11 junho 2024

Síntese subjetiva e relativa como quarto estado

No dia 23 de São Paulo de 170 (11.6.2024) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência (dedicada ao regime público).

No sermão abordamos uma questão central para o Positivismo e para todos os seres humanos: a noção de positividade filosófica, superior à mera positividade científica, como um quarto estado da lei dos três estados.

Antes do sermão comentamos alguns livros:

- Ascensão e reinado dos mamíferos, de Steve Brusatte

- A esquerda não é woke, de Susan Neiman

 A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/ArsP0) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/hmfvr).

A leitura comentada começou aos 48 min 05 s; o sermão começou a 1h 09 min 43 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas (e atualizadas) abaixo.

*   *   *

A síntese subjetiva como quarto estado

(23.São Paulo.170/11.6.2024) 

1.      A prédica de hoje trata de um assunto que é da maior importância para o Positivismo, isto é, para a Religião da Humanidade e, por extensão, para o ser humano, para o bem-estar público e para a felicidade individual

1.1.   Trata-se da incorporação da síntese subjetiva na lei dos três estados, ou melhor, da atualização da lei dos três estados em face da síntese subjetiva

1.2.   Essa atualização é importante porque corrige uma ambigüidade daninha presente desde o início da lei dos três estados

2.      Antes de passarmos à parte mais substantiva deste sermão, podemos responder a uma pequena dúvida que, por vezes, apresenta-se aos leitores de Augusto Comte (incluindo, evidentemente, os positivistas)

2.1.   A dúvida é a seguinte: devemos dizer “estados” ou “estágios”?

2.2.   A formulação de Augusto Comte é bem clara: ele usa “état”, ou seja, “estado”: é a “loi des trois états

2.3.   Mas se na formulação ele usa “estado”, em seus escritos ele não se apega a essa palavra, usando alternadamente “estado”, “estágio”, “fase”, “modo” etc.

2.3.1.     Os positivistas, da mesma forma, adotam essas várias palavras

2.4.   Para além da palavra consagrada no enunciado, o que evidentemente importava para Augusto Comte, conforme depreendemos de seus escritos, é que cada um dos estados descritos na lei dos três estados (1) representa um modo distinto de conceber e interpretar a realidade, (2) que segue uma determinada seqüência lógica e histórica em seu desenvolvimento

2.5.   Assim, na prática, podemos dizer que o enunciado deve ser feito com “estados” (por motivos de respeito e de uniformidade), mas que ao longo das exposições e das reflexões podemos usar sem maiores dificuldades as outras palavras

3.      A lei dos três estados a que nos referimos é a lei intelectual dos três estados

3.1.   Ela foi primeiramente enunciada em 1822, no texto, ou livro, chamado “Plano dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade”

3.1.1.     Esse livro era chamado por Augusto Comte também de “opúsculo fundamental”

3.1.2.     Além disso, é popularmente conhecido apenas como “Reorganizar a sociedade”

3.1.3.     Ele teve uma reedição aumentada em 1824, em que Augusto Comte chamou-o – prematuramente, como ele mesmo depois reconheceu – de “Sistema depolítica positiva

3.2.   Ao apresentar a lei dos três estados, inserindo-a em uma reflexão histórica mais ampla, o “Reorganizar a sociedade” tem o mérito e a glória de ao mesmo tempo fundar a Sociologia e o Positivismo

3.3.   O enunciado dessa lei mudou com o passar do tempo, refletindo mudanças, ou melhor, a evolução das concepções de nosso mestre

3.4.   O enunciado final, “canônico”, é o que aparece no corpo da Filosofia Primeira, conforme publicado no Catecismo positivista:

3.4.1.     “Cada entendimento oferece a sucessão dos três estados, fictício, abstrato e positivo, em relação às nossas concepções quaisquer, mas com uma velocidade proporcional à generalidade dos fenômenos correspondentes”

3.4.2.     Vale lembrar que essa é a sétima lei do total de 15 leis da Filosofia Primeira; ela integra o segundo grupo de leis, “essencialmente subjetivo”, na sua segunda série, que compreende as leis dinâmicas do entendimento

3.4.3.     Essa segunda série apresenta as três leis dos três estados (intelectuais, afetivos e práticos)

3.5.   As idéias da lei intelectual dos três estados são bem claras:

3.5.1.     Toda concepção humana passa por três fases, ou seja, três modos de entender o mundo

3.5.2.     Esses três modos são, sucessivamente, o fictício, o abstrato e o positivo

3.5.2.1.           Insistamos: os modos são três, são sucessivos, são os indicados acima e desenvolvem-se nessa ordem

3.5.3.     A velocidade da passagem de um modo de conceber a realidade para outro varia de acordo com a generalidade objetiva de cada concepção, o que também equivale a dizer: conforme a generalidade subjetiva e o grau de complicação das concepções

4.      Pois bem: a ambigüidade que mais ou menos sempre se apresentou consiste, precisamente, no fato de que o estado positivo apresentava dois sentidos diferentes

4.1.   Esses dois sentidos são: (1) positivo como “científico” e (2) positivo como “filosófico”

4.2.   O sentido “científico” foi o que primeiro apresentou-se a Augusto Comte, refletindo o desenvolvimento das ciências; ele opõe-se de maneira bastante clara à teologia e à metafísica

