12 setembro 2025

Igreja Positivista do Brasil: pacifismo, fraternidade, guerra civil, República

Mais 11 publicações da Igreja Positivista do Brasil disponíveis no Internet Archive.

Os temas são atualíssimos, ainda que as publicações sejam de 1907 a 1910: guerra civil, pacifismo e antimilitarismo, liberdade de testamento, respeito aos índios, depotismo sanitário, republicanismo.

A relação de textos e seus endereços estão abaixo.  

-        n. 252: Despotismo sanitário (1907), de Raimundo Teixeira Mendes: https://ia600903.us.archive.org/21/items/n.-283-brasil-uruguai-2a-ed.-fp/N.%20252%20-%20Despotismo%20sanit%C3%A1rio%20%282a%20ed.%20FP%29.pdf

-        n. 254: Liberdade de testamento (1907), de Raimundo Teixeira Mendes: https://ia600903.us.archive.org/21/items/n.-283-brasil-uruguai-2a-ed.-fp/N.%20254%20-%20Liberdade%20de%20testar%20%282a%20ed.%20FP%29.pdf

-        n. 255: Diplomacia, república e Positivismo (1908), de Raimundo Teixeira Mendes: https://ia600903.us.archive.org/21/items/n.-283-brasil-uruguai-2a-ed.-fp/N.%20255%20-%20Diplomacia%2C%20Rep%C3%BAblica%20e%20Positivismo%20%282a%20ed.%20FP%29.pdf

-        n. 256: Lutas fratricidas, militarismo e mensagens presidenciais (1908), de Raimundo Teixeira Mendes: https://ia600903.us.archive.org/21/items/n.-283-brasil-uruguai-2a-ed.-fp/N.%20256%20-%20Lutas%20fratricidas%2C%20militarismo%20e%20mensagem%20presidencial%20%282a.%20ed.%20FP%29.pdf

-        n. 283: Relações entre Brasil e Uruguai (1909), de Raimundo Teixeira Mendes: https://ia600903.us.archive.org/21/items/n.-283-brasil-uruguai-2a-ed.-fp/N.%20283%20-%20Brasil-Uruguai%20%282%C2%AA%20ed.%20FP%29.pdf

-        n. 285: Fraternidade sul-americana (1909), de Raimundo Teixeira Mendes: https://ia600903.us.archive.org/21/items/n.-283-brasil-uruguai-2a-ed.-fp/N.%20285%20-%20Ainda%20a%20fraternidade%20sul-americana%20%282%C2%AA%20ed.%20FP%29.pdf

-        n. 286: Culto aos mortos e despotismo sanitário (1909), de Raimundo Teixeira Mendes: https://ia600903.us.archive.org/21/items/n.-283-brasil-uruguai-2a-ed.-fp/N.%20286%20-%20Culto%20aos%20mortos%20e%20despotismo%20sanit%C3%A1rio%20%282a%20ed.%20FP%29.pdf

-        n. 289: Atentados política e repressão na Espanha (1909), de Raimundo Teixeira Mendes: https://ia600903.us.archive.org/21/items/n.-283-brasil-uruguai-2a-ed.-fp/N.%20289%20-%20Atentados%20pol%C3%ADticos%20e%20repress%C3%A3o%20na%20Espanha%20%282a.%20ed.%20FP%29.pdf

-        n. 292: Fraternidade universal e sul-americana (1909), de Raimundo Teixeira Mendes:  https://ia600903.us.archive.org/21/items/n.-283-brasil-uruguai-2a-ed.-fp/N.%20292%20-%20Fraternidade%20universal%20e%20sul-americana%20%282a.%20ed.%20FP%29.pdf

-        n. 294: Civilização dos índios brasileiros (1910), de Raimundo Teixeira Mendes:  https://ia600903.us.archive.org/21/items/n.-283-brasil-uruguai-2a-ed.-fp/N.%20294%20-%20Civiliza%C3%A7%C3%A3o%20dos%20ind%C3%ADgenas%20brasileiros%20%282a.%20ed.%20FP%29.pdf

-        n. 295: Despotismo sanitário e República (1910), de Raimundo Teixeira Mendes:  https://ia600903.us.archive.org/21/items/n.-283-brasil-uruguai-2a-ed.-fp/N.%20295%20-%20Ainda%20despotismo%20sanit%C3%A1rio%20e%20pol%C3%ADtica%20republicana%20%282a.%20ed.%20FP%29.pdf

Contra o militarismo presidencial e as lutas fratricidas

Reproduzimos abaixo o opúsculo n. 256 da Igreja Positivista do Brasil, de 1908, que tem por título "Basta de lutas fratricidas". 

Da autoria de Raimiundo Teixeira Mendes e publicado originalmente há quase 120 anos, ele é tristemente atualíssimo e é por isso que o publicamos. Como se pode ler abaixo, sua atualidade reside em particular em que as "lutas fratricidas" que se combatia em 1908 eram  (1) estimuladas por mensagens presidenciais que (2) excitavam grupos militaristas.

Esse opúsculo, além de revelar-se atualíssimo, mais uma vez evidencia que - contra o senso comum acadêmico brasileiro - o Positivismo é pacifista e civilista, ou seja, é antimilitarista e contra a violência.

A transcrição do opúsculo foi gentilmente feita pelo Prof. Fernando Pita, da UERJ.

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Nº 256 


IGREJA E APOSTOLADO POSITIVISTA DO BRASIL

 

O Amor por princípio e a Ordem por base:

o Progresso por fim

 

Viver para outrem.                                                           Viver às claras.

 

Basta de lutas fratricidas

 

A propósito da agravação que a mensagem presidencial veio a produzir na agitação militarista, devida à retomada das tradições da diplomacia imperial.

