23 janeiro 2013

Sobre o uso da língua portuguesa e a "cultura jovem"

É motivo do mais profundo lamento o fato de que entre os rituais de sociabilização contemporâneos, pelo menos no Brasil, inclua-se a demonstração de uma ignorância e de uma insegurança, reais ou fingidas, com respeito à língua portuguesa. É ainda mais lamentável o fato de que tais ignorância e insegurança, reais ou fingidas, persistem com o passar do tempo e que o que podia ser inicialmente fingido e o que podia ser apenas um ritual de sociabilização torna-se parte da cultura "jovem". 

E - sem querer ser misoneísta - também é fato que a internet estimula o pior dessa ignorância. Assim, é quase impossível ouvir conversas de jovens - não somente de adolescentes, mas também de adultos jovens, isto é, daqueles até a casa dos 25 anos - sem que erros crassos de português apresentem-se, além dos temíveis "tipo", "tipo assim", "saca", "mano", "véio", "véi" e por aí vai. 

Ser "maneiro" exige que não se conheça a língua e/ou que não se a use corretamente: muito, muito lamentável.

Biologia, Sociologia e necessidade de uma ciência específica para o ser humano


Ao avaliar a Biologia, Augusto Comte afirma com enorme clareza dois fatos: por um lado, que o estudo do ser humano baseia-se no estudo das relações vitais; por outro lado, que, em virtude das características específicas da humanidade, é necessária uma ciência radicalmente diferente da Biologia a fim de estudar-se o ser humano.
Entretanto, quais são os motivos que exigem uma ciência "radicalmente diferente" exclusiva para o ser humano? São várias razões, de diferentes ordens. Inicialmente, o fato de que o ser humano é um ser caracterizado pela continuidade, o que, no vocabulário cifrado de Comte, quer dizer que o ser humano é um ser histórico. Em segundo lugar, a coordenação dos conhecimentos humanos exige uma perspectiva subjetiva (ou seja, do método subjetivo), que só pode ser fornecida pela ciência que conheça o próprio ser humano, ou seja, a Sociologia (e, nos volumes seguintes do Sistema de política positiva, também a Moral). Em terceiro lugar, a própria Biologia necessita da perspectiva humana para estruturar-se, seja por ter uma referência teórica (o ser humano), seja para justificar seus estudos específicos.
Deixando de lado a avaliação comtiana da Biologia, o trecho abaixo evidencia o quanto são radicalmente erradas as afirmações – comuns, é verdade – de que o Positivismo e Comte teriam reduzido a Sociologia à Biologia, ou seja, que eles esposariam uma perspectiva biologizante do ser humano. Nada mais errado que isso.

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“Ainsi, la suprême vitalité, particulière au Grand-Être, se lie encore mieux à la vitalité intermédiaire des animaux que celle-ci à la vitalité fondamentale des végétaux. Cette progression nécessaire complète le dualisme élémentaire da la philosophie naturelle entre le monde et la vie, en le rattachant étroitement à la seule source possible d'une synthèse réelle. Mais, malgré l'intime connexité de notre existence sociale avec la simple existence animale, son étude directe exige une science radicalement distincte. Ayant pour base objective l'ensemble hiérarchique des autres théories abstraites, elle constitue, au point de vue subjectif, l'unique régulateur commun de leurs méthodes et de leurs doctrines. Le concours général, dans l'espace et dans le temps, des organes qui composent l'être immense et éternel, demande une appréciation spéciale, à la fois statique et dynamique, à laquelle la biologie ne peut davantage suppléer que la cosmologie, quoique toutes deux lui fournissent un préambule nécessaire. C'est, au contraire, à la sociologie que la biologie doit demander la véritable théorie des plus hautes fonctions de l'animalité. Il faut, en effet, que chaque classe de phénomènes s'étudie surtout dans les êtres où elle se développe le mieux, et d'où l'on passe ensuite aux cas moins prononcés. Or, ces attributs supérieurs, soit intellectuels, soit moraux, quoique plus complets chez notre espèce, ne s'y caractérisent assez que par l'existence sociale. Sans la solidarité, et surtout la continuité, qui la rendent si supérieure à toute autre, ses principales aptitudes y seraient presque aussi équivoques que dans les races voisines, où l'on tenta de les rapporter au pur automatisme. Ainsi, les mêmes motifs, logiques et scientifiques, qui réservent à la végétalité l'étude fondamentale de la vie de nutrition, représentent notre socialité comme pouvant seule manifester les plus nobles lois de la vie de relation. Cette nécessité philosophique explique l'extrême imperfection de la théorie générale des fonctions intellectuelles et morales, même depuis que Gall et Cabanis ont tenté d'en exclure toute métaphysique en la rattachant à l'ensemble de la biologie. Leurs lois réelles ne peuvent être découvertes et établies que par la sociologie, quoique sa propre fondation ait d'abord exigé l'usage provisoire des meilleures ébauches antérieures. Quelque utile que doive devenir, à cet égard, l'étude positive des animaux, elle ne comportera jamais qu'un office secondaire, à titre de contrôle naturel des conceptions sociologiques dont elle ne saurait dispenser. Son efficacité ultérieure restera donc essentiellement analogue à la précieuse réaction critique qu'elle exerça récemment contre les hypothèses théologico-métaphysiques. En un mot, la biologie ne peut cultiver dignement ce grand sujet qu'en s'y subordonnant à la sociologie, qui seule y est vraiment compétent” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 621-622).

Objetividade e subjetividade, análise e síntese, absolutismo e relativismo


A despeito de ser extremamente denso e exigir a compreensão preliminar de toda a filosofia da história, da ciência e da religião de Comte, o trecho abaixo é notável e esclarecedor, com sua avaliação das relações entre as sínteses absoluta e relativa – a primeira característica da teologia e da metafísica, a segunda, do Positivismo –, assim como das relações entre a subjetividade relativa (de caráter sintético) e a objetividade científica (de caráter analítico).
Augusto Comte indica que a teologia e a metafísica, ambas absolutas e buscando as causas, tiveram sua importância histórica, mas suas sínteses eram subjetivas, embora afirmassem-se objetivas. A passagem para a síntese relativa implica o abandono da pesquisa das causas e a busca das leis naturais; ao mesmo tempo, deve-se abandonar qualquer esperança de síntese objetiva, assumindo-se que a síntese é necessariamente subjetiva.
Com isso, a relação entre subjetividade e objetividade – e, daí, entre síntese e análise – muda. O desenvolvimento da objetividade científica foi necessário para mostrar o quanto a busca do absoluto é infrutífera; mas essa própria objetividade – que é sempre analítica – deve ser sempre subordinada à subjetividade relativa, de caráter sintético: essa subordinação consiste no fornecimento dos materiais intelectuais a serem coordenados pela síntese relativa.