4.3.   O sentido “filosófico”, nas primeiras formulações, não estava muito evidente – o que, é importante enfatizar, não significa que não se apresentasse de maneira nenhuma –, mas, à medida que nosso mestre desenvolveu sua obra, a importância da síntese filosófica foi evidenciando-se cada vez mais

4.4.   Assim, nas formulações iniciais – ou seja, nos opúsculos de juventude (como o “Reorganizar a sociedade”, de 1822-1824) e ao longo dos cinco primeiros volumes da Filosofia positiva (de um total de seis) (1830-1841) –, Augusto Comte afirmava ao mesmo tempo, a importância da cientificidade (usando, para isso, a lei dos três estados como apoio) e a necessidade de concepções gerais, sintéticas e francamente relativas

4.4.1.     A necessidade das concepções gerais, sintéticas e relativas era afirmada em conjunto com a cientificidade, mas ela não era plena e conscientemente integrada à lei dos três estados, que se limitava assim, em seu enunciado, ao positivo como cientificidade

4.5.   Conforme nosso mestre disse em carta ao dr. Audiffrent de 15 de Homero de 69 (12 de fevereiro de 1857), apenas a partir do último volume da Filosofia positiva (1842) é que o enunciado, ou melhor, que o sentido pura ou predominantemente científico na lei dos três estados mudou

4.6.   O relacionamento com Clotilde permitiu que Augusto Comte mudasse claramente o sentido, assumindo então que a positividade não pode ser apenas a cientificidade, mas deve ser, ainda mais, o aspecto sintético, subjetivo e relativo

4.7.   A Religião da Humanidade, proposta no Discurso sobre o conjunto do Positivismo (1848), fundada plenamente na Política positiva (1851-1854) e aprofundada na Síntese subjetiva (1856) consagrou definitivamente o sentido pleno da positividade, isto é, como síntese filosófica, relativa e subjetiva

5.      Pois bem: o ano de 1857 foi dedicado por Augusto Comte para reflexão e amadurecimento filosófico, preparando-se para a redação dos volumes seguintes da Síntese subjetiva

5.1.   No âmbito dessas reflexões, em conversas epistolares com seus discípulos, Augusto Comte apresentava e desenvolvia suas novas concepções

5.2.   Na já mencionada carta ao dr. Audiffrent, de 15 de Homero de 69 (12 de fevereiro de 1857), nosso mestre formaliza a concepção de positividade presente na lei intelectual dos três estados, desdobrando-a em uma lei dos quatro estados

5.2.1.     A positividade, assim, assume duas fases sucessivas: uma preparatória, a científica, e a outra verdadeiramente definitiva, a filosófica

5.2.2.     Além do aspecto filosófico, explicitamente ao mesmo tempo sintético, relativo e subjetivo, Augusto Comte indica que a verdadeira positividade exige que a utilidade seja claramente acrescida à realidade das concepções

5.2.2.1.           A mera realidade pode resultar – e, como sabemos, com freqüência resulta – no absolutismo científico

5.2.2.2.           Por outro lado, o pleno e conseqüente emprego da utilidade resulta em que é possível, e necessário, que criemos concepções que sejam fictícias mas úteis

5.2.2.2.1.                O critério da realidade não é final, mas não pode ser desprezado; assim, as ficções positivas, sem se limitarem à realidade, não podem negar as concepções reais

5.2.2.2.2.                Evidentemente, a subjetividade tem um largo papel aí, seja na forma da imaginação artística, seja na incorporação do fetichismo à positividade

5.2.2.2.3.                Isso tudo resulta em que, por um lado, as utopias positivas podem ser desenvolvidas com plena positividade e que, por outro lado, mesmo as concepções científicas abrem-se plenamente para enunciados simpáticos, isto é, ao mesmo tempo altruístas e artísticos

5.3.   Ao distinguir a positividade científica (que é preparatória e, portanto, provisória) da positividade plena, que é filosófica, nosso mestre também distingue a verdadeira positividade do mero cientificismo (e, por extensão, também do academicismo)

5.4.   Eis como Augusto Comte caracteriza cada um dos quatro estados:

5.4.1.      Teológico: provisório

5.4.2.      Metafísico: transitório

5.4.3.      Científico: preparatório

5.4.4.      Positivo (filosófico): definitivo

5.5.   Comentário estritamente pessoal: no fundo, podemos talvez considerar que o novo enunciado estabelece uma leis dos “dois estados”, indicando a gigantesca transição do absolutismo para o relativismo

5.5.1.     Ou, quem sabe, considerando a transição do absolutismo para o relativismo, uma outra lei dos três estados: fetichismo, teologia/metafísica, positividade

5.6.   Comentário feito pelo nosso amigo Hernani na tarde de hoje (23.São Paulo.170/11.6.2024), a título de auxílio para esta prédica:

“A caracterização intelectual da síntese subjetiva foi feita por Augusto Comte em suas últimas reflexões tomando por base dois pares de conceitos. A síntese positiva é (1) demonstrável e discutível e (2) relativa e subjetiva. Ora, com base apenas nessa dupla caracterização torna-se fácil justificar a lei dos três estados com o acréscimo de uma quarta fase, bastando decompor o estado metafísico em seus dois pólos opostos (o espiritualismo e o materialismo). Basta realizar a seguinte operação: ao teologismo corresponderia uma síntese a um tempo subjetiva e absoluta, donde seu caráter a um tempo indemonstrável e indiscutível.

