21 outubro 2025

Sobre o livro "A utopia autoritária brasileira", de Carlos Fico

Apresentamos abaixo algumas observações sobre o livro A utopia autoritária brasileira, de Carlos Fico.


 

1.      Esse livro foi publicado em 2025 pela editora Crítica e é da autoria do historiador carioca Carlos Fico, que é professor da UFRJ

1.1.   O livro apresenta a atuação política dos militares na República brasileira, desde o final do Império até o golpe de 1964

1.2.   O autor é especialista na atuação política dos militares, especialmente a partir dos anos 1930

1.3.   É um livro bem escrito e agradável de ser lido; o autor apresenta em detalhes inúmeras conjunturas, o que é sempre interessante e instrutivo

 

2.      Apesar dos méritos do livro e do autor, o volume apresenta vários defeitos, alguns deles bastante evidentes, outros exigindo um pouco de conhecimento histórico e teórico

2.1.   O autor é bastante cuidadoso no relato de acontecimentos

2.2.   Do ponto de vista filosófico e teórico, ele deixa bastante a desejar

2.3.   Em outras palavras, ele narra bem os fatos (ele conta bem a história), mas é bem mais fraco na organização e na abstração sociológica do que ele narra

 

3.      Para o que nos interessa e antes de mais nada, o autor compartilha preconceitos contra o Positivismo com outros autores que não têm vergonha em repetir tolices e/ou em mentir (como Sérgio Buarque de Holanda e Celso Castro)

3.1.   Como conseqüência de seus preconceitos, ele atribui ao Positivismo e aos positivistas comportamentos negativos – evidentemente, sem nenhuma comprovação!

 

4.      Nesse sentido, ele (1) assume que possibilidades e hipóteses não comprovadas são fatos comprovados e (2) apresenta juízos de valor agressivos sem comprovação

4.1.   No que se refere ao primeiro aspecto, o autor atribui reiteradamente ao longo de todo o livro a Benjamin Constant e ao Marechal Deodoro uma orientação golpista dos militares; a comprovação disso, no que se refere a Benjamin Constant, foi uma carta de Deodoro a Pedro II que “possivelmente [!] foi escrita por Benjamin” (p. 43)

4.1.1.     Atribuindo sem comprovação uma carta a Benjamin Constant, o autor despreza totalmente as inúmeras manifestações pacifistas e civilistas de Benjamin, escritas em cartas e manifestadas de maneira efetivamente pública em inúmeras ocasiões – e isso apesar de incluir nas referências bibliográficas do livro a biografia de Benjamin escrita por Teixeira Mendes

4.1.2.     Em outras palavras, o autor força um argumento no sentido que lhe convém e despreza as muitas e fortes evidências em contrário

4.2.   Por outro lado, referindo-se a Teixeira Mendes sem ter necessidade disso, o autor não deixa de dizer que ele (representando a Igreja Positivista do Brasil) falava “barbaridades sobre a vacinação” (p. 97)

4.2.1.     A observação sobre “barbaridades” é (1) feita de maneira genérica e sem comprovação nenhuma (ou seja, sem citar nenhuma frase, parágrafo ou argumento), (2) sem necessidade para o argumento do livro (ou seja, foi feita apenas para xingar), (3) desprezando a gigantesca produção da Igreja Positivista sobre os mais variados temas ao longo de toda a I República e (4), em particular e de maneira vinculada com o tema do livro, desprezando a sua firme e convicta atuação contra a violência, contra o militarismo e a favor do civilismo

 

5.      Os defeitos acima são, por si sós, bastante graves e servem para pôr-se em dúvida a honestidade do autor e a seriedade do livro; mas podemos notar ainda inúmeros outros defeitos:

5.1.   Seguindo um mau hábito do historiador José Murilo de Carvalho, o autor Carlos Fico gosta de citar anedotas e fofocas como comprovações de fatos e, em todo caso, para criar impressões, como no caso da referência a supostas barbaridades dos positivistas

