27 fevereiro 2012

História das Idéias, Ciências Naturais e Ciências Humanas e um livro de Max Jammer

História das idéias, Ciências Naturais e Ciências Humanas:

sobre o livro Conceitos de força, de Max Jammer


Gustavo Biscaia de Lacerda

1. DESCRIÇÃO E ASPECTOS METODOLÓGICOS DO LIVRO

O livro de Max Jammer, Conceitos de força – estudo sobre os fundamentos da dinâmica (São Paulo: Contraponto, 2011), é um estudo de história das idéias científicas – no caso, da Física – exemplar e clássico. “Clássico” porque, escrito em 1957, teve inúmeras edições em inglês e é reiteradamente citado, tanto no Brasil quanto no exterior, em textos sobre história das idéias da Física. Na verdade, o livro integra uma tetralogia escrita em diferentes momentos ao longo das décadas, em que o autor tratou de conceitos fundamentais da Física: força, espaço, simultaneidade e massa; no caso, a presente obra é a segunda disponível em português, tendo sido precedida pelo volume dedicado ao espaço (também pela editora Contraponto – cf. JAMMER, 2010). “Exemplar” porque acompanha como uma idéia modificou-se ao longo do tempo, em que as concepções anteriores recebiam novas camadas conceituais à medida que o tempo passava, ou seja, que os contextos sociais, políticos e – principalmente, para o que nos interessa – filosóficos e científicos modificavam-se. O livro por si só é bastante erudito e, em cerca de 330 páginas, o autor expõe como as várias tradições teóricas que confluíram para o Ocidente consideraram a idéia de “força” desde a Antigüidade pré-homérica até meados do século XX, embora o texto concentre-se, como é natural, nas discussões posteriores ao Renascimento.
Há algumas questões metodológicas que valem a pena ser comentadas. Antes de mais nada, o autor adotou a opção – correta – de seguir o conteúdo em vez da palavra. Na verdade, isso seria natural e até inevitável, não somente porque, por exemplo, os antigos egípcios tinham uma notação hieroglífica específica para o que poderíamos chamar de “força”, mas principalmente porque os debates científicos realizados hoje, no século XXI, têm sua origem pelo menos na época do Renascimento, em que o latim era a língua científica por excelência – e em que, por sinal, “força” é “vis”. Em outras palavras, uma investigação de caráter etimológico seria infrutífera.
Em segundo lugar, convém insistir em que o autor realizou sua exposição considerando as várias camadas teóricas que sucessivamente se acumularam ao longo do tempo a propósito da idéia de “força”. Assim, sem poder dedicar-se muito às intenções de cada um dos formuladores de cada proposição – exceção feita a algumas figuras-chave, como Galileu, Newton, Leibniz e Boscovich –, Jammer soube articular a recepção que cada idéia teve em momentos distintos e como foi reelaborada.
Por outro lado, sendo um livro pequeno, de caráter panorâmico, não se deteve na caracterização de cada contexto nem nos debates específicos havidos em cada grande momento. Preocupado com a exposição dos conceitos científicos e filosóficos, Jammer simplesmente não tratou das questões sociopolíticas: cada “contexto” foi definido em função das principais idéias em voga, definidas de acordo com o pensamento de alguns autores selecionados como representativos. Para os interessados em discussões sociopolíticas, evidentemente essa escolha teórico-metodológica é motivo de incômodo, o mesmo valendo para aqueles interessados em uma Sociologia da Ciência que conceda menos autonomia à ciência e mais à sociedade – em outras palavras, às sociologias da Ciência que procuram ver nas elaborações científicas reflexos das disputas sociais. Por outro lado, impõe-se a questão de se a abordagem mais “internalista” é válida, ou seja, se o diálogo trans-histórico a respeito das interpretações filosóficas e científicas da realidade, condensadas na idéia de “força”, é correta e aceitável. Os sociólogos e historiadores têm o hábito de considerar que as idéias costumam ser o reflexo das condições sociais – duas formas extremas desse modo de ver são o ultracontextualismo do idealista britânico Robin Collingwood (“cada idéia é uma resposta particular para questões particulares”) e, claro, o conceito marxista de “ideologia” –, de modo que não reconhecem nelas validades intrínsecas independentemente das sociedades que as produziram. Mais do que isso: o texto não se aferra aos contextos sociais específicos, reconhecendo e expondo o verdadeiro diálogo trans-histórico que os pensadores fazem a respeito de determinadas questões. Como fica evidente no texto, isso não equivale a dizer que as idéias não se modificam ao longo do tempo – muito longe disso, na verdade –, mas, ao mesmo tempo, não se recai na verdadeira falácia teórico-metodológica de algumas vertentes da História das Idéias segundo as quais não faz sentido transpor idéias de um momento histórico determinado para outro. Diferentes “macrocontextos”[1] dialogaram entre si: por exemplo, na passagem do platonismo para a Idade Média cristã e destes dois para as idéias modernas; no interior de cada “macrocontexto”, os diálogos mantiveram-se; as diferentes camadas interpretativas deveram muito, em vários casos, às influências de tradições originárias dos macrocontextos anteriores[2].
