É motivo do mais profundo lamento o fato de que entre os rituais de sociabilização contemporâneos, pelo menos no Brasil, inclua-se a demonstração de uma ignorância e de uma insegurança, reais ou fingidas, com respeito à língua portuguesa. É ainda mais lamentável o fato de que tais ignorância e insegurança, reais ou fingidas, persistem com o passar do tempo e que o que podia ser inicialmente fingido e o que podia ser apenas um ritual de sociabilização torna-se parte da cultura "jovem".
E - sem querer ser misoneísta - também é fato que a internet estimula o pior dessa ignorância. Assim, é quase impossível ouvir conversas de jovens - não somente de adolescentes, mas também de adultos jovens, isto é, daqueles até a casa dos 25 anos - sem que erros crassos de português apresentem-se, além dos temíveis "tipo", "tipo assim", "saca", "mano", "véio", "véi" e por aí vai.
Ser "maneiro" exige que não se conheça a língua e/ou que não se a use corretamente: muito, muito lamentável.
Este blogue é dedicado a apresentar e a discutir temas de Filosofia Social e Positivismo, o que inclui Sociologia e Política. Bem-vindo e boas leituras; aguardo seus comentários! Meu lattes: http://lattes.cnpq.br/7429958414421167. Pode-se reproduzir livremente as postagens, desde que citada a fonte.
23 janeiro 2013
Biologia, Sociologia e necessidade de uma ciência específica para o ser humano
Ao avaliar a Biologia, Augusto Comte afirma com enorme clareza dois fatos:
por um lado, que o estudo do ser humano baseia-se no estudo das relações
vitais; por outro lado, que, em virtude das características específicas da
humanidade, é necessária uma ciência radicalmente diferente da Biologia a fim
de estudar-se o ser humano.
Entretanto, quais são os motivos que exigem uma ciência "radicalmente
diferente" exclusiva para o ser humano? São várias razões, de diferentes
ordens. Inicialmente, o fato de que o ser humano é um ser caracterizado pela
continuidade, o que, no vocabulário cifrado de Comte, quer dizer que o ser
humano é um ser histórico. Em segundo lugar, a coordenação dos conhecimentos
humanos exige uma perspectiva subjetiva (ou seja, do método subjetivo), que só pode ser fornecida pela ciência que
conheça o próprio ser humano, ou seja, a Sociologia (e, nos volumes seguintes
do Sistema de política positiva,
também a Moral). Em terceiro lugar, a própria Biologia necessita da perspectiva
humana para estruturar-se, seja por ter uma referência teórica (o ser humano),
seja para justificar seus estudos específicos.
Deixando de lado a avaliação comtiana da Biologia, o trecho abaixo evidencia
o quanto são radicalmente erradas as afirmações – comuns, é verdade – de que o
Positivismo e Comte teriam reduzido a Sociologia à Biologia, ou seja, que eles
esposariam uma perspectiva biologizante do ser humano. Nada mais errado que
isso.
* * *
“Ainsi, la suprême vitalité, particulière au Grand-Être, se lie encore
mieux à la vitalité intermédiaire des animaux que celle-ci à la vitalité
fondamentale des végétaux. Cette progression nécessaire complète le dualisme élémentaire
da la philosophie naturelle entre le monde et la vie, en le rattachant étroitement
à la seule source possible d'une synthèse réelle. Mais, malgré l'intime
connexité de notre existence sociale avec la simple existence animale, son étude
directe exige une science radicalement distincte. Ayant pour base objective
l'ensemble hiérarchique des autres théories abstraites, elle constitue, au
point de vue subjectif, l'unique régulateur commun de leurs méthodes et de
leurs doctrines. Le concours général, dans l'espace et dans le temps, des
organes qui composent l'être immense et éternel, demande une appréciation spéciale,
à la fois statique et dynamique, à laquelle la biologie ne peut davantage suppléer
que la cosmologie, quoique toutes deux lui fournissent un préambule nécessaire.
C'est, au contraire, à la sociologie que la biologie doit demander la véritable
théorie des plus hautes fonctions de l'animalité. Il faut, en effet, que chaque
classe de phénomènes s'étudie surtout dans les êtres où elle se développe le
mieux, et d'où l'on passe ensuite aux cas moins prononcés. Or, ces attributs
supérieurs, soit intellectuels, soit moraux, quoique plus complets chez notre
espèce, ne s'y caractérisent assez que par l'existence sociale. Sans la
solidarité, et surtout la continuité, qui la rendent si supérieure à toute
autre, ses principales aptitudes y seraient presque aussi équivoques que dans
les races voisines, où l'on tenta de les rapporter au pur automatisme. Ainsi,
les mêmes motifs, logiques et scientifiques, qui réservent à la végétalité l'étude
fondamentale de la vie de nutrition, représentent notre socialité comme pouvant
seule manifester les plus nobles lois de la vie de relation. Cette nécessité
philosophique explique l'extrême imperfection de la théorie générale des
fonctions intellectuelles et morales, même depuis que Gall et Cabanis ont tenté
d'en exclure toute métaphysique en la rattachant à l'ensemble de la biologie. Leurs
lois réelles ne peuvent être découvertes et établies que par la sociologie,
quoique sa propre fondation ait d'abord exigé l'usage provisoire des meilleures
ébauches antérieures. Quelque utile que doive devenir, à cet égard, l'étude
positive des animaux, elle ne comportera jamais qu'un office secondaire, à
titre de contrôle naturel des conceptions sociologiques dont elle ne saurait
dispenser. Son efficacité ultérieure restera donc essentiellement analogue à la
précieuse réaction critique qu'elle exerça récemment contre les hypothèses théologico-métaphysiques.
En un mot, la biologie ne peut cultiver dignement ce grand sujet qu'en s'y
subordonnant à la sociologie, qui seule y est vraiment compétent” (Comte,
Système de politique positive, v. I, p. 621-622).
Objetividade e subjetividade, análise e síntese, absolutismo e relativismo
A despeito de ser extremamente denso e exigir a compreensão preliminar de toda a filosofia da história, da ciência e da religião de Comte, o trecho
abaixo é notável e esclarecedor, com sua avaliação das relações entre as sínteses absoluta e relativa – a primeira característica da teologia e da metafísica,
a segunda, do Positivismo –, assim como das relações entre a subjetividade
relativa (de caráter sintético) e a objetividade científica (de caráter
analítico).
Augusto
Comte indica que a teologia e a metafísica, ambas absolutas e buscando as
causas, tiveram sua importância histórica, mas suas sínteses eram subjetivas,
embora afirmassem-se objetivas. A passagem para a síntese relativa implica o
abandono da pesquisa das causas e a busca das leis naturais; ao mesmo tempo,
deve-se abandonar qualquer esperança de síntese objetiva, assumindo-se que a
síntese é necessariamente subjetiva.
Com isso, a
relação entre subjetividade e objetividade – e, daí, entre síntese e análise –
muda. O desenvolvimento da objetividade científica foi necessário para mostrar
o quanto a busca do absoluto é infrutífera; mas essa própria objetividade – que
é sempre analítica – deve ser sempre subordinada à subjetividade relativa, de
caráter sintético: essa subordinação consiste no fornecimento dos materiais
intelectuais a serem coordenados pela síntese relativa.