5.1.1.     A esse respeito, vale notar que o autor faz questão de desrespeitar os positivistas, mas nada fala das barbaridades por exemplo de Luís Carlos Prestes (que mandou executar uma adolescente que era namorada de um dos membros do comitê central do PCB, apenas porque suspeita – sem provas – de colaborar com a polícia)

 

6.      A exposição do autor cria a forte impressão – na verdade, isso integra o seu argumento (p. 8) – de que a República foi criada unicamente por meio de um golpe militar, deixando de lado o fato de que ela foi precedida por 20 anos de militância republicana, de campanha de legitimação amplamente aceita e de progressivo e irreversível comprometimento da monarquia

 

7.      Apesar de formalmente reconhecer diferentes conjunturas, a exposição que o autor faz do golpismo militar revela uma incapacidade de distinguir diferentes movimentos políticos e diferentes contextos sociais, políticos e filosóficos: (1) a proclamação da República caracterizou-se por um grande contexto (militarismo monarquista, campanhas abolicionista e republicana, crise da monarquia), (2) a I República por outro (estabelecimento da República, prestígio militar, mas sem ativismo golpista), (3) o período 1930-1964 por outro (ativismo militarista com claro viés golpista)

 

8.      Da mesma forma, o autor é incapaz de distinguir as diferentes grandes influências políticas e filosóficas dos vários contextos:

8.1.   O imperialismo militarista do Império e o contraditório desprezo pelos militares, representado desde antes da Guerra contra o Paraguai pela criação da Guarda Nacional

8.2.   O pacifismo civilista positivista (o que, como vimos, o autor despreza e ridiculariza)

8.3.   O golpismo antissistêmico comunista

8.4.   O golpismo antissistêmico integralista e fascista

8.5.   A influência tensionadora da Guerra Fria

8.6.   A virada política representada pela Revolução Cubana e seus efeitos radicalizadores na política externa dos Estados Unidos a propósito da América Latina

8.7.   A única exceção às influências políticas e filosóficas que o autor reconhece é ao oportunismo de Rui Barbosa, que o autor expõe em detalhes


15 outubro 2025

Espiritualismo, materialismo e positividade

No dia 7 de Descartes de 171 (14.10.2025) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Apelo aos conservadores (em sua Primeira Parte - doutrina apropriada aos verdadeiros conservadores).

No sermão abordamos uma renovada e sofística oposição entre o "espiritualismo" e o "materialismo", bem como a necessária superação pela positividade.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://youtube.com/live/B-27eYhFLh0) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://www.facebook.com/IgrejaPositivistaVirtual/videos/1133894912208527).

As anotações escrivas que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *

Espiritualismo vs. materialismo

(7.Descartes.171/14.10.2025) 

1.      Invocação inicial

2.      Datas e celebrações:

2.1.   Dia 11 de Descartes (18.10): nascimento de Frederic Harrison (1831 – 194 anos)

2.2.   Dia 11 de Descartes (18.10): nascimento de Benjamin Constant (1836 – 189 anos)

2.3.   Dia 13 de Descartes (20.10): transformação de José Lonchampt (1890 – 135 anos)

3.      Celebração do fim da guerra Israel-Hamas

3.1.   Esse conflito, iniciado há pouco mais de dois anos, foi trágico para as duas populações envolvidas (ainda que em grau muito maior para os palestinos) e indica a imoralidade, a inutilidade e a irracionalidade das guerras contemporâneas

3.1.1.     Os beligerantes – do Hamas e o Estado de Israel – atuaram de maneira flagrante e escandalosamente contrária aos interesses supremos da Humanidade, ou seja, à fraternidade, à concórdia, à tolerância, ao respeito mútuo; não por acaso, esses grupos são imbuídos de concepções absolutas, intolerantes, fanáticas