 

Todos os artifícios retrógrados introduzidos depois para impedir semelhante resultado foram tão impotentes para reanimar o cadáver da guerra como o do teologismo, mesmo sob pretexto de progresso, e apesar da ausência das convicções públicas que deviam estigmatizar essa conduta. Em relação ao mais imoral desses expedientes, ouso proclamar aqui os votos solenes que faço, em nome dos verdadeiros positivistas, para que os árabes expulsem energicamente os franceses da Argélia, se estes não a souberem dignamente restituir àqueles. Ufanar-me-ei sempre de ter, na minha infância, desejado ardentemente o sucesso da heroica defesa dos espanhóis. (Augusto ComteCatecismo Positivista, 13ª Conferência)

 

            Uma frase pungentíssima e desastradíssima da mensagem presidencial veio inesperadamente produzir uma agravação na agitação militarista determinada e entretida pela retomada das tradições diplomáticas peculiares ao tristíssimo passado imperial do povo brasileiro. Essa frase é tanto mais condenável quanto forma o mais insólito contraste com as mais nobres aspirações pacíficas da diplomacia ocidental. Julgamos por isso do nosso dever apelar, ainda uma vez, para o altruísmo e a razão das classes dominantes, e especialmente do Sr. Presidente da República, e sobretudo do Sr. Ministro das Relações Exteriores.

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            Nesse intuito, basta recordar a série das publicações em que, desde o seu início, em 1881, o Apostolado Positivista do Brasil tem-se esforçado por fazer chegar ao público e aos estadistas brasileiros o conjunto dos ensinos de Augusto Comte acerca da missão pacífica reservada à diplomacia. É incontestável que essa vulgarização — graças à índole essencialmente humanitária do povo brasileiro, como de todas as nações ibero-americanas — tem contribuído para conjurar as mais graves consequências dos extravios militaristas.

            Mas essa influência continua a ser contrariada pela educação metafísica das classes letradas, educação que as expõe às mais cruéis devastações da política retrógrada, inaugurada pela sanguinária dominação de Robespierre e desenvolvida pelo triunfo ainda mais sanguinário do primeiro Bonaparte.

            Sem atenderem para a conduta dos grandes políticos ocidentais desde Henrique IV, nem para a incomparável evolução dos pensadores modernos, entre os quais basta citar Leibniz, Kant, Condorcet e Augusto Comte, nem para o irresistível ascendente da fraternidade universal na massa feminina e proletária, os políticos brasileiros se deixam fascinar pelas vitórias efêmeras da retrogradação no Ocidente europeu, no correr do século XIX.

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            Para dissipar essas funestas ilusões, nos limitaremos a lembrar aqui a lista das publicações a que aludimos. Elas podem ser encontradas em muitas das bibliotecas públicas do Brasil, além de que várias foram distribuídas pelos estadistas brasileiros a ocidentais, sobretudo americanos.

            A essa lista, juntaremos apenas 2 ordens de ponderações. Eis a lista de que nos ocupamos:

Imigração chinesa. Mensagem ao embaixador chinês em Londres, 1881.

Question franco-chinoise. Idem, 1881.

Questão de limites entre o Brasil e Argentina, 1884.

Esboço biográfico de Benjamin Constant, fundador da República brasileira. Acha-se aí uma apreciação da diplomacia imperial especialmente da guerra do Paraguai, 1892.

Pelos indígenas brasileiros, 1894.

À nossa irmã a República do Paraguai. 1894.

A propos du conflit hispano-américain, Bulletin 2, 1898.

Sentence arbitrale de Berne, sur la contestation entre la France et le Brésil. Bulletin 8, 1900.

A questão do Acre. Boletins 22, 29, 30. 1901, 1903, 1904.

A questão com o Peru. Boletim 32, 1904.

A República e o militarismo, 1906.

O militarismo ante a política moderna, 1907.

A diplomacia e a regeneração social. I. A missão diplomática, II. A franqueza diplomática, III A Conferência de Haia em 1907, publicados estes últimos (III) também em francês, 1907.

Ainda os indígenas do Brasil e a política moderna, 1907.

Ainda o militarismo perante a política moderna. A propósito da agitação a que deu lugar a lei do sorteio, 1908.

 

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            Isto posto, a primeira das nossas observações atuais deduz-se logo da inspeção da lista precedente. Ela mostra que as intervenções acerca dos extravios solidários, diplomáticos e militaristas do governo brasileiro têm se tornado mais frequentes depois que o Ministério do Exterior foi confiado ao Sr. Paranhos do Rio Branco. Hora, quando se compara o conceito de que goza o Sr.Ministro do Exterior, e os seus antecedentes, qual dos presidentes que o têm apoiado, e quando se considera a situação do Brasil em relação às nações vizinhas, não se pode ter a mínima dúvida de que é ao atual Sr.Ministro do Exterior que cabe a responsabilidade capital da política dos governos brasileiros que por ele se têm guiado, e mesmo a dos governos sul-americanos alarmados. Eis por que devemos dirigir especialmente este apelo ao Sr.Ministro das Relações Exteriores.

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            Ninguém melhor do que o Sr.Ministro sabe o alcance real dos motivos que determinaram a sua elevação política. Porque os sucessos brasileiros dos arbitramentos aque ligou o seu nome podem ser tão legitimamente atribuídos à preeminência do seu patriotismo e da sua habilidade diplomática, como o fracasso brasileiro do arbitramento em que figurou o Sr. Joaquim Nabuco pode ser imputado à falta de civismo e à imperícia deste. Em tais litígios — como em todos os processos —, o êxito depende sobretudo das disposições dos juízes. A justiça das causas e o mérito dos negociadores, inseparável daquela, não podem, pois, ser aquilatados simplesmente pela sentença, frequentemente tão cega como a sorte das guerras.

            Aliás, só por um abuso de linguagem poder seria invocar a justiça em semelhantes pleitos. Porque as nações ocidentais disputam-se então um território que elas arrancaram, com requintada crueldade, às ingênuas tribos fetichistas que o povoavam. Como dizia o velho José Bonifácio, cumpre não esquecer que todos são usurpadores.

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            Semelhante reflexão mostra logo que o arrastamento com que a turba-multa dos letrados políticos brasileiros aclamou os sucessos diplomáticos do Sr.Ministro do Exterior foi devido unicamente à anarquia moral e mental da sociedade contemporânea, que perdeu a moral e a fé teológicas sem ter ainda achado a moral e a fé científicas. A marcha do povo brasileiro, lisonjeada no seu amor-próprio nacional, acompanhou o cegamente as classes dominantes que o desnorteiam em vez de dirigi lo.