Ora, aceitando-se a validade do que estamos chamando de “diálogo trans-histórico” – ou, por outra, recusando-se o (ultra-relativismo do) ultracontextualismo – e considerando estritamente o avanço das idéias científicas, em particular na passagem da Idade Média para o Renascimento e daí para o período moderno, é possível depreender da exposição de Jammer que foram condições necessárias para o desenvolvimento da ciência a crítica paulatina às concepções antropocêntricas do mundo e a preocupação em adequar os raciocínios à realidade empírica; na verdade, a ciência desenvolveu-se em ritmo cada vez mais acelerado à medida que assumia – e praticava, é claro – como concepção da realidade o materialismo e o naturalismo (em oposição ao espiritualismo e ao sobrenaturalismo) e o empirismo (em oposição às concepções estritamente aprioristas). Nada disso equivale a negar a importância da filosofia, isto é, das concepções gerais sobre a realidade (sejam elas cósmicas, sejam elas morais e políticas): o livro de Jammer expõe as cerradas discussões filosóficas que subjazeram às formulações sobre o conceito de força e que orientam as diversas teorias da Física.
Da mesma forma, nossa afirmação não equivale a dizer que o desenvolvimento e a aplicação paulatinos do método científico decretaram a morte e enterraram a aplicação de concepções não-científicas à prática científica: Kepler e, ainda mais, Newton são exemplos clamorosos disso. Sendo mais preciso: Jammer indica largamente como, após a publicação dos Principia Mathematica, em 1684, inúmeros autores derivaram conseqüências teológicas e mesmo “metafísicas” da obra de Newton. É importante notar que isso não significa muito coisa por si mesmo, pois a maior parte desses autores derivados teve pouca ou nenhuma importância científica; todavia, alguns cientistas foram influenciados por eles, mesmo que indiretamente, resultando em que determinadas perspectivas teológicas foram importantes para o prosseguimento da vida do conceito de força – como no caso da obra de Boscovich.
A utilização de referências teológicas na elaboração de teorias científicas não contradiz nossa afirmação anterior, de que o desenvolvimento científico exige uma perspectiva naturalista e, em um sentido específico, empirista; na verdade, não é a permanência de motivos teológicos que deve ser enfatizada, mas o radical e crescente ostracismo a que foram relegados. Em outras palavras, o desenvolvimento da ciência exige a substituição de u’a mentalidade voltada e orientada para o supramundano por uma outra, naturalista e “empirista”; as referências a deus diminuem cada vez mais e, de qualquer forma, são cada vez mais postas à prova. Na verdade, o que a permanência das referências teológicas indica não é a validade (genérica) da teologia para a ciência, mas a permanente necessidade humana de concepções gerais que orientem sua conduta e, de qualquer maneira, a contínua e permanente necessidade de fontes de inspiração para a reflexão e para a proposição de teorias. Nesse sentido, a teologia (“deus”) desempenha um papel (psicológico) similar à música, à poesia ou a outras fontes de inspiração, sem que com isso suas dificuldades intrínsecas sejam resolvidas ou superadas.

2. DUAS CRÍTICAS AO LIVRO

2.1. Excessiva brevidade

Não é a falta de contexto sociopolítico o que pode dar azo a críticas ao livro; podemos considerar, sim, outras limitações. Uma primeira dificuldade, que se vincula tanto ao tamanho quanto ao escopo do livro, é a falta de esclarecimentos técnicos mais sistemáticos; não sugerimos a presença de tais esclarecimentos no corpo do texto – afinal de contas, trata-se de um livro escrito por um físico para outros físicos –, mas pelo menos em notas de rodapé ou, o que seria mais recomendável, em um apêndice. Como Jammer faleceu em 2010, aos 95 anos, isso é presentemente impossível de ser feito por ele mesmo; todavia, novas edições podem e devem incorporar essas explicações à margem. Na verdade, como nossa formação específica é em Ciências Sociais, as explicações adicionais que me interessam – e que, em parte, levaram-me a ler o livro – correspondem a questões mais técnicas de Matemática e teoria física; mas, inversamente, o interesse que os físicos têm no livro podem exigir notas de outro tipo: referências históricas e filosóficas mais específicas. Como argumentaremos adiante, a presente sugestão é mais que um desejo de informações a respeito de questões que, pessoalmente, ignoramos: é uma necessidade cultural mais ampla que se impõe.

