p. 70).

De acordo com o Positivismo, a República define-se pelo menos por duas características, uma negativa e outra positiva.

(1) Contra a monarquia, a favor da meritocracia

 

A característica negativa refere-se à oposição à monarquia. Isso não significa apenas que a sociedade deve ser governada por um presidente e não por um rei; que seus impostos devem remunerar governantes capazes e não toda uma casta que parasita a sociedade. A oposição à monarquia implica também o fim das sociedades de castas, de “estados”, de “ordens”, isto é, das sociedades em que a condição jurídica, política e até moral de cada indivíduo é dada pelo seu nascimento. Assim, em vez de termos “reis”, “príncipes”, “marqueses”, “duques”, “condes”, “barões” etc. – que, apenas por terem nascido nas famílias em que nasceram, valeriam mais ou menos que o comum das pessoas, como ocorre ainda hoje na Inglaterra, nos Países Baixos, na Espanha, na Suécia e em vários outros países –, temos apenas cidadãos.

Isso resulta em que o valor dos indivíduos é dado não por seu nascimento, mas pelo seu mérito individual. Ora, a valorização do mérito individual, ao mesmo tempo em que deve resultar na meritocracia, implica um sério problema prático, na medida em que as condições sociais concretas dificultam o desenvolvimento das capacidades de muitos cidadãos, em particular dos mais pobres. Para contornar esse problema e, no limite, remediá-lo, tanto o governo quanto a sociedade civil devem esforcem-se para conferir condições para que os mais pobres possam desenvolver suas capacidades.

Além disso, um outro procedimento é necessário; esse procedimento adicional é mais difícil, pois ele exige reflexão e ponderação e também porque ele é abstrato: o mérito individual deve ser avaliado abstratamente, não em termos concretos, considerando as contribuições que cada indivíduo dá para a coletividade. Assim, não é possível entender por “mérito” apenas a capacidade econômica de cada um, mas também outros aspectos, como aptidões artísticas, elaborações filosóficas, pesquisas científicas, manutenção de famílias saudáveis, estímulo à cooperação social e ao desenvolvimento do altruísmo.

Augusto Comte

Como argumentava Augusto Comte, a avaliação do mérito individual é a função social mais difícil de realizar, em virtude da sua grande complexidade: por esse motivo, deve ser feita por um órgão social (não governamental) especialmente dedicado a isso, que analise serenamente o conjunto da vida de cada cidadão e leve em consideração as várias circunstâncias envolvidas[2]: esse órgão é o sacerdócio positivista.

(2) Dedicação à coletividade, subordinando a política à moral

 

O aspecto positivo da definição da república consiste na dedicação à coletividade, a partir da subordinação da política à moral.

A dedicação à coletividade consiste em cada indivíduo buscar ser um cidadão útil, contribuindo ativamente da melhor maneira possível, dentro de suas condições, para a sociedade. Essas contribuições são de vários tipos: evidentemente, as atividades econômicas são as mais extensas e as mais básicas, mas não são as únicas, pois o ser humano não se limita nem se resume ao estômago. Assim, as contribuições também podem ser afetivas, filosóficas, artísticas, científicas, políticas, organizacionais, familiares e assim por diante.

Cumpre notar também que todo cidadão desenvolve ao mesmo tempo pelo menos dois tipos de atividades: as particulares e as gerais. As particulares são as suas atividades específicas: suas profissões, seus trabalhos; já as gerais são aquelas que se referem à coletividade e que, de acordo com o senso comum, são chamadas de “políticas”. Esses dois tipos de atividades são complementares e, dessa forma, não faz sentido opor uma à outra: todo trabalhador é e deve ser um cidadão, todo cidadão é e deve ser um trabalhador.

Mas, por outro lado, é necessário reconhecer que as atividades particulares consomem bastante tempo, o que impede que o grosso dos cidadãos dediquem-se exclusivamente às atividades gerais; ao mesmo tempo, as sociedades modernas oferecem um sem-número de atividades de lazer, de possibilidades de gozo da vida individual, familiar, coletiva que não se referem ao que chamamos de “política”; essas atividades são legítimas e integram o que chamamos de “bem-estar”. Inversamente, há indivíduos que se dedicam exclusivamente à condução dos negócios gerais: tais indivíduos constituem o governo. Há uma separação clara entre governantes e governados, entre o Estado e os cidadãos; essa separação é boa, é correta e é necessária. Nesse quadro, o comum dos cidadãos participa da vida política principalmente do acompanhamento dos negócios públicos, no âmbito da sociedade civil e por meio da opinião pública.