3.2.   O Hamas é mesmo um grupo terrorista, que atua para destruir o Estado de Israel, com o apoio do Irã

3.2.1.     A invasão e o seqüestro, realizados em 7 de outubro de 2023, foram brutais, criminosos e serviram como instrumento do Irã contra o Acordo de Abraão, que serviria para normalizar as relações entre Israel e a Arábia Saudita

3.3.   Por outro lado, a reação do Estado de Israel contra o Hamas foi totalmente criminosa, em que a guerra de defesa logo se converteu em genocídio sistemático da população palestina

3.3.1.     Para evitar qualquer ambigüidade, referimo-nos ao “Estado de Israel” e não à população israelense: os responsáveis pelo genocídio e pela política de terra arrasada são os atuais governantes

3.3.2.     O genocídio promovido pelo Estado de Israel foi planejado, executado e apoiado por grupos racistas e fanáticos, totalmente contrários à solução dos “dois estados” e que desejavam transformar a Faixa de Gaza (bem como a Cisjordânia) em resorts de luxo

3.4.   Assim, é motivo de alegria o fim dessa guerra escabrosa, que talvez resulte na regularização da Palestina (ou, pelo menos, da Faixa de Gaza)

4.      Leitura comentada do Apelo aos conservadores

4.1.   Antes de mais nada, devemos recordar algumas considerações sobre o Apelo:

4.1.1.     O Apelo é um manifesto político e dirige-se não a quaisquer pessoas ou grupos, mas a um grupo específico: são os líderes políticos e industriais que tendem para a defesa da ordem (e que tendem para a defesa da ordem até mesmo devido à sua atuação como líderes políticos e industriais), mas que, ao mesmo tempo, reconhecem a necessidade do progresso (a começar pela república): são esses os “conservadores” a que Augusto Comte apela

4.1.1.1.           O Apelo, portanto, adota uma linguagem e um formato adequados ao público a que se dirige

4.1.1.2.           Empregamos a expressão “líderes industriais” no lugar de “líderes econômicos”, por ser mais específica e mais adequada ao Positivismo: a “sociedade industrial” não se refere às manufaturas, mas à atividade pacífica, construtiva, colaborativa, oposta à guerra

4.2.   Outras observações:

4.2.1.     Uma versão digitalizada da tradução brasileira desse livro, feita por Miguel Lemos e publicada em 1899, está disponível no Internet Archive: https://archive.org/details/augustocomteapeloaosconservadores

4.2.2.     O capítulo em que estamos é a “Primeira Parte”, cujo subtítulo é “Doutrina apropriada aos verdadeiros conservadores”

4.3.   Passemos, então, à leitura comentada do Apelo aos conservadores!

5.      Exortações

5.1.   Sejamos altruístas!

5.2.   Façamos orações!

5.3.   Como Igreja Positivista Virtual, ministramos os sacramentos positivos a quem tem interesse

5.4.   Para apoiar as atividades dos nossos canais e da Igreja Positivista Virtual: façam o Pix da Positividade! (Chave Pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

6.      Sermão: espiritualismo vs. materialismo

6.1.   Este sermão adotará inicialmente um tom duro em sua exposição

6.1.1.     Mas, evidentemente, seguindo o método positivo e a inspiração altruísta, é claro que após as necessárias críticas trataremos de apresentar a concepção positiva – isto é, real, útil, relativa, orgânica e simpática – do tema

6.2.   No dia 6 de outubro de 2025 o evangélico e antropólogo Juliano Spyer, que possui uma coluna fixa na Folha de S. Paulo, publicou um artigo intitulado “Ese a ciência provar que a vida continua após a morte?