Em seguida, à primeira expressão da metafísica, isto é, à metafísica espiritualista corresponderia uma tentativa de síntese objetiva e absoluta, donde seu caráter indemonstrável porém discutível.

Ao segundo e último estágio metafísico, isto é, ao cientificismo materialista, corresponde uma tentativa de síntese objetiva e relativa, donde seu caráter demonstrável porém ainda indiscutível.

E por fim, o quarto e último estado do entendimento, a síntese positiva, esta define-se como subjetiva e relativa, donde seu caráter demonstrável e discutível.

Repare que o caráter contraditório das duas sínteses metafísicas fica aí plenamente manifesto, assim como o contraste entre essas duas sínteses em comparação com o caráter orgânico das sínteses teológica e positiva”.

5.6.1.     A sugestão do Hernani é que o antigo critério de positividade – que, no final das contas, é o cientificismo – seja incorporado à metafísica (que, assim, desdobra-se em duas fases), deixando a positividade propriamente dita para a síntese subjetiva e relativa

5.7.   Mais algumas observações de nosso amigo Hernani, agora feitas durante a prédica:

“Em sua primeira fase, mais objetiva, Augusto Comte havia formulado a lei dos três estados a partir das produções exteriores da Humanidade. Ela é então uma apresentação eminentemente histórica e empírica. A teologia, a metafísica e a ciência são aí oferecidas como sinais empíricos reveladores dessa passagem íntima.

Na segunda de suas fases, progressivamente subjetiva, a formulação de Augusto Comte enuncia a mesma lei considerando antes o caráter interno de cada estado, ou seja, o caráter lógico inerente de cada um deles. Então se tratou de revelar o caráter fictício das construções da teologia, o caráter abstrato das especulações metafísicas e o caráter positivo das leis da ciência.

A morte privou Augusto Comte de uma terceira formulação da lei da evolução intelectual, na qual o conjunto do Positivismo já pudesse ser apresentado como livre dos últimos vestígios do cientificismo, o que já havia ocorrido a partir do quarto volume da Política positiva, de 1854, com a teoria subjetiva dos números, com a incorporação do fetichismo etc.

É curioso ver como o resumo de Harriett Martineau[1] foi elogiado por Augusto Comte, dentre outras virtudes, pelo fato de ela haver excluído daí o artigo escrito por Augusto Comte, em 1832, intitulado Memória sobre a hipótese cosmogônica de Laplace[2], adiantando-se assim à exclusão de um assunto que ainda estava presente no Sistema de filosofia positiva e que o Positivismo viria a considerar como mais uma especulação da metafísica cientificista”.

5.8.   A carta de 12 de fevereiro foi aprofundada em uma outra, de 27 de Aristóteles de 69 (24 de março de 1857)

6.      As cartas de A. Comte ao dr. Audiffrent foram publicadas pelo próprio dr. Audiffrent em 1880, no livro O Positivismo dos últimos tempos (LePositivisme des derniers temps) – embora tenham sido apenas trechos dessas epístolas

6.1.   Teixeira Mendes traduziu e publicou esses trechos em 1898 (As últimas concepções de Augusto Comte) e novamente em 1900 (O ano sem par)

6.2.   Finalmente, em 1990, Paulo Carneiro, dando seguimento e concluindo o principal de organização e publicação da correspondência de Augusto Comte, publicou-as na íntegra, no volume VIII da correspondência e das confissões anuais de nosso mestre (esse volume em particular contou com o auxílio de Angèle Kremer-Marietti)

7.      Eis os trechos da bela e importante carta de fevereiro de 1857 que o dr. Audiffrent publicou em 1880[3]:

“A respeito da principal parte de vossa memorável carta, devo sobretudo esboçar a sistematização direta das reflexões gerais que precedentemente vos indiquei sobre a emancipação científica especialmente instituída, conforme o caso mais decisivo, ainda que sob um modo espontaneamente latente no volume que vós reledes agora. É necessário perceber diretamente tal emancipação como o complemento normal da evolução fundamental que caracteriza a lei dos três estados. O último estado deve ser, a esse respeito, decomposto em seus dois modos sucessivos, um científico, o outro filosófico, respectivamente analítico e sintético. É somente ao segundo que pertence a qualificação de definitivo, inicialmente aplicado confusamente ao seu conjunto. No fundo, a ciência propriamente dita é tão preliminar quanto a teologia e a metafísica e deve ser finalmente tanto quanto [elas] eliminada pela religião universal, em relação à qual esses três preâmbulos são um o provisório, o outro, transitório, e o último, preparatório. Eu ouso mesmo recusar às ciências o atributo de plena positividade, que não consiste somente na realidade das especulações, mas em sua combinação contínua com a utilidade, sempre referida ao Grande Ser e desde então não podendo nunca ser dignamente apreciada senão conforme a síntese total, vale dizer, subjetiva e relativa. Na construção final, o início teológico da preparação humana não tem menos eficácia que seu término científico. Se este fornece os materiais exteriores, a outra esboça as disposições interiores, ao compensar a imaginaridade[4] pela generalidade, cuja ausência interdiz toda verdadeira racionalidade teórica.