A subordinação da política à moral consiste em que cada indivíduo, cada cidadão, cada empresa, cada organização, cada país, cada civilização deve visar à convergência em seus esforços, limitando as atividades divergentes e particularistas; deve buscar estimular e satisfazer o altruísmo, comprimindo os vários egoísmos e esforçando-se para orientá-los em direção ao altruísmo; deve fortalecer e estimular a atividade pacífica, evitando as guerras e resolvendo o máximo possível os conflitos por meio das negociações e com instrumentos pacíficos.

No ser humano, o egoísmo é mais forte que o altruísmo, assim como as formas que o egoísmo assume são mais variadas que as do altruísmo. O “egoísmo” significa a satisfação de necessidades e desejos individuais mas que visam a fins particulares; em contraposição, o altruísmo significa o estímulo e a satisfação de necessidades também individuais mas que visam a beneficiar outrem e/ou a coletividade. Assim, não é possível erradicar o egoísmo e nem faria sentido isso; mas daí não se segue que o egoísmo possa ser um fim em si mesmo. É necessário limitar o egoísmo e direcioná-lo para outros objetivos que não nós mesmos: a moralidade, portanto, consiste no estímulo e no desenvolvimento do altruísmo. Quando Augusto Comte afirmava que a política deve subordinar-se à moral ele queria dar a entender isso: que a política e o conjunto das atividades humanas devem orientar-se em direção ao altruísmo e não se resumir nem se consumir no egoísmo.

Ao definir o sentido positivo do seu conceito de “república”, Augusto Comte incluía um elemento que chamava “social”. Evidentemente, a definição de moralidade que apresentamos acima é “social”, pois o altruísmo consiste nos esforços em bem dos demais indivíduos e da coletividade de modo geral; mas o traço “social” da república, de modo específico, é melhor entendido em contraposição a uma definição estritamente política da república. Nesse sentido, para Augusto Comte e para o Positivismo, a república não pode ser apenas um regime político, que se opõe à monarquia, mas deve também ser uma forma de organização social que integre e valorize todos os seus membros; em particular, realizando a “incorporação social do proletariado”. Assim, o regime político cujo nome significa, literalmente, “coisa pública” e que, de acordo com Augusto Comte, caracteriza-se pelo primado do altruísmo e da preocupação com os demais, deve realizar na prática esse primado e essa preocupação a começar pela combate à miséria, pelas políticas de geração de renda, pelas políticas de geração de emprego e assim por diante.

As virtudes cívicas libertam, o “desejo” escraviza

 

Uma outra forma de entender a subordinação da política à moral é uma concepção mais clássica da “república”, a saber, que a república é o regime político e social mantido pelas virtudes cívicas, a que se contrapõe a corrupção. Quando falamos em “virtudes cívicas” queremos dar a entender as virtudes próprias à atividade política na República: o interesse pela coletividade, o espírito de grupo, a generosidade, a honestidade, a fraternidade, o respeito às opiniões divergentes, o entendimento de que as divergências devem ser solucionadas via argumentação racional e não por meios violentos, a convergência e a busca de amplos entendimentos e consensos.

As virtudes cívicas, portanto, andam bastante próximas da forte ênfase de Augusto Comte em relação aos deveres sociais. Sem serem impostos pelas leis, os deveres são regras de comportamento que obrigam entre si os cidadãos, no sentido indicado antes, ou seja, a favor do altruísmo, da incorporação social do proletariado e assim por diante. Conseqüentemente, ao rejeitar a sua definição nas leis, a noção de deveres baseia-se na opinião pública: cada indivíduo, cada cidadão deve aceitar voluntariamente essas obrigações, de tal sorte que elas definam comportamentos adotados de “dentro para fora” – afinal de contas, o altruísmo só é verdadeiro e só produz os seus melhores resultados quando é voluntário, não quando é imposto de fora e pela ameaça do uso da força (como ocorre com as leis).