* * *
“Mieux on médite
sur la marche primitive de notre intelligence, plus on reconnaît qu'elle n'exigeait
d'autre rectification radicale que de substituer l'étude des lois à la recherche
des causes. Son vice fondamental, d'ailleurs inévitable et même indispensable,
ne consistait point dans son caractère subjectif, mais dans sa nature absolue. La
longue coexistence de ces deux attributs n'a point empêché la subjectivité de
manifester ses hautes propriétés, intellectuelles et surtout morales. Toute
synthèse doit être subjective, puisque l'objectivité reste toujours analytique.
Mais la prépondérance de la subjectivité est encore plus indispensable à la
subordination fondamentale de l'esprit envers le cœur. Cette double nécessité,
qui jusqu'ici prévalut sans être aperçue, a été confusément sentie par les
principaux métaphysiciens modernes, depuis l'avortement décisif des nombreuses
tentatives de systématisation objective. Ainsi poussés vers l'unité subjective,
ils ne l'ont manquée que pour l'avoir restreinte à l'homme individuel, au lieu
de la fonder sur l'humanité.
La
subjectivité initiale n'avait donc besoin que de devenir relative; mais cette
transformation radicale a exigé tout le préambule objective accompli
graduellement depuis Thalès jusqu'à Bichat. Car il fallait pour cela faire
universellement prévaloir l'étude des lois naturelles, qui ne pouvait commencer
qu'envers les moindres phénomènes, d'où elle s'est ensuite étendue lentement
aux plus éminents. L'achèvement de cette immense préparation conduit maintenant
à fonder la vraie subjectivité, en substituant la sociologie à la théologie.
Ainsi rendue relative, la prépondérance du véritable point de vue humain
devient beaucoup plus directe, et même plus complète que lorsqu'elle présidait
implicitement au régime absolu. Cette transformation définitive est encore plus
salutaire au cœur qu'à l'esprit, d'après l'harmonie durable qu'elle institue
entre eux. L'objectivité, qui ne put rien systématiser, prend enfin son office
caractéristique, de fournir partout les matériaux des constructions réservées à
la subjectivité” (Comte, Système de
politique positive, v. I, p. 581-582).
* * *
Tradução para o português:
A subjetividade inicial, então, não tinha necessidade
senão de tornar-se relativa; mas essa transformação radical exigiu todo o
preâmbulo objetivo realizado gradualmente após Tales [de Mileto] até [Xavier]
Bichat. Afinal, era necessário para isso fazer prevalecer universalmente o estudo
das leis naturais, que não poderia começar senão a respeito dos menores
fenômenos, de que ela lentamente se estendeu em seguida aos mais eminentes. A conclusão
dessa imensa preparação conduz agora a fundar a verdadeira subjetividade, ao
substituir pela Sociologia a teologia. Assim tornada relativa, a preponderância
do verdadeiro ponto vista humano torna-se bastante mais direto e mesmo mais
completo que quando ele presidia implicitamente o regime absoluto. Essa
transformação definitiva é ainda mais salutar ao coração que ao espírito,
segundo a harmonia durável que ela institui entre eles. A objetividade, não
pode nada sistematizar, assume afinal seu ofício característico, de fornecer
por toda parte os materiais das construções reservadas à subjetividade" (Comte, Système de politique positive,
v. I, p. 581-582).
* * *
Tradução para o português:
"Mais se
medita sobre a marcha primitiva de nossa inteligência, mais se reconhece que
ela não exigiria outra retificação radical senão a de substituir pelo estudo
das leis a pesquisa das causas. Seu vício fundamental, aliás inevitável e mesmo
indispensável, não consistiu de maneira nenhuma em seu caráter subjetivo, mas
em sua natureza absoluta. A longa coexistência desses dois atributos não
impediu de modo nenhum a subjetividade de manifestar suas altas propriedades,
intelectuais e sobretudo morais. Toda síntese deve ser subjetiva, pois a objetividade
permanece sempre analítica. Mas a preponderância da subjetividade é ainda mais
indispensável à subordinação fundamental do espírito ao coração. Essa dupla
necessidade, que até aqui prevaleceu sem ser percebida, foi confusamente
sentida pelos principais metafísicos modernos, depois do abortamento decisivo
de numerosas tentativas de sistematização objetiva. Assim impelidos em direção
à unidade subjetiva, eles não falharam senão em restringi-la ao homem
individual, em vez de fundá-la sobre a Humanidade.
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16 janeiro 2013
Química e progresso material permitindo o progresso moral
O trecho abaixo apresenta dois temas de importância capital, ao tratar da Química.
Em primeiro lugar, Augusto Comte nota
que na Química as previsões são mais difíceis, devido à complicação das
induções e à relativa pobreza conseqüente das suas deduções. Mas a limitação
das previsões é compensada pela facilidade de modificar, ou seja, pelas
alterações que a Química permite ao ser humano realizar na realidade.
Em segundo lugar – e de modo muito mais
importante –, como conseqüência da característica anterior, ao ultrapassar a visão
estática da realidade e permitir francamente alterações, a Química desenvolve o
sentimento de progresso na filosofia natural. O progresso possível graças à
Química, bem entendido, é o progresso material,
que é o primeiro passo para o progresso que realmente importa, o moral.
Dessa forma, evidencia-se o quanto é
errado imputar ao Positivismo e a Comte a idéia de que o “progresso” é sempre e
somente “progresso material”. O Positivismo afirma acima de tudo o progresso
moral, ou seja, o estímulo ao altruísmo, à paz universal, em contraposição ao
egoísmo, à violência, à guerra e assim por diante.
* * *
“L’esprit
positif fit donc un pas vraiment capital en étendant à de tels phénomènes le
dogme fondamental des lois naturelles, borné d’abord à l’existence
mathématique. Ce progrès décisif fut surtout dû à la nature si modifiable des
événements chimiques, mieux accesibles à notre intervention que tous les autres
effets inorganiques. Sans cette coïncidence nécessaire, leur complication supérieure
les eût laissés beaucoup plus longtemps sous l’empire initial des volontés
surnaturelles. On commence à sentir là que, en passant à de plus éminents
phénomènes, notre raison compense la difficulté de prévoir par la facilité de
modifier, qui n’est guère moins efficace pour nous dégager du joug théologique
ou métaphysique, et nous préparer au régime positif. Cette aptitude
modificatrice se manifeste nécessairement dans les études chimiques, puisque la
plupart des phénomènes y ont une source artificielle, qui souvent y fait
exagérer la vraie part logique de l’expérimentation.
Toutefois,
l’importance pratique d’un tel pouvoir surpasse beaucoup son efficacité
théorique ; car la chimie constituera toujours, et même de plus en plus,
la principale base mathématique de notre providence matérielle. J’ai déjà
caractérisé sa tendance à perfectionner ainsi notre éducation normale, en
joignant le sentiment du progrès à celui de l’ordre, seul développé d’abord par
la philosophie naturelle. Son étude trop exclusive deviendrait bientôt
dégradante, en faisant prévaloir nos plus grossiers instincts. Mais la culture
encyclopédique corrigera facilement cette disposition académique, en
représentant toujours ce progrès matériel comme le premier degré nécessaire du
perfectionnement humain, qui consiste surtout dans le progrès moral” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 538-539).