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            Tais foram as circunstâncias que determinaram o último presidente e o seu sucessor, ligados espontaneamente pelos seus precedentes monarquistas, a confiarem a conduta da diplomacia brasileira, e mesmo sul-americana, ao Sr.Ministro do Exterior. Nesta situação excepcional, o Sr.Ministro podia, e pode ainda, transformar a sua elevação política em pedestal de uma verdadeira glória, tornando-se o promotor abençoado da paz sul-americana.

            A política positiva não discute a origem das forças sociais, e propõe-se apenas a dirigir a aplicação dessas forças, segundo os interesses supremos da Humanidade. E assim tem procedido o Apostolado Positivista do Brasil, desde o seu início.

            Fiel aos ensinos de Augusto Comte, o Apostolado Positivista tem, portanto, apelado continuamente para o altruísmo e a razão do Sr.Ministro do Exterior, esforçando-se por patentear e todo o bem que a sua posição lhe proporciona fazer, toda a glória que daí reverterá para o povo brasileiro e para o seu nome individual, e assinalado, indiretamente, a gravidade da condenação em que está incorrendo e fazendo incorrer o povo brasileiro, persistindo na política militarista do Império.

            Da mesma maneira que quando pela vamos para o altruísmo e a razão do ex-imperador D. Pedro II, não nos desanima o contraste entre a iminente posição política do Sr.Ministro do Exterior e a nossa humildade apostólica. Porque somos apenas órgãos, imperfeitíssimos embora, da elite das almas humanas, mulheres e homens em todos os tempos em todos os lugares, condensadas pela evolução social em Augusto Comte. Em tais condições, é essa elite a quem ouviria o Sr.Ministro, e não a nós; como é essa elite que o Sr.Ministro desconhece quando menospreza as reflexões de que somos apenas fiéis transmissores.

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            Apoiados em tais convicções, ainda uma vez solicitamos a atenção do Sr.Ministro do Exterior parar a meditação científica do Passado e a previsão, também científica, da Posteridade, sem as quais o nosso tempestuoso Presente não pode ser compreendido, e, portanto, guiado.

            A evolução da Humanidade é regida por leis naturais tão superiores à intervenção dos homens como as leis astronômicas. Seja qual for o poder de que um povo ou um estadista pensem dispor, em um momento dado, esse povo e esse homem são fatalmente dominados pelas leis da evolução social. O homem se agita e a Humanidade o conduz.

            Todo o poder dos povos e dos homens só lhe permite perturbarem momentaneamente tal evolução, se lhe for contrário, ou acelerarem-na, se lhe for favorável. Daí resulta que a Posteridade não poderá nem ser frustrada, nem ser corrompida, os aplausos e os sucessos do Presente são impotentes para conter ou desviar a obra secular das gerações.

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            Em virtude dessa evolução, o futuro do povo brasileiro será o que ela determina, e não o que o amor-próprio dos estadistas atuais pode ambicionar. Assim como o povo brasileiro quebrou a unidade política da raça lusitana, o mesmo povo fragmentar se há em nações independentes politicamente, desde que a fatal vulgarização da poesia, da ciência, e da indústria, houver permitido satisfazer plenamente às aspirações da fraternidade universal. Igualfuturo aguarda os grandes Estados atuais, grandes pelo território. É, pois, para o encaminhamento pacífico desse ideal inevitável de livre união religiosa, que devem convergir todos os esforços dos verdadeiros estadistas.

 

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            Daí decorre o dever atual de manter a paz a todo o transe. Só a invasão do território brasileiro, não contestado e habitado efetivamente por brasileiros, e não simplesmente explorado por aventureiros, pode justificar hoje a repulsa pelas armas. Mas, mesmo então, cumpre não proceder para com os povos mais fracos ou equivalentes, como não se procederia para com os povos mais fortes. É preciso ter sempre presente a conduta tantas vezes observada e ainda ultimamente seguida por ocasião da ocupação inglesa da ilha da Trindade.

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            Ora, seria simplesmente quimérico imaginar um ataque dessa ordem por parte das nações que cercam o Brasil. Lemos o folhetoCorrendo o véu, e essa leitura basta para mostrar quanto seria fácil ao Sr.Ministro do Exterior dissipar todas as apreensões ali enumeradas.

            A homogeneidade social dos povos sul-americanos assegura desde logo ao povo brasileiro, à vista de uma superioridade numérica e de sua posição geográfica, uma força política que o torna o principal responsável pela página América do Sul. Acresce que a vulgarização da Religião da Humanidade aqui, vulgarização que não existe em grau comparável nas outras nações sul-americanas, inclusive o Chile, apesar dos esforços dos nossos correligionários Lagarrigue, torna essa responsabilidade ainda mais irrecusável.

 

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            De sorte que, da elevação moral e política do governo brasileiro depende essencialmente hoje a dissipação de todas as prevenções e preconceitos nacionalistas dos povos que rodeiam o Brasil, em relação a este.

            Por outro lado, a política positiva demonstra que, apesar dos manejos quaisquer da política brasileira, a paz sul-americana poderia ser mantida, se as nações que rodeiam o Brasil ouvissem os conselhos de Augusto Comte. Mas a falta de propaganda positivista sistemática nessas nações as expõeàs ciladas de um cego amor-próprio nacional. E isso constitui uma atenuante para os extravios políticos dos respectivos governos, atenuante que se torna agravante para a conduta militarista do governo brasileiro.

 

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            Cremos que seria inútil insistir mais para patentear ao Sr.Ministro do Exterior quanto urge que ele coloque a sua elevação política ao serviço real da causa da Humanidade, que é, ao mesmo tempo, a causa do povo brasileiro. Semelhante atitude lhe granjearia uma glória imortal; ao passo que a persistência da diplomacia imperial só pode acarretar uma inevitável condenação por parte da elite dos contemporâneos e do conjunto da Posteridade, tanto sobre a sua memória, como sobre esta angustiosa fase

histórica do povo brasileiro.

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            Quanto à nossa segunda ordem de reflexões, refere-se à conduta dos republicanos brasileiros, isto é, daqueles para os quais a república significa a supremacia da fraternidade universal, buscando na poesia, na ciência, e na indústria, os únicos elementos da grandeza nacional.