Um famoso publicista brasileiro, que há pouco tempo foi Ministro da Educação, bem ao gosto “pós-moderno”, ao tratar da República afirmou que as virtudes cívicas devem ser contrapostas ao “desejo”, às vontades íntimas; segundo ele, a virtude coage e os desejos “libertam”. Essa concepção é claramente um sofisma, um jogo de palavras que distorce a realidade e tem péssimos resultados. A virtude não coage ninguém, sejam as virtudes cívicas (que beneficiam diretamente a vida coletiva), sejam as virtudes individuais (que regulam o comportamento individual: temperança, modéstia, humildade etc.). Como vimos, as virtudes regulam o comportamento humano, estimulam o altruísmo e orientam o egoísmo em favor do altruísmo: essa regulação é fundamental para uma verdadeira vida coletiva e pacífica. Em contraposição a isso, o “desejo” é a vontade individual em sua forma mais clara, ou seja, é o egoísmo. Enquanto a virtude cívica tempera algumas paixões pessoais e políticas por meio do uso da inteligência e do altruísmo, os desejos são as paixões humanas em estado puro, sem a mediação da inteligência e do altruísmo. Ou melhor, os desejos até usam a inteligência, mas apenas para buscarem sua satisfação: ora, a satisfação dos desejos é sempre uma satisfação pessoal, ou seja, egoísta; além disso, como se sabe há séculos (e mesmo milênios), as paixões e os desejos não se satisfazem nunca. Em outras palavras, exatamente ao contrário do que argumentou o publicista, as virtudes libertam e são condição da liberdade; o desejo é sempre elemento de egoísmo, de conflitos permanentes e de escravização pessoal e coletiva.

As virtudes cívicas contra a corrupção

 

A preocupação com o bem comum – que pode ser entendida como uma forma de resumir as várias virtudes cívicas – inclui o acompanhamento dos negócios públicos. É importante notarmos que “acompanhar os negócios públicos” não é o mesmo que “conduzir os negócios públicos”: a condução da vida política cabe antes de mais nada ao governo (aos “governantes”, ao “Estado”), mas os cidadãos têm o dever de acompanhar as decisões e as medidas adotadas. Esse dever impõe-se a todos não apenas porque a vida política diz respeito a todos; ele é necessário também porque os cidadãos “comuns” formam a sociedade civil, que, por sua vez, expressa-se por meio da opinião pública: para que a opinião pública opine de maneira racional, ela deve estar no mínimo bem informada. Além disso, o acompanhamento constante dos negócios públicos é o instrumento mais importante e mais poderoso para que os governantes desempenhem suas funções realmente em favor da coletividade e não em favor de si próprios: em outras palavras, a opinião pública ativa é o instrumento mais importante no combate à corrupção.

Concluindo: a República em memória de Danton, de Paris e da França

 

As concepções expostas acima estão bem longe de esgotar o conceito de República. A idéia e a prática da “república” começaram na Roma Antiga, no século VI a.e.a., foram retomadas na Idade Média em várias cidades italianas e neerlandesas, passaram pela Inglaterra, atravessaram o Oceano Atlântico e foram finalmente consagradas na França, em 1792, no curso dos tormentosos, mas gloriosos, eventos que chamamos de Revolução Francesa. O responsável pela proclamação da República na França foi o grande Georges Jacques Danton (1759-1794); ao fazê-lo, ele procurava realizar o programa duplo indicado acima: contra a monarquia, a favor da coletividade e do bem comum. Com isso, ele consagrava também os princípios da liberdade e da fraternidade, além da igualdade perante a lei.

Georges Danton

Igualdade perante a lei, liberdade e fraternidade: esses ideais são universais. Por meio da obra de Augusto Comte, os princípios consagrados pela República francesa foram aplicados e realizados no Brasil, graças à ação de inúmeros cidadãos e patriotas, entre os quais tiveram papel de destaque muitos e muitos positivistas: Benjamin Constant, Miguel Lemos, Teixeira Mendes, Júlio de Castilhos e outros.



Miguel Lemos

R. Teixeira Mendes

Júlio de Castilhos

A República no Brasil, assim, deve muito à França. Neste dia 15 de novembro de 2015, temos que nos lembrar tanto dos patriotas brasileiros do 15 de novembro de 1889, mas também temos que lamentar que o país que nos forneceu muitos dos nossos mais importantes valores tenha sido alvo de crimes radicalmente opostos aos nossos, apenas dois dias antes, ou seja, em 13 de novembro de 2015.





