20 outubro 2019

Comemoração do nascimento de Benjamin Constant, o Fundador da República Brasileira

No dia 11 de Descartes de 48 (18 de outubro de 1836) - no dia de Vauvenargues - nascia em Niterói (então capital da província do Rio de Janeiro) Benjamin Constant Botelho de Magalhães. Seu nome foi uma homenagem que seu pai rendeu ao pensador liberal franco-suíço Benjamin Constant (1767-1830), falecido alguns anos antes e que produziu algumas reflexões políticas memoráveis, como a famosa conferência pronunciada no Athenée Royal em 1819, Da liberdade dos modernos comparada à dos antigos.


Benjamin Constant Botelho de Magalhães
Fonte: Wikipédia.

Como muitas pessoas de sua época, Benjamin Constant Botelho de Magalhães ingressou no Exército devido às difíceis condições econômicas de sua família, seguindo a carreira técnica como engenheiro e preferindo, acima de tudo, a docência. Participou da Guerra da Tríplice Aliança (a Guerra do Paraguai, 1865-1870) por um curto período de tempo - 1866-1867 -, voltando à Corte devido a problemas de saúde. Durante sua presença no campo de batalha redigiu cartas pessoais em que considerava de maneira bastante negativa a condução da guerra e a atuação do futuro Duque de Caxias.

Foi professor de Matemáticas em diversas escolas superiores, como a Escola Politécnica, onde teve inúmeros alunos ilustres, entre os quais os futuros Diretor e vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil, respectivamente Miguel Lemos (1854-1917) e Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927), além do engenheiro e escritor Euclides da Cunha (1866-1909) e do engenheiro militar e indianista Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958), o "Marechal da Paz".

Chegou a ser tutor dos netos de d. Pedro II. Inteligência brilhante e professor de altíssimas qualidades didáticas, foi aprovado em primeiro em três concursos para o magistério superior; nessas três ocasiões, a despeito de apresentar-se como "sábio", como "cultor das artes e das ciências", como "estadista", o Imperador nomeou para os cargos os candidatos que tinham ficado em segundo lugar, preterindo o mérito docente e intelectual de Benjamin Constant.

Desde cedo perfilhou o Positivismo e a Religião da Humanidade; em suas cartas escritas na frente paraguaia, Benjamin Constant refere-se ao Positivismo como sendo "a minha religião". A modernidade, a clareza, o altruísmo, o republicanismo pregados pelo Positivismo, somados ao caráter honesto e reto de Benjamin Constant levaram a ser altamente respeitado por seus alunos da Escola Militar. Além disso, perfilhava com o Positivismo o combate à escravidão, o que tornava toda sua atuação intelectual motivo de respeito e também de interesse político.

Docência, abolicionismo e republicanismo

Os sacrifícios que os soldados brasileiros fizeram durante a Guerra da Tríplice Aliança foram desprezados pelos governantes após 1870; ao mesmo tempo, o republicanismo e o abolicionismo tornaram-se temas da pauta pública a partir daquela data. O desrespeito do governo ao Exército configurava-se de diversas maneiras: a existência paralela da Guarda Nacional, de caráter civil e miliciano, embora de muito mais prestígio; a vedação à participação política franca dos militares, embora os oficiais fossem constantemente chamados a ocupar cargos públicos; os baixos salários, a falta de preparo e o baixíssimo prestígio do Exército.

Na década de 1880 houve sérios problemas políticos entre os civis e alguns militares que externavam opiniões políticas, no que foi chamado de "Questão Militar". O baixo prestígio geral de que a tropa gozava uniu-a corporativamente e levou os militares paulatinamente a oporem-se ao governo, senão à própria monarquia.

Em 1887 as duas grandes partes do Exército - os "troupiers", a gente sem formação teórica mas habituados à vida militar, e os "doutores", os militares formados nas escolas superiores - criaram em conjunto o Clube Militar, por meio da associação e da amizade pessoal dos dois grandes líderes de cada uma dessas partes: Deodoro da Fonseca, Presidente do Clube, e Benjamin Constant, vice-Presidente da associação. O Clube Militar tornou-se o órgão político do Exército; uma de suas primeiras medidas foi negar o apoio ao escravagismo da monarquia, ao recusar-se a caçar os escravos fugidos.

O papel de liderança intelectual, moral e política levou Benjamin Constant a tornar-se líder do movimento republicano, em especial pondo-se à frente dos cadetes da Escola Militar que ansiavam, justamente, um líder da modernidade, do esclarecimento, do republicanismo, da abolição da escravatura.

Assim, se na manhã de 15 de novembro de 1889 foi Deodoro da Fonseca quem fez a proclamação da República, foi Benjamin Constant quem articulou o movimento, quem convenceu Deodoro, quem evitou a violência.

Deposta a monarquia, Benjamin Constant integrou o governo provisório na pasta da Guerra (novembro de 1889 a março de 1890) e, em seguida, na recém-criada pasta da Instrução Pública (março de 1890 a janeiro de 1891).

Foi um dos principais responsáveis pela separação entre igreja e Estado no Brasil - estabelecida pelo Decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890 - e também pela nossa atual bandeira nacional (de autoria de Teixeira Mendes, com arte de Décio Villares) - estabelecida no dia 19 de novembro de 1889.