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“Mieux on médite sur la marche primitive de notre intelligence, plus on reconnaît qu'elle n'exigeait d'autre rectification radicale que de substituer l'étude des lois à la recherche des causes. Son vice fondamental, d'ailleurs inévitable et même indispensable, ne consistait point dans son caractère subjectif, mais dans sa nature absolue. La longue coexistence de ces deux attributs n'a point empêché la subjectivité de manifester ses hautes propriétés, intellectuelles et surtout morales. Toute synthèse doit être subjective, puisque l'objectivité reste toujours analytique. Mais la prépondérance de la subjectivité est encore plus indispensable à la subordination fondamentale de l'esprit envers le cœur. Cette double nécessité, qui jusqu'ici prévalut sans être aperçue, a été confusément sentie par les principaux métaphysiciens modernes, depuis l'avortement décisif des nombreuses tentatives de systématisation objective. Ainsi poussés vers l'unité subjective, ils ne l'ont manquée que pour l'avoir restreinte à l'homme individuel, au lieu de la fonder sur l'humanité.
La subjectivité initiale n'avait donc besoin que de devenir relative; mais cette transformation radicale a exigé tout le préambule objective accompli graduellement depuis Thalès jusqu'à Bichat. Car il fallait pour cela faire universellement prévaloir l'étude des lois naturelles, qui ne pouvait commencer qu'envers les moindres phénomènes, d'où elle s'est ensuite étendue lentement aux plus éminents. L'achèvement de cette immense préparation conduit maintenant à fonder la vraie subjectivité, en substituant la sociologie à la théologie. Ainsi rendue relative, la prépondérance du véritable point de vue humain devient beaucoup plus directe, et même plus complète que lorsqu'elle présidait implicitement au régime absolu. Cette transformation définitive est encore plus salutaire au cœur qu'à l'esprit, d'après l'harmonie durable qu'elle institue entre eux. L'objectivité, qui ne put rien systématiser, prend enfin son office caractéristique, de fournir partout les matériaux des constructions réservées à la subjectivité” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 581-582).

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Tradução para o português:

"Mais se medita sobre a marcha primitiva de nossa inteligência, mais se reconhece que ela não exigiria outra retificação radical senão a de substituir pelo estudo das leis a pesquisa das causas. Seu vício fundamental, aliás inevitável e mesmo indispensável, não consistiu de maneira nenhuma em seu caráter subjetivo, mas em sua natureza absoluta. A longa coexistência desses dois atributos não impediu de modo nenhum a subjetividade de manifestar suas altas propriedades, intelectuais e sobretudo morais. Toda síntese deve ser subjetiva, pois a objetividade permanece sempre analítica. Mas a preponderância da subjetividade é ainda mais indispensável à subordinação fundamental do espírito ao coração. Essa dupla necessidade, que até aqui prevaleceu sem ser percebida, foi confusamente sentida pelos principais metafísicos modernos, depois do abortamento decisivo de numerosas tentativas de sistematização objetiva. Assim impelidos em direção à unidade subjetiva, eles não falharam senão em restringi-la ao homem individual, em vez de fundá-la sobre a Humanidade.

A subjetividade inicial, então, não tinha necessidade senão de tornar-se relativa; mas essa transformação radical exigiu todo o preâmbulo objetivo realizado gradualmente após Tales [de Mileto] até [Xavier] Bichat. Afinal, era necessário para isso fazer prevalecer universalmente o estudo das leis naturais, que não poderia começar senão a respeito dos menores fenômenos, de que ela lentamente se estendeu em seguida aos mais eminentes. A conclusão dessa imensa preparação conduz agora a fundar a verdadeira subjetividade, ao substituir pela Sociologia a teologia. Assim tornada relativa, a preponderância do verdadeiro ponto vista humano torna-se bastante mais direto e mesmo mais completo que quando ele presidia implicitamente o regime absoluto. Essa transformação definitiva é ainda mais salutar ao coração que ao espírito, segundo a harmonia durável que ela institui entre eles. A objetividade, não pode nada sistematizar, assume afinal seu ofício característico, de fornecer por toda parte os materiais das construções reservadas à subjetividade" (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 581-582).

16 janeiro 2013

Química e progresso material permitindo o progresso moral


O trecho abaixo apresenta dois temas de importância capital, ao tratar da Química.
Em primeiro lugar, Augusto Comte nota que na Química as previsões são mais difíceis, devido à complicação das induções e à relativa pobreza conseqüente das suas deduções. Mas a limitação das previsões é compensada pela facilidade de modificar, ou seja, pelas alterações que a Química permite ao ser humano realizar na realidade.
Em segundo lugar – e de modo muito mais importante –, como conseqüência da característica anterior, ao ultrapassar a visão estática da realidade e permitir francamente alterações, a Química desenvolve o sentimento de progresso na filosofia natural. O progresso possível graças à Química, bem entendido, é o progresso material, que é o primeiro passo para o progresso que realmente importa, o moral.
Dessa forma, evidencia-se o quanto é errado imputar ao Positivismo e a Comte a idéia de que o “progresso” é sempre e somente “progresso material”. O Positivismo afirma acima de tudo o progresso moral, ou seja, o estímulo ao altruísmo, à paz universal, em contraposição ao egoísmo, à violência, à guerra e assim por diante.

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“L’esprit positif fit donc un pas vraiment capital en étendant à de tels phénomènes le dogme fondamental des lois naturelles, borné d’abord à l’existence mathématique. Ce progrès décisif fut surtout dû à la nature si modifiable des événements chimiques, mieux accesibles à notre intervention que tous les autres effets inorganiques. Sans cette coïncidence nécessaire, leur complication supérieure les eût laissés beaucoup plus longtemps sous l’empire initial des volontés surnaturelles. On commence à sentir là que, en passant à de plus éminents phénomènes, notre raison compense la difficulté de prévoir par la facilité de modifier, qui n’est guère moins efficace pour nous dégager du joug théologique ou métaphysique, et nous préparer au régime positif. Cette aptitude modificatrice se manifeste nécessairement dans les études chimiques, puisque la plupart des phénomènes y ont une source artificielle, qui souvent y fait exagérer la vraie part logique de l’expérimentation.
Toutefois, l’importance pratique d’un tel pouvoir surpasse beaucoup son efficacité théorique ; car la chimie constituera toujours, et même de plus en plus, la principale base mathématique de notre providence matérielle. J’ai déjà caractérisé sa tendance à perfectionner ainsi notre éducation normale, en joignant le sentiment du progrès à celui de l’ordre, seul développé d’abord par la philosophie naturelle. Son étude trop exclusive deviendrait bientôt dégradante, en faisant prévaloir nos plus grossiers instincts. Mais la culture encyclopédique corrigera facilement cette disposition académique, en représentant toujours ce progrès matériel comme le premier degré nécessaire du perfectionnement humain, qui consiste surtout dans le progrès moral” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 538-539).