[1] Publico o presente artigo no dia 16 em vez de no dia 15 devido ao seguinte motivo. Após os crimes ocorridos em Paris, em que terroristas ligados ao Estado Islâmico mataram centenas de inocentes na noite do dia 13 de novembro, passei os dois dias seguintes lendo e escrevendo a respeito disso, procurando entender o que ocorrera e quais os desdobramentos de um tal acontecimento. Assim, não tive imediatamente condições intelectuais e morais para tratar de um assunto mais abstrato, como é a teoria da República.
[2] Nesses termos, parece claro que as acerbas disputas que têm ocorrido no Brasil em que se opõe o auxílio governamental do “bolsa-família” ao “mérito individual” são muito mal concebidas. Os defensores do “bolsa-família” desprezam, sem mais, uma verdadeira conquista civilizacional, que é a afirmação social do mérito; já os supostos defensores da meritocracia têm uma concepção estreita do mérito, cuja consequência no final das contas é também desprezar os méritos. Em ambos os casos as avaliações são rasas, apressadas e concretas.

Folha de S. Paulo: matéria sobre Igreja Positivista de Porto Alegre

No dia 15 de novembro de 2015 tivemos uma dupla boa notícia: por um lado, comemorou-se a Proclamação da República (1889); por outro lado, a Folha de S. Paulo estampou uma bela matéria sobre a Igreja Positivista de Porto Alegre (cujo original pode ser lido aqui).

Adicionalmente, é motivo de alegria o fato de que a matéria evitou lugares-comuns, não caiu no recurso fácil da ironia e foi fiel às corretas observações de Guardião Érlon Jacques. A única exceção a isso foi o comentário presente logo no título - comentário aliás tolo, desnecessário e incorreto - de que a Religião da Humanidade é uma "religião da ciência".

O texto está reproduzido logo abaixo. A versão eletrônica, que é a que reproduzimos, difere da versão impressa pela disponibilidade de fotos e gráficos animados.

*   *   *

Porto Alegre tem único templo ativo de 'igreja da ciência'

Ouvir o texto
PUBLICIDADE
O único templo da Igreja Positivista em funcionamento no mundo abre suas portas de madeira pintadas de verde todos os domingos, das 10h às 13h, em Porto Alegre.
Um mestre guardião é responsável pelas chaves do lugar, que é mantido com o apoio de sete apóstolos e cerca de 30 confrades assíduos -os simpatizantes chegam a centenas, segundo ele.
A fama do lugar é internacional: o sociólogo Michel Maffesoli, conhecido por tratados sobre a pós-modernidade, esteve ali três vezes.
O prédio foi inaugurado em 1928 e tombado pelo patrimônio estadual em 2010. A planta arquitetônica segue o projeto do filósofo francês Auguste Comte (1798-1857), propagador do positivismo.
A doutrina inspirou movimentos políticos no mundo todo. No Brasil, a proclamação da República é seu principal fruto. A bandeira nacional sintetiza o positivismo com os dizeres "ordem e progresso". Na fachada do prédio gaúcho lê-se o lema original de Comte: "O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim".
No Rio de Janeiro há um templo mais antigo, fechado. Em Curitiba, positivistas se reúnem numa sala comercial.
O positivismo é uma filosofia, mas gerou uma religião elaborada por Comte: ele descreveu como seriam o templo, os ritos e os símbolos.
"Comte concluiu que toda filosofia e sociologia à disposição do homem não bastavam para mudar a sociedade, e viu que a religião tinha esse poder. É utópica a nossa doutrina", afirma Erlon Jacques de Oliveira, atual guardião.
Oliveira, que é músico e adotou o positivismo há 15 anos, assumiu o posto depois que o antigo guardião, o empresário Afrânio Capelli, se "transformou", em 2013.
"Os positivistas não usam a palavra morte. Usamos a palavra 'transformação'", diz Oliveira. Depois vem a "incorporação", um ritual póstumo realizado após sete anos em que as cinzas do positivista são jogadas no "bosque sagrado", uma incorporação simbólica à humanidade.
"O lugar fica atrás do templo. Avaliamos em uma cerimônia se a vida do confrade foi convergente ou divergente", diz Oliveira. Os convergentes tiveram vida exemplar, enquanto os divergentes podem ter cometido atos de corrupção, por exemplo, e não são incorporados.
Templo positivista
RITUAIS E SÍMBOLOS
Na infância, Oliveira passava diante do templo quando ia ao parque da Redenção, a poucos metros dali, com o pai. O portão de ferro com a inscrição "Os vivos são sempre e cada vez mais necessariamente governados pelos mortos" assustava o garoto.
"Pensava que era coisa de fantasma. Hoje entendo que serve até como filtro, para afastar místicos", afirma.
O positivismo tem como dogma a ciência e o conhecimento. Nada que não possa ser "comprovado", como espíritos, por exemplo, é propagado. "Comte criou uma religião com dogma sempre atualizado", diz o guardião.
Os degraus da escada do templo têm inscrições que simbolizam a evolução da humanidade, objetivo da doutrina. O altar é adornado com bustos de "grandes homens" que representam áreas do conhecimento, como Gutenberg (indústria) e Arquimedes (ciência antiga).
O positivismo tem calendário próprio, com 13 meses. O marco zero é o ano de 1789, ano da Revolução Francesa.
Em um culto do mês de Descartes do ano 226 do calendário positivista, ou seja, em outubro de 2015, Oliveira falou sobre o "poder da internet, tanto para a informação como para a alienação". Os temas são sempre debatidos em grupo e buscam divulgar o conhecimento "clássico".
Para o futuro, os planos são realizar os ritos estabelecidos por Comte. "Já realizamos o fúnebre, agora vamos celebrar casamentos e batizados", revela Oliveira. 
Ouvir o texto