            Os nossos antecedentes históricos e toda a evolução brasileira e americana, depois da nefanda guerra do Paraguai, induzem a crer que a agitação militarista atual e os extravios imperialistas da diplomacia brasileira não terão poder de suscitar uma nova luta fratricida entre as nações sul-americanas. Entretanto, essas cruéis circunstâncias bastam para fomentar um sobressalto político e moral extremamente favorável a todas as perturbações sociais.

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            Nessas condições, devemos recordar que a nenhum patriota, civil ou militar, é lícito colaborar na política imperialista atual do governo brasileiro, e muito menos tomar parte em guerras que possam resultar de tal política. Todos os sacrifícios, pessoais, domésticos, e cívicos, devem ser preferidos, sem hesitação, a contribuir-se para a renovação das monstruosas lutas que têm ensanguentado e desonrado a memória dos povos americanos.

            Cumpre, pois estarem todos preparados para recusar obedecer a qualquer ordem do governo nesse sentido, preferindo os ultrajes de que foi vítima o velho José Bonifácio, por parte dos seus contemporâneos, e mesmo o martírio de Tiradentes, votado à infâmia pelos que se proclamavam então os órgãos do povo lusitano. Tudo deve ser aceito, menos prestar-se a ser instrumento de estadista que se transformarem em algozes da humanidade e das pátrias sul-americanas.

            E temos fé que os brasileiros de onde não consentiram em ser cegamente arrastados a macular sacrilegamente, em carnificinas de canibais, o emblema de aspirações regeneradoras da Humanidade, que Benjamin Constant lhes legou. Para afastarmos horrorizados tamanha catástrofe, basta a lembrança de que a política imperial que se tenta reviver conduziu os nossos antepassados a profanarem, em ferozes guerras fratricidas, civis e sul-americanas, e na persistência dos crimes em nome da escravidão africana, o símbolo que o velho José Bonifácio lhes dera, a fim de evocar habitualmente as mesmas aspirações, resumidas desde então na sua fórmula: A sã política é filha da moral e da razão.

Pela Igreja e Apostolado Positivista do Brasil,

R. Teixeira Mendes,

Vice-Diretor

 

Em nossa sede, Templo da Humanidade, rua Benjamin Constant, nº 30.

Rio, 10 de Moisés de 120 (10 de janeiro de 1908).

 

(Publicado na seção ineditorial do Jornal do Commercio de 11 de janeiro de1908)


09 setembro 2025

"Ordem e Progresso" em tempos de fascismo e identitarismo

No dia 8.9.2025 o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o meu artigo "Ordem e Progresso" em tempos de fascismo e identitarismo.

O original está disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/ordem-e-progresso-em-tempos-de-fascismo-e-identitarismo/.

Reproduzimos abaixo o texto.

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‘Ordem e Progresso’ em tempos de fascismo e identitarismo

Desmoralização da direita e da esquerda e fim dessa polarização Por Gustavo Biscaia de Lacerda


Bandeira do Brasil - Ordem e Progresso (foto de André Maceira, CC)

Com uma certa e triste frequência, a frase “Ordem e Progresso” é alvo de polêmica. Geralmente, essas polêmicas envolvem o sentido da ordem e sua importância para o progresso, resultando em oposição entre direita e esquerda.

Um exemplo disso é o artigo que Djamila Ribeiro publicou em 28 de agosto na Folha de S. Paulo, intitulado “Independência ou morte”. O subtítulo desse texto resume as ideias e o conhecimento que a autora tem do “Ordem e Progresso”: “Pensar de forma independente é recusar o mito da ordem e progresso”.

Em um artigo que se esmerou em citar autoras feministas, a autora referiu-se uma única vez ao “Ordem e Progresso”, foi incapaz de explicar o que significa essa frase e resumiu a “ordem” à “manutenção da desigualdade”.

À parte sua escandalosa superficialidade, a autora repetiu um procedimento que, infelizmente, é corrente na esquerda, ao resumir a “ordem” ao status quo, à sociedade capitalista, à paz de cemitério ou a uma combinação desses sentidos.


Embora a esquerda faça questão de degradar dessa forma a noção de ordem, a direita faz questão de não se sair melhor ao tratar do “Ordem e Progresso”, na medida em que, por seu turno, despreza o progresso.

Ora, os erros da direita e da esquerda sobre o “Ordem e Progresso” são mais que fruto de ignorância; eles são mais que fruto de preconceitos e revelam disposições morais e políticas profundas e altamente danosas para a sociedade brasileira e para a Humanidade.


2 erros simétricos da direita e da esquerda

Direita e esquerda cometem erros simétricos a respeito do “Ordem e Progresso”. Elas assumem que: (1) ordem e progresso podem e devem ser encarados separadamente; (2) a ordem deve vir antes do progresso. É claro que essas considerações podem ser feitas isoladamente, mas, no caso da frase “Ordem e Progresso”, presente na bandeira nacional, todas elas estão erradas.

É natural que direita e esquerda considerem a ordem separadamente do progresso; na verdade, suas respectivas perspectivas exigem tal separação e definem-se exatamente pela parcialidade de suas vistas. Enquanto a direita valoriza a ordem contra o progresso, a esquerda afirma o progresso contra a ordem.

Para a direita, a ordem é o valor social primordial, tomando como base a memória das relações sociais antigas; o progresso, que implica mudança, corresponde à alteração sistemática das relações sociais — o que, para eles, é ruim. Essa concepção é estática; não por acaso, na direita estão os “conservadores”, embora, no fundo, eles devam ser chamados de “retrógrados”.

Já a esquerda quer o progresso sistemático; sua concepção é dinâmica, mas, por outro lado, ela considera que o passado (quando não o presente) é uma constante e eterna injustiça, que, portanto, deve ser destruída. Embora deseje ser progressista, a esquerda busca ser revolucionária e, ainda mais, destruidora.

Direita e esquerda entendem de maneira oposta a ordem e o progresso. A direita sacrifica o progresso em nome de uma ordem estática que tende a ser retrógrada; a esquerda sacrifica a ordem em nome de um progresso que tende a ser destruidor. É evidente que essas duas perspectivas são inconciliáveis e insustentáveis. A única solução é unir, de maneira íntima, a ordem com o progresso, entendendo-os como dois aspectos de uma realidade única.