Nível de dedução, secura afetiva e orgulho
No trecho abaixo Comte afirma que os
diferentes graus de abstração (ou, de modo equivalente, os graus de indução) de cada ciência têm diferentes
conseqüências morais para os respectivos cientistas. Em particular, Comte chama
a atenção para o fato de que, ao ser principalmente uma atividade intelectual,
a ciência estimula a secura do coração, isto é, estimula os cientistas a
tornarem-se frios e/ou anti-sociais.
Mas, mais do que isso, quanto maior o
grau de dedução aplicado, mais o orgulho é estimulado: afinal de contas, como
na dedução o indivíduo trabalha isoladamente, cria-se a impressão de que os
resultados obtidos têm origem estritamente individual, sem o concurso prévio ou
concomitante de outras pessoas (e habilidades). Por outro lado, a indução exige
a coleta de dados empíricos, o que lhe confere um certo caráter coletivo – o
que acarreta um certo nível de sociabilização. A Química, ao aproximar-se mais da
Sociologia e da Moral, além de conter um grande elemento de indução, está relativamente
menos sujeita a esses vícios que a Matemática, a Astronomia e a Física.
Desse modo, o trecho abaixo mais uma vez
evidencia o quanto é errado afirmar que o Positivismo (e Comte) é “intelectualista”,
“academicista”, “objetivista” – ou, em variações próprias às Ciências Humanas e
Sociais, “anti-reflexivo”, “anti-subjetivista”, “anti-compreensivo” e outras
tolices semelhantes.
* * *
“Outre la
sécheresse inhérente à toute occupation où le cœur a trop peu de part, les
travaux scientifiques tendent spécialement à développer l’orgueil, en disposant
à une appréciation exagérée du mérite individuel. Ce double danger naturel ne
peut être assez contenu que par une vraie discipline religieuse, qui fasse
toujours prévaloir dignement l’esprit d’ensemble et le sentiment social. Il
s’étend et s’aggrave de plus en plus dans l’anarchie atuelle. Mais, en
déployant ces ravages moraux, le régime académique manifeste aussi leur inégale
influence sur les diverses classes de savants, qui s’en trouvent d’autant moins
affectés que leurs études se rapprochent davantage du but nécessaire de
l’évolution positive. Or cette incontestable différence, déjà sensible entre
les divers sciences cosmologiques, tient à la fois aux méthodes et aux
doctrines. D’abord, les études supérieures font mieux sentir que les inférieures
la destination finalement sociale de toutes nos saines spéculations, et même le
seul point de vue vraiment universel que comportent nos conceptions positives.
Mais, par une réaction plus cachée, leur propre caractère logique restreint
davantage ces dangers moraux, en faisant prévaloir graduellement l’induction
sur la déduction. En effet, c’est surtout celle-ci que excite l’orgueil
scientifique, par des conceptions que chaque esprit croit tirées de lui-même,
sans apprécier le concours extérieur. Au contraire, l’induction rappelle
toujours une source objective, et même une certaine coopération sociale. C’est
principalement dans les études déductives que règne aujourd’hui l’usage, non
moins irrationnel qu’immoral, d’enseigner chaque science sans aucune indication
historique, comme si celui que l’expose l’avait entièrement créée. Tous ces
vices de la culture académique seront essentiellement rectifiés par le régime
encyclopédique. Mais l’état le plus normal permettra néanmoins de sentir
toujours que les dangers moraux du travail scientifique tiennent davantage à la
déduction qu’à l’induction. Quoique cette différence naturelle se manifeste
déjà quand on aborde la cosmologie terrestre, elle se trouve aujourd’hui trop
dissimulée, en physique, par les usurpations algébriques. C’était donc envers
la chimie que je devais en indiquer l’appréciation générale, rendue maintenant
si sensible d’après l’irrationnelle dispersion des travaux scientifiques” (Comte,
Système de politique positive, v. I,
p. 532-534).
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Induzir para deduzir - e limitações das deduções
O trecho abaixo expõe uma avaliação
preliminar da Química, comparando-a à Física em termos de avanços
metodológicos. O resultado parece desabonador para a Química, pois não há
grandes avanços (isto é, novidades), mas, mutatis
mutandis, apenas desenvolvimentos e aperfeiçoamentos do que se fez na
Física.
Entretanto, a passagem da Física à
Química indica o verdadeiro caráter da dedução e da indução: somente se induz
para melhor deduzir. Entretanto, deve-se fazer duas observações importantes:
por um lado, o excesso de deduções obscurece as origens indutivas da ciência; por
outro lado, a dedução na Química já está separada da que ocorria inicialmente
na Matemática, ou seja, já se percebem (ou deve-se perceber) as limitações de
tais deduções.
* * *
“L’importance
réelle de cette étude, inversement à la précédente, est moins logique que
scientifique. Car la méthode positive n’y fait aucun nouveau pas général, et se
borne à y développer davantage les différents procédés inductifs constitués par
la physique. Seulement, la complication supérieure des spéculations chimiques y
fait mieux ressortir la nature et la destination de l’induction, en laissant
une moindre influence à la déduction, alors dégagée irrévocablement de ses
formes mathématiques initiales. Dans ce passage de la physique à la chimie,
l’esprit sent avec plus d’évidence que la logique pleinement positive doit être
moins déductive qu’inductive. Car on n’induit jamais que pour déduire ;
tandis que la déduction prolongée fait souvent méconnaître l’induction d’où
elle émane toujours” (Comte, Système de
politique positive, v. I, p. 532).
Exagerada importância filosófica da Física
O trecho abaixo é bastante interessante,
pois Augusto Comte afirma que a Física não tem a importância filosófica que se
atribui – ou atribuía – a ela. Citações anteriores e subseqüentes, aliás,
indicam que para Comte outras ciências são filosoficamente mais estimulantes e
importantes, a exemplo da Astronomia e da Química.
Qual a origem da exagerada aptidão
filosófica da Física? Para Comte, ela reside em uma coincidência temporal: a
Física começou a desenvolver-se ao mesmo tempo em que se desenvolviam as
perspectivas de conjunto, levando-se a considerar-se a íntima relação entre
ambas.
* * *
“Son
importance dogmatique ne saurait pourtant rester exactement au niveau de son office
historique. Car, elle a influé sur l’ensemble de la préparation moderne au delà
de sa vraie portée encyclopédique. J’ai déjà expliqué la marche nécessaire qui
plaça son essor distinct après celui de toutes les autres sciences
préliminaires. Dès lors, il dut coïncider avec la première ébauche des vraies
vues encyclopédiques, qui, auparavant impossibles, fautes de bases suffisantes,
purent ainsi surgir à travers la culture dispersive. Cette coïncidence mal
appréciée fit nécessairement attribuer à la physique plus d’aptitude
philosophique que n’en comporte une telle science. L’état normal de la
philosophie naturelle ne saurait conserver aucune trace de ce grand incident
historique, dû seulement à une situation exceptionnelle” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 531-532).
