28 abril 2011

Centenário da Lei de Separação entre Igreja e Estado de Portugal

Material produzido pela Associação República e Laicidade, de Portugal, em comemoração - e defesa - do centenário da lei portuguesa de separação entre a Igreja e o Estado (1911-2011):

http://www.laicidade.org/centenario-da-lei-de-separacao-da-igreja-do-estado/

CENTENÁRIO DA LEI DE SEPARAÇÃO DA IGREJA DO ESTADO

Artigo 1º

A República reconhece e garante a plena liberdade de consciência a todos os cidadãos portugueses e ainda aos estrangeiros que habitarem o território português.

Artigo 2º

A partir da publicação do presente decreto, com força de lei, a religião católica apostólica romana deixa de ser a religião do Estado e todas as igrejas ou confissões religiosas são igualmente autorizadas, como legítimas agremiações particulares, desde que não ofendam a moral pública nem os princípios do direito político português.

Artigo 3º

Dentro do território da República ninguém pode ser perseguido por motivos de religião, nem perguntado por autoridade alguma acerca da religião que professa.

Artigo 4º

A República não reconhece, não sustenta, nem subsidia culto algum; e por isso, a partir do dia 1 de Julho próximo futuro, serão suprimidas nos orçamentos do estado, dos corpos administrativos locais e de quaisquer estabelecimentos públicos todas as despesas relativas ao exercício dos cultos.

Bons amigos republicanos,

completa-se hoje um século sobre a «minha» Lei de Separação da Igreja do Estado [1].

Cem anos passados, isola-se com demasiada facilidade a Lei da Separação de outra legislação que partilhava o mesmo objectivo laicizador. A Lei do Registo Civil obrigatório [2] e a generalização do Ensino laico [3] são injustamente ignoradas. Pela laicização do Registo Civil, tornou-se possível a todos os cidadãos portugueses nascer, casar e morrer sem dar conta disso à Igreja. Não creio que os portugueses do século XXI imaginem o que era fazer depender cada um desses actos da presença de um padre, que guardava o seu registo em livros só dele. Parece-me evidente que hoje jamais o aceitariam. E com a generalização do ensino laico pretendíamos formar cidadãos nos valores republicanos, liberais e laicos. Os valores que a todos podem unir, para além das tutelas clericais, tantas vezes impostas desde a infância. Sei que não tivemos tempo para concluir essa parte da nossa obra. Mas atravessámos tempos difíceis, até uma guerra mundial.

Queria falar-vos da Lei de Separação. A Lei a que hoje ligam o meu nome, o que é de justiça, porque muito trabalho me deu. Mas eu não estava sozinho. Não era o único português a desejá-la e os republicanos portugueses não eram uma minoria de marcianos anti-religiosos infiltrados no bom povo português. Éramos muitos, embora principalmente nas cidades. Leiam o que dizia o meu amigo Fernão Botto Machado em defesa do Registo Civil obrigatório [4], ou o que dizia a minha amiga Beatriz Pinheiro contra a educação clerical e jesuítica [5], e compreenderão como os nossos argumentos eram lógicos, razoáveis e sensatos. E como ainda hoje muitos de vós concordariam com o que esses meus amigos da Associação do Registo Civil e da Liga Republicana das Mulheres Portuguesaspretendiam. Talvez os portugueses ainda venham a sentir necessidade de proferir palavras semelhantes, em pleno Século XXI. Quem sabe.