Sob um aspecto mais sistemático, a primeira vida [teológica] é sobretudo distinguida no indivíduo, como na espécie, pela vã pesquisa contínua de uma síntese essencialmente objetiva, ao passo que a segunda [a positividade] constrói e desenvolve a síntese puramente subjetiva, de que a outra forneceu espontaneamente os materiais necessários. Mesmo quando a ciência já sentiu a inanidade das causas e fez gradualmente prevalecer as leis, ela aspira tanto quanto a teologia e a metafísica à objetividade completa, sonhando com a universalidade de explicação exterior segundo uma única lei, não menos absoluta que os deuses e as entidades seguindo a utopia acadêmica. A esse respeito, eu devo ingenuamente estender uma palavra de minha última circular que prolonga esse reproche até a mim mesmo, a respeito da minha obra fundamental [o Sistema de filosofia positiva], em que, não fosse senão a esse título, a posteridade não veria, como eu pude já o dizer nobremente, senão uma construção de estréia, um trabalho de primeira vida, não tendendo para a segunda senão no tomo final, todos os outros permanecendo mais ou menos submetidos ao prestígio científico de que somente o estado plenamente religioso libertou-me”.

8.      Eis o trecho da carta de março de 1857, também publicada pelo dr. Audiffrent em 1880[5]:

“O MESTRE – Vejo que apreciastes agora o meu novo volume [Síntese subjetiva], de maneira a utilizá-lo mais do que ninguém. A sua reação geral sobre a vossa final emancipação científica me é sobretudo preciosa, como garantindo a integridade das vossas disposições sintéticas e a sua eficácia religiosa. Sentistes dignamente que a ciência, longe de constituir o estado positivo, limita-se a fornecer-lhe, após a teologia e a metafísica, uma última preparação necessária que, como as outras duas, tem tanto seus inconvenientes como suas vantagens, e torna-se profundamente nociva prolongando-se fora de medida. Para caracterizar a positividade das nossas concepções, é preciso sempre que a sua realidade se combine com a sua utilidade, a qual não é verdadeiramente suscetível de ser julgada senão religiosamente, em virtude da relação de cada parte com o conjunto. Sente-se que a ciência seria menos apta do que a teologia para constituir um estado fixo, pois que o entendimento não poderia nunca tomar para uma verdadeira residência uma simples escala, unicamente apropriada para subir ou descer entre o mundo e o homem, quando as nossas necessidades o exigem, e de modo algum capaz de fornecer-nos um domicílio permanente. É tempo que os verdadeiros teoristas se libertem, a tal respeito, de uma dominação degradante, a fim de poderem dignamente instalar as grandes noções religiosas contra as quais a ciência será em breve insurgida com mais animosidade do que a teologia e a metafísica, porque ela aspira mais a perpetuar o interregno espiritual”

9.      Em suma:

9.1.   A verdadeira positividade é filosófica, relativa e subjetiva

9.1.1.     A verdadeira positividade não se confunde com o cientificismo – aliás, não se confunde nem com a mera ciência

9.1.2.     O que distingue a verdadeira positividade da ciência e do cientificismo são suas vistas gerais, o reconhecimento de que a inteligência é um atributo humano (embora, claro, não exclusivamente nosso) que está e deve estar a serviço do ser humano – portanto, também a utilidade do conhecimento deve limitar e orientar a aplicação da inteligência

9.2.   Essa distinção tem importância evidente para nós, positivistas, mas, como tudo o mais na Religião da Humanidade, tem importância para todos os seres humanos: tratam-se de concepções importantes para a Humanidade em geral e para cada sociedade e indivíduo em particular

9.2.1.     A correção e a justiça das concepções de Augusto Comte – incluindo a retificação formal da lei dos três estados, no sentido de recusar à mera ciência o caráter de positividade – é atestada pelas mais diferentes manifestações filosóficas e políticas feitas desde antes de Augusto Comte, passando por críticos e comentadores de sua época e chegando aos nossos dias

9.2.1.1.           Não apenas comentadores do Positivismo, mas filósofos que refletem em geral afirmam e exigem a ultrapassagem do cientificismo em favor de concepções mais amplas

9.2.1.2.           O Positivismo afirma tais concepções mais amplas com todas as letras mais ou menos desde sempre:

9.2.1.2.1.                A exigência das visões de conjunto, da síntese filosófica, subjetiva e relativa sempre esteve presente

9.2.1.2.2.                A Religião da Humanidade formaliza essa ultrapassagem

9.2.1.2.3.                Por fim, a incorporação formal (mas também substantiva) dessa ultrapassagem na lei dos três estados ocorreu em 1857




[1] Referência à condensação do Sistema de filosofia positiva feito por Harriet Martineau em 1855, em dois volumes, sob o título “A política positiva de Augusto Comte” (The Positive Philosophy of Auguste Comte). O v. 1 pode ser consultado aqui: https://archive.org/details/positivephilosop0000comt/page/n3/mode/2up.

[2] Referência ao documento Premier memóire sur la cosmogonie positive (“Primeira memória sobre a cosmogonia positiva”), conhecido popularmente como Memóire sur la cosmogonie de Laplace (“Memória sobre a cosmogonia de Laplace”), publicado em 1835 por Augusto Comte.

[3] A tradução é minha, a partir da correspondência de Augusto Comte organizada e publicada por Paulo Carneiro e Angèle Kremer-Marietti em 1990.