Nos termos de Comte, ordem e progresso não são opostos e excludentes

Ora, embora possa parecer banal e trivial, é necessário que ordem e progresso não sejam definidos de maneiras opostas e excludentes, mas complementares. Para que ordem e progresso sejam dois aspectos de uma realidade única, a ordem tem que ser vista como dinâmica, e o progresso tem que considerar a manutenção da sociedade.

Nos termos claros e precisos de Augusto Comte, “o progresso é o desenvolvimento da ordem” e “a ordem é a consolidação do progresso”: apenas dessa forma é possível superar a oposição sociológica, filosófica e política entre a ordem e o progresso.

Unir a ordem ao progresso e, inversamente, o progresso à ordem implica necessariamente que a ordem tem que deixar de ser retrógrada e o progresso tem que deixar de ser destruidor. A direita tem que reconhecer o movimento e a busca de melhorias; a esquerda tem que abandonar o espírito destruidor e a concepção de que a ordem é sempre estática. Ambas têm que deixar de lado as concepções de que o antigo é bom ou ruim e que o novo é ruim ou bom apenas porque o antigo é antigo e o novo é novo.

Direita e esquerda — ou melhor, ordem e progresso — definem-se um em relação ao outro. A oposição mútua entre eles tem vários resultados negativos. O primeiro deles é que, se um nega o outro, nenhum deles é realmente levado a sério e nenhum dos dois se mantém.

Em segundo lugar, a negação mútua da ordem e do progresso faz com que os traços negativos de cada um deles se acentuem: a ordem torna-se cada vez mais retrógrada e o progresso, cada vez mais revolucionário, tornando-se anárquico. Em consequência disso, o embate mútuo torna-se ao mesmo tempo retrógrado e anárquico.

Em terceiro lugar, esse embate descamba para uma oscilação social e política, com períodos de ordem (estática) e de progresso (revolucionário). Essa é a dinâmica ocidental (e, por extensão, mundial) desde a Revolução Francesa.

As narrativas liberais e marxistas reproduzem a oposição entre direita e esquerda, ou seja, entre ordem e progresso, e são incapazes de perceber e reconhecer a oscilação: o século 19 caracterizou-se por isso; o período da II Guerra dos 30 Anos (1914-1945) caracterizou-se pela mesma oscilação; e a Guerra Fria (1947-1991) transformou a oscilação em disputa geopolítica.

A afirmação atual entre, por um lado, os tradicionalismos e sua forma política mais extrema, o neofascismo, e, por outro, os identitarismos, é apenas a versão mais recente e agressiva da oposição entre ordem e progresso.


Superação da oposição entre ordem e progresso

A superação da oposição entre ordem e progresso não é uma política de “centro”; é uma política que é ao mesmo tempo progressista, sem ser revolucionária, e que busca manter as instituições sociais sem ser retrógrada.

Essa política não é de extrema esquerda, o que a torna suspeita para a esquerda; ela não é de extrema direita, o que a torna suspeita para a direita. Ela respeita a história, sem ser tradicionalista; ela afirma o progresso, sem ser destruidora. Essa política não apenas rejeita os graves e profundos erros da direita e da esquerda, como torna esses dois lados (e sua oposição mútua) irrelevantes.

Não é por acaso que essa política é alvo dos fascistas e dos identitários; não é por acaso que tanto os asseclas dos Bolsonaros quanto Djamila Ribeiro critiquem o “Ordem e Progresso”. Eles não o conhecem, não o entendem e rejeitam-no; mas, com certeza, intuem que o “Ordem e Progresso” corresponde à superação de suas perspectivas opostas, ou seja, da necessária desmoralização desses opostos irreconciliáveis e do urgente fim dessa polarização.

Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR.

05 setembro 2025

Celebração da transformação de Augusto Comte

No dia 24 de Gutenberg de 171 (5.9.2025) realizamos uma prédica extraordinária, cumprindo nosso dever moral e religioso de realizar o culto público da transformação de nosso mestre e pai espiritual, Augusto Comte.

Seguindo o calendário oficial da Igreja Positivista do Brasil, a data da transformação de Augusto Comte também é dedicada a celebrar o último dos três anjos de A. Comte, sua filha adotiva, Sofia Bliaux.

Como parte da celebração lemos também dois poemas, um de Miguel Lemos (Comemoração anual da morte de Augusto Comte) e outro de Teixeira Mendes (A hora terrível).

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://youtube.com/live/sxc63HIXrww) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://www.facebook.com/IgrejaPositivistaVirtual/videos/760644740162261).

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

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Celebração da transformação de Augusto Comte (171/2025)

(24 de Gutenberg de 171/5.9.2025) 

1.      Invocação inicial

2.      Hoje celebramos o 168º aniversário de transformação de nosso mestre, Augusto Comte

2.1.   Essa é uma data importante, tanto pelo desastre religioso e subjetivo que representou para a Humanidade quanto pela acontecimento objetivo que ocorre com todos nós

2.2.   Seguindo o calendário de festas da Igreja Positivista do Brasil, comemoramos também Sofia Bliaux (1804-1867), a filha adotiva de Augusto Comte

2.3.   Esta nossa pequena celebração não será original – na verdade, nunca é possível, nem mesmo necessário, sermos nem sempre nem totalmente originais

2.4.   Com adaptações e modificações secundárias, retomaremos daqui a pouco três documentos: (1) a celebração de Sofia que realizamos em 169/2023; (2) o belo documento de Miguel Lemos, que é um verdadeiro poema em prosa, a Comemoração anual da morte de Augusto Comte, de 1884; (3) por fim, o belo poema de Teixeira Mendes, A hora terrível, de 1917 (?)