Morto em 22 de Moisés de 103 (22 de janeiro de 1891), recebeu o título de "Fundador da República Brasileira" pela Constituição de 24 de fevereiro de 1891. Como foi Diretor do Instituto de Meninos Cegos, essa instituição recebeu em 1891 o nome de Instituto Benjamin Constant. Além disso, a casa em que morava no bairro carioca de Santa Tereza virou o Museu Casa de Benjamin Constant. Em 1926 foi inaugurado na Praça da República um monumento em homenagem a Benjamin Constant, de autoria dos artistas positivistas Décio Villares e Eduardo de Sá.


Inauguração do monumento a Benjamin Constant na Praça da República, em 1926.
Fonte original: revista O Malho. Reproduzido de Inventário de Monumentos do Rio de Janeiro (http://inventariodosmonumentosrj.com.br/?iMENU=catalogo&iiCOD=66&iMONU=Benjamim%20Constant).


Importância histórica e legado de Benjamin Constant

Logo após sua morte, Raimundo Teixeira Mendes publicou uma alentada biografia em dois volumes, intitulada Benjamin Constant: esboço de uma apreciação sintetica da vida e da obra do fundador da República Brazileira (disponível aqui) - biografia que, aliás, permanece como a maior e melhor obra sobre a vida de Benjamin Constant até hoje

Observava Teixeira Mendes que Benjamin Constant não era um positivista completo nem seguia sempre as orientações de Augusto Comte, nem mesmo demonstrava a energia necessária em todos os momentos; mas, a despeito desses defeitos, ele mostrou-se à altura das necessidades do momento, em particular em 1889, além de sempre se ter afirmado positivista e adepto da Religião da Humanidade.

De nossa parte, queremos enfatizar que a atuação de Benjamin Constant era positiva e seguia o Positivismo em alguns aspectos centrais, que servem de exemplo até - e mesmo principalmente - nos dias de hoje:

1) afirmava a decadência social do militarismo;

2) afirmava a liberdade de pensamento e de expressão;

3) afirmava a preeminência social, intelectual e moral do pacifismo;

4) afirmava a necessidade da cultura afetiva juntamente com o conhecimento científico e a atividade produtiva.

Em outras palavras, embora devido às suas necessidades materiais fosse um militar de carreira, Benjamin Constant não era militarista e, entendendo o sentido histórico da civilização ocidental, compreendia que o pacifismo e as liberdades de pensamento e de expressão constituem os traços permanentes de nossas sociedades. 

Nesse sentido, por exemplo, propunha a doutrina do soldado-cidadão, em que o soldado deveria antes de mais nada ser um cidadão, um membro produtivo, pacífico e respeitador das leis - ao contrário do que, duas décadas depois, Olavo Bilac proporia, afirmando que os cidadãos deveriam ser soldados. Não é à toa que o ensino de Benjamin Constant tenha sido, depois, ao longo do século XX, combatido ativamente por militares que se revelariam fascistas, golpistas e autoritários - militares como Góes Monteiro, Eurico Gaspar Dutra, Olympio Mourão Filho, Cordeiro de Farias (entre muitos outros), vinculados à "Liga da Defesa Nacional", à revista A Defesa Nacional e, acima de tudo, às missões militares alemãs e francesas.

11 outubro 2019

Luís Lagarrigue: "Sinais sociolátricos"

A imagem abaixo foi recentemente encontrada na Casa de Augusto Comte (Maison d'Auguste Comte), em Paris, e compõe-se de fotos do positivista ortodoxo chileno Luís Lagarrigue (1864-1949) fazendo sinais sociolátricos com as mãos.




A série de imagens tem o título "Sinais sociolátricos". O texto que segue diz o seguinte:
[SINAIS SOCIOLÁTRICOS] Espontaneamente formados com o auxílio das mãos por diferentes povos, ao longo das épocas e utilizado para o culto positivista pelo sr. Luís LAGARRIGUE, no Círculo Proletário Sociocrático de SANTIAGO do CHILE.
No sentido anti-horário, as legendas dos sinais indicados dizem o seguinte:
N. 1 - Abstinência
N. 2 - Castidade
N. 3 - Relaxamento (a tradução literal é "abandono")
N. 4 - Paz
N. 5 - Trabalho
N. 6 - Submissão
N. 7 - Moléstia
N. 8 - Apego
N. 9 - Veneração
N. 10 - Bondade
As imagens centrais têm por legenda a fórmula sagrada do Positivismo: "O amor por princípio e ordem por base; o progresso por fim".

08 outubro 2019

Redes sociais, infantilização, críticas e "haters"

As redes sociais têm muitos aspectos positivos, mas, infelizmente, nos últimos anos são os aspectos negativos que, merecidamente, têm recebido destaque.

Um desses aspectos negativos é a infantilização que ela realiza.

A infantilização não é apenas tornar diretamente as pessoas mais infantis; ela também consiste em tornar os adultos menos responsáveis, isto é, menos adultos. No final, os dois processos encontram-se ao tornarem as pessoas mais bobocas e bem menos à altura das necessidades sociais e individuais.

Pois bem: um dos traços da infantilização como menos maturidade, da infantilização como tornar as pessoas menos adultas, é o uso da expressão "hater" ("odiador") para designar qualquer pessoa que faz críticas a outra(s).