[4] Augusto Comte usa no original “imaginarité”, no sentido de “imaginação”; essa palavra foi empregada no original para ecoar, ou rimar, tanto “généralité” (generalidade) quanto “rationalité” (racionalidade). Usamos o neologismo “imaginariedade” a partir da palavra “imaginário”, a fim de seguir a rima de Augusto Comte.

[5] A tradução é de Teixeira Mendes, presente em As últimas concepções de Augusto Comte (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898, p. 286).

06 junho 2024

Do antropocentrismo teológico ao antropocentrismo positivo

No dia 16 de São Paulo de 170 (4.6.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência (dedicada ao regime público).

No sermão abordamos os conceitos de antropocentrismo, indicando em particular a passagem das concepções antropocêntricas teológicas para a positiva.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/pYrMT) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/ONHAK).

O sermão iniciou-se em 1h 00 min 42 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

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Do antropocentrismo teológico ao antropocentrismo positivo 

-        A prédica de hoje abordará um tema por assim dizer “transversal”, que é a concepção que temos do ser humano no mundo

o   A reflexão sobre isso em si mesma é relativamente simples, mas, em todo caso, ela é plena de conseqüências e, mais importante, ela costuma ser mais implícita que explícita

§  Assim, vale a pena refletirmos explicitamente sobre isso e examinarmos algumas dessas conseqüências

o   Mesmo para quem não conhece muito o Positivismo parece bastante claro que Augusto Comte propôs um novo, ou um renovado, antropocentrismo; assim, esse tema é realmente importante

o   Além disso, a noção – ou melhor, uma determinada noção – de antropocentrismo foi recentemente retomada e criticada

§  Como veremos, essa retomada foi feita pela igreja católica, pelo Papa Francisco, em 2015

-        Comecemos pelo início: antes de mais nada, o que é o antropocentrismo?

o   De uma forma bem simples e direta, o antropocentrismo consiste em considerar que o ser humano é o centro ou está no centro de alguma concepção

o   Mas é necessário definir os parâmetros de tal centralidade:

§  O ser humano é o centro efetivamente do quê: das reflexões, do Universo...?

§  Também é necessário determinar se essa centralidade é entendida em termos objetivos ou subjetivos

§  Por fim, é necessário determinar em quais âmbitos tal centralidade atua principal ou primeiramente: moral, intelectual, prático

-        Utilizando esses parâmetros e aplicando-os à história da humanidade, vemos que de modo geral o antropocentrismo sempre esteve em vigorpelo menos em termos morais e subjetivos

o   No fetichismo, o ser humano não é entendido objetivamente como o centro do universo, além de não se adotar um antropocentrismo prático; mas como no fetichismo o ser humano atribui a todos os corpos – animados ou inanimados – as mesmas qualidades morais e intelectuais próprias ao ser humano, o que há é um antropocentrismo “epistemológico”, em que a natureza humana é disseminada e, daí, o ser humano não é exatamente o centro da existência

§  Uma conseqüência dessa “generalização do ser humano” e do entendimento de que tudo é dotado da afetividade e da inteligência humanas é que os seres humanos tendem a respeitar as coisas e o meio ambiente

§  Augusto Comte observava que o fetichismo é espontâneo e até ingênuo; assim, esse antropocentrismo epistemológico é altamente implícito

o   Com a passagem do fetichismo para a teologia propriamente dita, o tipo humano é claramente eleito como o parâmetro de avaliação e de entendimento do mundo; ao mesmo tempo, como o movimento do mundo passa a ser causado pela vontade dos deuses, os corpos naturais passam a ser entendidos como desprovidos de movimento e, para o que nos interessa, também deixam de compartilhar conosco nossa afetividade e nossa inteligência

§  No politeísmo o ser humano é o centro da existência, seja porque, no âmbito da narrativa teológica, considera que o ser humano foi feito pelos deuses à sua semelhança, seja porque, em termos sociológicos, os deuses refletem – em graus pronunciados e sem controle – os traços da natureza humana e nossas atividades

·         No politeísmo o mundo é entendido como estando em interação com o ser humano; nós somos centrais, mas disso não se segue que devamos acabar com os recursos naturais – aliás, não há nem mesmo as condições técnicas e sociais para isso

o   Evidentemente, em diversos momentos ocorreram esgotamentos locais de recursos naturais, como nos casos de esgotamentos de minas, devastações de florestas ou esgotamento de solos

o   Tais esgotamentos locais deveram-se à finitude dos recursos (minas), à imprevidência (florestas) ou à ignorância das leis naturais (solos)

·         Vale lembrar que, claro, há vários politeísmos: os mesopotâmicos, o egípcio, o hindu, o grego, o romano e muitos outros

o   Nossa reflexão concentra-se na Grécia e em Roma

·         A centralidade moral e prática do ser humano no antropocentrismo politeísta apresenta-se com clareza na fórmula de Terêncio: “Homo sum; humani nil a me alienum puto” (“Sou humano, nada do que é humano me é estranho”)

·         Do ponto de vista intelectual, o politeísmo pode permitir um afastamento do antropocentrismo, no sentido da objetividade: as pesquisas científicas gregas ilustram bem isso, como comprovam os cálculos de Eratóstenes sobre a medida da circunferência da Terra (e, antes, também sobre o caráter esférico da Terra)