2.4.1.     O documento de Miguel Lemos e o poema de Teixeira Mendes foram enviados por nosso amigo Hernani Gomes da Costa

2.5.   Ao lermos as celebrações de Miguel Lemos e Teixeira Mendes, nós reconhecemos a superioridade sintética desses outros nossos pais espirituais como, também, homenageamo-los

3.      Antes de passarmos às comemorações, algumas palavras sobre a “transformação”

3.1.   A transformação é um dos nove sacramentos positivistas – o oitavo –, o que marca a morte do servidor da Humanidade

3.1.1.     A morte não é o fim da pessoa; certamente é o encerramento da vida objetiva, do processo de trocas contínuas e permanentes entre o corpo e o ambiente; mas isso não equivale a dizer que aquele servidor da Humanidade não atua mais: a sua atuação mantém-se e até aumenta, mas agora em termos puramente subjetivos

3.1.2.     Lembramos as belíssimas frases da poetisa francesa Elisa Mercoeur, que não por acaso eram citadas por nosso mestre:

3.1.2.1.           “O olvido é o nada; a glória é a outra vida”

3.1.2.2.           “Quem deixa um nome pode morrer?”

3.1.2.3.           “A pedra do sepulcro é seu primeiro altar”

3.2.   Por que em termos positivos nós dizemos “transformação” e não “morte”?

3.2.1.     Não se trata de um eufemismo, mas de uma afirmação da realidade subjetiva humana: embora triste por si só, a transformação encerra a vida objetiva e inicia plenamente a vida subjetiva de cada um de nós nos outros – ou seja, vivemos para os demais para revivermos nos demais

3.2.1.1.           O nascimento deve ser sempre valorizado, mas é com a transformação que podemos avaliar a atividade realmente desenvolvida pelos indivíduos e, daí, podemos avaliar se foram altruístas ou egoístas, construtivos ou destruidores etc.

3.2.1.2.           Dessa forma, o nascimento é apenas uma promessa: certamente, sempre uma bela e fundamental promessa, mas, ainda assim, apenas uma promessa, uma esperança, que pode ou não se realizar; por isso, é com a transformação que avaliamos e, ainda mais, que celebramos efetivamente a vida de cada um

3.2.1.3.           Assim, a data da transformação é realmente uma data para ser celebrada

4.      Entendido o que é a transformação, passemos, então, à celebração de Sofia

4.1.   No calendário da Igreja Positivista do Brasil, no dia 19.1 celebramos o nascimento de Augusto Comte e a memória de sua mãe, Rosália Boyer; no dia 8.10, celebramos a festa de Comte e Clotilde

4.2.   Assim, considerando a importância de Sofia para a vida de Augusto Comte e a instituição dos seus “três anjos”, no dia 5.9 celebramos Sofia

5.      Sofia Bliaux nasceu em 18.9.1804, na pequena comuna de Oissy, no Somme (Norte da França)

5.1.1.     Assim, ela era seis anos mais nova que Augusto Comte e 11 anos mais velha que Clotilde

5.2.   Quando criança mudou-se com os pais para Paris, onde levava uma vida pobre, tendo que trabalhar desde cedo, sempre com humildade e devotamento

5.3.   A obediência e o devotamento aos patrões era tanta que solicitou aos patrões a permissão para casar-se (no que foi atendida); seu marido, Martinho Thomas, era entregador de uma farmácia próxima à rua Monsieur-le-Prince; foi usando esse serviço, para receber poções e cremes de beleza, que Carolina Massin travou contato com Martinho Thomas e, a partir disso, soube das dificuldades crescentes de Sofia, que cuidava sozinha de uma casa grande com crianças que cresciam

5.4.   Após muitas insistências de Carolina Massin, Sofia afinal passou ao serviço de Augusto Comte em 1841, um ano antes de Carolina abandonar definitivamente o lar conjugal; na verdade, na época Sofia entrou ao serviço de Carolina e não propriamente ao de nosso mestre

5.5.   Logo Sofia percebeu, por um lado, que Carolina era uma péssima esposa e que não dava paz de espírito a nosso mestre; por outro lado, ela percebeu que Augusto Comte era uma pessoa simples, de existência modesta, mas cuja atividade era intensa e que era inteiramente dedicada à renovação moral, intelectual e social e que, por isso, precisava de apoio material

5.5.1.     A partir de uma humildade simples, confrontando a grandeza moral de Augusto Comte com sua própria existência modesta, ela entendeu que poderia e deveria dedicar-se a auxiliá-lo o máximo que pudesse

5.6.   Em 1842, quando Carolina Massin abandonou o lar pela última vez, Sofia permaneceu na rua Monsieur-le-Prince; mas, devido à vinculação inicial de Sofia com Carolina Massin, e devido à péssima experiência que tivera com sua ex-esposa, Augusto Comte desconfiava profundamente dela

5.6.1.     Apenas com o passar do tempo, e considerando as simpatias de Comte para com os proletários, Augusto Comte foi reconhecendo a sinceridade da devoção de Sofia e tornando-a, bem como ao seu marido, uma companheira habitual em seu lar

5.7.   Quando o amor de Comte por Clotilde irrompeu, logo Sofia percebeu a importância disso para o filósofo e com freqüência atuava como mensageira entre ambos; depois também se tornou confidente de Clotilde

5.8.   Devido à sua triste história, a saúde de Clotilde era frágil; em suas últimas semanas (março de 1846), Sofia foi enfermeira, cuidadora e verdadeira irmã de Clotilde, tendo pernoitado 18 dias na casa de Clotilde, até seu falecimento

5.8.1.     Após a morte de Clotilde, Sofia reconfortou Augusto Comte e mesmo o afastou de pensamentos de suicídio

5.9.   Em virtude da perseguição acadêmica que Augusto Comte sofria, em 1847 e, ainda mais, em 1848 ele perdeu seus modestos empregos acadêmicos; nesses dois anos, em 1847 e, depois, em 1848, Sofia e seu marido ofereceram suas economias para auxiliar Augusto Comte em suas despesas (despesas que em sua maior parte eram destinadas à pensão de sua ex-esposa); o primeiro oferecimento foi recusado, mas o segundo nosso mestre viu-se obrigado a aceitar

5.10.                   José Longchampt (Epítomeda vida e dos escritos de Augusto Comte, p. 85) afirma que Sofia converteu-se à Religião da Humanidade: “Foi por estas conversações diárias que Augusto Comte realizou, na única mulher que dele se aproximava, a primeira conversão à Religião da Humanidade”