Nada me espanta mais do que a importância que dão a umas palavras que me atribuem, e que teria pronunciado no dia 21 de Março de 1911, no Grémio Lusitano. Eu teria dito que «em duas gerações, Portugal terá eliminado completamente o catolicismo». Ora, nesse mês, afirmei em várias conferências que «com o seu aspecto mercantil degradante, consequência da influência dos jesuítas, aspecto a que emprestaram o seu selo as congregações e a Companhia de Jesus, a continuar esta situação, em breve a religião católica se extinguiria». Talvez tenha sido essa frase, mal entendida ou desastradamente anotada, que provocou este centenário equívoco. Porque eu desmenti várias vezes que a tivesse pronunciado [6]: em Santarém, em Novembro de 1912, eu disse que «os reaccionários, à falta de argumentos insuspeitos, atribuíram-me a intenção de querer acabar, mediante essa lei, com o Catolicismo em Portugal em duas ou três gerações. A verdade é que a Lei não faz mal ao Catolicismo, mas que este vivia, antes dela, em Portugal, uma vida artificial (…) Em vez de ferir a religião, a Lei permite à Igreja Católica viver longe da agitação política, procurando ressurgir, pura e respeitável, pela fé e pela bondade dos seus sacerdotes»; e perante a Assembleia Nacional, em 10 de Março de 1914, afirmei que «tenho sido acusado de muitas coisas e, entre elas, a de extinguir o sentimento religioso em duas gerações. Esta calúnia é de tal natureza que merece o sorriso e o desdém que quase sempre merecem os caluniadores». Pelo contrário, a legislação que eu assinei, oficialmente, sentado à minha mesa e após longa ponderação, está publicada nos jornais oficiais, assumida e sem ambiguidades. Mas já nada posso fazer: a frase que eu teria proferido entre amigos, talvez para acordar os mais sonolentos, tornou-se mais importante do que centenas de artigos legais que escrevi e que não extinguiam coisa alguma, a não ser privilégios indevidos. Talvez haja aqui um claro sinal de que os portugueses preferem a superficialidade das frases tonitruantes à complexidade de textos legais que requerem estudo aturado. Querer tornar uma frase apócrifa (estou a ser simpático) no símbolo e no objectivo oculto de toda uma legislação, que eu aliás sempre afirmei que podia ser debatida e melhorada, é tornar verdade uma mentira mil vezes repetida. Mas se essa frase se tornou um dogma da fé católica portuguesa, admito que devo calar-me. Por respeito.

Voltemos à Lei de Separação. Com ela, a religião católica deixou de ser a religião do Estado. Só por si, esse singelo facto não exaltaria ninguém. Mas, do mesmo passo, os sacerdotes católicos deixaram de ser funcionários públicos e os generosos subsídios que a igreja recebia foram eliminados. Fui então acusado de «perseguir a igreja católica». Até a Lei do Divórcio [7] foi inserida como parte dessa «perseguição». Será que os portugueses de 2011 sabem que se considerou «perseguição» o tornar o divórcio legal? Eu sei que o podem compreender: ainda recentemente se considerou «perseguição ao catolicismo» legalizar o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (questão, diga-se, que no meu tempo ninguém colocou).

Há quem diga que as comissões cultuais que a Lei criava pretendiam «controlar» ou «dominar» a igreja católica, e que eu (só eu, sempre o único responsável) as quereria formar com republicanos anticlericais. E no entanto, eu disse claramente que «a intenção da Lei era apenas a de criar uma corporação que recebesse os donativos com que se devia pagar ao padre e não cultuais com livres-pensadores (…) O que se não compreende é que tome conta do culto quem com o culto se não interessa» [8]. Acrescento que a Lei de Separação francesa, de 1905 [9], ainda hoje está em vigor, e sendo muito semelhante à portuguesa ninguém hoje considera que tenha «extinguido» o catolicismo ou que «persiga» os católicos, havendo até quem ache que os privilegia comparativamente com os muçulmanos!

Eu sei, separar pode sempre ser figurado como antipático, violento até. Mas tomem em consideração que a igreja católica que eu enfrentei em 1911 era muito diferente da que hoje conhecem. Condenava a democracia e a laicidade (o Syllabus de Pio IX, sabem o que era?). Hoje, ao que sei, mesmo alguns bispos dizem defender a laicidade (mas condenam o laicismo; tal fineza de distinção dir-se-ia, no meu tempo …jesuítica). A igreja católica evoluiu, e há que reconhecê-lo. Mas há que reconhecer igualmente que essa evolução talvez se deva, em parte, aos republicanos portugueses, franceses, mexicanos e outros…

O nosso objectivo era a liberdade de consciência para todos: os católicos, os de outras religiões, os livres pensadores, os ateus. Acreditávamos que pela instrução e pela ciência o futuro de todos e de cada um seria melhor (e estou em crer que não nos vão contradizer neste desiderato?). Alguns souberam reconhecer que tínhamos razão. Como os protestantes de então[10], ou os judeus, comunidades religiosas que a Lei de Separação tirou da clandestinidade. De variadas formas explicámos os nossos objectivos, hoje tão mal compreendidos e distorcidos por historiadores clericais mais preocupados em atribuir-nos tenebrosas intenções. Leiam por exemplo o que disseram os meus correlegionários Magalhães Lima [11] ou Raúl Proença[12]. Atrevem-se a dizer que algum deles seria parte de uma obra de «extinção» ou «perseguição»? E no entanto, foi ao meu lado que estiveram, e não ao lado dos outros, os clericais… de que lado estava a liberdade, afinal?