·         Disso resulta que no politeísmo o antropocentrismo basicamente é implícito, mas às vezes pode tornar-se explícito e até ser posto de lado

·         Vale notar que esse “pôr de lado” o antropocentrismo corresponde ao desenvolvimento do método objetivo

§  No monoteísmo o antropocentrismo curiosamente assume um grau máximo

·         Antes de mais nada: consideramos que, basicamente, há três monoteísmos (judaico, católico, islâmico)

o   Nossas reflexões concentrar-se-ão no catolicismo

·         Esse antropocentrismo, todavia, é tanto subjetivo quanto, principalmente, objetivo: atribui-se ao ser humano a centralidade do Universo, no sentido de que o Universo foi criado por uma divindade objetiva para usufruto humano

·         Assim, no monoteísmo, o antropocentrismo é fortemente implícito e atua nos âmbitos moral, intelectual e prático; além disso, ele é entendido como objetivo

·         Como, a partir da Bíblia, considera-se que a Terra foi feita para o ser humano, a conseqüência é que os recursos naturais podem ser utilizados à vontade, sem limitações

o   A noção de “esgotamento dos recursos” (além de não ocorrer com facilidade na prática) não se apresenta por definição, na medida em que a divindade provê ao ser humano tudo de que ele precisa

o   Além disso, também se considera que, no caso do esgotamento dos recursos e/ou dos desastres naturais, essas adversidades correspondem à vontade divina, seja porque a divindade “escreve reto por linhas tortas”, seja porque se trata de punições por algum pecado

·         Esse antropocentrismo objetivo também separa radicalmente o ser humano do resto dos animais (somente o ser humano teria “alma”) e considera que, literalmente, o ser humano é o centro do Universo (concepção geocêntrica)

o   Saindo da teologia e considerando o desenvolvimento do espírito positivo, este implica diversas mudanças, cujo resultado geral vai na direção do relativismo, do pacifismo e da noção de Humanidade

§  Esse desenvolvimento, como sabemos, com freqüência deu-se por meio da crítica destrutiva das concepções e da sensibilidade teológica – e, portanto, com o rompimento e a crítica dos antropocentrismos próprios à teologia

§  As centralidades moral e prática do ser humano permanecem constantes

§  Já a centralidade intelectual do ser humano sofre sucessivos abalos, na medida em que a postulação de que o Universo e a Terra foram criados exclusivamente para o ser humano é criticada

·         Como notava Augusto Comte, a hipótese heliocêntrica de Copérnico desferiu no século XVI o mais duro e mortal golpe contra esse antropocentrismo teológico

o   Quase como um jogo de dominó, a partir do heliocentrismo (por mais que ele teórica e empiricamente seja errado) todas as concepções teológicas ruíram

o   Não por acaso Galileu foi perseguido pela Igreja Católica: os inquisidores, especialmente os jesuítas, perceberam com clareza que a hipótese heliocêntrica, esposada por Galileu (aliás, propositalmente de maneira ruidosa) não era apenas uma hipótese científica, mas que tinha amplas e devastadoras conseqüências intelectuais e morais para a teologia e, por extensão, para a própria Igreja

·         A outra série de críticas ao dogma teológico foi desferida no âmbito biológico, referente à natureza humana

·         A noção de que apenas o ser humano tem “alma” foi duplamente destruída pelas pesquisas biológicas e “neurocientíficas” de Bichat e Gall-Spurzheim, na passagem do século XVIII para o XIX, quando eles desenvolveram uma teoria unificada da vida, indicaram que a “alma” é o conjunto das funções cerebrais e que os animais possuem essas funções tanto quanto o ser humano (apenas com importantes diferenças de grau)

o   Vale notar que, embora em si mesma a teoria de Darwin tenha contribuído bem pouco para esse desenvolvimento científico, a fortíssima resistência que ele enfrentou na Inglaterra vitoriana indica o quanto ainda a teologia era forte naquele país e o evidente estrago que o antropocentrismo teológico sofreria com essas concepções

·         A rejeição do antropocentrismo teológico implícito passou a dar lugar a um antropocentrismo positivante explícito, como as artes do chamado Renascimento indicam: pensemos na cena da Capela Sixtina pintada por Miquelângelo e no desenho do “Homem Vitruviano”, de Leonardo da Vinci

o   Considerando diretamente a ciência: em si mesma, ela tende a rejeitar o antropocentrismo, em nome de uma objetividade naturalizante

§  A rejeição cientificista do antropocentrismo segue o impulso do desenvolvimento das ciências inferiores (ou seja, das chamadas “ciências naturais”) e do método objetivo, em que de fato é necessário que se examinem as coisas como elas são e não como gostaríamos que elas fossem

§  Esse objetivismo baseia-se, sem dúvida, em necessidades intelectuais imperiosas, mas ao mesmo tempo estimula tendências muito daninhas

·         Por um lado, esse objetivismo que rejeita o antropocentrismo é a idéia da “ciência neutra”, ou da “ciência sem valores”

·         Por outro lado, ao necessário afastamento do antropocentrismo teológico uniu-se um espírito crítico, destruidor, anti-histórico e antifilosófico, que postula que qualquer antropocentrismo seria necessariamente do tipo teológico