6.2.1.     Esse título evidentemente foi provocativo – mas, lido o texto, logo se percebe que ele é menos provocativo do que parece à primeira vista e que o objetivo do autor foi afirmar que, para ele, a vida continua após a morte e que a ciência supostamente o comprovaria

6.2.1.1.           Em apoio à sua tese, o autor comenta a obra de um psiquiatra brasileiro, que se vale do apoio do Estado em uma universidade federal para dar apoio às suas teses, o Prof. Dr. Alexander Moreira Almeida, da UFJF, bem como de vários outros pesquisadores que em 2018 publicaram um “Manifesto por uma ciência pós-materialista

6.2.1.2.           Além disso, a afirmação do eufemismo da “espiritualidade” tem sido uma tendência nas últimas décadas, como se comprova nesta matéria: “Faculdadede Ciências Médicas discute impactos da espiritualidade na saúde

6.2.2.     Essas concepções afirmam que a ciência “moderna” e/ou “ocidental” é parcial e “materialista”, ou seja, que ela recorta o ser humano e ao mesmo tempo ignora aspectos importantes da existência humana, em particular adotando preconceitos materialistas e objetivistas que negam a subjetividade e o que esses autores chamam de “espiritualidade”

6.2.2.1.           Essas concepções afirmam a importância da espiritualidade tanto para os tratamentos dos pacientes quanto para os próprios médicos

6.3.   É necessário termos clareza e dizermos sem rodeios: apesar da correção e até da efetiva necessidade de ultrapassar-se o “materialismo” na ciência moderna e em particular na Medicina, o fato é que todos os autores envolvidos nessa proposta de “ciência pós-materialista” (sejam os estadunidenses, sejam o psicólogo brasileiro e os médicos da UERJ, seja o evangélico que escreve para a Folha de S. Paulo) adotam uma argumentação sofística e pseudocientífica

6.3.1.     A argumentação dessas pessoas é sofística porque a afirmada “espiritualidade” é uma forma disfarçada de afirmar as concepções teológicas e de reverter a Medicina científica para padrões teológicos

6.4.   Antes de seguirmos adiante, devemos adiantar bastante o nosso argumento e dizermos com clareza que os apelos para uma ciência (e, de modo mais específico, a medicina) “espiritualizada” baseia-se em anseios humanos profundos

6.4.1.     Esses anseios, todavia, são sempre e especificamente humanos, não sobre ou extra-humanos; em outras palavras, é o ser humano que se manifesta aí e não outras entidades

6.4.2.     Esses anseios correspondem ao desejo de que nós seres humanos sejamos entendidos e tratados como totalidades e não apenas como números, corpos e/ou pedaços de carne

6.4.3.     Como a exigência é a de que o ser humano seja entendido e tratado como uma totalidade, a questão é, por definição, religiosa, isto é, de totalidade

6.4.3.1.           Vale notar, entretanto, que a “espiritualidade” afirmada pelos teológico-metafísicos (mesmo com a página proto ou pseudocientífica empregada), não é positiva (ou seja, é anticientífica), não é uma verdadeira totalidade (pois não abrange todos os âmbitos reais do ser humano) e não é altruísta (pois, em conformidade com a teologia e a metafísica, é individualista e egoísta)

6.4.3.2.           Não por acaso, essa espiritualidade refere-se apenas e tão-somente ao indivíduo (com a noção teológica de “alma”) e lida muito mal, quando não despreza totalmente, a realidade social e a base biológica do ser humano

6.4.3.3.           Trata-se da positividade incompleta, que vai da Matemática até, na melhor das hipóteses, a Biologia, deixando de lado a positividade na Sociologia e, de maneira radical, na Moral

6.4.3.4.           A positividade incompleta resulta na prática do pensamento duplo, tão comum nos dias de hoje e celebrado por exemplo pela metafísica idealista alemã: positividade nas ciências inferiores, metafísica na Sociologia, teologia na Moral

6.4.4.     A espiritualidade verdadeira e real só se realiza e só pode realizar-se com a positividade, com a religião positiva, em que o ser humano é entendido como uma totalidade “biopsicossocial”, em que indivíduos autônomos são formados e atuam inseridos em sociedades, resultantes de processos históricos determinados e com vistas ao altruísmo e ao bem comum