Livraria da Folha

08 novembro 2015

Demétrio Magnoli: "Proposta do MEC para a História mata a temporalidade"

Devido à gravidade do problema, reproduzo abaixo um artigo de Demétrio Magnoli e Elaine Barbosa, desenvolvendo um tema de que eles trataram há algumas semanas - a saber, as novas diretrizes para o ensino de História, propostas pelo Ministério da Educação. 

Essas novas diretrizes acabam com a própria idéia de "história", isto é, de cronologia, propondo em seu lugar um ajuntamento de perspectivas isoladas. 

Convém notar que, ao contrário dos preconceitos fortemente correntes, o Positivismo é radicalmente contra essa concepção ao mesmo tempo anti-histórica e particularística de história. Em outras palavras, o Positivismo é contra essa concepção revisionista e "acrítica".

Os autores do texto abaixo, embora tenham completa razão em sua crítica às propostas reacionárias do MEC, erram totalmente quando se referem ao Positivismo, evidenciando também o seu preconceito contra a doutrina e a prática fundada por Augusto Comte e desenvolvida em TODOS os continentes.

Para algumas considerações positivistas em apoio aos textos de Demétrio Magnoli e Elaine Barbosa, ver a postagem intitulada "Demétrio Magnoli: 'História sem tempo'" (disponível aqui).

Para uma pequena refutação da idéia do Positivismo como eurocentrismo, ver a minha postagem justamente intitulada "Positivismo como eurocentrismo" (disponível aqui).

Para uma discussão sobre a ignorância geral sobre o Positivismo, prevalecente no Brasil, ver a minha postagem "A impossibilidade de 'estudos comtianos' no Brasil" (disponível aqui).

O texto abaixo foi publicado na Folha de São Paulo de 8.11.2015; o original pode ser lido aqui.

*    *    *

Proposta do MEC para ensino de história mata a temporalidade


Ouvir o texto
RESUMO Este texto critica a visão de história da Base Nacional Comum Curricular proposta pelo Ministério da Educação. Ao abandonar a temporalidade em prol de certa noção de cultura, a BNC bane a ideia de história em construção e apaga dos livros didáticos as páginas consagradas à formação das modernas sociedades ocidentais.
*
O ensino de história deve se basear "em ensinamento crítico, mas sem descambar para ideologia". A recomendação apareceu no Facebook do já então ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro, como uma crítica explícita à Base Nacional Comum Curricular (BNC) de história, divulgada quando ele ainda chefiava a pasta.

Por uma dessas extraordinárias coincidências, Janine pronunciou-se horas depois da publicação de artigo de nossa autoria sobre o mesmo assunto ("História sem tempo", "O Globo", 8/10). E, casualmente, ele repetiu um argumento nuclear daquele artigo. "Não havia, na proposta, uma história do mundo", escreveu, cutucando a ferida de um programa que ignorava "quase por completo o que não fosse Brasil e África".

Janine tem razão quando enquadra o debate na moldura dos direitos dos estudantes e enfatiza o tema, tão esquecido, da pluralidade. "É direito de todo jovem saber o trajeto histórico do mundo. Precisa saber sobre a Renascença, as revoluções, muita coisa. Mas não há uma interpretação única de nenhum desses fenômenos. E é esta diversidade que a educação democrática e de qualidade deve garantir." Aloizio Mercadante, novo titular do ministério, parece igualmente convencido de que há algo de fundamentalmente errado num documento com "muita África e história indígena e pouca história ocidental".