Nível de dedução, secura afetiva e orgulho


No trecho abaixo Comte afirma que os diferentes graus de abstração (ou, de modo equivalente, os graus de indução) de cada ciência têm diferentes conseqüências morais para os respectivos cientistas. Em particular, Comte chama a atenção para o fato de que, ao ser principalmente uma atividade intelectual, a ciência estimula a secura do coração, isto é, estimula os cientistas a tornarem-se frios e/ou anti-sociais.
Mas, mais do que isso, quanto maior o grau de dedução aplicado, mais o orgulho é estimulado: afinal de contas, como na dedução o indivíduo trabalha isoladamente, cria-se a impressão de que os resultados obtidos têm origem estritamente individual, sem o concurso prévio ou concomitante de outras pessoas (e habilidades). Por outro lado, a indução exige a coleta de dados empíricos, o que lhe confere um certo caráter coletivo – o que acarreta um certo nível de sociabilização. A Química, ao aproximar-se mais da Sociologia e da Moral, além de conter um grande elemento de indução, está relativamente menos sujeita a esses vícios que a Matemática, a Astronomia e a Física.
Desse modo, o trecho abaixo mais uma vez evidencia o quanto é errado afirmar que o Positivismo (e Comte) é “intelectualista”, “academicista”, “objetivista” – ou, em variações próprias às Ciências Humanas e Sociais, “anti-reflexivo”, “anti-subjetivista”, “anti-compreensivo” e outras tolices semelhantes.

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“Outre la sécheresse inhérente à toute occupation où le cœur a trop peu de part, les travaux scientifiques tendent spécialement à développer l’orgueil, en disposant à une appréciation exagérée du mérite individuel. Ce double danger naturel ne peut être assez contenu que par une vraie discipline religieuse, qui fasse toujours prévaloir dignement l’esprit d’ensemble et le sentiment social. Il s’étend et s’aggrave de plus en plus dans l’anarchie atuelle. Mais, en déployant ces ravages moraux, le régime académique manifeste aussi leur inégale influence sur les diverses classes de savants, qui s’en trouvent d’autant moins affectés que leurs études se rapprochent davantage du but nécessaire de l’évolution positive. Or cette incontestable différence, déjà sensible entre les divers sciences cosmologiques, tient à la fois aux méthodes et aux doctrines. D’abord, les études supérieures font mieux sentir que les inférieures la destination finalement sociale de toutes nos saines spéculations, et même le seul point de vue vraiment universel que comportent nos conceptions positives. Mais, par une réaction plus cachée, leur propre caractère logique restreint davantage ces dangers moraux, en faisant prévaloir graduellement l’induction sur la déduction. En effet, c’est surtout celle-ci que excite l’orgueil scientifique, par des conceptions que chaque esprit croit tirées de lui-même, sans apprécier le concours extérieur. Au contraire, l’induction rappelle toujours une source objective, et même une certaine coopération sociale. C’est principalement dans les études déductives que règne aujourd’hui l’usage, non moins irrationnel qu’immoral, d’enseigner chaque science sans aucune indication historique, comme si celui que l’expose l’avait entièrement créée. Tous ces vices de la culture académique seront essentiellement rectifiés par le régime encyclopédique. Mais l’état le plus normal permettra néanmoins de sentir toujours que les dangers moraux du travail scientifique tiennent davantage à la déduction qu’à l’induction. Quoique cette différence naturelle se manifeste déjà quand on aborde la cosmologie terrestre, elle se trouve aujourd’hui trop dissimulée, en physique, par les usurpations algébriques. C’était donc envers la chimie que je devais en indiquer l’appréciation générale, rendue maintenant si sensible d’après l’irrationnelle dispersion des travaux scientifiques” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 532-534).

Induzir para deduzir - e limitações das deduções


O trecho abaixo expõe uma avaliação preliminar da Química, comparando-a à Física em termos de avanços metodológicos. O resultado parece desabonador para a Química, pois não há grandes avanços (isto é, novidades), mas, mutatis mutandis, apenas desenvolvimentos e aperfeiçoamentos do que se fez na Física.
Entretanto, a passagem da Física à Química indica o verdadeiro caráter da dedução e da indução: somente se induz para melhor deduzir. Entretanto, deve-se fazer duas observações importantes: por um lado, o excesso de deduções obscurece as origens indutivas da ciência; por outro lado, a dedução na Química já está separada da que ocorria inicialmente na Matemática, ou seja, já se percebem (ou deve-se perceber) as limitações de tais deduções.

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“L’importance réelle de cette étude, inversement à la précédente, est moins logique que scientifique. Car la méthode positive n’y fait aucun nouveau pas général, et se borne à y développer davantage les différents procédés inductifs constitués par la physique. Seulement, la complication supérieure des spéculations chimiques y fait mieux ressortir la nature et la destination de l’induction, en laissant une moindre influence à la déduction, alors dégagée irrévocablement de ses formes mathématiques initiales. Dans ce passage de la physique à la chimie, l’esprit sent avec plus d’évidence que la logique pleinement positive doit être moins déductive qu’inductive. Car on n’induit jamais que pour déduire ; tandis que la déduction prolongée fait souvent méconnaître l’induction d’où elle émane toujours” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 532).

Exagerada importância filosófica da Física


O trecho abaixo é bastante interessante, pois Augusto Comte afirma que a Física não tem a importância filosófica que se atribui – ou atribuía – a ela. Citações anteriores e subseqüentes, aliás, indicam que para Comte outras ciências são filosoficamente mais estimulantes e importantes, a exemplo da Astronomia e da Química.
Qual a origem da exagerada aptidão filosófica da Física? Para Comte, ela reside em uma coincidência temporal: a Física começou a desenvolver-se ao mesmo tempo em que se desenvolviam as perspectivas de conjunto, levando-se a considerar-se a íntima relação entre ambas.

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“Son importance dogmatique ne saurait pourtant rester exactement au niveau de son office historique. Car, elle a influé sur l’ensemble de la préparation moderne au delà de sa vraie portée encyclopédique. J’ai déjà expliqué la marche nécessaire qui plaça son essor distinct après celui de toutes les autres sciences préliminaires. Dès lors, il dut coïncider avec la première ébauche des vraies vues encyclopédiques, qui, auparavant impossibles, fautes de bases suffisantes, purent ainsi surgir à travers la culture dispersive. Cette coïncidence mal appréciée fit nécessairement attribuer à la physique plus d’aptitude philosophique que n’en comporte une telle science. L’état normal de la philosophie naturelle ne saurait conserver aucune trace de ce grand incident historique, dû seulement à une situation exceptionnelle” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 531-532).