Evidentemente, entre as pessoas que fazem críticas há sempre quem manifeste ódio a pessoas, grupos, idéias, práticas; mas daí a usar de maneira sistemática o hater para referência a toda e qualquer crítica é equivalente a exigir que todo comentário seja sempre de elogio.

Da mesma forma, isso ignora que, embora não seja nada ideal, na vida há muitos casos, situações, idéias que devem, sim, ser objeto de ódio ou, pelo menos, de forte repulsa (o nazismo é um exemplo fácil disso).

Não dá. A vida não é um programa de auditório nem é um concurso de popularidade. Fazer críticas não é ser hater; mas, inversamente, exigir que toda crítica seja sempre a manifestação de um hater é o sinal mais claro de infantilização.

20 setembro 2019

Novo livro: "Intervenções políticas: laicidade, cidadania e Positivismo"

Está em fase de pré-lançamento, para ser oficialmente lançado no dia 9 de outubro, o meu mais novo livro: Intervenções políticas: laicidade, cidadania e Positivismo, publicado pela Editora Poiesis.

O volume, exclusivamente eletrônico, pode ser comprado diretamente na página da editora (aqui) ou na Amazon (aqui).

Segue abaixo o resumo do livro, elaborado a partir do prefácio.

*   *   *

É comum sustentar a impressão de que o Positivismo teria morrido no Brasil em 1927-1930, após cerca de seis décadas de forte influência no país, que medeiam 1870 (final da Guerra da Tríplice Aliança, ou Guerra do Paraguai) e 1927 (falecimento de Raimundo Teixeira Mendes, vice-Diretor da Igreja e Apostolado Positivista Brasileiro). Esse período, aliás, por acaso corresponde com precisão ao declínio da monarquia no Brasil (1870-1889) e a quase todo o período da I República brasileira (1889-1930).

Entretanto, como afirma nosso autor Gustavo Biscaia de Lacerda, na verdade o Positivismo não morreu e a impressão de sua morte é apenas e tão-somente isso, uma impressão – aliás, consciente e propositalmente criada por grupos político-ideológicos de grande influência no país, tanto à direita quanto à esquerda do espectro político. Assim, o presente livro é uma demonstração em contrário dessa impressão indicada há pouco; ele consiste em quase uma trintena de artigos de extensão variável e publicados no diário curitibano Gazeta do Povo, além de alguns outros textos publicados no blogue pessoal do autor. Os temas cobertos por esses artigos são os mais variados, embora se refiram sempre a questões políticas e baseiem-se invariavelmente no Positivismo, isto é, na filosofia, na política e na religião criada por Augusto Comte.

A primeira parte do livro aborda a laicidade, em particular no sentido de expô-la, explicá-la e procurar defendê-la contra os sistemáticos ataques que as igrejas teológicas (católica e evangélicas) realizam contra ela nos mais variados âmbitos e locais. A segunda parte do livro trata de temas mais variados, que vão desde a teoria política e a cultura política até problemas de regime político. Por fim, a terceira parte apresenta diversos artigos em que se apresenta diretamente o Positivismo e suas relações com a política, em alguns casos explicando mal-entendidos, em outros aplicando o Positivismo a questões sociopolíticas e em outros defendendo o Positivismo de erros.

Com este livro, o autor dá continuidade a um dos deveres mais elementares de todos os positivistas, qual seja, aplicar a doutrina às questões contemporâneas, procurando aconselhar e orientar sem que, nessa atividade, jamais ocupe o poder político ou o poder econômico; em outras palavras, é o esforço de constituir um novo poder Espiritual – humanista, altruísta, pacifista, científico e relativo.

16 setembro 2019

A sociedade industrial para Augusto Comte - roteiro de uma prédica

No dia 15 de setembro de 2019 fiz uma prédica na Igreja Positivista do Rio Grande do Sul sobre a "sociedade industrial", conceito sociológico elaborado por Augusto Comte em sua Sociologia Dinâmica para entender a realidade contemporânea e orientar a ação prática.

Para essa prédica elaborei um pequeno roteiro, que foi mais ou menos seguido na ocasião - os improvisos e as digressões são parte de qualquer exposição oral. Reunindo as anotações iniciais com algumas das observações feitas de improviso, apresento o resumo abaixo, que é razoavelmente explicativo. É claro que se os leitores tiverem dúvidas ou sugestões, elas serão bem-vindas.


*   *   *


-        É um ótimo exemplo de conceito que reúne considerações sociológicas, históricas, filosóficas e morais – e também políticas
o   Assim, é um exemplo de aplicação prática dos preceitos religiosos da Religião da Humanidade
-        A “sociedade industrial” é o conceito com que Augusto Comte define a organização social, política e econômica das sociedades modernas
o   Um paralelo com “capitalismo”, de Marx, é útil: ambos os conceitos referem-se mais ou menos às mesmas coisas e ao mesmo período, igualmente com juízos de valor subjacentes; mas para Marx o “capitalismo” é um sistema totalmente impessoal que deve ser destruído por meios revolucionários em prol do comunismo; já a “sociedade industrial” é uma organização social e política vigente que deve ser aperfeiçoada, mas que permite o desenvolvimento das forças humanas
-        A melhor forma de expor a idéia da sociedade é industrial é adotando o procedimento de Comte, ou seja, por meio da contraposição com as sociedades militares
-        Na verdade, isso consiste na conjugação das leis dinâmicas do entendimento humano, que correspondem às leis VII a IX da Filosofia Primeira:

2ª série: leis dinâmicas do entendimento
1ª Cada entendimento oferece a sucessão dos três estados, fictício, abstrato e positivo, em relação às nossas concepções quaisquer, mas com uma velocidade proporcional à generalidade dos fenômenos correspondentes (VII)
2ª A atividade é primeiro conquistadora, em seguida defensiva e enfim industrial (VIII)
3ª A sociabilidade é primeiro doméstica, em seguida cívica e enfim universal, segundo a natureza peculiar a cada um dos três instintos simpáticos [apego, veneração e bondade] (IX)

-        As sociedades militares foram as características da Antigüidade e da Idade Média, em que as concepções mais amplas de sociabilidade eram a família e a pátria (Antigüidade) e a pátria e a igreja (Idade Média)
o   Como são concepções parciais, a família e a pátria tendem a gerar competições entre as várias famílias e as várias pátrias: essas competições logo se transformaram em guerras
o   É necessária uma concepção universal para que se instaure a paz: somente a Humanidade pode gerar a paz mundial e perpétua
o   O Império Romano, embora baseasse-se na idéia de pátria, tinha uma concepção tendencialmente universalista de ser humano, o que o politeísmo facilitava, ao permitir com maior ou menor facilidade a incorporação dos vários grupos sociais; os romanos diziam, acertadamente, que “faziam a guerra para levar os hábitos da paz”
§  O Império Romano extinguiu até certo ponto as guerras de conquistas, incessantes na Europa e na Ásia Menor até então e criou uma enorme área de relativa estabilidade política, jurídica, econômica (e monetária e de pesos e medidas) na Europa e ao redor do Mar Mediterrâneo; com isso, lançou as bases necessárias para a civilização católico-feudal e para o desenvolvimento posterior da sociedade industrial
o   Na Idade Média o catolicismo permitiu a conjugação da pluralidade política (feudal) com a unidade de fé (católica); mas o caráter absoluto do catolicismo impede a sua plena universalização e, de qualquer maneira, ele entra em choque com outros sistemas absolutos, em particular o Islã
-        A atividade militar, então, foi inicialmente conquistadora (Antigüidade) e depois defensiva (Idade Média)
o   A partir de meados da Idade Média – grosso modo, no século XI – começa a ocorrer um movimento importante: a emancipação das comunas, isto é, das cidades, dos burgos (os habitantes dos burgos eram os burgueses), especialmente pelos reis
o   Essa expressão – “emancipação dos burgos” – significa o seguinte: até então os burgos estavam submetidos à autoridade política e social dos nobres, dos senhores feudais; com a emancipação, os burgos passaram a submeter-se apenas à autoridade dos reis e/ou a ter grande autonomia decisória à as repúblicas italianas, do Norte da Europa e outras surgiram dessa forma
o   As comunas obtiveram essa emancipação porque seus habitantes eram ativos politicamente e pressionavam nesse sentido; da mesma forma, eram artesãos, comerciantes, banqueiros etc., isto é, eram indivíduos e grupos que trabalhavam e produziam bens, serviços e riquezas
o   A emancipação das comunas indica, portanto, a mudança na organização social, que passava de militar e rural para industrial e urbana
-        A sociedade industrial, portanto, surge como um desenvolvimento das sociedades militares
o   Embora surja do desenvolvimento das sociedades militares, a sociedade industrial não é uma continuação delas: antes de mais nada, a sociedade industrial é pacífica
o   Na sociedade industrial há geração da riqueza e não somente espólio e rapinagem, como na atividade militar
-        A sociedade industrial gera riqueza; mas essa “geração de riqueza” não é só ou principalmente o acúmulo de riquezas: é a produção de bens e serviços com vistas ao bem-estar humano
o   Importa lembrar e afirmar com todas as letras: a ação militar visa à destruição dos bens e à morte dos inimigos; se há a busca de algum bem-estar, é da sociedade que conquista, não a da que é conquistada
o   Assim, enquanto as sociedades militares buscam a glória, as sociedades industriais buscam o bem-estar e o conforto
-        Uma precondição fundamental da sociedade industrial é a valorização do trabalho
o   Nas sociedades militares o trabalho é desvalorizado, sendo reservado aos escravos e/ou aos servos da gleba
o   A valorização do trabalho resulta também na repulsa à escravidão e na valorização dos trabalhadores, cuja dignidade é afirmada
o   Aliás, em contraposição às sociedades militares, a sociedade industrial valoriza a vida humana
-        A sociedade industrial suceder as sociedades militares não é somente uma questão de antecedentes e conseqüentes históricos; é necessário ativamente aperfeiçoar a sociedade industrial
o   Antes de mais nada, é necessário ultrapassar os hábitos militares, a busca da glória, o desejo da dominação, o estímulo ao militarismo
o   A noção militar de pátria tem que ser substituída pela concepção pacífica e altruísta de mátria
o   Os trabalhadores têm que ser valorizados e suas condições de vida têm que ser dignas
o   A burguesia (mesquinha e egoísta) tem que ser substituída pelo patriciado positivo (altruísta, generoso, de vistas e ações largas)
o   Os meios violentos têm que ser substituídos radicalmente pelos meios pacíficos
o   O poder Espiritual tem que ter um ascendente sobre a sociedade, em contraposição à ação violenta do poder Temporal
o   Os positivistas devem deixar de ser militares ou, caso permaneçam sendo militares, que orientem suas ações para fins positivos à apoio decidido ao civilismo dos militares
§  Exemplos máximos no Brasil: Benjamin Constant e Marechal Rondon
§  Ensino civilista de Benjamin Constant no Exército à não é à toa que a ação de Benjamin Constant foi duramente combatida pelos militaristas (Jovens Turcos, revista A Defesa Nacional, Olavo Bilac, Missão Alemã, Missão Francesa) e pelos fascistas (Góes Monteiro)
§  Benjamin Constant e doutrina do “soldado-cidadão”: ênfase no “cidadão” e na “civilização” da caserna, ao contrário do que Olavo Bilac pregava, que era a ênfase no “soldado” e na militarização da sociedade
§  Marechal Rondon: o “Marechal da Paz”; frase característica: “morrer se for preciso, matar nunca”
o   O militarismo antigo e medieval era justificável e aceitável; o militarismo moderno é aberrante e inaceitável
§  O nazismo, o fascismo e até o comunismo são militarismos modernos
§  O nacionalismo do século XX apresenta todos os defeitos ligados ao militarismo: xenofobia, intolerância, violência, busca da glória nacional, conservadorismo; situação exemplar do caso Dreyfus (1895-1905)
·         Caso Dreyfus: Exército francês reacionário, monarquista, belicista, xenófobo e antissemita; a libertação de Dreyfus e a reversão de sua condenação uniu vitoriosamente os republicanos e os progressistas franceses contra os grupos reacionários (monarquistas, Igreja Católica, alto comando do Exército, intelectuais literários)
-        Augusto Comte propôs um conjunto de medidas com vistas à consolidação e ao aperfeiçoamento da sociedade industrial, já com vistas à sociocracia