Busca das causas e persistência do absoluto na Física
É interessante notar que a prática
científica não está isenta de absoluto e, portanto, de teologia e/ou de metafísica.
Para Augusto Comte, isso é péssimo, pois deturpa o espírito positivo e dificulta
não apenas a compreensão da ciência como, de modo mais importante, dificulta a
compreensão da realidade. Evidentemente, tal situação é perfeitamente passível de correção, por meio da adoção do relativismo e da perspectiva humana e histórica (logo, subjetiva).
Em outros trechos Comte indicou a
permanência dos hábitos mentais absolutistas na Matemática; na citação abaixo
ele refere-se à Física.
* * *
“De vaines
protestations habituelles, mal empruntées à Bacon, semblent y indiquer une
sérieuse renonciation à la recherche des causes, pour vouer la science à la
seule découverte des lois. Mais ce langage, même sincère, n’y sert, le plus
souvent, qu’à dissimuler une irrationnelle tendance aux notions absolues.
L’anarchie ne saurait jamais suffire ni durer, en science guère plus
qu’ailleurs. Quels que soient ses désirs d’émancipation totale, l’esprit
moderne reviendra, sous de nouvelles formes, au régime métaphysique, tant qu’il
n’aura point accepté la nouvelle discipline philosophique qui surgit
aujourd’hui de toute l’évolution positive” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 521).
Limitação da ciência como espelho do mundo
A respeito da teoria corpuscular,
deve-se notar que as teorias têm um caráter lógico (da mesma forma que a noção
de inércia, na Mecânica); atribuir muita realidade a tais noções é exagerar a
capacidade de representação das teorias, o que as desnatura.
Esse trecho, nesse sentido, tem um certo
caráter histórico, isto é, de história das idéias científicas e físicas. Isso é
interessante, mas estritamente limitado. Mais útil é observar que, para Comte,
as idéias e as hipóteses não refletem perfeitamente a realidade externa, nem o
poder fazer. Em outras palavras, Comte
reconhece com todas as letras as limitações da imagem da ciência como um
espelho do mundo exterior.
* * *
“C’est
aussi à cette science qu’appartient surtout la théorie corpusculaire ou
atomistique, que achève de fonder sa propre constitution logique, où elle
convient autant que l’inertie en mécanique. Notre tendance à douer d’une
existence objective nos constructions subjectives dénature encore l’une et
l’autre conception, en y supposant une exacte représentation de la réalité
extérieure. Quoique la saine philosophie dissipe cette illusion primitive, elle
conserve, en les rectifiant, de précieuses institutions logiques, qui en sont,
au fond, indépendantes.
L’intime
structure des substances réelles nous demeure nécessarairement inconnue. Mais,
en étudiant leurs propriétés, nous sommes rationnellement autorisés à
introduire envers elle toutes les hypothèses qui pourront faciliter nos
pensées, pourvu que ces artifices soient toujours conformes à la nature des
phénomènes correspondants. [...] Mais une telle appréciation philosophique, en
expliquant la légitimité relative de l’hypothèse atomistique, interdit aussi
son extension absolue, et indique même les limites de son usage normal” (Comte,
Système de politique positive, v. I,
p. 520).
Física e fundação do método experimental
O trecho abaixo afirma a “moderação” do
grau de complicação da Física, quando comparada com a Astronomia (antes) e com
a Química (depois).
Mais do que isso: afirma-se a
característica metodológica da Física, consistindo na experimentação. Tal método, Comte sublinha, não deve ser aplicado
em outras ciências se não for bem entendido como é aplicado na Física – o que,
inversamente, significa que as demais ciências podem aplicar a experimentação
mas com graus diferentes (inferiores) de sucesso.
Do ponto de vista lógico, a
experimentação é possível devido à semelhança entre os fenômenos estudados; tal
semelhança ocorre quase exclusivamente no mundo inorgânico. Ora, essa afirmação
implica, inversamente, que nas Ciências Humanas a experimentação não apresenta
grandes resultados, não lhe sendo o método mais adequado (sem ignorar as
considerações éticas envolvidas nas experimentações sociológicas e morais). Em
outras palavras, Comte já prenuncia neste
trecho que as Ciências Humanas têm seus próprios métodos, que não são cópias,
adaptações, emulações ou o que seja dos métodos das Ciências Naturais.
* * *
“Outre
cette efficacité générale, une tendance plus spéciale, qui s’y trouve
directement liée, manifeste davantage la haute participation de la physique à
la fondation de la logique positive. Le même degré modéré de complication
objective qui place là le berceau naturel de l’esprit inductif, y fait aussi
surgir la méthode expérimentale, qui forma son principal caractère jusqu’à
l’essor de la philosophie biologique. Envers les phénomènes immodifiables, ce
procédé est évidemment impossible, et leur extrême simplicité l’y rend
d’ailleurs superflu : son équivalent mental n’y sert jamais qu’à vérifier
sans découvrir. D’un autre côté, si les phénomènes se compliquent trop, leurs
modifications, naturelles ou artificielles, deviennent tellement variées que
l’on peut rarement y instituer une expérimentation vraiment décisive. Car, elle
exige toujours la comparaison de deux cas qui n’offrent aucune autre
différence, directe ou indirecte, que celle relative à l’influence ainsi
étudiée. Or, cette suffisante conformité est presque toujours impossible hors
de l’existence inorganique, et déjà même elle se réalise difficilement dans le
cas chimiques. L’essor normal de l’expérimentation convient donc à la physique
seule, dont il constitue la principale ressource. On ne doit l’appliquer
ailleurs qu’après l’avoir assez étudiée dans cette origine naturelle. Ainsi, en
développant beaucoup l’observation spontanée, première base de l’esprit
inductif, la physique y joint déjà un puissant artifice général, qui le
perfectionne essentiellement” (Comte, Système
de politique positive, v. I, p. 519-520).
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Física e combinação harmoniosa entre indução e dedução
O trecho abaixo apresenta pelo menos três
observações de grande importância teórica.
O primeiro é a afirmação de que a Física
apresenta um grau por assim dizer “mediano” – adiante Comte usará a palavra “moderado”
– de dificuldade, o que lhe permite o desenvolvimento da indução.
Em segundo lugar, a crítica ao
materialismo matemático (no caso, algébrico) sofrido pela Física e a afirmação
subjacente de que a Física é uma ciência conceitual (como todas as demais,
aliás e bem entendido), em que a Matemática é um meramente instrumento para conferir precisão aos raciocínios.
Em terceiro lugar, a observação – em
parte descritiva, em parte normativa – de que, quando a “educação enciclopédica”
– ou seja, pautada pelas vistas de conjunto, humanas, relativas, históricas –
reorganizar o conhecimento, a Física pode combinar harmoniosamente a indução e
a dedução.