Busca das causas e persistência do absoluto na Física


É interessante notar que a prática científica não está isenta de absoluto e, portanto, de teologia e/ou de metafísica. Para Augusto Comte, isso é péssimo, pois deturpa o espírito positivo e dificulta não apenas a compreensão da ciência como, de modo mais importante, dificulta a compreensão da realidade. Evidentemente, tal situação é perfeitamente passível de correção, por meio da adoção do relativismo e da perspectiva humana e histórica (logo, subjetiva).
Em outros trechos Comte indicou a permanência dos hábitos mentais absolutistas na Matemática; na citação abaixo ele refere-se à Física.

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“De vaines protestations habituelles, mal empruntées à Bacon, semblent y indiquer une sérieuse renonciation à la recherche des causes, pour vouer la science à la seule découverte des lois. Mais ce langage, même sincère, n’y sert, le plus souvent, qu’à dissimuler une irrationnelle tendance aux notions absolues. L’anarchie ne saurait jamais suffire ni durer, en science guère plus qu’ailleurs. Quels que soient ses désirs d’émancipation totale, l’esprit moderne reviendra, sous de nouvelles formes, au régime métaphysique, tant qu’il n’aura point accepté la nouvelle discipline philosophique qui surgit aujourd’hui de toute l’évolution positive” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 521).

Limitação da ciência como espelho do mundo


A respeito da teoria corpuscular, deve-se notar que as teorias têm um caráter lógico (da mesma forma que a noção de inércia, na Mecânica); atribuir muita realidade a tais noções é exagerar a capacidade de representação das teorias, o que as desnatura.
Esse trecho, nesse sentido, tem um certo caráter histórico, isto é, de história das idéias científicas e físicas. Isso é interessante, mas estritamente limitado. Mais útil é observar que, para Comte, as idéias e as hipóteses não refletem perfeitamente a realidade externa, nem o poder fazer. Em outras palavras, Comte reconhece com todas as letras as limitações da imagem da ciência como um espelho do mundo exterior.

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“C’est aussi à cette science qu’appartient surtout la théorie corpusculaire ou atomistique, que achève de fonder sa propre constitution logique, où elle convient autant que l’inertie en mécanique. Notre tendance à douer d’une existence objective nos constructions subjectives dénature encore l’une et l’autre conception, en y supposant une exacte représentation de la réalité extérieure. Quoique la saine philosophie dissipe cette illusion primitive, elle conserve, en les rectifiant, de précieuses institutions logiques, qui en sont, au fond, indépendantes.
L’intime structure des substances réelles nous demeure nécessarairement inconnue. Mais, en étudiant leurs propriétés, nous sommes rationnellement autorisés à introduire envers elle toutes les hypothèses qui pourront faciliter nos pensées, pourvu que ces artifices soient toujours conformes à la nature des phénomènes correspondants. [...] Mais une telle appréciation philosophique, en expliquant la légitimité relative de l’hypothèse atomistique, interdit aussi son extension absolue, et indique même les limites de son usage normal” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 520).

Física e fundação do método experimental


O trecho abaixo afirma a “moderação” do grau de complicação da Física, quando comparada com a Astronomia (antes) e com a Química (depois).
Mais do que isso: afirma-se a característica metodológica da Física, consistindo na experimentação. Tal método, Comte sublinha, não deve ser aplicado em outras ciências se não for bem entendido como é aplicado na Física – o que, inversamente, significa que as demais ciências podem aplicar a experimentação mas com graus diferentes (inferiores) de sucesso.
Do ponto de vista lógico, a experimentação é possível devido à semelhança entre os fenômenos estudados; tal semelhança ocorre quase exclusivamente no mundo inorgânico. Ora, essa afirmação implica, inversamente, que nas Ciências Humanas a experimentação não apresenta grandes resultados, não lhe sendo o método mais adequado (sem ignorar as considerações éticas envolvidas nas experimentações sociológicas e morais). Em outras palavras, Comte já prenuncia neste trecho que as Ciências Humanas têm seus próprios métodos, que não são cópias, adaptações, emulações ou o que seja dos métodos das Ciências Naturais.

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“Outre cette efficacité générale, une tendance plus spéciale, qui s’y trouve directement liée, manifeste davantage la haute participation de la physique à la fondation de la logique positive. Le même degré modéré de complication objective qui place là le berceau naturel de l’esprit inductif, y fait aussi surgir la méthode expérimentale, qui forma son principal caractère jusqu’à l’essor de la philosophie biologique. Envers les phénomènes immodifiables, ce procédé est évidemment impossible, et leur extrême simplicité l’y rend d’ailleurs superflu : son équivalent mental n’y sert jamais qu’à vérifier sans découvrir. D’un autre côté, si les phénomènes se compliquent trop, leurs modifications, naturelles ou artificielles, deviennent tellement variées que l’on peut rarement y instituer une expérimentation vraiment décisive. Car, elle exige toujours la comparaison de deux cas qui n’offrent aucune autre différence, directe ou indirecte, que celle relative à l’influence ainsi étudiée. Or, cette suffisante conformité est presque toujours impossible hors de l’existence inorganique, et déjà même elle se réalise difficilement dans le cas chimiques. L’essor normal de l’expérimentation convient donc à la physique seule, dont il constitue la principale ressource. On ne doit l’appliquer ailleurs qu’après l’avoir assez étudiée dans cette origine naturelle. Ainsi, en développant beaucoup l’observation spontanée, première base de l’esprit inductif, la physique y joint déjà un puissant artifice général, qui le perfectionne essentiellement” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 519-520).

Física e combinação harmoniosa entre indução e dedução


O trecho abaixo apresenta pelo menos três observações de grande importância teórica.
O primeiro é a afirmação de que a Física apresenta um grau por assim dizer “mediano” – adiante Comte usará a palavra “moderado” – de dificuldade, o que lhe permite o desenvolvimento da indução.
Em segundo lugar, a crítica ao materialismo matemático (no caso, algébrico) sofrido pela Física e a afirmação subjacente de que a Física é uma ciência conceitual (como todas as demais, aliás e bem entendido), em que a Matemática é um meramente instrumento para conferir precisão aos raciocínios.
Em terceiro lugar, a observação – em parte descritiva, em parte normativa – de que, quando a “educação enciclopédica” – ou seja, pautada pelas vistas de conjunto, humanas, relativas, históricas – reorganizar o conhecimento, a Física pode combinar harmoniosamente a indução e a dedução.