SUMÁRIO DAS MEDIDAS ESPECÍFICAS À TRANSIÇÃO ORGÂNICA

MEDIDAS
ÂMBITO DAS MEDIDAS
COMENTÁRIOS
Liberdade especulativa com o fim dos orçamentos teóricos
Temporal
Necessárias em todos os lugares
Substituição das Forças Armadas pela polícia
Instituição do triunvirato sistemático
Desenvolvimento do culto histórico
Espiritual
Estabelecimento das escolas positivistas
Ascendente do Positivismo sobre o comunismo
Decomposição dos grandes estados
Resume as duas séries anteriores

12 setembro 2019

Maus hábitos acadêmicos e estudos comtianos no Brasil

No início de 2011 eu fiz uma postagem neste blogue intitulada "A impossibilidade de estudos comtianos no Brasil" (disponível aqui). Nela eu observava que, no Brasil, nas universidades brasileiras (e, naquele caso em particular, na UFSC), é possível estudar-se virtualmente qualquer coisa - mas o Positivismo, as idéias de Augusto Comte, a ação dos positivistas no Brasil e no mundo, isso é vedado. Ou melhor dizendo: é vedado o estudo que se apresente de maneira favorável ao Positivismo; se for para falar mal, para ser "crítico", para acusar o Positivismo de ser a fonte de todos os males possíveis e imagináveis - bem, então, não há problema nenhum e pode-se dizer o que se quiser, por mais sem pé nem cabeça for o que se diga. Deveria ser claro para qualquer pessoa que isso é tanto censura explícita quanto censura implícita, além de hipocrisia.

De 2011 para cá a situação não mudou. Na verdade, ela piorou: em 2011 as pesquisas "críticas", ou seja, as pós-modernas, as feministas, as marxistas etc. eram hegemônicas; os liberais e os católicos (de esquerda) também participavam desse ambiente, embora de maneira acessória: em todo caso, todos esses grupos vedavam o que eu chamei de "estudos comtianos".

Hoje, em meados de 2019, além dos grupos que atuavam com grande destaque tanto na política prática quanto na vida acadêmica, há também os grupos autonomeados conservadores, que reúnem não somente os conservadores à la Edmund Burke, mas também os conservadores ultraliberais, os católicos reacionários, toda a plêiade de conservadores evangélicos e, como se não fosse pouco, também os fascistas e os filofascistas. Além da presença dessa nova "direita" - que, aliás, é raivosa -, o que mudou desde 2011 é que a hegemonia política da esquerda está temporariamente rompida e sua atuação acadêmica tem sido (violentamente) contestada.

Dito isso, o desprezo pelo Positivismo que eu indicava existir no ambiente acadêmico em 2011 mantém-se em 2019. Se antes esse desprezo manifestava-se na forma da vedação à afirmação política, filosófica, religiosa do Positivismo (e na UFSC), agora esse desprezo revela-se por um... bem, "desprezo" é a expressão correta, em que duas pesquisadoras (da USP) tratam com a mais completa sem-cerimônia, o mais completo desdém o convite para resenhar um livro sobre o Positivismo, escrito por um positivista (isto é, Laicidade na I República, de minha autoria - disponível aqui).

Fiz uma pequena descrição dos acontecimentos, postada em minha conta pessoal no Facebook, reproduzida abaixo. O estilo do texto, além de indicar a informalidade dessa rede social, também evidencia o meu sentimento de ultraje.

