No dia 25 de maio de 2020, na cidade de Minneapolis (capital de
Minnesota), um negro de 46 anos chamado George Floyd
foi parado pela polícia. Floyd foi imobilizado e, durante quase dez minutos, seu
pescoço foi pressionado pelo joelho de um policial branco, resultando em sua morte,
mesmo após dizer várias vezes que “I can’t
breathe” (“eu não consigo respirar”) e também que não podia mover-se; a
ação foi amplamente filmada e teve a assistência passiva de outros policiais
que nada fizeram em benefício da vítima. O vídeo da ação evidencia que George
Floyd – trabalhador desempregado devido à pandemia de covid-19 – foi realmente
um assassinato, um exercício de brutalidade policial com conotações racistas,
em um país que é historicamente dividido em termos raciais (em particular “brancos”
vs. “negros”). As cenas são claras e
brutais (como se pode ver aqui)
e tudo isso gerou imediatamente reações e manifestações pelo mundo inteiro,
incluindo manifestações presenciais (a despeito da pandemia), contra a
violência policial e, ainda mais, contra o racismo.
Parte dos protestos anti-racistas dirigiu-se para os
símbolos institucionais do racismo, isto é, para estátuas homenageando homens
que foram racistas e/ou que promoveram a escravidão (negra em particular); tais
estátuas foram depredadas, vandalizadas e mesmo retiradas de suas bases.
Nesse sentido, não apenas monumentos de mercadores de escravos foram atingidas,
como também as de líderes como o rei belga Leopoldo II (que explorou de maneira
vil o Congo no início do século XX), o primeiro-ministro britânico Winston
Churchill (que tinha preconceitos de raça e liderou a Inglaterra na resistência
contra o nazismo na II Guerra Mundial), os exploradores europeus Cristóvão
Colombo (que descobriu as Américas) e James Cook (que descobriu a Oceania e a Polinésia),
além de muitos outros. Mais recentemente, nos Estados Unidos, a direção da
Universidade de Princeton decidiu mudar o nome da Escola de Relações
Internacionais, suprimindo
a referência ao ex-Presidente dos EUA e ex-professor dessa faculdade
Woodrow Wilson: embora tenha sido o responsável pelo decisivo ingresso dos EUA
na I Guerra Mundial e a favor da Tríplice Entente (ou seja, do lado da França e
da Inglaterra) e, depois da guerra, tenha sido o grande patrocinador político e
moral da Liga das Nações (a predecessora do que, após 1945, viria a ser a Organização
das Nações Unidas), além de ter lançado as bases do que se chamou, depois, de “teoria
idealista de relações internacionais”, o sulista Wilson era racista e a favor
da segregação racial dos negros.
Essa decisão de Princeton, bem como os ataques às estátuas,
merecem várias reflexões a partir do Positivismo. Senão, vejamos.
Antes de mais nada, o Positivismo, ou melhor, a Religião da
Humanidade sempre foi radicalmente contra o racismo e a favor da integração das
“raças”. Em termos teóricos, o Positivismo sempre afirmou que as raças devem
ser entendidas em termos sociológicos e nunca biológicos; aliás, no que se
refere à Biologia, a Religião da Humanidade sempre teve enorme clareza de que
existe apenas uma espécie, a espécie humana, ou, como se diz em inglês, “there is only one race, the human race” (“há apenas uma raça, a
raça humana”). Em termos práticos, os
positivistas sempre combateram a escravidão e afirmaram a importância da
mistura das “raças”: no Brasil, por exemplo, ser dono de escravos antes de 13
de maio de 1888 era motivo para expulsão sumária dos grêmios positivistas; além
disso, após a gloriosa Proclamação da República em 15 de novembro de 1889, os
positivistas foram os responsáveis pela transformação do 13 de maio em feriado
nacional, celebrando a união nacional e a contribuição de todas as “raças” para
a ordem e o progresso nacional; por fim, sempre fomos a favor de medidas
públicas com vistas à integração dos negros e, de modo mais amplo, dos
ex-escravos à sociedade, em vez de deixá-los largados à própria sorte (como
acabou ocorrendo).
Os comentários do parágrafo anterior são necessários para que
não haja absolutamente a menor dúvida quanto ao sentido do que escreverei
abaixo e, de modo específico, para que não haja a menor dúvida de que sou contra
o racismo e de que sou a favor da integração social e política dos “negros” à
sociedade.