* * *
“Malgré les
graves altérations dues à l’anarchie scientifique, la physique tend, par sa
nature, à la manifestation décisive de ces diverses notions logiques, trop
dissimulées, en astronomie, sous l’extrême simplicité des phénomènes. Cette
tendance est déjà sensible chez les judicieux physiciens du dix-septième
siècle, surtout envers les études de la pesanteur et du son, avant que
l’invasion algébrique les eût viciées. Quoiqu’une aveugle impulsion
mathématique y ait ensuit trop disposé à transformer les inductions en
déductions, l’essor ultérieur d’une telle science n’a jamais cessé d’offrir de
précieux modèles de la vraie logique inductive. C’est ainsi que se sont
accomplis réellement tous les grands progrès de la physique, d’après les
travaux des esprits les moins affectés par les diverses aberrations. Quand
l’éducation encyclopédique aura systématisé sa culture, cette science
développera pleinement son aptitude naturelle à constituer le premier type
décisif de la saine harmonie entre l’induction et la déduction, suivant une
sage prépondérance de son génie propre sur celui des sciences précédentes” (Comte,
Système de politique positive, v. I,
p. 518-519).
Indução e dedução na Física
Do ponto de vista da teoria da ciência e
da teoria do conhecimento, o trecho abaixo é bastante importante. Sua intenção
é avaliar a relação da Física com os métodos gerais da indução e da dedução;
inversamente, ele indica o quanto a indução foi desenvolvida pela Física e
quais os limites que a dedução – mas também a indução – apresentam.
Evidentemente, o trecho abaixo deve ser lido em cotejo com trechos anteriores
(sobre as ciências prévias: Matemática e Astronomia), bem como com trechos
posteriores (sobre as ciências seguintes: Química, Biologia e, nos volumes
seguintes do Sistema de política positiva,
Sociologia e Moral).
Os resultados a chega A. Comte com seu exame
histórico e teórico da Física são os seguintes. A Física é a ciência que mais e
melhor desenvolve bastante a indução, seja porque ela é a ciência que primeiro
realiza experiências, seja porque as ciências posteriores são muito complicadas
e dificultam as generalizações.
O espírito positivo é mais indutivo que
dedutivo, ou seja, é necessário submeter os raciocínios às observações; assim,
quanto mais distante da metafísica, mais indutivo é o raciocínio. Todavia, convém
notar que a pura indução conduz ao “empiricismo”, que é um erro lógico e
teórico.
* * *
“Son
efficacité logique correspond à cette importance scientifique. On lui doit surtout
l’essor décisif du véritable esprit d’induction, ensuite développé et completé
par tout le reste de la philosophie positive. Quoiqu’il naisse d’abord en
astronomie, et déjà même en mathématique, ces deux sciences sont trop simples
pour en caractériser assez la nature et la destination. D’un autre côté, les
sciences suivantes sont tellement compliquées, qu’il n’y pourrait être
nettement apprécié, si la physique ne l’avait préalablement élaboré. Elle seule
offre le juste degré de difficulté qui convient à la saine manifestation de la
logique inductive. Quoique la déduction y conserve beaucoup d’efficacité, déjà
elle cesse là de prévaloir, parce que l’institution des vrais principes
commence alors à devenir plus embarrassante que le développement des justes
conséquences.
Pour mieux
sentir combien la physique concourt ainsi à l’élaboration fondamentale de la
méthode positive, il faut reconnaître que le véritable esprit philosophique est
beaucoup plus caractérisé par l’induction que par la déduction. Celle-ci,
d’après son uniformité nécessaire, s’adapte indifféremment à tout régime
intellectuel. Elle était déjà très-active sous le règne de la métaphysique. Si
la science où elle prévaut le plus constitue pourtant le vrai berceau de la
positivité, c’est uniquement parce que l’extrême simplicité des phénomènes
mathématiques permet d’y établir sans effort des principes solides. Une
induction facile, et souvent inaperçue, réduit alors presque tout le travail
logique au seul enchaînement des consequénces. Quoique les autres sciences
fassent nécessairement un grand usage de la déduction, la complication
graduelle des phénomènes y détermine une prépondérance croissante de
l’induction. Celle-ci manifeste mieux le principal caractère de l’esprit
positif, la subordination normale du raisonnement à l’observation. On peut même
dire que, à mesure que nos théories quelconques s’éloignent davantage de l’état
métaphysique, l’induction y remplace de plus en plus la déduction, qui d’abord
y régnait souverainement. La raison moderne est donc caractérisée surtout par
la construction de la logique inductive, à peine entrevue dans l’antiquité.
D’après sa nature plus objective, cette méthode exige une longue suite
d’élaborations spéciales, où l’essor de chacun de ses modes essentiels ressort
de l’étude des phénomèmes correspondants. Toutefois, sa prépondérance exagérée
deviendrait bientôt pernicieuse, en consacrant le pur empirisme, tendance
ordinaire des règles inductives que sont abstraitement conçues. Mais le vrai
régime positif écarte naturellement ce danger, par cela même qu’il ne sépare
jamais la logique de la science. Car, en n’étudiant chaque partie de la méthode
inductive qu’avec les doctrines qui l’ont spécialement suscitée, on sent
aussitôt que son usage doit toujours être conforme aux notions fondamentales
que cette science reçoit de la précédente. À mesure que le phénomènes se
compliquent, ces dogmes préalables acquièrent naturellement plus de poids
logique, parce que les antécédents se multiplient. Quoiqu’ils ne suffisent jamais
aux solutions effectives, ils y fournissent toujours des indications générales,
qui servent à diriger convenablement les inductions spéciales. Ainsi, par sa
constitution encyclopédique, la vraie culture positive évite également les deux
écueils opposés, le mysticisme et l’empirisme, entre lesquels flotte
nécessairement toute étude où la déduction et l’induction ne sont pas sagement
combinées” (Comte, Système de politique
positive, v. I, p. 516-518).
Ordem e Progresso - e o Amor?
Texto originalmente publicado na Gazeta do Povo, de 16.1.2013. O vínculo para o texto original é este aqui.
Deve-se notar que há alguns erros de português, causados pela "revisão" da equipe do jornal. Da mesma forma, foram feitas alterações no estilo do meu texto, também feitas pela Gazeta do Povo à minha revelia.
* * *
OPINIÃO 2
Publicado em 16/01/2013 | GUSTAVO BISCAIA DE LACERDA
Deve-se notar que há alguns erros de português, causados pela "revisão" da equipe do jornal. Da mesma forma, foram feitas alterações no estilo do meu texto, também feitas pela Gazeta do Povo à minha revelia.
* * *
OPINIÃO 2
Ordem e progresso – e o amor?
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Recentemente, o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) manifestou apoio à proposta do deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ) de incluir a palavra “amor” na frase “Ordem e progresso”, da bandeira nacional. Essa proposta é simpática, ao afirmar a importância do “amor”, mas apresenta vários equívocos.