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“Malgré les graves altérations dues à l’anarchie scientifique, la physique tend, par sa nature, à la manifestation décisive de ces diverses notions logiques, trop dissimulées, en astronomie, sous l’extrême simplicité des phénomènes. Cette tendance est déjà sensible chez les judicieux physiciens du dix-septième siècle, surtout envers les études de la pesanteur et du son, avant que l’invasion algébrique les eût viciées. Quoiqu’une aveugle impulsion mathématique y ait ensuit trop disposé à transformer les inductions en déductions, l’essor ultérieur d’une telle science n’a jamais cessé d’offrir de précieux modèles de la vraie logique inductive. C’est ainsi que se sont accomplis réellement tous les grands progrès de la physique, d’après les travaux des esprits les moins affectés par les diverses aberrations. Quand l’éducation encyclopédique aura systématisé sa culture, cette science développera pleinement son aptitude naturelle à constituer le premier type décisif de la saine harmonie entre l’induction et la déduction, suivant une sage prépondérance de son génie propre sur celui des sciences précédentes” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 518-519).

Indução e dedução na Física


Do ponto de vista da teoria da ciência e da teoria do conhecimento, o trecho abaixo é bastante importante. Sua intenção é avaliar a relação da Física com os métodos gerais da indução e da dedução; inversamente, ele indica o quanto a indução foi desenvolvida pela Física e quais os limites que a dedução – mas também a indução – apresentam. Evidentemente, o trecho abaixo deve ser lido em cotejo com trechos anteriores (sobre as ciências prévias: Matemática e Astronomia), bem como com trechos posteriores (sobre as ciências seguintes: Química, Biologia e, nos volumes seguintes do Sistema de política positiva, Sociologia e Moral).
Os resultados a chega A. Comte com seu exame histórico e teórico da Física são os seguintes. A Física é a ciência que mais e melhor desenvolve bastante a indução, seja porque ela é a ciência que primeiro realiza experiências, seja porque as ciências posteriores são muito complicadas e dificultam as generalizações.
O espírito positivo é mais indutivo que dedutivo, ou seja, é necessário submeter os raciocínios às observações; assim, quanto mais distante da metafísica, mais indutivo é o raciocínio. Todavia, convém notar que a pura indução conduz ao “empiricismo”, que é um erro lógico e teórico.

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“Son efficacité logique correspond à cette importance scientifique. On lui doit surtout l’essor décisif du véritable esprit d’induction, ensuite développé et completé par tout le reste de la philosophie positive. Quoiqu’il naisse d’abord en astronomie, et déjà même en mathématique, ces deux sciences sont trop simples pour en caractériser assez la nature et la destination. D’un autre côté, les sciences suivantes sont tellement compliquées, qu’il n’y pourrait être nettement apprécié, si la physique ne l’avait préalablement élaboré. Elle seule offre le juste degré de difficulté qui convient à la saine manifestation de la logique inductive. Quoique la déduction y conserve beaucoup d’efficacité, déjà elle cesse là de prévaloir, parce que l’institution des vrais principes commence alors à devenir plus embarrassante que le développement des justes conséquences.
Pour mieux sentir combien la physique concourt ainsi à l’élaboration fondamentale de la méthode positive, il faut reconnaître que le véritable esprit philosophique est beaucoup plus caractérisé par l’induction que par la déduction. Celle-ci, d’après son uniformité nécessaire, s’adapte indifféremment à tout régime intellectuel. Elle était déjà très-active sous le règne de la métaphysique. Si la science où elle prévaut le plus constitue pourtant le vrai berceau de la positivité, c’est uniquement parce que l’extrême simplicité des phénomènes mathématiques permet d’y établir sans effort des principes solides. Une induction facile, et souvent inaperçue, réduit alors presque tout le travail logique au seul enchaînement des consequénces. Quoique les autres sciences fassent nécessairement un grand usage de la déduction, la complication graduelle des phénomènes y détermine une prépondérance croissante de l’induction. Celle-ci manifeste mieux le principal caractère de l’esprit positif, la subordination normale du raisonnement à l’observation. On peut même dire que, à mesure que nos théories quelconques s’éloignent davantage de l’état métaphysique, l’induction y remplace de plus en plus la déduction, qui d’abord y régnait souverainement. La raison moderne est donc caractérisée surtout par la construction de la logique inductive, à peine entrevue dans l’antiquité. D’après sa nature plus objective, cette méthode exige une longue suite d’élaborations spéciales, où l’essor de chacun de ses modes essentiels ressort de l’étude des phénomèmes correspondants. Toutefois, sa prépondérance exagérée deviendrait bientôt pernicieuse, en consacrant le pur empirisme, tendance ordinaire des règles inductives que sont abstraitement conçues. Mais le vrai régime positif écarte naturellement ce danger, par cela même qu’il ne sépare jamais la logique de la science. Car, en n’étudiant chaque partie de la méthode inductive qu’avec les doctrines qui l’ont spécialement suscitée, on sent aussitôt que son usage doit toujours être conforme aux notions fondamentales que cette science reçoit de la précédente. À mesure que le phénomènes se compliquent, ces dogmes préalables acquièrent naturellement plus de poids logique, parce que les antécédents se multiplient. Quoiqu’ils ne suffisent jamais aux solutions effectives, ils y fournissent toujours des indications générales, qui servent à diriger convenablement les inductions spéciales. Ainsi, par sa constitution encyclopédique, la vraie culture positive évite également les deux écueils opposés, le mysticisme et l’empirisme, entre lesquels flotte nécessairement toute étude où la déduction et l’induction ne sont pas sagement combinées” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 516-518).

Ordem e Progresso - e o Amor?

Texto originalmente publicado na Gazeta do Povo, de 16.1.2013. O vínculo para o texto original é este aqui.

Deve-se notar que há alguns erros de português, causados pela "revisão" da equipe do jornal. Da mesma forma, foram feitas alterações no estilo do meu texto, também feitas pela Gazeta do Povo à minha revelia.


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OPINIÃO 2

Ordem e progresso – e o amor?