Considerando a decisão tomada pela Universidade de
Princeton, ela parece-me pura e simplesmente errada. Como comentei antes, não
defendo nem defenderei, nunca, o racismo; da mesma forma, não defenderei jamais
comentários racistas que W. Wilson tenha feito sobre os negros. Na verdade, eu
nem sabia que ele era racista. Mas essa ignorância a respeito do racismo de
Wilson é indicador de o quanto ele é homenageado por outros motivos e apesar do
racismo.
Como observei antes, ele foi o responsável pela participação
(decisiva) dos EUA na I Guerra Mundial, pela criação da Liga das Nações e pela
proposição do que se chama de “teoria idealista”: só isso já é título de glória
perene e imorredoura para Wilson. Não há dúvida de que tais títulos vinculados
à política externa não negam nem apagam o racismo interno, mas há que se pesar isso.
Há que se ter o devido relativismo histórico e considerar (1) que o que hoje é
(corretamente) inaceitável, um século atrás era desgraçadamente mais aceitável;
(2) que as ações de Wilson pelas quais ele é (ou era) homenageado na Escola de Relações
Internacionais de Princeton não se vinculam à política interna, mas à política
internacional; (3) que ele era, no final das contas, apenas um ser humano e um
ser humano de sua época e de seu lugar.
Essa decisão parece-me um erro que é motivado por uma paixão
do momento; uma paixão justa, não há dúvida, mas, ainda assim, por mais justa que
seja – e ela é, de fato, extremamente
justa (“I can't breathe”, se
duvidar, ficará marcado na história um pouco abaixo do “I have a dream” de
Martin Luther King) –, nada muda o fato de que se trata (1) de uma paixão, (2)
de uma paixão do momento e (3) que desconsidera princípios filosóficos
humanistas mais amplos – no caso, o relativismo histórico necessário para
avaliar as atuações de indivíduos em momentos que não os nossos. Não consigo
deixar de pensar que essa decisão consiste em uma espécie de versão “ideológica”
e invertida da “one-drop rule” (“regra
da gota única”), em que um desgraçado racismo contamina de maneira indelével,
permanente e irremissível todo o caráter e toda a vida do indivíduo.
O problema é que, afinal, quem é totalmente isento de
máculas? Poucos são – e, a bem da verdade, mudando os pensamentos e até os
preconceitos, sempre é possível encontrarmos defeitos insuspeitos em indivíduos
até então considerados perfeitos. Vejamos: Gandhi foi o
responsável por uma guerra civil entre hindus e muçulmanos na Índia e em
Bangladesh. Nos EUA, Lincoln
também era racista e contrário ao fim da escravidão, a despeito da 13ª
Emenda. Mesmo Martinho
Lutero Rei Filho era um pastor da religião dos brancos opressores.
No Brasil, há algumas décadas, tivemos a verdadeira histeria
contra Monteiro Lobato.
Eu gosto muito dos livros infantis dele, mas ele era cristão e em sua História
do mundo para crianças ele fez apologia do cristianismo, o que me
parece uma bobagem completa: por isso eu jogaria no lixo toda a sua obra? Ele
também reforçou o estereótipo contra os caboclos, com o Jeca Tatu: deveríamos jogar
no lixo toda a sua obra? No que se refere ao suposto racismo da Emília contra a
tia Nastácia, deveríamos jogar fora o Sítio do Picapau Amarelo e condenar
Monteiro Lobato? (De passagem, as propostas para jogar na lata do lixo toda a
obra de Monteiro Lobato vieram do movimento negro informado pelos EUA – o mesmo
movimento que considera a miscigenação uma forma de genocídio!) O que o
relativismo histórico recomendava, e recomenda, para uma situação com essa?
Evidentemente, manter a obra de Monteiro Lobato e indicar que é inaceitável o
racismo demonstrado naquela passagem específica.
Esse relativismo histórico a que estamos referindo-nos
consiste em entender que cada indivíduo integra sua época e, portanto, está
condicionado pelos valores, pelas idéias e pelas práticas dessa época. Esse “condicionamento”
o mais das vezes significa que os indivíduos estão limitados por suas épocas, embora os grandes indivíduos sejam
justamente aqueles que conduzem, orientam, guiam os demais para além de suas
épocas. Os valores, as idéias e as práticas de cada época, por mais que possam
ser condenáveis em outros momentos (anteriores ou posteriores) devem ser
entendidos como próprios àquele momento e, portanto, muitas vezes simplesmente
não faz o menor sentido criticarmo-los. Um exemplo banal: o gigante intelectual
que foi Aristóteles
(384 aec-322 aec), em sua grande obra Política,
afirma que a escravidão é algo natural e que, em particular, é própria aos “bárbaros”,
isto é, àqueles que não eram gregos: nada disso seria aceitável nos dias atuais,
mas, por outro lado, não faz sentido, não é justo criticarmos Aristóteles por
ele ter tido essa concepção, datada de quase 2450 anos atrás.