2.2. Sérias imprecisões filosóficas: “metafísica”, “positivismo”[3]

Sendo o livro dedicado a esclarecer o conteúdo do conceito de “força” – assim como os outros três volumes da série escrita por Jammer dedicam-se aos conceitos de “espaço”, “simultaneidade” e “massa” –, é notável que o segundo problema que podemos indicar consista em uma séria falha de definição. A bem da verdade, o autor comete reiteradamente uma imprecisão conceitual mas não está isolado nesse procedimento – não estava quando redigiu o livro, em 1957, nem estaria hoje, em 2012 –: o problema consiste na indefinição radical da palavra “metafísica” (e, associado a ela, “positivismo”).
Jammer adota o uso amplo, corrente e altamente impreciso de “metafísica” como sendo “valores morais”, “filosofia”, “concepção da realidade”; ao mesmo tempo, adota a perspectiva defendida por algumas vertentes de positivismo, que assume a “metafísica” em um sentido mais restrito e equivalente a “entidades”, “abstrações personificadas” e mesmo agentes ocultos de propriedades da matéria. A amplitude do termo deve-se ao fato de que inúmeros pensadores (incluindo aí, sem dúvida, cientistas) distinguiram “filosofia” e “ciência”, entendendo a primeira como concepções mais amplas da realidade, atribuições de valores, busca de causas etc.; já a segunda seria a investigação objetiva e axiologicamente neutra da realidade etc. Sem polemizar a respeito dessa descrição da prática científica, a identificação estreita da filosofia com a metafísica é despropositada, ainda que por demais difundida.
A “filosofia” é uma atividade que apresenta as mais variadas definições, desde a análise dos termos das frases até a justificação das decisões teóricas e práticas; uma noção “clássica”, porém, considera que ela apresenta um caráter especulativo, em que, embora presumivelmente tenha que manter alguma relação com a realidade concreta, não precisa estar atrelada a ela; assim, a filosofia consistiria em uma reflexão geral sobre a realidade humana e cósmica. Nesse sentido, muitos vinculam a filosofia à metafísica definida epistemologicamente, isto é, a filosofia seria por definição a reflexão “meta-física”, isto é, “que vai além do físico”.
Nesse sentido estrito, sem dúvida alguma que toda filosofia é metafísica. Se pensarmos que a teologia refere-se às divindades e que a ciência refere-se ao estudo analítico da realidade, caberia a essa “metafísica” a reflexão geral sobre o mundo, que poderia, quem sabe, passar da divindade à realidade empírica.
Essa definição, além de ser etimológica, corresponde a uma divisão do trabalho intelectual e estabelece uma tautologia: a filosofia é sempre metafísica; inversamente, a crítica à metafísica é a crítica à filosofia e ao filosofar. Tal concepção é bastante restrita, mas, curiosamente, é bastante comum: mesmo o Círculo de Viena, que era tão rigoroso a respeito dos enunciados, adotou-a em larga medida. De qualquer forma, essa definição – tautológica – abarca as concepções que indicamos anteriormente: existência (ou afirmação) de teorias preliminares às investigações empíricas, atividade especulativa.
Cada um pode definir as coisas mais ou menos como bem entender. As definições relacionam-se à capacidade individual e coletiva de comunicação, em que uma definição específica deve ser compartilhada a fim de que várias pessoas possam entender-se a respeito de determinados assuntos; considerando essa imposição prática, as definições podem ser ajustadas às necessidades particulares de cada grupo ou, em determinados casos, de cada indivíduo. No caso da palavra “metafísica”, a definição-padrão, que é a etimológica e, como vimos, é tautológica, cria mais problemas que soluções; ela serve mais para confundir que para esclarecer – com o agravante de que em inúmeros casos o que se deseja é precisamente confundir.
Antes de mais nada: por que a definição etimológica confunde? Porque ela não esclarece os vários sentidos a que se referem os pensadores. Ao tornar equivalente a atividade filosófica e a metafísica, não se esclarece qual o conteúdo específico da metafísica. Isso deixa de lado os modos e os conteúdos das obras de pensadores que quiseram ser especificamente “metafísicos”, ao mesmo tempo que elude que pensadores teológicos ou científicos são, também, cultores da filosofia, mas não da metafísica. Em outras palavras, afirma corretamente que toda laranja é fruta, mas finge que toda fruta é laranja, deixando de lado o fato central de que maçãs e peras também são frutas.