6.5.   Passando ao tema atual e sendo um pouco polêmico, no Brasil dos últimos anos, vimos sofismas políticos semelhantes – semelhantes em suas estruturas, ainda que (suposta e esperançosamente) diferentes em seus objetivos políticos, sociais e morais

6.5.1.     Os sofismas políticos são estes: (1) não gostam do Lula? A única solução seria votar no fascista; (2) “Os cientistas nunca provaram que a cloroquina não cura a covid”; logo, a cloroquina cura a covid

6.5.2.     Em paralelo, os sofismas “pós-materialistas” afirmam: (1) a ciência “materialista” é ruim? Pois a única alternativa é o “pós-materialismo” (ou seja, o espiritualismo teológico-metafísico); (2) a ciência (“materialista”) nunca provou que os espíritos não existem; logo, eles realmente existem de fato

6.5.3.     Esses sofismas correspondem ao non sequitur (em que as conclusões não se seguem às premissas), a partir de um emprego estrito e inadequado do princípio lógico do “terceiro excluído”

6.6.   A atual afirmação espiritualista e “pós-materialista”, apesar de apresentar-se como inovadora e nova, na verdade apenas retoma concepções antigas e atualiza procedimentos espiritualistas e pseudoscientíficos antigos:

6.6.1.     No que se refere às concepções antigas, o espiritualismo e “pós-materialismo” obtém grande prestígio a partir das críticas feitas contra o Ocidente, seja a partir de concepções orientalistas (em que se afirma claramente que os países integrantes do Oriente são superiores ao Ocidente, por mais diversas que sejam as suas filosofias, como nos casos da Rússia, do Islã, da China tradicional, da China comunista etc.), seja a partir de concepções “pós-coloniais”, “decoloniais”, pós-modernas e do “Sul Global” (em que se afirma que o Ocidente não presta e que é bom que ele seja superado pelas civilizações não-ocidentais)

6.6.1.1.           Como vimos nas nossas prédicas dos dias 23 de Shakespeare de 170 (1.10.2024) e 16 de Descartes de 170 (22.10.2024), dedicadas ambas à tola acusação de que o Positivismo seria eurocêntrico, as civilizações não ocidentais e as críticas (ocidentais e não ocidentais) ao Ocidente apresentam inúmeros aspectos corretos, verdadeiros, úteis e morais – o que, por outro lado, deveria ser evidente que não corresponde a que tudo o que provém daí seja de fato correto (como a renovada afirmação da espiritualidade teológico-metafísica)

6.6.2.     No que se refere à renovação de concepções pseudocientíficas anteriores, devemos notar que, desde que a ciência moderna passou a afirmar-se contra a teologia, já no século XIV, mas com clareza a partir do século XVII, surgiram concepções espiritualistas que forçavam as teorias científicas no sentido espiritualista

6.6.2.1.           Essas concepções aproveitavam-se, como se aproveitam, do prestígio de que goza a ciência e, ao mesmo tempo, do desconhecimento que o grande público tem do que seja a filosofia positiva e também das teorias científicas específicas

6.6.2.2.           Podemos considerar nos séculos XVIII e XIX o mesmerismo (a teoria do magnetismo animal, com caráter místico), bem como, de maneira mais ampla, as concepções místicas sobre a eletricidade[1]

6.6.2.3.           No século XX, podemos considerar, por um lado, a metafísica de Bergson e, por outro lado e ainda mais, todas as abordagens autointituladas “quânticas”

6.7.   Feitas as críticas acima, que serviram para indicar como repetidamente as concepções teológico-metafísicas tentam reafirmar-se a partir de sofismas e modos pseudocientíficos, devemos necessariamente abordar a concepção positiva da espiritualidade

6.8.   Como afirmamos há pouco e sempre indicamos em nossas prédicas, o Positivismo é totalmente a favor da espiritualidade, como por exemplo as concepções de Humanidade e de método subjetivo indicam

6.8.1.     Mas há uma longa distância filosófica e até moral entre a concepção positiva de espiritualidade e a concepção teológico-metafísica