·         Além disso, exagerando não a duração da destruição, mas, sim, a necessidade de objetividade, há muitos que consideram que a ciência tem que ser neutra, não pode ter valores etc.

o   Esse erro verifica-se mesmo nas ciências superiores, ou seja, na Sociologia (Durkheim, Weber) e na “Psicologia” (B. Skinner)

·         Uma outra forma de verificar-se a recusa do antropocentrismo nas ciências é o impulso “antissocial”, no sentido de que se busca uma ciência despreocupada de sua utilidade

o   Esse caráter “antissocial” da ciência verifica-se nas postulações de uma ciência “pura”; solidifica-se na famosa “torre de marfim”; é comprovada pelas reiteradas cobranças de que os projetos de pesquisa têm que indicar a... sua utilidade social

o   O resultado disso tudo é que, contemporaneamente, conforme o caráter anárquico da nossa época (ou seja, sem um parâmetro geral dominante), convivem parâmetros opostos, contraditórios e incoerentes de antropocentrismo, às vezes afirmando o seu viés teológico, às vezes recusando qualquer antropocentrismo em nome da objetividade etc. etc.

-        Após essa breve retrospectiva histórico-filosófica, passemos diretamente para o Positivismo: o Positivismo claramente restabelece o antropocentrismo em termos morais, intelectuais e práticos

o   Esse renovado, ou novo, antropocentrismo positivista é explícito mas é subjetivo

§  Na verdade, é um antropocentrismo inicialmente explícito que, sendo adotado como parâmetro, logo e propositalmente se converte em implícito

§  A subjetividade do antropocentrismo positivista é dupla: por um lado, assumimos que o ser humano é o centro da realidade em termos intelectuais e morais; por outro lado, reconhecemos que, sendo nós humanos, temos necessariamente que ser o centro de nossas atenções

o   A subjetividade do antropocentrismo positivista significa também que ele não é objetivo (como é o antropocentrismo teológico); em outras palavras, reconhecemos que não somos donos do planeta, nem que o mundo (e o meio ambiente) existem apenas para nós

o   Portanto, o antropocentrismo positivista é relativo: nós reconhecemos e afirmamos nossas limitações e a necessidade de vincular o ser humano a inúmeros outros aspectos da realidade

§  Nós reconhecemos e valorizamos a frase de Francis Bacon: nós modificamos a natureza submetendo-nos a ela

o   Desenvolvendo e aprofundando o subjetivismo e o relativismo do antropocentrismo positivista, Augusto Comte afirmou que seria necessário que o positivismo final incluísse conscientemente o fetichismo inicial

§  Com a incorporação do fetichismo no Positivismo, ao mesmo tempo desenvolvemos mais e melhor nossos sentimentos, regulamos nossos pensamentos e aperfeiçoamos nossas atividades

§  A incorporação do fetichismo permitiu a elaboração da Trindade Positiva, que é composta pelo Grão Meio (o Espaço), o Grão Fetiche (a Terra) e o Grão Ser (a Humanidade)

§  Cumpre lembrar que a noção de Humanidade implica, necessariamente, também a participação dos animais úteis (em particular os domésticos)

·         Assim, o antropocentrismo positivo, além de ser subjetivo e relativo, é não exclusivista, na medida em que reconhecemos e valorizamos inúmeros outros âmbitos da realidade além do próprio ser humano

o   O antropocentrismo positivista fica evidente na expressão “Religião da Humanidade” e, como vimos acima, no conjunto das nossas concepções

o   Além disso, o antropocentrismo positivista condensa-se no “método subjetivo”, que consiste precisamente na aplicação de parâmetros humanos (relativos, subjetivos, altruístas) ao conjunto de nossa existência (moral, intelectual, prática – ou seja: sentimentos, filosofia, ciência, arte, política, economia, relações familiares, relações profissionais, relações gerais)

-        Podemos passar agora para uma outra ordem de considerações, relativa a uma passagem concreta mas altamente implícita, do antropocentrismo teológico para o antropocentrismo positivo

o   Isso se deu em uma encíclica do atual papa, Francisco, intitulada Laudato Si’, de 2015

o   Francisco afirma que é necessário abandonarmos os vícios do “antropocentrismo” e da “tecnocracia” e adotarmos uma “ecologia integral”

§  No pólo positivo, a “ecologia integral” significa o respeito ao meio ambiente, à flora, à fauna e também aos povos indígenas

§  No pólo negativo, o “antropocentrismo” e a “tecnocracia” correspondem à idéia de que o ser humano é dono do universo e que pode, com o uso da tecnologia, destruir o meio ambiente e esgotar os recursos naturais; a tecnocracia também significa o capitalismo e os cálculos que desprezam a realidade e consideram que tudo (seres humanos, meio ambiente) são apenas insumos para serem manipulados com vistas ao lucro

o   Essa proposta de Francisco é absolutamente inovadora; por assim dizer, é o primeiro manifesto ecológico da Igreja Católica

§  Não por acaso o jesuíta Jorge Mario Bergoglio escolheu Francisco de Assis como seu patrono

§  Isso é de uma importância suprema, em particular quando se nota que, com esse tipo de pregação, Francisco afirma o papado em sua função de poder espiritual, isto é, de educador e conselheiro