Essa confusão não é casual. É claro que pode ocorrer dificuldades conceituais; é claro que uma distinção adequada entre filosofia e metafísica – quando a metafísica criticava a teologia e afirmava como modalidade específica de filosofar e, depois, quando a prática científica criticou a metafísica – tornou-se durante um certo tempo difícil. Podemos pensar no passo decisivo para o ser humano o reconhecimento socrático de que existe uma realidade autônoma constituída pelo pensamento: antes disso, a conceituação do “real” e do “ideal” era altamente problemática.
Esse gênero específico de confusão, portanto, é “histórico” e, assim, datado; quem incidia nele cometia um erro natural, involuntário e perfeitamente desculpável. O que não é desculpável é a reincidência nele, em particular a intencional.
De modo mais específico, a (re)afirmação da metafísica como filosofar o mais das vezes serve para diminuir a importância da racionalidade científica, isto é, para denunciar as limitações do pensamento científico. Ora, é evidente que o pensamento científico é limitado: na verdade, de modo geral os próprios cientistas admitem-no e percebem-no, ao reconhecerem que o afirmado hoje poderá, e provavelmente será, negado amanhã. Além disso, a ciência é parcial, isto é, trata abstratamente de questões específicas e não de toda a realidade e, muito menos, de questões concretas. Por outro lado, essa visão parcial não basta para o ser humano compreender a realidade, isto é, para que ela faça sentido; além disso, a investigação científica requer teorias preliminares, assim como determinadas concepções gerais sobre a realidade (a realidade deve ser estudada em termos naturalísticos em vez de sobrenaturalísticos; deve-se evitar tanto o materialismo quanto o espiritualismo etc.).
Afirmar os limites da ciência e apontar seus pressupostos é uma necessidade; para conhecermos a realidade temos que conhecer com clareza os instrumentos de que dispomos e saber como operam e em quais condições. Todavia, determinar essas características é uma coisa; afirmá-las em termos de “metafísica” já se torna um recurso retórico cujo objetivo de diminuir o instrumento é bastante claro.
O famoso livro de Edwin Burtt (1991), As bases metafísicas da ciência moderna, constitui um exemplo claro dessa intenção. Seu objetivo é esclarecer, isto é, pôr às claras os pressupostos filosóficos da ciência moderna, estabelecidos por ele nos séculos XVI e XVII, com Galileu e Newton. Em vez de dizer “bases metafísicas”, poderia perfeitamente dizer “bases filosóficas” ou, quem sabe, “bases epistemológicas”. O que sua opção sugere, todavia, é que a própria ciência é metafísica, ou pelo menos “contaminada” (indelevelmente) pela metafísica. Poder-se-ia argumentar que essa afirmação tenha sido feita de maneira polêmica, em contraposição às idéias mais “radicais”, isto é, mais “cientificistas” do Círculo de Viena ou de pensadores assemelhados: mesmo com um objetivo polêmico, o resultado é o de afirmação da validade da metafísica por meio da negação da ciência ou de sua equiparação à metafísica, isto é, aos pensadores que buscam o absoluto, que reificam as abstrações e assim por diante. Em outras palavras, entre (por exemplo) Einstein e Heidegger não haveria diferença profunda.
Mais: se entre metafísica e ciência não há diferença (pois ambas têm seus “pressupostos”, que são sempre “pressupostos metafísicos”), as características específicas de tais pressupostos também são eludidas, por meio da sua equivalência artificiosa. Se os pressupostos da atividade científica são metafísicos, esses pressupostos compartilham as características da metafísica. Ora, evidentemente, essa forma de raciocinar é especiosa e visa a erodir a legitimidade da ciência e a afirmar alguma suposta validade da metafísica; o que não se esclarece são as características específicas da metafísica e da ciência.
Embora seja um tanto cansativo, importa lembrarmos mais uma vez as respectivas características: a metafísica é absoluta, reifica as abstrações, rejeita as mudanças históricas (ou reifica essas mesmas mudanças, ou sugere que tais mudanças obedecem às vontades das abstrações reificadas). Em contraposição, a ciência é relativa e crítica e está sempre aberta à revisão de seus procedimentos e resultados, alterando-se com o passar do tempo; a constituição da ciência não resultou de um fiat, mas de mudanças sociais, políticas, culturais ao longo do tempo, ou seja, a constituição da ciência e de seus fundamentos é histórica e modificável, não sendo de maneira alguma arbitrária ou absoluta. A conseqüência dessas características é que os próprios “pressupostos teóricos” da ciência são... “científicos”, ao contrário da metafísica. Assim, em definitivo qualificar de “metafísicos” os “pressupostos” da ciência não é um ato descritivo ingênuo, mas uma ação deliberada de desvalorizar a ciência em favor da metafísica e de produzir confusão conceitual e intelectual.