6.8.2.     Ao mesmo tempo, vemos com relativa simpatia as proclamações a favor do “pós-materialismo” e do “espiritualismo” – evidentemente não devido aos seus sofismas, às suas concepções pseudocientíficas e antipositivas e à subjacente afirmação da alma teológica –, considerando os aspectos positivos das críticas às limitações da ciência moderna e da medicina contemporânea

6.8.2.1.           De fato, a ciência moderna é realmente fragmentária, materialista e objetivista

6.8.2.2.           Em contraposição, é necessário afirmarmos concepções de conjunto (totalizantes), que não sejam propriamente materialistas e que respeitem a subjetividade humana

6.8.2.3.           Em face das concepções cientificistas, materialistas, fragmentárias e objetivistas, nosso mestre em diversos momentos afirmou que as concepções totalizantes, mesmo as teológico-metafísicas, são superiores às cientificistas

6.8.3.     Dito isso, Augusto Comte tratou precisamente das concepções espiritualista e materialista no Discurso sobre o conjunto do Positivismo, de 1848 (e reeditado em 1851 no v. I do Sistema de política positiva como “Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo”)

6.8.3.1.           Como nosso mestre observa, o ser humano precisa ao mesmo tempo e sempre do método objetivo e do método subjetivo; enquanto um fornece os materiais sobre a realidade e as ciências inferiores, o outro fornece a interpretação moral e intelectual, a visão de conjunto e a perspectiva especificamente humana

6.8.3.1.1.                Mas sem hipóteses quaisquer não conseguimos dados objetivos, que, por sua vez, em sua ausência não podem atuar como parâmetros e corretores das hipóteses

6.8.3.1.2.                Temos então um círculo vicioso que só se rompe com a imposição da concepção teológica, a única que surge espontaneamente e que no início possui força suficiente para orientar o ser humano

6.8.3.2.           Indo diretamente para a ciência moderna, as suas características objetivistas serviram ao mesmo tempo para constituir as ciências inferiores (aspecto construtivo) e para destruir a teologia (aspecto destrutivo); esse procedimento foi necessário até a constituição das ciências superiores, a começar pela Biologia; quando nosso mestre criou a Sociologia e, depois, a Moral, os problemas da ciência moderna já não se justificavam mais e deveriam ser completados e corrigidos pelo método subjetivo, estabelecido pelas ciências superiores

6.8.3.3.           Devemos notar que a correção via método subjetivo não implicava, como não implica, a reintrodução do espiritualismo teológico-metafísico – que, afinal, foi necessária e adequadamente destruído pelas ciências inferiores nos séculos anteriores

6.8.3.4.           A afirmação da espiritualidade positiva, em particular no âmbito da medicina, foi afirmada e desenvolvida por Jorge Audiffrent, discípulo direto de Augusto Comte, no livro Apelo aos médicos, de 1862

6.8.4.     Um outro aspecto que devemos indicar é que a espiritualidade positiva é completada pelo fetichismo, que é a única forma teológica natural e espontânea

6.8.4.1.           O fetichismo tem que ser adotado pelo Positivismo mas, claro, tem que ser devidamente positivado para isso

6.8.4.2.           O espiritualismo teológico-metafísico só pode ser reintroduzido por meio da negação sistemática da ciência, ou melhor, da positividade; trata-se, então, de uma usurpação e de um emprego errado do método subjetivo em relação ao método objetivo

6.8.4.3.           O neofetichismo reconhece a visão de conjunto, o primado da afetividade e a atividade espontânea do mundo

6.8.4.4.           Dessa forma, o neofetichismo ultrapassa o materialismo e todos os problemas vinculados à ciência moderna – sem, entretanto, recair nos graves problemas do espiritualismo teológico-metafísico, em particular sem lançar mão de sofismas pseudocientíficos para tentar restabelecer a concepção teológica de alma