Antes de passar à postagem no Facebook, um último comentário. A presente situação, bem como a de 2011, evidenciam - mais uma vez! - que estar em universidades e/ou fazer discursos pomposos sobre "democracia", "respeito mútuo", "respeito à diversidade", "diálogo" etc. por si só não quer dizer nada: o que importa em última análise é sempre o comportamento concreto, a conduta mantida no dia-a-dia. As duas sociólogas de que trato abaixo demonstraram o pior comportamento possível, o mais desprezível, o mais repreensível... mas é claro que, a despeito disso tudo, seus títulos continuarão valendo. É para isso que se mantém universidades públicas?

*   *   *

Aí eu peço a uma importante socióloga, que escreve para jornais de grande circulação nacional, que faça uma resenha de um dos meus livros. Ela não pode, mas indica uma orientanda: ok, sem problema.

A orientanda põe-se à disposição, embora com uma certa cerimônia; ainda assim lhe envio, às minhas custas, um exemplar do livro. Na verdade, de dois livros, para ela ter parâmetros adicionais para poder avaliar o livro que eu quero que seja comentado.

UM MÊS DEPOIS a orientanda "lembra-se" de indicar que recebeu os livros; mais importante ainda, somente depois de ganhar dois livros, no valor total de R$ 100,00, ela "lembra-se" de avisar-me de que ACABOU DE DAR À LUZ e que, portanto, não terá condições de fazer a resenha.

Nem a socióloga famosa nem a orientanda tiveram a capacidade de considerar que um filho recém-nascido dificulta muito (ou melhor, impede) trabalhos intelectuais mais exigentes. Também não tiveram a capacidade, ou a decência, de avisar-me desse pequeno fato da vida. Mas a orientanda ganhou, com grande alegria, dois livros.

A cereja do bolo foi a afirmação final da orientanda: se ela tiver um "tempinho" ela dará uma lida no meu livro.

Infelizmente, pela minha experiência, esse tipo de comportamento é recorrente nas universidades - pelo menos, no âmbito das Ciências Humanas.

E depois ainda é necessário defender as universidades contra ataques como o projeto "Future-se". Haja republicanismo para desconsiderar esse tipo de boçalidade em benefício do futuro do país.

Negação do aperfeiçoamento humano como crítica ao Positivismo

A citação abaixo oferece uma explicação prévia para a quantidade enorme de erros e distorções de que o Positivismo é vítima. Esse comentário de Augusto Comte é verdadeiramente lapidar e resume tanto o programa do Positivismo quanto o procedimento adotado pelos "críticos"; ele foi feito por A. Comte em uma carta a seu discípulo, o médico Georges Audiffrent (1823-1909), em meados de 1855.

"On hésitera toujours à se déclarer ouvertement contre une doctrine qui perfectionne autant le sentiment que la raison et l'activité".

("Sempre se hesitará a declarar-se abertamente contra uma doutrina que aperfeiçoa tanto o sentimento quanto a razão e a atividade".)

(Carta de Augusto Comte a Georges Audiffrent, 10 de março de 1855; in: Augusto Comte, Correspondance générale et confessions, t. VIII: 1855-1857; Paris, J. Vrin, 1990, p. 34.)

De alguns anos para cá há publicistas extremamente famosos atualmente, em particular no Brasil e que se definem como "conservadores" e "direitistas" - gente como Olavo de Carvalho e Luiz Felipe Pondé -, que se comprazem em ser contra o politicamente correto e contra o altruísmo, a generosidade, o pacifismo, a racionalidade etc. A despeito da "incorreção política" de tais publicistas, o fato é que, no fundo, eles acreditam, sim, no altruísmo, no aperfeiçoamento moral e assim por diante: ocorre apenas que eles negam essa possibilidade a seus adversários, mas (mesmo que secretamente) concedem-na às suas próprias preferências filosóficas.

Ora, o Positivismo baseia-se na afirmação da perfectibilidade humana: para os positivistas, é possível ao ser humano melhorar (ser mais altruísta e menos egoísta, ser mais racional e mais sintético, ser mais convergente). Mais do que isso: para os positivistas, é necessário que nos aperfeiçoemos (e, para isso, o Positivismo indica os inúmeros meios e procedimentos adequados).

Assim, deixando de lado os retrógrados que gostam de estar na moda e de aparecer nos telejornais do horário nobre, ninguém em sã consciência é contra a possibilidade e a necessidade de aperfeiçoamento humano. Como o Positivismo é radicalmente favorável a isso, o único meio de opor-se a ele é falseando sua proposta de aperfeiçoamento - daí as mais variadas e disparatadas críticas, formuladas pelos liberais, pelos marxistas, pelos católicos, pelos conservadores, pelos autoritários.
Augusto Comte.

Georges Audiffrent.
Fonte: http://cths.fr/an/savant.php?id=120841.

28 agosto 2019

Positivismo no Chile - arquivos históricos

A Biblioteca Nacional de Chile mantém um interessante projeto intitulado "Memória Chilena". Entre os vários tópicos abordados, há uma seção inteira dedicada ao Positivismo chileno, com livros, artigos, fotos etc. - a maior parte dos quais, se não a sua totalidade, podendo ser baixada gratuitamente.