Retornando à discussão sobre o livro de Jammer, parece claro que o melhor seria, sem dúvida alguma, que o autor – bem como a comunidade científica de modo geral – adotasse uma concepção mais clara e restrita da “metafísica” – e, nesse caso, parece-nos que a proposta por Augusto Comte é particularmente adequada.
Para Comte, a “metafísica” é uma etapa de transição entre a teologia e a positividade; é meio-caminho, que compartilha características de uma e de outra; já busca compreender a dinâmica natural, mas adota procedimentos próprios à teologia. Suas características mais marcantes talvez possam a seguintes: absoluta; faz uso das entidades abstratas, ou abstrações personificadas (ou ainda, em linguagem contemporânea, das abstrações reificadas); além disso, em virtude da incapacidade de desprender-se dos raciocínios teológicos, lança mão de jogos de palavras e de raciocínios circulares (“o éter faz dormir porque possui propriedades soporíferas”, “a Natureza tem horror ao vácuo”).
Convém notar que a metafísica é mera transição; a ela não se concede a dignidade de uma etapa estável e durável como são os casos da teologia e da positividade. Para Comte, a degradação da teologia sempre assume a forma da metafísica, ou seja, ela é teologia degradada. Ao longo da história isso facilitou as transições entre fases orgânicas, como entre o politeísmo e o monoteísmo, em que a filosofia grega – considerada metafísica por excelência – criou as condições intelectuais para a nova fase, seja como dissolvente da fase anterior, seja elaborando materiais preliminares. Aliás, é por esses motivos que a metafísica é crítica, no sentido de destruidora da ordem prévia: incapaz de construir sobre bases estáveis, destrói o que vê pela frente.
Nas transições anteriores, as condições sociais permitiam que a passagem ocorresse de uma fase orgânica para outra sem um interregno crítico muito demorado, pois o sistema social novo já tinha elementos formados e a transição era gradativa. Modernamente, todavia, a metafísica cumpriu seu papel dissolvente, mas os elementos do novo sistema não estão – ou melhor, não estavam – totalmente formados: somente em termos secundários a ciência constituiu-se, restando toda a tarefa de constituição central dos fundamentos do sistema positivo. É necessário notar-se, além disso, que a transição moderna é muito mais profunda que as anteriores: das civilizações absolutas, belicistas e particularistas[4], a modernidade deve caracterizar-se pela relatividade, pelo pacifismo e pelo universalismo.
A caracterização desse duplo movimento – de destruição da antiga ordem social, teológica e absoluta, e constituição de uma nova ordem, positiva e relativa – ocupa vários capítulos das obras de Comte e está na origem das suas reflexões sociológicas, como se vê nos vários artigos que compõem o seu Opúsculos de filosofia social (COMTE, 1972), que são suas “obras de juventude”[5]; desse modo, não vem ao caso insistirmos nela.
O que importa reter, por outro lado, é que a metafísica é um conceito mais ou menos acessório para Comte[6]; que ele caracteriza-se pelo absolutismo filosófico, pela reificação das abstrações, pelo caráter dissolvente em termos intelectuais e, daí, sociais. Em outras palavras, no Positivismo comtiano não se confere a centralidade à metafísica que se atribui contemporaneamente (nem aquela que se afirma que Comte atribuía).
Embora de modo geral Anthony Giddens (1998) erre nas caracterizações que faz da obra de Comte, ao indicar a definição comtiana de metafísica ele mais ou menos acerta: para Giddens, a metafísica em Comte define-se em termos metodológicos[7]; na verdade, sendo mais precisos, poderíamos indicar: em termos teóricos, isto é, histórico-sociológicos.
Antecipando-nos ao argumento, vê-se que Augusto Comte não percebe a metafísica como sinônima de “filosofia”, “valores morais”, “especulação” ou “pressupostos teóricos e epistemológicos”.
Nesse sentido, aliás, valem algumas precisões: para Comte, a positividade e o pensamento positivo não equivalem a cientificidade e a pensamento científico. Conforme vê-se no Apelo aos conservadores (COMTE, 1899), a palavra “positivo” define-se como sendo “real, útil, certa, precisa, relativa, orgânica e simpática”. Deixando de lado a explicação de cada um desses termos, para o que nos interessa cumpre notar que o espírito positivo tem uma visão global da realidade e é motivado pelo altruísmo; já a ciência é parcial e não se move necessariamente pelo altruísmo: nesses termos, o espírito positivo é superior à ciência[8]. Por outro lado, Comte procurou definir com clareza a sua epistemologia, que constituem em parte os seus “pressupostos”.