Esta missiva já vai longa. Sei que no Portugal de 2011 o clericalismo continua a existir. Que há novamente sacerdotes pagos pelo Estado para exercer funções exclusivamente religiosas. Que há símbolos religiosos emescolas públicas (que se são templos, sê-lo-ão do saber laico). Que há professores nessas escolas que são as confissões religiosas que nomeiam, mas o Estado que salaria. Que existe uma Concordata, que é como que uma forma de tentar anular a Separação sem o dizer frontalmente. Que há mil e uma formas, subtis e dissimuladas, de subsidiar o culto e de contornar a Separação. Nem sei como têm dinheiro para tal.

Seja como for, meus amigos, eu estou morto há muito. Ficou o meu exemplo e os meus esforços, com os seus acertos e erros. Dei o meu melhor, pela liberdade de cada um contra a maioria e a tradição. Que a minha obra vos sirva de inspiração.

Saúde e fraternidade,

Afonso Costa

  1. Lei de Separação da Igreja do Estado (20 de Abril de 1911)
  2. Lei do Registo Civil (20 de Abril de 1911)
  3. Decreto sobre a Instrução (22 de Outubro de 1910)
  4. «A obrigatoriedade do Registo Civil» (Fernão Botto Machado, 1908)
  5. «A Educação Congreganista» (Beatriz Pinheiro, 1910)
  6. Afonso Costa nunca disse a frase que lhe atribuíram (Carlos Ferrão, «Desfazendo Mentiras e Calúnias», 1967)
  7. Lei do Divórcio (3 de Novembro de 1910)
  8. Discurso em Defesa da Lei de Separação (Afonso Costa, 1914)
  9. Lei (francesa) de Separação das Igrejas do Estado (1905)
  10. Memorial das Igrejas protestantes (1911)
  11. «O Espírito Laico e o Espírito Livre Pensador» (Magalhães Lima, 1911)
  12. «O Partido Republicano e as crenças religiosas» (Raúl Proença, 1910)

28 março 2011

Laicidade do Estado e Tribunal de Direitos Humanos da Europa

Laicidade do Estado e Tribunal de Direitos Humanos da Europa

Matéria publicada em 27.3.2011, na Gazeta do Povo, cujo original está disponível aqui: http://www.gazetadopovo.com.br/mundo/conteudo.phtml?tl=1&id=1109996&tit=Livres-para-crer.

Na metade do texto há alguns trechos de uma entrevista que concedi a respeito da decisão do Tribunal Europeu.

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Mundo

Segunda-feira, 28/03/2011
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DIREITO DE EXPRESSÃO