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Publicado em 16/01/2013 | GUSTAVO BISCAIA DE LACERDA
Recentemente, o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) manifestou apoio à proposta do deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ) de incluir a palavra “amor” na frase “Ordem e progresso”, da bandeira nacional. Essa proposta é simpática, ao afirmar a importância do “amor”, mas apresenta vários equívocos.
As justificativas para a mudança, em poucas palavras, são as seguintes: o “amor” integra a frase do filósofo positivista francês Augusto Comte (1798-1857) “o amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”; entretanto, o autor do símbolo, Raimundo Teixeira Mendes, teria simplesmente deixado de lado o “amor”. Com isso, para Alencar as propostas de Comte teriam sido deformadas. Já Suplicy afirma que a influência do militar Benjamin Constant Botelho de Magalhães teria sido a responsável por essa ausência e que, no século 21, um “novo paradigma” se impõe, valorizando a solidariedade e combatendo-se as violências.
Mas nem Benjamin Constant nem Teixeira Mendes tiraram nenhuma palavra da frase original; ambos seguiram a sugestão de Comte. A frase completa sintetiza uma densa filosofia moral, política, histórica e religiosa; já “Ordem e progresso” é um programa político, com dois ideais mais ou menos compartilhados por todos os cidadãos.
O senso comum opõe a ordem ao progresso, mas Comte propunha a união e a superação dos dois termos, considerando que “a ordem é a base do progresso” e o “progresso é o desenvolvimento da ordem”: as condições sociais básicas de educação, moradia, respeito, inclusão etc. (“ordem”) devem ser satisfeitas para que a sociedade avance (“progresso”). Mais: o progresso deve ser entendido em vários sentidos: material, físico, intelectual – e sobretudo moral e afetivo, como o desenvolvimento do altruísmo, da fraternidade, do respeito, da paz universal.
O amor, para Comte, era pressuposto da ordem e resultado do progresso; mas, enquanto “ordem” e “progresso” opõem-se e disputam a primazia em detrimento um do outro, não há nem ordem nem progresso – que se dirá amor.
Essas ideias foram defendidas no século 19, como projeto político para o Brasil. Tinham validade em 1889 (na Proclamação da República) e têm agora, em 2013. Quais as propostas que Benjamin Constant e Teixeira Mendes defendiam? A paz universal, o respeito aos trabalhadores, a dignidade do trabalho, a laicidade do Estado, as liberdades individuais e coletivas. Tais ideias foram promovidas com grande intensidade entre 1881 e 1927 (quando Teixeira Mendes morreu); mas de 1930 em diante Getúlio Vargas rejeitou-as todas, com sua tirania civil apoiada pela Igreja Católica.
Assim, “Ordem e progresso” não é uma deturpação da proposta de Comte, nem foi desvirtuada por obra de militares. As ideias subjacentes a ela não são um “novo paradigma” a ser criado, mas um “paradigma antigo” a ser resgatado. A despeito dos desvios autoritários e/ou revolucionários que o Brasil viveu no século 20, oscilando entre “ordem” e “progresso”, parece que neste início do século 21 volta-se às propostas de Comte, honrando-se, mesmo que sem o saber e cometendo-se equívocos, as memórias de Benjamin Constant e Teixeira Mendes.
Gustavo Biscaia de Lacerda, doutor em Sociologia Política pela UFSC, é sociólogo da UFPR.

12 janeiro 2013

Ódios históricos - Sérgio Buarque e os positivistas

Li há pouco o capítulo que Sérgio Buarque de Holanda redigiu sobre o Positivismo e os positivistas ortodoxos para o v. 7 do “História geral da civilização brasileira”, dedicado ao final do Império brasileiro. (O título do capítulo é: “Da maçonaria ao positivismo”.)

Fiquei assustado com o que li. Sérgio Buarque pode gozar de uma grande reputação como historiador (e até como sociólogo), mas certamente não é devido a esse capítulo. Todas as observações feitas sobre Augusto Comte, Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes estão ou erradas ou profundamente distorcidas. Não há nada no texto que se possa identificar como “objetividade”, “neutralidade”, “isenção”; cada palavra expõe as “interpretações” do autor, todas elas com evidentes raiva e desprezo. Ou melhor, com ódio.

Exemplos tirados ao acaso do texto:

(1) os positivistas brasileiros seriam contrários ao fim imediato e sem compensação aos donos de escravos: mentira! Lemos e Teixeira Mendes afirmavam que a escravidão é um crime e que os escravos é que deveriam ser ressarcidos.

(2) Comte e os positivistas apoiariam os militares e o militarismo na política: falso! Eles eram contra a violência na política e nas relações sociais, defendendo o poder do aconselhamento, contra a truculência do Estado e dos poderosos sobre os fracos; em particular, eram contrários ao militarismo, atitude compartilhada pelo Coronel Benjamin Constant.

(3) A “ditadura republicana” era uma modalidade de autoritarismo: falso! Ela consiste no governo exclusivamente civil e não opinativo, ou seja, na rigorosa aplicação da laicidade do Estado, com a cuidadosa garantia de todas as liberdades civis, sociais e coletivas.

Sérgio Buarque cita algumas vezes o próprio Augusto Comte; mas provavelmente é pelo mesmo expediente adotado, depois, por Roberto Romano (em Brasil: igreja contra Estado – São Paulo: Kairós, 1979): cita literatura de segunda mão e a partir dela obtém as referências de Comte – sem indicar a literatura secundária de origem e, mais importante, sem ter lido o próprio Comte (veja-se o meu comentário sobre R. Romano e os positivistas aqui: http://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com.br/2012/02/carvalho-romano-catolicos-desmerecendo.html).

A leitura direta das obras dos próprios positivistas já bastaria para indicar o quanto de ódio Sérgio Buarque nutria pelos positivistas. Mas, afinal, quem lê os positivistas hoje, não é mesmo? Quem tem coragem de dizer, com simplicidade e tranqüilidade, que um dos “grandes historiadores” nacionais claramente destilou preconceitos em vez de adotar minimamente o procedimento sine ira et studio?

Livros cujas leituras demonstram cabalmente os erros sistemáticos de S. Buarque:

- Ivan Lins, História do Positivismo no Brasil (Brasília: Senado Federal, 2009, 3ª ed.);

- João Pernetta, Os dois apóstolos (Curitiba: Centro de Propaganda do Positivismo no Paraná, 1927-1929, 3 v.; facilmente encontrado em sebos);

- Gustavo Biscaia de Lacerda, O momento comtiano (tese de doutorado em Sociologia Política, UFSC, 2010; disponível aqui: http://www.tede.ufsc.br/teses/PSOP0369-T.pdf); convertido em livro de mesmo nome (Curitiba: UFPR, 2019), à venda na página da editora ou na Amazon.

Última observação: qual a origem do ódio nutrido por Sérgio Buarque pelos positivistas? De modo geral considera-se que ele não era “ideológico”, como os comunistas, os liberais e/ou os católicos. Seria inveja, ciúme? Em todo caso, o dano por ele causado e eternizado já está feito, com resultados a olhos vistos.