5.11.                   Reconhecendo os sacrifícios feitos por Sofia ao longo dos anos, não apenas em termos de salário e de alimentação, mas também em termos de convívio com sua família, em 1848 Augusto Comte convidou Martinho Thomas que fosse morar em seu apartamento com Sofia e seu filho, o que o casal aceitou

5.11.1. Esse reconhecimento foi devido não apenas ao devotamento do casal, mas também devido à valorização da domesticidade e mesmo do casamento

5.11.2. Dando continuidade à afirmação da domesticidade em sua própria vida, Augusto Comte proclamou Sofia como sua filha em 18.7.1850, na cerimônia de casamento do dr. Segond

5.11.3. Mais tarde, a valorização de Sofia atingiu seu máximo com a consagração de ser indicada como um dos seus “três anjos”

5.12.                   Após a morte de nosso mestre, Sofia recebeu de Augusto Comte um retrato de Clotilde, bem como lhe foi destinado uma pensão até sua morte, sob responsabilidade dos executores testamenteiros, e o direito de residir no apartamento da rua Monsieur-le-Prince

5.13.                   Ela morreu em 5.12.1861; conforme solicitação explícita de nosso mestre em seu Testamento, ela foi enterrada juntamente com Augusto Comte, no “cemitério do Leste” (o Père Lachaise)

5.13.1. Em 28.3.1867 Martinho Thomas faleceu; seu filho, Paulo Thomas, ficou sob a responsabilidade de José Longchampt e tornou-se também positivista

6.      Passemos agora à leitura dos poemas de nossos apóstolos da Humanidade:

6.1.   Leitura da Comemoração anual da morte de Augusto Comte, de Miguel Lemos (1884)

6.2.   Leitura de A hora terrível, de Teixeira Mendes (1917?)

6.2.1.     Esse poema integra um conjunto poético-relogioso de Teixeira Mendes: Hino ao amor, O ano sem par, A dor sem nome, A hora terrível – dedicados ao altruísmo e à Humanidade, ao amor de Comte e Clotilde, à morte de Clotilde e à morte de Augusto Comte 

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Miguel Lemos: “Comemoração anual da morte de Augusto Comte” (1884)[1] 

COMEMORAÇÃO ANUAL 

DA MORTE DE 

AUGUSTO COMTE 

24 DE GUTENBERG DE 69

(5 DE SETEMBRO DE 1857)

 

Tu duca, tu signore, e tu maestro[2].    

(Dante, Inferno, Canto II.)               

 

A Igreja Positivista celebra hoje a entrada do seu glorioso Fundador na imortalidade subjetiva.

Aos 24 de Gutenberg de 69 Augusto Comte era surpreendido pela morte em meio de sua tarefa ingente. Morria na pobreza, quase na obscuridade, rodeado apenas por um pequeno número de discípulos fiéis e só conhecido, fora deste grêmio, por aqueles que ele opulentara com as migalhas de seu gênio, e que ocultavam cuidadosamente a origem de tão súbita riqueza. Muitos deles pagaram-lhe as lições com o insulto, com a calúnia e com a traição...

Essa vida que terminava inopinadamente aos 59 anos fora toda consagrada com uma competência excepcional de coração, de inteligência e de caráter à solução do problema religioso.

Dar à sociedade futura uma religião científica, sem mistérios, sem absurdos, baseada na totalidade dos conhecimentos positivos e tendo por alvo supremo o maior aperfeiçoamento do homem, tal foi o fim que se propôs o grande Pensador.

O problema impunha-se com o peso de todo o passado. Resolvê-lo era reatar de novo o fio das idades e congraçar outra vez o homem com o homem. E por este modo a religião depois de ter sido espontânea no período fetichista, inspirada na fase politeica, revelada durante a concentração monoteísta, tornava-se, enfim, demonstrada. Diis extinctis, Deoque, successit Humanitas[3].

A profecia de José de Maistre estava realizada. Aparecera o homem prodigioso que devia terminar a obra demolidora do século XVIII, reunindo em si as afinidades da ciência e da religião.

Este empreendimento Augusto Comte o levou a cabo com um saber e uma grandeza moral inexcedíveis.

Foi um sábio e um santo.

A sua instrução aristotélica abraçava todas as ciências existentes no seu tempo, desde a Matemática até a Biologia. Criou mais uma, a Sociologia e lançou os fundamentos da Moral.

A sua abnegação não teve superior. Perseguido pelos corifeus da ciência oficial, viu-se despojado com a máxima iniqüidade das modestas ocupações que exercia, e aceitou a miséria com a serenidade do justo.

O pão chegou a faltar-lhe. Um dia a sua criada, testemunha comovida de tão dolorosa situação, lançou-se-lhe aos pés e rogou-lhe com lágrimas que aceitasse o pequeno auxílio de suas economias para não ver o seu amo morrer à fome!

O coração da humilde proletária compreendera o heroísmo desse homem, tão firme com os poderosos e tão bom para com os fracos e os pequenos.

Finalmente, um amor puro e imenso, assombro e escândalo da grosseria contemporânea, o elevou, sob o santo impulso de Clotilde de Vaux, às alturas ideais do mais sublime entusiasmo.

Aristóteles pela inteligência, São Paulo pelo coração, Júnio Bruto pelo caráter, tal foi o fundador da Religião da Humanidade.

Os Pósteros saberão comemorar melhor do que nós essa incomparável existência, para cuja apoteose concorreram todos os esplendores da arte regenerada por um novo culto e alimentada por uma comunhão espiritual até hoje desconhecida.

Do seio da paz universal irromperão os hinos sagrados em louvor do Divino Mestre. Todas as raças, todas as pátrias, todas as famílias, congraçadas por uma crença comum, instruídas do Passado, seguras do Porvir, recordarão unânimes os grandes serviços do egrégio Fundador.

Por enquanto cumpre ainda vencer. Os frêmitos da luta perturbam a expansão religiosa do dia de hoje. Um dia de festa é para nós um dia de trégua apenas. Amanhã será necessário continuar o apostolado, convencer, persuadir, repelir a calúnia e sofrer a injúria.

Não importa. As profecias científicas não mentem e os sinais certos da vitória já estão por toda parte.