Sem deixar de lado o que Augusto Comte escreveu, a importância contemporânea da “metafísica” liga-se, até certo ponto, à crítica que o Círculo de Viena fez dela. Caracterizando-a como impassível de verificação empírica, os vienenses afirmavam que ela é sem sentido e, portanto, como desprezível. O pólo conceitual oposto era a ciência, percebida como dotada de sentido; o sentido, por sua vez, era definido como a capacidade de vincular cada afirmação a uma observação empírica, em um processo de correspondência um-a-um. A teologia era percebida também como sem sentido, mas, como ela caracteriza-se facilmente pelo apelo às divindades, sua identificação era fácil e simples; além disso, como a ordem natural rejeita a ação das divindades, não faria sentido misturar ordinariamente teologia e ciência: por tais motivos, a teologia ocupa um lugar bastante marginal nos escritos do Círculo de Viena[9].
Como se sabe, o Círculo de Viena constituiu-se em parte com a preocupação de conferir rigor às elaborações científicas, em termos de suas fundamentações filosóficas; nesses termos, a distinção entre ciência e metafísica seria um importante problema. A partir disso, propuseram-se vários “critérios de demarcação”, como os de Carnap e de Popper[10] e que de modo geral separavam ciência e metafísica pela já indicada capacidade de vincular as afirmações teóricas a observações empíricas da ciência e a simétrica incapacidade da metafísica.
Além disso, o Círculo de Viena tinha uma exigência adicional para caracterizar a verdadeira ciência da metafísica: a elaboração de teorias explicativas apenas após o exame dos fatos; o exame da realidade munido de teorias prévias seria a formulação e a aplicação de metafísica à ciência.
Essas idéias do Círculo de Viena[11] até certo ponto resumem bem as concepções que se tem sobre a metafísica: valores prévios à pesquisa (bem entendido: valores morais e políticos que não se referem à prática científica), especulação teórica.

3. O DIÁLOGO ENTRE AS CIÊNCIAS, OU: QUAL O PÚBLICO LEITOR?

Um outro gênero de questões surge quando consideramos o público leitor do livro. Evidentemente que, escrito por um físico profissional sobre um conceito físico, o público básico são os físicos – estudantes de graduação e pós-graduação, pesquisadores, historiadores da Física. Todavia, como indicamos anteriormente, o livro também pode ser visto como de história das idéias, de modo que ele transita, nesse sentido, entre o âmbito das chamadas “Ciências Naturais” e o das chamadas “Ciências Humanas”[12]. Evidentemente, há uma perda nessa passagem; essa perda, como indicamos, deve-se à relativa brevidade do livro, que se mostra curto para quem não domina, por um lado, os conceitos físicos e, por outro lado, para quem não domina os conceitos filosóficos[13].
O que queremos indicar é a possibilidade de “diálogo” entre as ciências, isto é, a capacidade de os cultores dos vários ramos da ciência conversarem entre si e compreenderem-se razoavelmente bem uns aos outros. Um problema básico, sem dúvida, é que, em virtude do alto grau de sofisticação teórica da ciência moderna, isto é, da ciência desenvolvida ao longo de todo o século XX, sem um grande cabedal – especialmente matemático – muitas vezes é difícil compreender inúmeras teorias físicas. O mesmo já não ocorre com as Ciências Humanas, cujas produções são redigidas em linguagem corrente que, mesmo quando formalizadas, podem ser compreendidas com um dispêndio de tempo consideravelmente menor.