·         Seguindo a orientação católica, Francisco definiu os crimes ambientais como pecados

o   Ao mesmo tempo, além do ineditismo da proposta, vale notar que Francisco exorta a Igreja, na prática, a repudiar a concepção de mundo que orientou a existência da própria igreja em seus 1.700 anos

§  Essa concepção, vigente entre os católicos até há dez anos, é a que prevalece entre inúmeros grupos protestantes e que, assim, ajuda a apoiar o negacionismo climático, as devastações de florestas etc., no Brasil, nos Estados Unidos e em outros lugares

o   Entretanto, devemos notar que, se os traços gerais da proposta de Francisco são totalmente admiráveis e respeitáveis, os termos específicos que ele escolheu são bastante ruins:

§  A “ecologia integral” é uma expressão que impressiona e que evidencia e propõe com clareza o respeito a fauna, flora e povos indígenas, mas, no final das contas, é uma concepção meramente científica, ou melhor, cientificista, sem caráter moral e que propositalmente deixa de lado o papel do ser humano – incluindo aí a solução dos problemas ambientais que põem em xeque a sobrevivência do ser humano

·         Se tiver algum sentido que ultrapasse o cientificismo, a “ecologia integral” acaba assumindo um aspecto necessariamente abstrato e vago, ou seja, místico

o   A igreja católica, seguindo o caráter do seu dogma, considera que o misticismo é algo bom – o que, evidentemente, prejudica bastante suas concepções e sugere, mais uma vez, a necessidade de ultrapassar e deixar de lado a teologia, seu absolutismo e sua vagueza

§  Por outro lado, as palavras “antropocentrismo” e “tecnocracia” têm múltiplos sentidos:

·         De fato, há a crítica ao antropocentrismo teológico e à exploração capitalista do mundo

·         Mas a referência ao antropocentrismo refere-se diretamente ao ser humano, ou seja, é uma crítica ao humanismo

o   Não há como diminuir o erro, a má vontade, a má fé dessa crítica intencional e inequívoca

·         Além de criticar o humanismo e o ser humano, a igreja católica critica o antropocentrismo em geral e com isso finge que a concepção que critica não é o antropocentrismo teológico, defendido pela própria igreja e pelo monoteísmo cristão

o   Insistamos: a encíclica omite, proposital e conscientemente, o fato de que é o antropocentrismo teológico que deve ser duramente criticado, rejeitado e superado (e, como vimos antes, superado em favor de um renovado antropocentrismo, de caráter positivo)

o   Além disso, a despeito da crítica venenosa feita ao “antropocentrismo”, a encíclica propositalmente não reconhece que a concepção que ela defende, na verdade, é a concepção humanista, subjetiva, relativa e altruísta, ou seja, é a concepção positivista

·         Da mesma forma, a referência crítica e genérica ao antropocentrismo e à “tecnocracia” implica também uma crítica à secularização, ou melhor, à positivação do mundo, realizada em parte importante pelos conhecimentos técnico-científicos

·         Assim, ao usar as expressões “antropocentrismo” e “tecnocracia”, o que Francisco deseja fazer, no fundo, é criticar a decadência irrevogável da teologia, a afirmação da Humanidade e o papel da ciência nesse processo – e, pior, vincula-os à exploração da natureza e do ser humano

-        Em suma:

o   O antropocentrismo considera que o ser humano é o centro das concepções

o   Ao longo da história, o ser humano sempre foi o centro moral e intelectual de suas concepções, em termos subjetivos e de maneira pelo menos implícita

o   Há concepções objetivistas do antropocentrismo:

§  Em um gênero delas, considera-se o ser humano como o centro do Universo, dando uma suposta permissão para a destruição do meio ambiente: esse é o caso do antropocentrismo teológico

§  Um outro gênero de objetivismo é afirmado pela ciência: embora ela tenha-se constituído seguindo o desenvolvimento do método objetivo, a afirmação exagerada e “acrítica” da objetividade conduz a propostas de uma ciência “neutra” e “sem valores”, além da ciência despreocupada de fins sociais – tudo isso em nome da rejeição do antropocentrismo, em que se subentende ao mesmo tempo que o antropocentrismo é subjetivista (portanto, seria arbitrário e incoerente) e que todo antropocentrismo seria teológico

o   É imperativo afirmar um renovado, ou um novo, antropocentrismo, necessariamente subjetivo, altruísta, relativo – ou seja, trata-se precisamente da proposta positivista, corporificada na Religião da Humanidade e no método subjetivo

o   A igreja católica recentemente rejeitou uma das conseqüências nefastas do seu antropocentrismo teológico, ao afirmar que o meio ambiente não existe para ser explorado, esgotado e desprezado pelo ser humano

§  Entretanto, embora tenha criticado algumas das conseqüências nefastas do seu antropocentrismo teológico, na encíclica Laudato Si’ a igreja católica omite o fato de que essas conseqüências derivam precisamente de suas concepções fundamentais

§  Ao mesmo tempo, a igreja católica atribui ao antropocentrismo em geral, ou seja, em seu esquema mental, ela atribui às concepções humanistas e positivas a origem dos problemas que critica

§  Em outras palavras: os problemas criticados pela igreja católica são corretamente criticados; mas a origem desses problemas a igreja finge que não é culpa dela mesma e da teologia, atribuindo essa responsabilidade a quem busca de fato evitá-los e resolvê-los