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Observação de 8.3.2020: as observações feitas acima, de 12.1.2013, foram extensamente desenvolvidas em alguns artigos e livros publicados nos anos seguintes:

- como parte dos argumentos desenvolvidos no livro Laicidade na I República: os positivistas ortodoxos (Curitiba: Appris, 2016), à venda na página da editora ou na Amazon;

- de maneira completa e sistemática no capítulo "O 'secreto horror à realidade' dos positivistas: discutindo uma hipótese de Sérgio Buarque", presente no livro Comtianas brasileiras: Ciências Sociais, Brasil e cidadania (Curitiba: Appris, 2018), à venda na página da editora ou na Amazon;

- em uma versão resumida das exposições acima, na revista Educere et Educare (Cascavel (Paraná), v. 12, n. especial, 2017), no artigo de título "O 'secreto horror à realidade': exame das críticas de Sérgio Buarque aos positivistas".

A leitura dos textos acima não deixa dúvidas: Sérgio Buarque era movido ao mesmo tempo por enormes má-fé e, antes, má vontade para com o Positivismo. Ele não hesitou em mentir e distorcer, em falsear e sofismar a respeito de Augusto Comte e dos positivistas, em mais de uma ocasião - e isso apesar de afirmar a necessidade da "honestidade histórica".

08 janeiro 2013

Astronomia e fenômenos que escapam à previsão estimulando a sabedoria e o amor


O longo trecho abaixo continua apresentando elementos da extensa e interessante avaliação que A. Comte fez das qualidades lógicas, sociais e morais da Astronomia.
Mas estes parágrafos apresentam uma observação fundamental: a idéia de que muitos fenômenos e acontecimentos podem ocorrer (e de fato ocorrem) além das previsões das leis científicas – o exemplo dado é o do choque de um cometa no planeta Terra. Com essa observação, fica novamente patente que, para Comte, embora só possamos regular a vida humana por meio das previsões científicas (feitas, por sua vez, por meio das leis naturais), não é possível prever todos os acontecimentos reais – e é justamente por tais motivos que a sabedoria humana (moral, intelectual, prática) deve sempre ser valorizada.
Comte nota que, em seu conjunto, a Astronomia favorece o relativismo e elimina o absoluto, embora inicialmente dê a impressão contrária. Mais do que isso: a Astronomia apresenta uma série de importantes conseqüências morais, não apenas em virtude de seus métodos e suas teorias, mas também ao relevar ao ser humano a situação cósmica da Terra. Eis algumas dessas conseqüências: a regulação do sentimento de esperança; a evidência da resistência do meio à ação humana; a necessidade de o ser humano buscar em si mesmo os meios para superar as adversidades; o descartar o excesso de previsões e considerar as possibilidades de eventos imprevisíveis (como o possível choque de cometa na Terra); o evitar o terror imobilizante frente às adversidades. Como todos os seres humanos estão igualmente submetidos a esses fenômenos e possibilidades, o cuidado com os demais e o “viver para outrem” evidencia-se como lei moral suprema.
Por fim: as observações abaixo reiteram a concepção de ciência de Comte, bem como a posição que, para ele, a inteligência ocupa na ordem humana. Nada de “cientificismo”, de “intelectualismo”, de “torre de marfim” ou distância da realidade prática; nada de concepção asséptica da ciência; bem ao contrário, preocupação com o bem comum, com o desenvolvimento das idéias para regular a conduta prática e os sentimentos.

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“Ainsi, toute l’astronomie concourt naturellement à constituer l’esprit relatif dans le domaine qui, par as simplicité et son indépendance, paraissait le moins l’admettre. Envers les phénomènes qui concernent l’homme, on n’a jamais pu méconnaître entièrement les variations intérieures qui n’y permettent pas l’absolu. Mais cet attribut semblait devoir appartenir toujours aux événements où nous ne sommes que spectateurs. Or, l’astronomie l’élimine spontanément dans l’étude même de ceux qui sont inaccessibles à toute modification humaine. Cette constitution décisive de la rélativité, au début de l’initiation systématique, doit puissamment influer sur son extension immédiate aux phénomènes plus compliqués, avant que leur propre appréciation l’y ait directement établie.
Pour mieux sentir une telle tendance astronomique, il faut aussi l’envisager sous l’aspect moral. Car la véritable science céleste étend finalement la relativité de nos idées à nos espérances, et par suite à tous nos sentiments. En manifestant les diverses conditions planétaires, elle dissipe la sécurité absolue qui nous représentait comme exemptes de perturbations quelconques. La stabilité essentielle, tant célébrée envers la terre, par les géomètres modernes, ne se rapporte qu’aux changements graduels dus aux gravitations secondaires, qui, en effet, ne peuvent y produire que des oscillations presque indifférentes. Mais, outre la résistance du milieu, qu’on y néglige toujours, il faut surtout considérer les changements brusques, qui ne comportent pas de prévision réelle, et contre lesquels nous ne possédons aucune garantie scientifique. Rien ne peut, par exemple, démontrer, quoi qu’on ait dit, que notre planète est à l’abri de tout choc cométaire. En achevant ainsi d’apprécier notre vraie condition astronomique, on constitue mieux l’énergie et la dignité du caractère humain, qui doit trouver en lui-même sa principale ressource contre l’ensemble de nos misères. Sans nous préoccuper de vaines terreurs, nous tendons alors à écarter davantage un excès de prévoyance et de présomption, qui altère beaucoup notre véritable bonheur, privé et public. Les affections bienveillantes, dont il dépend surtout, acquièrent ainsi plus de prix encore que lorsque chacun se confie trop aux garanties extérieures. Quand même la terre devrait être bientôt bouleversée par un choc céleste, vivre pour autrui, subordonner la personnalité à la sociabilité, ne cesseraient pas de constituer jusqu’au bout le bien et le devoir suprêmes. Les vrais philosophes sentiront toujours, comme les francs prolétaires, que de telles pensées tendent plutôt à consolider notre bonheur réel, chez ceux du moins qui savent en utiliser l’aptitude morale” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 506-507).

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Tradução para o português:

"Assim, toda a Astronomia concorre naturalmente para constituir o espírito relativo no domínio que, devido à sua simplicidade e sua independência, pareceria admiti-lo menos. Em relação aos fenômenos que concernem ao homem, não se pôde nunca desconhecer inteiramente as variações interiores que não não permitem o absoluto. Mas esse atributo pareceria dever pertencer sempre aos eventos em que não somos senão expectadores. Ora, a Astronomia elimina-o espontaneamente no estudo mesmo desses que são inacessíveis a toda modificação humana. Essa constituição decisiva da relatividade, no início da iniciação sistemática, devia influenciar poderosamente sobre sua extensão aos fenômenos mais complicados, antes que sua própria apreciação tenha sido diretamente estabelecida.