As justificativas para a mudança, em poucas palavras, são as seguintes: o “amor” integra a frase do filósofo positivista francês Augusto Comte (1798-1857) “o amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”; entretanto, o autor do símbolo, Raimundo Teixeira Mendes, teria simplesmente deixado de lado o “amor”. Com isso, para Alencar as propostas de Comte teriam sido deformadas. Já Suplicy afirma que a influência do militar Benjamin Constant Botelho de Magalhães teria sido a responsável por essa ausência e que, no século 21, um “novo paradigma” se impõe, valorizando a solidariedade e combatendo-se as violências.
Mas nem Benjamin Constant nem Teixeira Mendes tiraram nenhuma palavra da frase original; ambos seguiram a sugestão de Comte. A frase completa sintetiza uma densa filosofia moral, política, histórica e religiosa; já “Ordem e progresso” é um programa político, com dois ideais mais ou menos compartilhados por todos os cidadãos.
O senso comum opõe a ordem ao progresso, mas Comte propunha a união e a superação dos dois termos, considerando que “a ordem é a base do progresso” e o “progresso é o desenvolvimento da ordem”: as condições sociais básicas de educação, moradia, respeito, inclusão etc. (“ordem”) devem ser satisfeitas para que a sociedade avance (“progresso”). Mais: o progresso deve ser entendido em vários sentidos: material, físico, intelectual – e sobretudo moral e afetivo, como o desenvolvimento do altruísmo, da fraternidade, do respeito, da paz universal.
O amor, para Comte, era pressuposto da ordem e resultado do progresso; mas, enquanto “ordem” e “progresso” opõem-se e disputam a primazia em detrimento um do outro, não há nem ordem nem progresso – que se dirá amor.
Essas ideias foram defendidas no século 19, como projeto político para o Brasil. Tinham validade em 1889 (na Proclamação da República) e têm agora, em 2013. Quais as propostas que Benjamin Constant e Teixeira Mendes defendiam? A paz universal, o respeito aos trabalhadores, a dignidade do trabalho, a laicidade do Estado, as liberdades individuais e coletivas. Tais ideias foram promovidas com grande intensidade entre 1881 e 1927 (quando Teixeira Mendes morreu); mas de 1930 em diante Getúlio Vargas rejeitou-as todas, com sua tirania civil apoiada pela Igreja Católica.
Assim, “Ordem e progresso” não é uma deturpação da proposta de Comte, nem foi desvirtuada por obra de militares. As ideias subjacentes a ela não são um “novo paradigma” a ser criado, mas um “paradigma antigo” a ser resgatado. A despeito dos desvios autoritários e/ou revolucionários que o Brasil viveu no século 20, oscilando entre “ordem” e “progresso”, parece que neste início do século 21 volta-se às propostas de Comte, honrando-se, mesmo que sem o saber e cometendo-se equívocos, as memórias de Benjamin Constant e Teixeira Mendes.
Gustavo Biscaia de Lacerda, doutor em Sociologia Política pela UFSC, é sociólogo da UFPR.
12 janeiro 2013
Ódios históricos - Sérgio Buarque e os positivistas
Li há pouco o capítulo que Sérgio Buarque de Holanda redigiu
sobre o Positivismo e os positivistas ortodoxos para o v. 7 do “História geral
da civilização brasileira”, dedicado ao final do Império brasileiro. (O título
do capítulo é: “Da maçonaria ao positivismo”.)
Fiquei assustado com o que li. Sérgio Buarque pode gozar de
uma grande reputação como historiador (e até como sociólogo), mas certamente não é devido a esse capítulo. Todas as observações feitas sobre
Augusto Comte, Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes estão ou erradas ou
profundamente distorcidas. Não há nada no texto que se possa identificar como “objetividade”,
“neutralidade”, “isenção”; cada palavra expõe as “interpretações” do autor,
todas elas com evidentes raiva e desprezo. Ou melhor, com ódio.
Exemplos tirados ao acaso do texto:
(1) os positivistas brasileiros seriam contrários ao fim imediato e sem compensação aos donos de escravos: mentira! Lemos e Teixeira Mendes afirmavam que a escravidão é um crime e que os escravos é que deveriam ser ressarcidos.
(2) Comte e os positivistas apoiariam os militares e o militarismo na política: falso! Eles eram contra a violência na política e nas relações sociais, defendendo o poder do aconselhamento, contra a truculência do Estado e dos poderosos sobre os fracos; em particular, eram contrários ao militarismo, atitude compartilhada pelo Coronel Benjamin Constant.
(3) A “ditadura republicana” era uma modalidade de autoritarismo: falso! Ela consiste no governo exclusivamente civil e não opinativo, ou seja, na rigorosa aplicação da laicidade do Estado, com a cuidadosa garantia de todas as liberdades civis, sociais e coletivas.
Sérgio Buarque cita algumas vezes o próprio Augusto Comte; mas provavelmente é pelo mesmo expediente adotado, depois, por Roberto Romano (em Brasil: igreja contra Estado – São Paulo: Kairós, 1979): cita literatura de segunda mão e a partir dela obtém as referências de Comte – sem indicar a literatura secundária de origem e, mais importante, sem ter lido o próprio Comte (veja-se o meu comentário sobre R. Romano e os positivistas aqui: http://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com.br/2012/02/carvalho-romano-catolicos-desmerecendo.html).
A leitura direta das obras dos próprios positivistas já bastaria para indicar o quanto de ódio Sérgio Buarque nutria pelos positivistas. Mas, afinal, quem lê os positivistas hoje, não é mesmo? Quem tem coragem de dizer, com simplicidade e tranqüilidade, que um dos “grandes historiadores” nacionais claramente destilou preconceitos em vez de adotar minimamente o procedimento sine ira et studio?
Livros cujas leituras demonstram cabalmente os erros sistemáticos de S. Buarque:
- Ivan Lins, História do Positivismo no Brasil (Brasília: Senado Federal, 2009, 3ª ed.);
- João Pernetta, Os dois apóstolos (Curitiba: Centro de Propaganda do Positivismo no Paraná, 1927-1929, 3 v.; facilmente encontrado em sebos);
- Gustavo Biscaia de Lacerda, O momento comtiano (tese de doutorado em Sociologia Política, UFSC, 2010; disponível aqui: http://www.tede.ufsc.br/teses/PSOP0369-T.pdf); convertido em livro de mesmo nome (Curitiba: UFPR, 2019), à venda na página da editora ou na Amazon.
Última observação: qual a origem do ódio nutrido por Sérgio Buarque pelos positivistas? De modo geral considera-se que ele não era “ideológico”, como os comunistas, os liberais e/ou os católicos. Seria inveja, ciúme? Em todo caso, o dano por ele causado e eternizado já está feito, com resultados a olhos vistos.
* * *
Observação de 8.3.2020: as observações feitas acima, de 12.1.2013, foram extensamente desenvolvidas em alguns artigos e livros publicados nos anos seguintes:
- como parte dos argumentos desenvolvidos no livro Laicidade na I República: os positivistas ortodoxos (Curitiba: Appris, 2016), à venda na página da editora ou na Amazon;
- de maneira completa e sistemática no capítulo "O 'secreto horror à realidade' dos positivistas: discutindo uma hipótese de Sérgio Buarque", presente no livro Comtianas brasileiras: Ciências Sociais, Brasil e cidadania (Curitiba: Appris, 2018), à venda na página da editora ou na Amazon;
- em uma versão resumida das exposições acima, na revista Educere et Educare (Cascavel (Paraná), v. 12, n. especial, 2017), no artigo de título "O 'secreto horror à realidade': exame das críticas de Sérgio Buarque aos positivistas".