As críticas de Janine e Mercadante têm peso político suficiente para provocar algum tipo de reforma na BNC, mas apenas roçam a superfície do problema: atrás da abolição da "história ocidental" encontra-se a supressão do próprio sentido temporal que define a disciplina.

Marc Bloch disse que "a história é a ciência dos homens no tempo". Na direção oposta, os autores (anônimos e, assim, "especialistas") do documento do MEC investiram numa sociologia do multiculturalismo que esvazia a temporalidade e, com ela, a gramática da historiografia. De fato, se aplicada, a proposta oficial significará o cancelamento do ensino de história. A narrativa histórica canônica estrutura-se sobre um esquema temporal clássico: Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna, Idade Contemporânea. De acordo com a BNC, alunos do 6º ano do ensino fundamental, com 11 ou 12 anos de idade, devem aprender a "problematizar" o "modelo quadripartite francês". Dali em diante, até o fim do ensino médio, o "modelo" nunca mais aparece.

Junto com ele, desintegra-se o ensino da Grécia clássica, do medievo das catedrais, do comércio e das cidades e, ainda, das rupturas filosóficas, culturais e religiosas que anunciaram a modernidade.

No lugar disso, segundo o documento do MEC, o ensino médio é chamado a se concentrar no estudo dos "mundos ameríndios, africanos e afro-brasileiros" (1º ano), dos "mundos americanos" (2º ano) e dos "mundos europeus e asiáticos" (3º ano). Assim, expulsa da escola, a temporalidade é substituída por supostos atores coletivos, construídos a partir de uma tosca noção de cultura.

TEMPORALIDADE

A história entrou na escola pelas mãos do Estado-Nação europeu, no século 19. Inexiste novidade na crítica ao paradigma temporal clássico, impregnado de positivismo, evolucionismo e eurocentrismo. Contudo superá-lo não implica suprimir a gramática da temporalidade.

O programa (mal) camuflado da BNC não é incorporar a África, a Ásia e a América pré-colombiana ao ensino de história, mas recortar dos livros didáticos as páginas consagradas à formação das modernas sociedades ocidentais, erguidas sobre o princípio da igualdade dos indivíduos perante a lei.

Numa primeira versão da proposta, informa Janine, os autores orientavam o estudo de revoltas coloniais com a participação de escravos ou índios, mas "deixavam de lado a Inconfidência Mineira". Seria um equívoco concluir daí que a exclusão decorria, principalmente, da ausência de escravos ou índios no movimento dos inconfidentes. O alvo da censura situa-se mais abaixo: na presença das ideias iluministas que conectam Tiradentes às revoluções Americana e Francesa.

Há método no caos da BNC. Sem a ágora grega, praça de mercado e praça pública, os estudantes ignorarão as origens do individualismo e da democracia –e a relação que existe entre ambos. Sem a Idade Média europeia, jamais entenderão a importância das religiões monoteístas na formação de sociedades que, pela primeira vez, englobaram grupos geográfica e culturalmente diversos por meio de valores éticos universalistas. Sem o Antigo Regime, não serão apresentados à filosofia das Luzes, base do contrato político da cidadania e fonte da ideia de que as pessoas são donas de suas escolhas e seus destinos. Sem a contestação socialista ao liberalismo, que emergiu na Europa novecentista, não compreenderão a trajetória de afirmação dos direitos sociais e trabalhistas.
O vácuo dessas múltiplas ausências será preenchido pelo ensino de histórias paralelas de povos separados pela intransponível muralha da "cultura".

A "história ocidental" mencionada por Mercadante converteu-se, num certo ponto, em história universal, pois a expansão dos Estados europeus –um percurso balizado pelas navegações, pela Revolução Industrial e pelo imperialismo– entrelaçou o mundo inteiro. O paradigma temporal clássico refletia a idealização desse processo. Uma educação democrática tem o dever de narrá-lo na sua inteireza, evidenciando suas luzes e suas sombras.

A herança ocidental abrange tanto a liberdade quanto a opressão: o habeas corpus e o tráfico escravista, a soberania popular e a tirania, a independência nacional e o colonialismo, a igualdade política e o racismo, os direitos humanos e o totalitarismo, a vacinação e a morte radioativa. A educação escolar tem o desafio de investigar tais complexidades e contradições. Mas, à abordagem dos educadores, a BNC contrapõe o método típico dos doutrinadores, fornecendo uma narrativa sobre mocinhos e bandidos que infantiliza professores e estudantes.