Há um sentido adicional para o relativismo e que consiste em
percebermos que cada um vive e age em diversos âmbitos; alguns podem
caracterizar-se mais por elementos “progressistas”, enquanto outros podem ser
mais “conservadores” e outros ainda podem ser mais “reacionários”. Há que se
pesar cada um deles e considerar-se se qual desses aspectos apresenta um saldo
positivo, isto é, superior aos demais. Aliás, ainda mais do que isso, é
necessário considerar se um determinado aspecto da ação de um indivíduo foi
mais progressista em um momento histórico determinado, mesmo que esse aspecto
tenha ocorrido a despeito de outros elementos entendidos como menos positivos
ou progressistas. As vidas de Woodrow Wilson e de Winston Churchill são
exemplares nesse sentido: embora tenham sido racistas, eles foram centrais para
a defesa das liberdades no século XX e para a vitória dos países e dos
princípios que afirmam as liberdades, a dignidade humana, a tolerância, o
respeito mútuo. Nesse sentido, é importante realçar que esses princípios
defendidos por Wilson e Churchill, seja em termos teóricos (por meio de
palavras), seja em termos práticos (por meio de suas ações e de suas
lideranças), vão exatamente na contramão do racismo por eles defendido. Por
fim, também é importante reforçar que os títulos de glória e de celebração de
suas memórias foram estabelecidos apesar do racismo que eles defenderam e que
esse mesmo racismo foi sempre posto de lado – sinal de que ele é motivo de
vergonha e opróbrio.
O relativismo histórico defendido pelo Positivismo,
portanto, não nega os defeitos que os indivíduos eventualmente possam ter e que
de fato têm; entretanto, ao mesmo tempo, ele não deixa de perceber que esses
mesmos defeitos têm que ser inseridos, sempre, nos momentos específicos em que
cada indivíduo viveu e vive. Por fim, o relativismo também nos lembra que, no
final das contas, somos todos seres humanos, isto é, seres falhos e limitados:
o objetivo da religião é aperfeiçoar-nos, melhorar-nos, a partir dos progressos
historicamente cumulativos; rejeitar os seres humanos de uma vez por todas e
para sempre porque todos temos defeitos é o mesmo que negar a nós, seres
humanos, essa mesma característica que nos torna humanos.
Duas observações finais para concluir este longo texto –
observações à primeira vista secundárias mas que, bem vistas, revelam-se centrais.
Em primeiro lugar, as reflexões acima só fazem sentido se
considerarmos que o ser humano é um ser histórico, que essa historicidade em
grandes linhas é cumulativa e também que essa historicidade tem uma direção,
que vai de um desconhecimento geral do mundo e do ser humano para o
conhecimento cada vez maior do mundo e do ser humano e, daí, para uma
valorização cada vez maior do próprio ser humano. Em outras palavras, é
necessária o que se chama de uma “filosofia da história”; essa filosofia não é
meramente um jogo de palavras, uma abstração altamente idealizada, mas consiste
em um resultado de uma Sociologia histórica e comparativa; em outras palavras,
é o resultado de uma investigação científica que considera a natureza humana e
suas mudanças ao longo da história.
Em segundo lugar, o desenvolvimento do relativismo histórico
é um dos resultados do estudo cotidiano do famoso calendário concreto, também
conhecido apenas como “calendário
positivista”, aquele que tem seus 13 meses nomeados por tipos como Moisés,
Homero, São Paulo, Carlos Magno, Dante, Descartes etc. O objetivo desse
calendário não é fornecer ao público (ocidental) um enorme catálogo de nomes,
selecionados conforme as idiossincrasias de Augusto Comte: muito ao contrário,
seu objetivo é no mínimo duplo. Por um lado, ele visa a promover o culto moral
a grandes tipos históricos, que, com suas ações em seus contextos históricos
específicos, permitiram, ao longo do tempo, que chegássemos aonde estamos; por
outro lado, o estudo da vida e da ação de cada um desses tipos permite-nos – e,
na verdade, exige – o desenvolvimento do relativismo histórico, no sentido que
indicamos ao longo deste texto. Em outras palavras, o calendário histórico é ao
mesmo tempo um profundo exercício cultual e um profundo exercício histórico e
sociológico. Um de seus resultados é, precisamente, evitarmos uma “criticidade crítica”,
destruidora, sem outros parâmetros que sua raiva constitutiva, ainda que bem
intencionada e motivada por uma justíssima indignação.