A leitura dos textos acima não deixa dúvidas: Sérgio Buarque era movido ao mesmo tempo por enormes má-fé e, antes, má vontade para com o Positivismo. Ele não hesitou em mentir e distorcer, em falsear e sofismar a respeito de Augusto Comte e dos positivistas, em mais de uma ocasião - e isso apesar de afirmar a necessidade da "honestidade histórica".
08 janeiro 2013
Astronomia e fenômenos que escapam à previsão estimulando a sabedoria e o amor
O longo trecho abaixo continua apresentando
elementos da extensa e interessante avaliação que A. Comte fez das qualidades lógicas,
sociais e morais da Astronomia.
Mas estes parágrafos apresentam uma
observação fundamental: a idéia de que muitos
fenômenos e acontecimentos podem ocorrer (e de fato ocorrem) além das previsões das leis científicas – o exemplo dado é o do choque de um cometa
no planeta Terra. Com essa observação, fica novamente patente que, para Comte, embora só possamos regular a
vida humana por meio das previsões científicas (feitas, por sua vez, por meio
das leis naturais), não é possível prever todos os acontecimentos reais – e é
justamente por tais motivos que a sabedoria humana (moral, intelectual, prática)
deve sempre ser valorizada.
Comte nota que, em seu conjunto, a
Astronomia favorece o relativismo e elimina o absoluto, embora inicialmente dê
a impressão contrária. Mais do que isso: a Astronomia apresenta uma série de importantes
conseqüências morais, não apenas em virtude de seus métodos e suas teorias, mas
também ao relevar ao ser humano a situação cósmica da Terra. Eis algumas dessas
conseqüências: a regulação do sentimento de esperança; a evidência da resistência
do meio à ação humana; a necessidade de o ser humano buscar em si mesmo os
meios para superar as adversidades; o descartar o excesso de previsões e
considerar as possibilidades de eventos imprevisíveis (como o possível choque
de cometa na Terra); o evitar o terror imobilizante frente às adversidades. Como
todos os seres humanos estão igualmente submetidos a esses fenômenos e
possibilidades, o cuidado com os demais e o “viver para outrem” evidencia-se
como lei moral suprema.
Por fim: as observações abaixo reiteram a
concepção de ciência de Comte, bem como a posição que, para ele, a inteligência
ocupa na ordem humana. Nada de “cientificismo”, de “intelectualismo”, de “torre
de marfim” ou distância da realidade prática; nada de concepção asséptica da
ciência; bem ao contrário, preocupação com o bem comum, com o desenvolvimento
das idéias para regular a conduta prática e os sentimentos.
* * *
“Ainsi,
toute l’astronomie concourt naturellement à constituer l’esprit relatif dans le
domaine qui, par as simplicité et son indépendance, paraissait le moins l’admettre.
Envers les phénomènes qui concernent l’homme, on n’a jamais pu méconnaître entièrement
les variations intérieures qui n’y permettent pas l’absolu. Mais cet attribut
semblait devoir appartenir toujours aux événements où nous ne sommes que
spectateurs. Or, l’astronomie l’élimine spontanément dans l’étude même de ceux
qui sont inaccessibles à toute modification humaine. Cette constitution décisive
de la rélativité, au début de l’initiation systématique, doit puissamment influer
sur son extension immédiate aux phénomènes plus compliqués, avant que leur
propre appréciation l’y ait directement établie.
Pour mieux
sentir une telle tendance astronomique, il faut aussi l’envisager sous l’aspect
moral. Car la véritable science céleste étend finalement la relativité de nos
idées à nos espérances, et par suite à tous nos sentiments. En manifestant les
diverses conditions planétaires, elle dissipe la sécurité absolue qui nous représentait
comme exemptes de perturbations quelconques. La stabilité essentielle, tant célébrée
envers la terre, par les géomètres modernes, ne se rapporte qu’aux changements
graduels dus aux gravitations secondaires, qui, en effet, ne peuvent y produire
que des oscillations presque indifférentes. Mais, outre la résistance du
milieu, qu’on y néglige toujours, il faut surtout considérer les changements
brusques, qui ne comportent pas de prévision réelle, et contre lesquels nous ne
possédons aucune garantie scientifique. Rien ne peut, par exemple, démontrer,
quoi qu’on ait dit, que notre planète est à l’abri de tout choc cométaire. En
achevant ainsi d’apprécier notre vraie condition astronomique, on constitue
mieux l’énergie et la dignité du caractère humain, qui doit trouver en lui-même
sa principale ressource contre l’ensemble de nos misères. Sans nous préoccuper de
vaines terreurs, nous tendons alors à écarter davantage un excès de prévoyance
et de présomption, qui altère beaucoup notre véritable bonheur, privé et
public. Les affections bienveillantes, dont il dépend surtout, acquièrent ainsi
plus de prix encore que lorsque chacun se confie trop aux garanties extérieures.
Quand même la terre devrait être bientôt bouleversée par un choc céleste, vivre
pour autrui, subordonner la personnalité à la sociabilité, ne cesseraient pas
de constituer jusqu’au bout le bien et le devoir suprêmes. Les vrais
philosophes sentiront toujours, comme les francs prolétaires, que de telles
pensées tendent plutôt à consolider notre bonheur réel, chez ceux du moins qui
savent en utiliser l’aptitude morale” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 506-507).
* * *
Tradução para o português:
* * *
Tradução para o português:
"Assim, toda a Astronomia concorre
naturalmente para constituir o espírito relativo no domínio que, devido à sua
simplicidade e sua independência, pareceria admiti-lo menos. Em relação aos
fenômenos que concernem ao homem, não se pôde nunca desconhecer inteiramente as
variações interiores que não não permitem o absoluto. Mas esse atributo
pareceria dever pertencer sempre aos eventos em que não somos senão
expectadores. Ora, a Astronomia elimina-o espontaneamente no estudo mesmo
desses que são inacessíveis a toda modificação humana. Essa constituição
decisiva da relatividade, no início da iniciação sistemática, devia influenciar
poderosamente sobre sua extensão aos fenômenos mais complicados, antes que sua
própria apreciação tenha sido diretamente estabelecida.