Para melhor sentir uma tal tendência astronômica, é necessário também a observar sob o aspecto moral. Afinal, a verdadeira ciência celeste estende finalmente a relatividade de nossas idéias às nossas esperanças e, em conseqüência, a todos os nossos sentimentos. Ao manifestar as diversas condições planetárias, ela dissipa a segurança absoluta que nos representava como isentos de perturbações quaisquer. A estabilidade essencial, tanto celebrada em relação à Terra, pelos geômetras modernos, não se refere senão às mudanças graduais devidas às gravitações secundárias, que, com efeito, não podem produzir senão oscilações quase indiferentes. Mas, além da resistência do meio, que se negligencia sempre, é necessário sobretudo considerar as mudanças bruscas, que não comportam previsão real e contra as quais não possuímos nenhuma garantia científica. Nada pode, por exemplo, demonstrar – o que quer que tenha sido dito – que nosso planeta está ao abrigo de todo choque cometário. Ao concluir assim a apreciação de nossa verdadeira condição astronômica, constitui-se melhor a energia e a dignidade do caráter humano, que deve encontrar em si mesmo seu principal recurso contra o conjunto de nossas misérias. Sem nos preocuparmos com vãos terrores, tendemos então a descartar mais um excesso de previsão e de presunção, que altera bastante nossa verdadeira felicidade, privada e pública. Os afetos da benquerença, de que ela depende sobretudo, adquirem assim mais valor ainda que quando cada um confia demais nas garantias exteriores. Quando mesmo a Terra devesse ser logo perturbada por um choque celeste, viver para outrem, subordinar a personalidade à sociabilidade, não cessariam de constituir até o fim o bem e o dever supremos. Os verdadeiros filósofos sentirão sempre, como os francos proletários, que tais pensamentos tendem antes a consolidar nossa felicidade real, entre aqueles que ao menos sabem utilizar a sua aptidão moral" (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 506-507). 

Conseqüências lógicas, sociais, políticas e morais da Astronomia


Na passagem abaixo Comte indica que a Astronomia fornece a primeira base para a disciplina moral, ao apresentar espetáculos exteriores com uma ordem regular e permanente. Entretanto, por si só a Astronomia conduz ao fatalismo, o que deve ser evitado e combatido. Ainda assim, a ordem astronômica permite que se combata o orgulho e as divagações da razão “pura”, de caráter metafísico: afinal, a ordem é imutável e ninguém pode furtar-se à sua influência, por mais imperfeita que ela seja. Comte indica que a ausência de leis, ou seja, de ordem, é um delírio metafísico; caso pudéssemos construir toda a ordem, não nos submeteríamos a ordem alguma: essa é base da vontade absoluta, cujas derivações políticas consistem nas concepções de que a realidade social é infinitamente plástica e infinitamente sujeita à manipulação humana movida pela pura “vontade” (individual ou coletiva).
Assim, o trecho abaixo evidencia que a Sociologia nomotética de Comte não afasta, de maneira alguma, uma abordagem “compreensiva”, conforme estreitamente defendido por Weber. Da mesma forma, Comte indica os fatores sociais que levaram ao desenvolvimento histórico da ciência (no caso, da Astronomia) e, inversamente, quais as conseqüências que tal desenvolvimento acarretou para a sociedade. (Convém notar que essa importância histórica e social é um dos motivos por que Comte apresenta a Astronomia como uma ciência à parte; outro motivo é a fundação da observação sistemática, com a conseqüência da fundação da indução e da elaboração de hipóteses e de teorias.)
Indo além, Comte indica da mesma forma as conseqüências morais que o desenvolvimento da Astronomia (ou, por outra, o desenvolvimento da observação celeste) têm para a moralidade humana: ela institui a noção de regularidade externa que se impõe a todos. Como indicado acima, essa noção, caso levada muito adiante, conduz ao fatalismo, isto é, à noção de que não há possibilidade alguma de modificação e/ou de intervenção humana: no caso da Astronomia isso é verdade, mas não o é para as demais ciências.

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“L’immuabilité d’un tel ordre constitue la première base systématique de la religion finale, pour régler et rallier, non-seulement nos opinions et nos actions, mais aussi nos affections elles-mêmes. Sans méconnaître sés imperfections réelles, c’est par lui que nous commencerons toujours à sentir le besoin d’une nécessité extérieure, comme condition fondamentale de toute discipline humaine. Ce premier apprentissage de la soumission offre pourtant un grave danger, tant qu’il se borne aux phénomènes immodifiables, où la résignation dégénère en fatalisme. Mais cette tendance initiale, qui troubla beaucoup l’évolution originale, devient aisément évitable dans une éducation systématique, qui subordonne toutes les études préliminaires à des vues d’ensemble sur leur nature et leur destination. Un tel inconvénient n’altérera point, même au début, la salutaire influence, autant morale que mentale, propre au sentiment continu de cette inflexibilité extérieure, sans laquelle rien ne pourrait contenir les discordances de notre orgueil et les divagations de notre raison.

On doit quelquefois regretter que cet ordre immodifiable soit si imparfait. Mais aucun homme sage ne saurait souhaiter d’en être affranchi ; puisque notre conduite manquerait aussitôt de but comme de règle. Le vœu de cette vagabonde indépendance résulta toujours du délire de l’orgueil métaphysique. Nos propres imperfections de tous genres ne nous destinent qu’à modifier, dans ses dispositions secondaires, un ordre éxterieur dont les lois essentielles sont inaccessibles à notre intervention quelconque. Là même où nous pouvons le plus, l’initiative ne nous appartient jamais, et nos efforts ne deviennent efficaces qu’en s’adaptant à cette nécessité inflexible, qu’il faut d’abord connaître pour la respecter toujours. S’il nous était donné de construire librement l’ordre total, nous deviendrions aussitôt incapables d’aucune vraie discipline, personelle ou sociale.

Mais, quelle que soit l’intime réalité d’une telle appréciation, elle est trop contraire à nos tendances primitives pour avoir jamais pu surgir assez, si tous les phénomènes, quoique réglés, eussent été vraiment modifiables. On sent aujourd’hui cette impossibilité par les grandes difficultés qu’éprouve l’admission des lois naturelles envers les événements, surtout sociaux, que leur complication nous permet de modifier beaucoup. Leur vraie notion ne peut prévaloir qu’en y appliquant convenablement la conviction préalable résultée des lois, plus simples et moins flexibles, relatives aux phénomènes plus généraux. Cette succession conduit, de proche en proche, à fonder le sentiment de l’ordre réel sur l’étude des événements qui ne comportent aucune modification volontaire. L’astronomie fournira donc toujours la première base objective de notre sagesse systématique” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 504-505).