6.9.   Em suma:

6.9.1.     O Positivismo é totalmente a favor da espiritualidade, como por exemplo as concepções de Humanidade e de método subjetivo indicam

6.9.1.1.           Mas há uma longa distância filosófica e até moral entre a concepção positiva de espiritualidade e a concepção teológico-metafísica

6.9.2.     Apesar da correção e até da efetiva necessidade de ultrapassar-se o “materialismo” na ciência moderna e em particular na Medicina, o fato é que todos os autores envolvidos nessa proposta de “ciência pós-materialista” adotam uma argumentação sofística e pseudocientífica em favor do restabelecimento da concepção teológica de alma

6.9.3.     A incorporação do fetichismo inicial à positividade final – ou seja, o neofetichismo – ultrapassa o materialismo e todos os problemas vinculados à ciência moderna – sem, entretanto, recair nos graves problemas do espiritualismo teológico-metafísico, em particular sem lançar mão de sofismas pseudocientíficos para tentar restabelecer a concepção teológica de alma

7.      Invocação final

 

Referências

- Augusto Comte (franc.), “Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo”, in: Sistema de política positiva, v. 1 (Paris, L. Mathias, 1851): https://archive.org/details/systmedepoliti01comt/mode/2up.

- Augusto Comte (franc.), Sistema de filosofia positiva (Paris, Société Positiviste, 5e ed., 1893)

- Augusto Comte (port.), Apelo aos conservadores (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898): https://archive.org/details/augustocomteapeloaosconservadores.

- Augusto Comte (port.), Catecismo positivista (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 4ª ed., 1934).

- Georges Audiffrent (franc.), Apelo aos médicos (Paris, Dunod, 1862): https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k772657.r=audiffrent%20appel%20aux%20m%C3%A9decins?rk=21459;2.

- Gustavo Biscaia de Lacerda (port.) Prédica positiva “O Positivismo é eurocêntrico?” (Curitiba, Igreja Positivista Virtual, 23.Shakespeare.170/1.10.2024): https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2024/10/o-positivismo-e-eurocentrico.html.

- Gustavo Biscaia de Lacerda (port.) Prédica positiva “O Positivismo é eurocêntrico? Parte 2” (Curitiba, Igreja Positivista Virtual, 16.Descartes.170/22.10.2024): https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2024/10/o-positivismo-e-eurocentrico-parte-2.html.

- Juliano Spyer (port.), “E se a ciência provar que a vida continua após a morte?” (Folha de S. Paulo, 6.10.2025): https://www1.folha.uol.com.br/colunas/juliano-spyer/2025/10/e-se-a-ciencia-provar-que-a-vida-continua-apos-a-morte.shtml.

- Luís Lagarrigue (esp.), A poesia positivista (Santiago do Chile, 1890): https://archive.org/details/luis-lagarrigue-a-poesia-positivista-1890_202509.

- Mario Beauregard (port. e ingl.): Manifesto por uma ciência pós-materialista (Tucson, 2018): https://revistafenix.pt/manifesto-para-uma-ciencia-pos-materialista/ e https://opensciences.org/files/pdfs/Manifesto-for-a-Post-Materialist-Science.pdf.

- Raimundo Teixeira Mendes (port.), As últimas concepções de Augusto Comte (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898): https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-ultimas-concepcoes-de-augusto-comte-i e https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-ultimas-concepcoes-de-augusto-comte-ii.

- Raimundo Teixeira Mendes (port.), O ano sem par (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900): https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-o-ano-sem-par-portug._202312/page/n7/mode/2up.

- UERJ (port.), “Faculdade de Ciências Médicas discute impactos da espiritualidade na saúde” (Rio de Janeiro, 1.1.2020): https://www.uerj.br/noticia/saude-e-espiritualidade-e-disciplina-na-faculdade-de-ciencias-medicas/.



[1] Cf. Gaston Bachelard, A formação do espírito científico (Rio de Janeiro, Contraponto, 1996).