Para melhor sentir uma tal tendência astronômica, é
necessário também a observar sob o aspecto moral. Afinal, a verdadeira ciência
celeste estende finalmente a relatividade de nossas idéias às nossas esperanças
e, em conseqüência, a todos os nossos sentimentos. Ao manifestar as diversas
condições planetárias, ela dissipa a segurança absoluta que nos representava
como isentos de perturbações quaisquer. A estabilidade essencial, tanto
celebrada em relação à Terra, pelos geômetras modernos, não se refere senão às
mudanças graduais devidas às gravitações secundárias, que, com efeito, não
podem produzir senão oscilações quase indiferentes. Mas, além da resistência do
meio, que se negligencia sempre, é necessário sobretudo considerar as mudanças
bruscas, que não comportam previsão real e contra as quais não possuímos nenhuma
garantia científica. Nada pode, por exemplo, demonstrar – o que quer que tenha
sido dito – que nosso planeta está ao abrigo de todo choque cometário. Ao
concluir assim a apreciação de nossa verdadeira condição astronômica,
constitui-se melhor a energia e a dignidade do caráter humano, que deve
encontrar em si mesmo seu principal recurso contra o conjunto de nossas
misérias. Sem nos preocuparmos com vãos terrores, tendemos então a descartar
mais um excesso de previsão e de presunção, que altera bastante nossa verdadeira
felicidade, privada e pública. Os afetos da benquerença, de que ela depende
sobretudo, adquirem assim mais valor ainda que quando cada um confia demais nas
garantias exteriores. Quando mesmo a Terra devesse ser logo perturbada por um
choque celeste, viver para outrem, subordinar a personalidade à sociabilidade,
não cessariam de constituir até o fim o bem e o dever supremos. Os verdadeiros
filósofos sentirão sempre, como os francos proletários, que tais pensamentos
tendem antes a consolidar nossa felicidade real, entre aqueles que ao menos
sabem utilizar a sua aptidão moral" (Comte, Système de politique
positive, v. I, p. 506-507).
Conseqüências lógicas, sociais, políticas e morais da Astronomia
Na passagem abaixo Comte indica que a
Astronomia fornece a primeira base para a disciplina moral, ao apresentar espetáculos
exteriores com uma ordem regular e permanente. Entretanto, por si só a
Astronomia conduz ao fatalismo, o que deve ser evitado e combatido. Ainda
assim, a ordem astronômica permite que se combata o orgulho e as divagações da
razão “pura”, de caráter metafísico: afinal, a ordem é imutável e ninguém pode
furtar-se à sua influência, por mais imperfeita que ela seja. Comte indica que
a ausência de leis, ou seja, de ordem, é um delírio metafísico; caso pudéssemos
construir toda a ordem, não nos submeteríamos a ordem alguma: essa é base da
vontade absoluta, cujas derivações políticas consistem nas concepções de que a
realidade social é infinitamente plástica e infinitamente sujeita à manipulação
humana movida pela pura “vontade” (individual ou coletiva).
Assim, o trecho abaixo evidencia que a Sociologia
nomotética de Comte não afasta, de maneira alguma, uma abordagem “compreensiva”,
conforme estreitamente defendido por Weber. Da mesma forma, Comte indica os
fatores sociais que levaram ao desenvolvimento histórico da ciência (no caso,
da Astronomia) e, inversamente, quais as conseqüências que tal desenvolvimento acarretou
para a sociedade. (Convém notar que essa importância histórica e social é um
dos motivos por que Comte apresenta a Astronomia como uma ciência à parte;
outro motivo é a fundação da observação sistemática, com a conseqüência da
fundação da indução e da elaboração de hipóteses e de teorias.)
Indo além, Comte indica da mesma forma
as conseqüências morais que o desenvolvimento da Astronomia (ou, por outra, o
desenvolvimento da observação celeste) têm para a moralidade humana: ela
institui a noção de regularidade externa que se impõe a todos. Como indicado
acima, essa noção, caso levada muito adiante, conduz ao fatalismo, isto é, à
noção de que não há possibilidade alguma de modificação e/ou de intervenção humana:
no caso da Astronomia isso é verdade, mas não o é para as demais ciências.
* * *
“L’immuabilité
d’un tel ordre constitue la première base systématique de la religion finale,
pour régler et rallier, non-seulement nos opinions et nos actions, mais aussi
nos affections elles-mêmes. Sans méconnaître sés imperfections réelles, c’est
par lui que nous commencerons toujours à sentir le besoin d’une nécessité extérieure,
comme condition fondamentale de toute discipline humaine. Ce premier
apprentissage de la soumission offre pourtant un grave danger, tant qu’il se
borne aux phénomènes immodifiables, où la résignation dégénère en fatalisme. Mais
cette tendance initiale, qui troubla beaucoup l’évolution originale, devient
aisément évitable dans une éducation systématique, qui subordonne toutes les études
préliminaires à des vues d’ensemble sur leur nature et leur destination. Un tel
inconvénient n’altérera point, même au début, la salutaire influence, autant
morale que mentale, propre au sentiment continu de cette inflexibilité extérieure,
sans laquelle rien ne pourrait contenir les discordances de notre orgueil et
les divagations de notre raison.
On doit quelquefois regretter que cet ordre immodifiable soit si imparfait. Mais aucun homme sage ne saurait souhaiter d’en être affranchi ; puisque notre conduite manquerait aussitôt de but comme de règle. Le vœu de cette vagabonde indépendance résulta toujours du délire de l’orgueil métaphysique. Nos propres imperfections de tous genres ne nous destinent qu’à modifier, dans ses dispositions secondaires, un ordre éxterieur dont les lois essentielles sont inaccessibles à notre intervention quelconque. Là même où nous pouvons le plus, l’initiative ne nous appartient jamais, et nos efforts ne deviennent efficaces qu’en s’adaptant à cette nécessité inflexible, qu’il faut d’abord connaître pour la respecter toujours. S’il nous était donné de construire librement l’ordre total, nous deviendrions aussitôt incapables d’aucune vraie discipline, personelle ou sociale.
On doit quelquefois regretter que cet ordre immodifiable soit si imparfait. Mais aucun homme sage ne saurait souhaiter d’en être affranchi ; puisque notre conduite manquerait aussitôt de but comme de règle. Le vœu de cette vagabonde indépendance résulta toujours du délire de l’orgueil métaphysique. Nos propres imperfections de tous genres ne nous destinent qu’à modifier, dans ses dispositions secondaires, un ordre éxterieur dont les lois essentielles sont inaccessibles à notre intervention quelconque. Là même où nous pouvons le plus, l’initiative ne nous appartient jamais, et nos efforts ne deviennent efficaces qu’en s’adaptant à cette nécessité inflexible, qu’il faut d’abord connaître pour la respecter toujours. S’il nous était donné de construire librement l’ordre total, nous deviendrions aussitôt incapables d’aucune vraie discipline, personelle ou sociale.
Mais, quelle que soit l’intime réalité d’une telle appréciation, elle est trop contraire à nos tendances primitives pour avoir jamais pu surgir assez, si tous les phénomènes, quoique réglés, eussent été vraiment modifiables. On sent aujourd’hui cette impossibilité par les grandes difficultés qu’éprouve l’admission des lois naturelles envers les événements, surtout sociaux, que leur complication nous permet de modifier beaucoup. Leur vraie notion ne peut prévaloir qu’en y appliquant convenablement la conviction préalable résultée des lois, plus simples et moins flexibles, relatives aux phénomènes plus généraux. Cette succession conduit, de proche en proche, à fonder le sentiment de l’ordre réel sur l’étude des événements qui ne comportent aucune modification volontaire. L’astronomie fournira donc toujours la première base objective de notre sagesse systématique” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 504-505).
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