Livres para crer

Nova sentença do Tribunal de Estrasburgo retoma o debate sobre a liberdade religiosa em um estado laico
Publicado em 27/03/2011 | JÔNATAS DIAS LIMA
A recente decisão do Tri­bu­­nal Europeu de Direitos Hum­­anos de reverter uma sentença através da qual or­­denava a retirada de crucifixos das es­­colas públicas italianas reacende o debate sobre liberdade de crença e laicidade do estado. Palco de frequentes protestos contra as restrições da expressão religiosa, a Eu­­ropa vive um momento de tensão no qual são protagonistas os que pregam a limitação da fé ao foro íntimo, os que defendem a expressão da religião mesmo na vida pública e os que en­­tendem os objetos religiosos muito mais como símbolos culturais do que instrumentos de doutrinação.
Julgamento
Brasil decidiu manter crucifixos
Em 2007 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) julgou quatro representações questionando a presença de crucifixos em tribunais, como o que há no Supremo Tribunal Federal. Na ocasião o CNJ, que é o órgão de fiscalização externa da justiça brasileira, decidiu pela permanência dos crucifixos, entendendo que o uso de símbolos religiosos em órgãos do Poder Judiciário não fere a autonomia do Estado em relação à religião. Na avaliação do CNJ os crucifixos são muito mais símbolos culturais e tradicionais do que representantes de uma religião específica.
Entenda
O que é o Tribunal de Estrasburgo
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos, ou apenas Tribunal de Estrasburgo, é a autoridade judicial para a garantia dos direitos humanos e liberdades fundamentais em toda a Europa. Qualquer europeu que se considere vítima de abusos nessas áreas, depois de esgotados os recursos na Justiça de seu país, pode recorrer ao tribunal. Regida pela Convenção Europeia de Direitos Humanos, a instituição tem sede na França e não é vinculada à União Europeia.
Em 2009 o Tribunal de Estrasburgo, como também é chamado, acatou o pedido de uma mãe que alegava que o crucifixo presente na sala de aula dos filhos prejudicava seu direito de educá-los conforme suas convicções. O tribunal impôs ao governo italiano o pagamento de uma indenização de 5 mil euros e a imediata retirada dos símbolos religiosos. A decisão causou manifestações em todo o continente, não apenas por parte de grupos religiosos, mas também governos que viram no caso uma ofensa à soberania de cada nação e um exagero do tribunal, que teria ido além de suas atribuições. A Itália entrou com recurso e foi oficialmente apoiada por dez países europeus, incluindo a Rússia.
No dia 18 deste mês o recurso foi julgado e o mesmo tribunal emitiu nova sentença afirmando que a presença de crucifixos não viola o direito dos pais e não há provas de que afete a livre escolha de religião dos alunos. O fato dividiu analistas.
Para o sociólogo Gustavo Biscaia de Lacerda, da UFPR, a decisão é um erro. “Se o estado não tem doutrina não pode ostentar símbolo algum. Isso fere o estado laico”, afirma Lacerda, para quem a defesa da manutenção de crucifixos é apenas casuísta. “Se nas paredes das escolas hou­­vesse uma lua crescente islâmica ou um sinal da umbanda, os cristãos se sentiriam ofendidos”, enfatiza o sociólogo.
Mas a compreensão do que é a laicidade do estado é diferente para o jurista Ives Gandra Martins. “Estado laico não é estado ateu, é aquele que permite aos seus cidadãos a livre escolha de religião, garantindo o direito de professá-la”, comenta Martins. Para o jurista, objetos religiosos em locais públicos não afetam a laicidade porque não privam as pessoas de crer naquilo que quiserem, mas tratam-se de símbolos históricos e culturais de uma nação. “Além do próprio Cristo Redentor, o Brasil tem centenas de cidades com nomes de santos por razões históricas, nem por isso seus habitantes são obrigados a ser católicos”, diz Martins citando a recente visita de Barack Obama ao monumento no Rio de Janeiro.
Cerco
O caso dos crucifixos na Itália não foi o único episódio recente de discórdia envolvendo símbolos religiosos na Europa. Em 2009 a Suíça proibiu comunidades muçulmanas de erguerem minaretes (torres de onde se anunciam os momentos de oração) em suas mesquitas, gerando revoltas em todo o mundo islâmico e críticas da ONU. No mesmo ano, o presidente francês Nicolas Sarkozy afirmou durante um discurso que o costume de mulheres muçulmanas de usar burcas “não é bem-vindo no território da República Francesa”. Em setembro de 2010 o senado da França aprovou a proibição do uso de burcas e véus integrais (que cubram o rosto inteiro) em todo o país, sob pena de multa e aulas de civilização às mulheres flagradas usando a vestimenta.
O filósofo e colunista do jornal Folha de S. Paulo Luiz Felipe Pondé afirma que a repressão às religiões tem raízes em séculos passados. “A radicalização anticlerical vem dos movimentos que se seguiram à Revolução Fran­­cesa, e acho que tende a crescer o radicalismo contra o Islã”, diz Pondé ao comentar que o islamismo já é a segunda maior religião na Europa.
Para o filósofo as ações restritivas afetam a liberdade religiosa, mas reconhece tratar-se de um dilema. “As pessoas devem ter o direito de usar os símbolos que quiserem, entretanto não se pode negar que isso cause tensões entre setores mais e menos secularizados na sociedade”, conclui.