Com os olhos fitos nessa unidade religiosa do futuro, Jerusalém espiritual e cidade celeste, sonhadas pelas grandes almas de Israel e do Catolicismo, satisfação real as aspirações prematuras dos generosos utopistas, termo da miséria e da guerra, advento da fraternidade universal, recordemos hoje os exemplos legados pelo indefeso Lidador e façamos votos de imitar a sua constância inabalável e a sua sublime dedicação pelos destinos da Humanidade.

 

Miguel Lemos,                     

Diretor da Igreja Positivista do Brasil.       

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 Raimundo Teixeira Mendes: A hora terrível (1917?)[4] 

A HORA TERRÍVEL 

ENSAIO RELIGIOSO SOBRE A MORTE DO NOSSO SANTÍSSIMO MESTRE 

(Sugerido pelo Stabat Mater[5])

 

A dor que o Pai martiriza

Prende exausta a humilde Filha

Ao leito onde Ele agoniza...

No seu rosto já não brilha

A viva luz da esperança

Do Porvir mostrando a trilha...

Vago o olhar saudoso lança

Lampejos nas murchas Flores

De Clotilde augusta herança...

E os sumidos estertores

Vão o silêncio quebrando

Daquela tarde de horrores...

Té que aos lábios assomando

O sopro final s’exala,

Num terno beijo os cerrando...

Enquanto a alma que estala

Da miseranda Sofia

A catástrofe assinala...

Finda assim tua agonia

De amor num sublime extremo;

Mas a nossa principia

Nesse momento supremo

Em que geme a Humanidade

O seu infortúnio extremo...

Sua doce potestade

Em teu gênio condensara

De Clotilde a santidade.

E destarte em Ti salvara

Seu Porvir que o cego Fado

Em hora infausta arriscara...

Pobre Mãe! acabrunhado

Seu amor treme de ver-te

Precoce à vida arrancado...

Para os dias proteger-te

De um Anjo deu-te o desvelo...

Foi discípulos escolher-te...

Mão não pode o santo zelo,

Movendo o surdo Destino,

Sequer no curso detê-lo!...

No teu serviço divino,

Do terço final em meio,

Pende exame repentino

Da Humanidade no seio,

A fronte qu’Ela tornara

O seu sublimado esteio!...

Oh! como tem sido amarga

A feitura desse manto

Que contra o mal nos ampara!

Que de sangue! que de pranto!

Não tem a Deusa vertido

Nesse labor sacrossanto!

Porém o peito transido

De dor jamais tão pungente,

Sofreu qual quando, caído,

Nos braços sentiu-se algente,

Resumo do seu Passado,

Do seu Porvir, seu Presente!...

Doce Mãe! Nos fosse dado,

Na dor que teu peito estua,

Sentir o nosso abrasado...

Fundir nossa alma na sua

Entre seus Anjos queridos...

Estancar a fonte crua

Dos teus acerbos gemidos!...

R. Teixeira Mendes                          

 ______

 7.      Invocação final

 

Referências

- Augusto Comte (port.), Catecismo positivista (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 4ª ed., 1934)

- Gustavo Biscaia de Lacerda (port.): Celebração de Sofia Bliaux; celebração de José Bonifácio (Curitiba, Igreja Positivista Virtual, 6.9.2023): https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2023/09/celebracao-de-sofia-bliaux-celebracao.html

- Gustavo Biscaia de Lacerda (port.): Celebração da transformação de Augusto Comte (Curitiba, Igreja Positivista Virtual, 6.9.2024): https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2024/09/celebracao-da-transformacao-de-augusto.html

- José Longchampt (port.): Epítome da vida e dos escritos de Augusto Comte (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898): https://archive.org/details/joseph-longchampt-epitome-da-vida-e-dos-escritos-de-a.-comte

- Miguel Lemos (port.): Comemoração anual da morte de Augusto Comte (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1884; n. 21 do catálogo da IPB): https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2025/09/miguel-lemos-comemoracao-anual-da-morte.html

- Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes (port.): Comemoração anual da morte de Augusto Comte/A hora terrível (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1936; n. 21 e 404E do catálogo da IPB): https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2025/09/miguel-lemos-e-teixeira-mendes.html

- Raimundo Teixeira Mendes (port.), As últimas concepções de Augusto Comte (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898): https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-ultimas-concepcoes-de-augusto-comte-i e https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-ultimas-concepcoes-de-augusto-comte-ii.

- Raimundo Teixeira Mendes (port.), O ano sem par (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900): https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-o-ano-sem-par-portug._202312/page/n7/mode/2up.



[1] Transcrevemos a edição de 1936, mantendo a pontuação, mas atualizando a ortografia. A publicação original é de 96 (1884) e constitui o n. 21 do catálogo da Igreja e Apostolado Positivista do Brasil. Uma versão em francês foi incluída em uma publicação de 5 de setembro de 1951, em homenagem aos 2.000 anos da cidade de Paris; essa publicação foi reeditada em 1957, por ocasião do centenário da morte de Augusto Comte; correspondendo ao n. 548 do catálogo da Igreja Positivista, teve por título “Paris – publication commémorative de son bimillénaire – deuxième édition au centenaire de la mort d’Auguste Comte”.

[2] Em italiano no original: “Você é duque, você é senhor e você é mestre”.

[3] Em latim no original: “Mortos os deuses, e deus, sucedeu-lhes a Humanidade”.

[4] Transcrevemos a edição de 1936, mantendo a pontuação, mas atualizando a ortografia.

[5] Na Wikipédia há a seguinte explicação sobre o Stabat Mater: “O Stabat Mater (latim para Estava a mãe) é uma prece ou, mais precisamente, uma sequentia católica do século XIII. / Há dois hinos que são geralmente chamados de Stabat Mater: um deles é conhecido como Stabat Mater Dolorosa (Sobre as dores de Maria) e o outro, chamado Stabat Mater Speciosa, que, de maneira alegre, se refere ao nascimento de Jesus. A expressão Stabat Mater, porém, é mais utilizada para o primeiro caso – um hino do século XIII, em honra a Maria e atribuído ao franciscano Jacopone da Todi ou ao papa Inocêncio III” (https://pt.wikipedia.org/wiki/Stabat_Mater, acesso em 1.8.2024).