A seção dedicada ao Positivismo chileno - "La filosofía positivista en Chile (1873-1949)" - pode ser consultada aqui.

Vale notar que essa seção abrange tanto o Positivismo religioso - realizado na obra dos irmãos Lagarrigues (Jorge, Juan e Luís) - quanto o que se poderia chamar de Positivismo "político" - realizado principalmente por Valentín Letelier.

22 agosto 2019

Textos positivistas no Archive.org

Desde há muitos anos o portal Archive.org põe à disposição dos interessados uma série de documentos e arquivos, como livros, documentos, gravações de acesso público, a maior parte dos quais raríssimos e de dificílimo acesso de outra maneira.

Pois bem: na medida em que há alguns anos digitalizei quase 250 opúsculos da Igreja Positivista do Brasil, bem como artigos da Revue Occidentale (órgão internacional do Positivismo), publicados todos eles entre c. 1870 e c. 1930, aos poucos passarei a carregá-los no portal Archive.org.

Esses documentos podem ser consultados por meio das palavras-chave mais relevantes (geralmente "Positivism", "Brazilian Positivist Church" etc.) ou, então, na minha página pessoal de documentos carregados (disponível aqui).

Essa é uma forma fácil e barata de manter-se a memória do Positivismo no Brasil e no mundo e, com isso, de manter a sua ação regeneradora, pacífica e altruísta.

19 agosto 2019

Raimundo Teixeira Mendes: República pacífica, livre e convergente

Defendida pelos positivistas brasileiros e estrangeiros com clareza e desde sempre, a República é concebida pelo Positivismo como o regime ideal por excelência. Para os positivistas, o regime republicano não é somente, nem principalmente, o regime presidencialista em oposição à monarquia e ao parlamentarismo. Muito mais do que isso, a República é o regime das liberdades e da fraternidade em todos os âmbitos (doméstico, cívico, universal); é o regime que consagra o ser humano e a atividade pacífica, (portanto) convergente e esclarecido pela ciência.

Essas características tornam-se mais relevantes quando comparadas com os regimes militaristas e com as paixões demagógicas. Nesse sentido, o trecho abaixo é exemplar e instrutivo. Ao mesmo tempo ele serve para evidenciar que o Positivismo e os positivistas são e sempre foram pacifistas e que a República é o verdadeiro regime ideal da paz, da convergência e das liberdades.

Esse texto é um pequeno trecho de um opúsculo de 1908, de autoria de Raimundo Teixeira Mendes, vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil, em que ele opõe-se, com base no Positivismo, à lei de sorteio militar, considerando-a um instrumento disfarçado do militarismo e ao mesmo tempo contrária à República e à índole pacífica do povo brasileiro.

(Como o texto é originalmente de 1908, a grafia foi atualizada.)


*   *   *

"[...] Ninguém contesta que a índole do regime republicano reside no predomínio da fraternidade universal, em todas as relações sociais, quer domésticas, quer cívicas, quer planetárias. Esse predomínio conduz logo ao escrupuloso respeito pela liberdade dos homens, sem distinções de raças, de crenças, de fortunas ou de forças etc., a fim de que cada um se dedique, na função que preferir e no lugar que escolher, ao bem geral da Humanidade, servindo à Pátria que herdou dos seus pais ou adotou, graças à Família em cujo seio os seus pendores altruístas recebem o cultivo fundamental, imprescindível à existência social.

Assim, o verdadeiro regime republicano só pode realizar-se plenamente quando a inteligência se concentrar na investigação dos meios capazes de fazer prevalecer a sociabilidade sobre a personalidade e quando a atividade se consagrar exclusivamente à elaboração desses meios, já aperfeiçoando a nossa natureza, já aperfeiçoando a Terra. Em conclusão, o regime republicano supõe a livre preponderância final da poesia, da ciência e da indústria sobre o teologismo, a metafísica e a guerra, que formam a índole preparatória da Humanidade, e que a República aspira [a] substituir".

(Raimundo Teixeira Mendes, Ainda o militarismo perante a política moderna. A propósito da agitação a que está dando lugar a lei do sorteio, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, fevereiro de 1908, p. 7; série da Igreja Positivista do Brasil, n. 249.)



(Facsímile de Raimundo Teixeira Mendes, Ainda o militarismo perante a política moderna, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1908)


Raimundo Teixeira Mendes

15 agosto 2019

Abolição e política identitária na Ciência Hoje para Crianças

Nos últimos anos, a “discussão” sobre a abolição da escravidão no Brasil tem tomado alguns rumos inesperados mas, ao mesmo tempo, nefastos.

Antes de mais nada, é evidente (ou deveria ser evidente) que a valorização dos movimentos negros (escravos, livres ou libertos) na campanha pela abolição da escravidão é algo corretíssimo e tem que ser valorizado; todavia, isso não pode, de maneira nenhuma, corresponder a negar-se o papel desempenhado nessa campanha por outros brasileiros, que, na falta de melhor expressão, chamaríamos de “brancos” (quer fossem populares, quer fossem da elite, quer fossem de classe média).

O que importa notar, nesse sentido, é que a campanha pela abolição foi um movimento verdadeiramente nacional, no duplo sentido de que (1) ocorreu de Norte a Sul (e de Leste a Oeste) do país e, principalmente, (2) mobilizou todas as classes sociais, todos os grupos sociais. Nesse sentido, vale lembrar que a lei da abolição, antes de ser sancionada pela Princesa Isabel, fora aprovada pelo parlamento brasileiro: essa aprovação indica o quanto a sociedade como um todo mobilizara-se previamente, forçando o parlamento a aceitar o projeto.