Afirmamos há pouco que o livro de Jammer – ou melhor, os livros de Jammer publicados no Brasil, ou seja, tanto o relativo ao espaço quanto o relativo à força – podem ser entendidos como textos de história das idéias; nesse sentido, eles estão na intercessão entre Ciências Naturais e Humanas. Essa perspectiva curiosamente é inusitada: dizemos “curiosamente” porque não deveria ser inusitada. Ciências Humanas e Ciências Naturais lidam com idéias, com a reflexão do ser humano sobre a sua realidade, social e individual em um caso, cósmica em outra: em qualquer das situações, trata-se do mesmo ser humano, submetido aos mesmos constrangimentos físicos, ambientais, sociais e psicológicos que pesquisa, investiga, imagina e teoriza. É bem verdade que a aplicação prática das Ciências Naturais é distinta da das Ciências Humanas: como argumentava Augusto Comte – bem ao contrário do que, aliás, recriminaram-lhe um século depois os autores da Escola de Frankfurt –, as Ciências Humanas (Sociologia e Moral) visam ao aconselhamento, seja político, seja pedagógico; seja psicológico; já as Ciências Naturais resultam propriamente nas diversas tecnologias, que são desenvolvidas e aplicadas nas indústrias. Ainda assim, são idéias produzidas pelo ser humano para conhecer e entender a realidade em que vive, para dar sentido à vastidão que o cerca: nesse sentido, separar as “Ciências Humanas” das “Ciências Naturais” só é adequado como recurso analítico, isto é, como procedimento metodológico para análise das várias partes da realidade. O que valeria, o que deveria valer e importar, seria a concepção global da realidade, que permitisse entender o ser humano no mundo. Assim, Ciências Humanas e Ciências Naturais seriam momentos de investigação (científica) que deveriam dialogar em uma etapa seguinte, ou superior, caracterizada pela síntese (filosófica): a unidade do ser humano é mantida, o diálogo entre as concepções também é mantido e é possível que entre as “humanidades” e os “naturalistas” realizem-se profícuos diálogos.
Esse é um ideal de unidade do conhecimento humano que, parece-nos, respeita as particularidades das Ciências Humanas, das Ciências Naturais e – embora não tenhamos comentado nada a respeito disso antes – preserva (ou confere) a dignidade à Filosofia e às especulações filosóficas. Parece claro que as artes – entendidas como as “belas-artes” – têm espaço nessas concepções. Esse ideal foi o defendido por Augusto Comte; de certa maneira, pode-se dizer que a sua Religião da Humanidade consiste em um esforço para realizar precisamente esse ideal, cujo conteúdo humanista parece claro.
Uma concepção parecida encontramos no livro do físico W. Heisenberg, A parte e o todo (2011), para quem as teorias físicas, acima de tudo, são idéias que os seres humanos têm sobre a realidade. É claro que essas idéias não são arbitrárias; elas estão intimamente relacionadas, por um lado, com teorias que se desenvolveram ao longo do tempo – e que têm refinados formalismos matemáticos para conferir-lhes rigor –, e, por outro lado, com experimentos e realidades empíricas, além do bom e velho bom senso. Mas, ainda assim, por trás dos aparatos experimentais e formalistas, existem idéias que os seres humanos desenvolvem para compreender sua realidade, idéias que têm a mesma constituição que as desenvolvidas por poetas, profetas, cientistas, filoósofos de outras épocas e assim por diante.
Evidentemente, as concepções de Heisenberg que expusemos sumariamente são bem menos sistemáticas que as de Comte; mas a proximidade entre ambas parece clara. Os objetos das reflexões específicas em cada uma das ciências são diferentes mas a reflexão que os seres humanos fazem sobre sua realidade é comum.
Essas concepções são ao mesmo tempo um apelo e um fundamento para que Ciências Humanas e Ciências Naturais (e também Filosofia e Artes (“Belas-Artes”)) mantenham um contato estreito, um diálogo contínuo. Todos saem ganhando: os livros da Jammer são demonstrações disso.
Tais idéias talvez pareçam banais. Não são. Disputas, suspeitas, rivalidades entre as áreas do conhecimento são antigas e freqüentes. Cohen (2001) indicou como, apenas na Inglaterra, desde o século XIX já houve pelo menos três “guerras das ciências”, opondo as “Ciências” (Naturais) às “Humanidades” e/ou às “Ciências Humanas”. A própria terminologia “Ciências Naturais” e “Ciências Humanas”, mais que meramente descritiva – indicando as particularidades de objetos e métodos específicos –, revela projetos epistemológicos e políticos mais profundos, em particular no ambiente alemão, que opôs às “Ciências Naturais” (Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia) as “Ciências do Espírito” (Literatura, Sociologia, Psicologia, Jurisprudência – até mesmo Teologia!), ou seja, um agregado compósito derivado da oposição entre Kultur e Zivilitation; essa contraposição caracterizar-se-ia, mais que pela diversidade de objetos, pela diversidade de métodos, objetivos e epistemologias: as Ciências Naturais “explicariam” (ou seja, estabeleceriam relações causais, por meio das leis naturais), ao passo que as “Ciências do Espírito” “compreenderiam” (ou seja, estabeleceriam “nexos causais”, relações de sentido subjetivo entre as ações particulares dos indivíduos também particulares). Os alemães, dessa forma, foram radicais na cisão: é certo que as Ciências Naturais são idéias, mas elas são fruto do espírito como que devido a um grande e mero acaso, pois nem de longe elas oferecem a mesma satisfação íntima que as “Ciências do Espírito”. A ordem humana é absoluta e radicalmente diferente da (e superior à) ordem cósmica[14].