Quando Bloch define a história pela dimensão temporal, ele quer enfatizar seu caráter cronológico: o sentido de "processo", isto é, as relações e interações que promovem constantes mutações sociais.

A "história em construção" é precisamente aquilo que os formuladores da BNC pretendem dissolver, de modo a fabricar sujeitos a-históricos: grupos étnicos ou raciais identificados por supostas essências culturais e, portanto, impermeáveis à mudança. Eles não querem, como alegam, conferir visibilidade à história da África, da Ásia ou da América pré-colombiana, mas fabricar a "história dos africanos", a "história dos ameríndios" e a "história dos asiáticos", numa cartolina que incluiria, ainda, a "história dos europeus".

FETICHIZAÇÃO

Seria um equívoco interpretar a BNC como uma revolta contra o "ocidentalismo". De fato, não há nada mais "ocidental" que a fetichização da cultura. O essencialismo cultural deita raízes na "ciência das raças", elaborada à sombra do imperialismo, que falava do "fardo do homem branco" e produzia quadros descritivos sobre os "negros" (africanos), os "amarelos" (asiáticos) e os "vermelhos" (ameríndios). Atualmente, sob o mesmo registro operativo, difunde-se a tese neoconservadora do "choque de civilizações". Os autores convocados pelo MEC usam a linguagem e os conceitos do "choque de civilizações", fabricando uma cópia invertida da célebre narrativa sobre a "missão civilizatória" dos europeus.

A escritura da história segue caminhos diversos. A historiografia liberal enfatiza a política e o indivíduo. Os historiadores marxistas colocam os holofotes sobre as classes sociais e a economia. Mais recentemente, a nova história alargou e fragmentou o campo de investigação, abordando as mentalidades, ou seja, as representações sociais. A BNC, contudo, rejeita em bloco todo esse variado repertório, pois recusa a temporalidade. Nesse passo, acende uma fogueira destinada a consumir as obras consagradas e a melhor produção historiográfica acadêmica.

Para que serve o ensino de história? Na sua origem, a história escolar servia para inscrever a pátria no mármore da eternidade. A antiga visão utilitária reaparece, sob roupagem atualizada, na BNC.

Reagindo à crítica tardia de Janine, a professora Márcia Elisa Ramos, da Universidade Estadual de Londrina, defendeu a proposta do MEC recorrendo a uma alegação orwelliana de aparência banal: "O ensino de história deve não apenas estudar as diferenças mas compreender para respeitar. O currículo apenas contempla os objetivos do ensino de história, que são respeito à diversidade, pluralidades étnico-raciais, religiosa, de gênero etc.".

Não se ensina biologia para que os jovens aprendam regras de saúde e higiene. Não se ensina química para evitar a ingestão de substâncias tóxicas pelos alunos. Não se ensina física para alertar sobre o perigo de saltar da janela do edifício. Não se ensina português para treinar a habilidade de redigir solicitações de emprego. Não se ensina matemática para calcular os rendimentos da poupança. Tudo isso, bem como a aversão a preconceitos étnicos, raciais, religiosos ou de gênero, são subprodutos úteis da educação escolar. Mas o conhecimento serve a si mesmo: é um passaporte que garante acesso ao diálogo do mundo.
Diferentes indivíduos leem o mundo de formas diversas. Escola não é igreja: não é lugar de pregação, de tutela ou de retificação de mentes "desviantes".

A história, como as outras disciplinas, serve para acender a chama da curiosidade intelectual, ensinar os fundamentos do pensamento científico, habilitar os jovens para investigar, interpretar e refletir. Nossos doutrinadores de plantão, sábios "especialistas" que não declinam seus nomes, jamais concordarão com isso.


DEMÉTRIO MAGNOLI, 57, sociólogo e doutor em geografia humana, é colunista da Folha.

ELAINE SENISE BARBOSA, 50, é professora de história, autora de "História das Guerras" (Contexto). 

02 novembro 2015

Concepção positiva do Dia dos Mortos

Dia dos mortos, 2 de novembro


Cartaz gentilmente elaborado por João Carlos Silva Cardoso.

Origem histórica da data

No dia 2 de novembro comemora-se o Dia de Finados. Essa data tem uma origem católica que recua no tempo até o século II, quando os cristãos primitivos rezavam pelos mortos; no século V a Igreja solicitava que um dia do ano fosse dedicado àqueles que não era possível identificar. Essa prática atravessou os séculos e, no século XIII, definiu-se o dia 2 de novembro para essa homenagem, logo após o Dia de Todos os Santos, que é em 1° de novembro.