É fundamental insistirmos em que consiste em um mito a idéia de que Princesa Isabel teria sido a “redentora”, isto é, de que a abolição teria ocorrido graças à pura vontade unilateral da regente do Império brasileiro. Aliás, esse mito foi criado já em 1888, para tentar valorizar a monarquia decadente e também para tentar legitimar um eventual terceiro reinado dos Órleans e Braganças, a ser assumido pelo casal composto pela Princesa Isabel e seu marido, o francês Conde d’Eu.

Mas se é correto desmistificar a atuação “redentora” da Princesa Isabel, assim como é importante valorizar a atuação dos movimentos negros na campanha abolicionista, por outro lado é importante não negar a atuação de toda a sociedade brasileira da época. Nesse sentido, por exemplo, vale notar que partes do próprio “movimento negro” afirmaram desde 1888 elementos do mito da “redentora”: afinal, após o 13 de maio constituiu-se sob o comando de José do Patrocínio (um dos antigos campeões negros da causa abolicionista) a “Guarda Negra”, que servia para defender a monarquia escravocrata contra a república e os republicanos, sem temer o emprego de espancamentos, linchamentos etc. Esse triste fato não costuma ser lembrado – mesmo nos dias de hoje! – nem pelos reacionários que defendem a monarquia nem pelo movimento negro.

Há outro motivo, mais profundo, para preocupação com os rumos atuais sobre os “debates” a respeito da campanha abolicionista: trata-se de que muito da historiografia revisionista das últimas duas décadas tem um fortíssimo caráter de política identitária. Ora, a política identitária baseia-se nas “identidades de grupo”, isto é, naqueles elementos que cada grupo social considera como exclusivos seus e que, portanto, separam esses grupos do conjunto da sociedade e dos demais grupos.

Referi-me a “muito da historiografia”, ou seja, muitos historiadores, mas também muitos cientistas sociais atuais adotam esses parâmetros identitários para fazerem suas análises, que se caracterizam cada vez mais pela brutal dicotomia que separa de maneira seca e dura “brancos” de “negros”, sem categorias intermediárias (os mulatos) mas com um fortíssimo elemento moral (em que, evidentemente, os “brancos” por definição não prestam). (Esse procedimento tem sido adotado por cientistas sociais independentemente da sua “raça”.)

Isso tem ocorrido graças à importação, completamente acrítica e despudorada, feita pelo movimento negro brasileiro dos esquemas mentais e sociais próprios ao racismo dos Estados Unidos e das estratégias sociopolíticas adotadas pelo movimento negro estadunidense – com todos os vícios que isso acarreta, em particular a reprodução ocorrida aqui do racismo e do divisionismo existentes lá. Sinal simples e escandaloso disso é a afirmação de que “miscigenação é genocídio” em faixas e cartazes que integrantes do movimento negro brasileiro exibem com orgulho em manifestações públicas, ainda que com isso apenas (e infelizmente) reproduzam aqui e a favor dos negros a nefanda regra da “gota única de sangue” (“one drop rule”), vigente nos EUA e que fundamenta sociologicamente o racismo lá.

Não posso deixar de observar que, muito diferente disso tudo, resultando em ações e práticas muito diversas, com efeitos sociais e políticos amplos (também diversos), foi a atuação dos positivistas. Os positivistas brasileiros celebravam no dia 13 de Maio a união da raças no Brasil, com a colaboração de cada uma delas para o progresso nacional; aliás, os positivistas brasileiros foram alguns dos mais ardorosos defensores da abolição da escravidão imediata e sem compensação financeira para os donos de escravos: aliás, nos grêmios positivistas, ser dono de escravo causava a expulsão sumária. Não é por acaso que, entre 1890 e 1930, o 13 de Maio era feriado nacional (e muita gente, mesmo nos dias de hoje, ainda se lembra disso): proposto pelos positivistas logo no início da República, esse feriado celebrava a fraternidade nacional nos termos indicados acima – mas muito diferentes da apologia reacionária que cultuava a “redentora” e também muito diferente da política identitária, segregacionista e não raro racista do dia da “consciência negra”.

Faço essas extensas considerações porque a revista Ciência Hoje para Crianças (CHC), em sua edição n. 299, de maio de 2019, dedicou o número a tratar da abolição da escravidão, dando ênfase aos negros envolvidos no movimento. Como observei antes, essa ênfase é histórica e politicamente necessária, mas ela não pode conduzir a negar o papel desempenhado pelo conjunto da sociedade brasileira – que, aliás, atuou como um conjunto – nessa campanha. Em particular, nesse número da CHC, a matéria “13 de Maio ainda seria data para celebrar?” (disponível aqui: http://chc.org.br/artigo/13-de-maio/) deixa entrever os problemas que comentei acima. É bastante claro o quão problemático, quando não desastroso, que, em nome de uma proposta bem intencionada, mas errada no final das contas, uma revista de divulgação científica leve adiante a “correção política” (que é a tradução correta do “politicamente correto”) e a política identitária sob a forma de conteúdo “educativo” para crianças.