A bem da verdade, as orações cristãs no dia 2 de novembro não consistiam em "homenagens", mas em intercessões em favor das "almas" dos mortos. Essas intercessões, claro está, eram bem intencionadas mas eram, ao mesmo tempo, mais ou menos inúteis, considerando as doutrinas da predestinação e onisciência divina. O culto católico aos santos, existente desde o início do cristianismo, assim como o culto à Virgem Maria, que surgiu ao longo da Idade Média, são duas formas de contornar a impossibilidade prévia de remissão das almas dos mortos.


Concepção positiva do dia dos mortos

A Sociologia e a Moral Positiva indicam que, apesar de as "almas" como emanações etéreas não existam, o respeito aos mortos é um ato profundamente sociológico e altruísta. É sociológico porque as sociedades que existem atualmente devem sua existência, seus valores, seus recursos tecnológicos e materiais, suas idéias a todos aqueles que vieram antes. Aliás, essa é uma outra forma de dizer que o ser humano é um ser histórico.

Por outro lado, a homenagem aos antepassados e, de modo mais amplo, a todos os seres humanos convergentes que nos antecederam é uma forma de reconhecimento de nossas enormes e crescentes dívidas para com eles; é uma forma de estimularmos a veneração e a humildade, de reconhecermos nossa fraqueza atual face ao conjunto do passado. Em suma, essa homenagem é um poderoso instrumento de desenvolvimento do altruísmo e de compressão do egoísmo.

Assim, embora as motivações teológicas de respeito aos mortos sejam pura e simplesmente equivocadas, o fato é que o ato em si de homenagear é correto e salutar. O duplo aspecto da homenagem aos mortos – sociológico e moral – foi resumido pelo profundo gênio de Augusto Comte na seguinte máxima:

Os vivos são sempre e cada vez mais, necessariamente, governados pelos mortos.


Essa frase, não por acaso, está no portão da Igreja Positivista do Brasil, conforme pode-se ver na imagem abaixo.

Fonte: http://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com.br/2015/11/dia-dos-mortos-2-de-novembro-cartaz.html.

Governo subjetivo dos mortos, não objetivo

Não se deve encarar essa máxima como sendo "macabra". Algo é macabro quando faz o elogio da morte e do morrer, em detrimento da vida: como vimos, a frase de Augusto Comte celebra justamente a vida. Da mesma forma, convém ressaltar: o "governo" que os mortos realizam sobre os vivos é um governo subjetivo, não objetivo: isso quer dizer "apenas" que a sociedade de hoje é o resultado da ação das dezenas, centenas, milhares de gerações que nos precederam e que, nesse sentido, somos hoje o resultado da ação dos que vieram antes de nós[1]. Dessa forma, concretamente, o que ocorre é que, com base nos materiais morais, tecnológicos, teóricos provenientes do passado (legados pelos mortos), os vivos dão continuidade à vida coletiva e individual e governam seus assuntos.

Dia dos Mortos no Positivismo

Nos dois calendários positivistas, de caráter sociológico – o calendário abstrato e o calendário concreto –, o último dia do ano é dedicado à comemoração geral dos mortos, de acordo com os parâmetros indicados acima. No calendário júlio-gregoriano, esse dia corresponde a 31 de dezembro e, nos anos bissextos, a 30 de dezembro.

Dia de Finados como proposta positivista

Como vimos, há uma coincidência parcial entre o Dia de Finados católico e o Dia Geral dos Mortos positivista. No caso brasileiro, como no final do século XIX a maioria da população brasileira era católica, a Igreja Positivista do Brasil resolveu aproveitar essa coincidência e buscar a positivização de um hábito já difundido na população: por esse motivo, propôs que o dia 2 de novembro fosse feriado nacional, de caráter cívico.






[1] A concepção objetiva do governo dos mortos é a apresentada pelas várias teologias, segundo as quais os mortos não estariam de fato mortos, mas estariam vivos em um outro "plano", "além" deste em que vivemos. Claro que essa concepção, apesar de pretender-se objetiva, baseia-se apenas na mais pura crença subjetiva; além disso, não apresenta prova nenhuma de que ocorre; por fim, em última análise, nos dias atuais, é uma forma de consagrar a irresponsabilidade individual e coletiva, ao atribuir ao "além" a condução efetiva dos assuntos humanos.