No século XIX da Inglaterra e da França, de qualquer forma, a oposição às Ciências Naturais não partiu de supostas “Ciências do Espírito”, mas das “Humanidades”, especificamente da Literatura[15]. Da segunda metade para o final do século XIX, com a afirmação institucional da Sociologia, surgiu o que Lepenis (1996) chamou de “as três culturas”, em que à oposição entre Ciências Naturais e Humanidades incluiu-se também a Sociologia, que seria ao mesmo tempo uma intermediária e mais uma parte entre as outras duas.
Nas primeiras décadas do século XX a busca de uma sistematização das Ciências Naturais, associada a um esforço na formalização da Lógica e da Matemática, conduziu a uma filosofia que afirmava radicalmente que o conhecimento é tão-somente e estritamente o que é obtido de modo empírico; que as afirmações quaisquer têm que ser o mais claras possíveis e que é necessário que haja correspondências termo a termo entre as afirmações e as realidades empíricas. Essa filosofia foi a do Círculo de Viena – logo também conhecida como “Neopositivismo”, “Positivismo Lógico” ou “Empirismo Lógico” – e, como é fácil de perceber, defendia o primado das Ciências Naturais sobre outras modalidades de conhecimento humano.
O impacto do neopositivismo foi bastante grande, imediato e mais ou menos duradouro. Ao longo de todo o século XX ele fez-se sentir, ainda que não sem contestação e não sem mal-entendidos[16]. Ainda assim, suas limitações conduziram a polêmicas e a fortes reações, muitas delas tendendo a cair no extremo oposto. Dois exemplos desse “extremo oposto” – ainda que exemplos de tipos diversos – são oferecidos pelas obras de Thomas Kuhn e pelos pós-modernos.
Thomas Kuhn foi um físico que, tendo que lecionar história da Física, começou a refletir sobre as concepções físicas de Aristóteles e dos antigos. Habituado a pensar em termos das idéias de Einstein, de Bohr e de Heisenberg – no máximo em termos newtonianos –, Kuhn viu-se em maus lençóis quando estudou Aristóteles, pois percebeu que, embora muito erudito e freqüentemente sensato, seu sistema tinha concepções que não correspondiam à realidade empírica; mais do que isso, para passar do sistema peripatético para o newtoniano eram necessárias mais que mudanças incrementais: era necessária uma alteração radical, uma mudança global de perspectiva, uma ruptura: uma “revolução”. Foi a partir desse entendimento que T. Kuhn elaborou a idéia dos “paradigmas”, segundo a qual cada época na ciência (ou em uma ciência) caracteriza-se por uma visão de mundo amplamente compartilhada, que indica o que é a boa ciência, quais os bons e verdadeiros problemas, os bons e verdadeiros métodos, as boas e verdadeiras soluções e assim por diante (da mesma forma que seus opostos: os problemas, métodos, soluções etc. ruins). Uma teoria científica, portanto, não é questão somente, ou principalmente, de correspondência de uma teoria e de seus predicados a observações empíricas; trata-se de uma visão de mundo – em que há sem dúvida há elementos valorativos e políticos, ou seja, extracientíficos – que orienta os procedimentos e que estabelece essa correspondência entre “teoria” e “fatos”. Publicado no início dos anos 1960, o principal livro de Kuhn – A estrutura das revoluções científicas – foi visto durante muito tempo como um, senão o principal, desafio ao neopositivismo; a lógica da pesquisa científica não era mais questão de lógica e de rigor e passara a ser sociológica.
O conceito de paradigma de Kuhn é bastante ambíguo, entretanto. Em primeiro lugar, o autor estabelece por decreto que os paradigmas são incomensuráveis entre si, ou seja, não são propriamente comparáveis; logo, os resultados teóricos de um não pode ser transmitidos para outro(s). Em conseqüência, o progresso teórico não existe; ou melhor, ele ocorre apenas no interior de um mesmo paradigma: entre os paradigmas o que ocorre é ruptura, não continuidade; “revolução”, não “progresso”. É bem verdade que a visão de mundo aristotélica é incompatível com a que possuímos atualmente, em termos físicos e morais; mas poucas pessoas diriam que, somente por esse motivo, não seria possível compará-las entre si, seja para compreendê-las mutuamente, seja para obter mais dados ou interpretações. De maneira mais clara, o mesmo pode ser dito a respeito das comparações entre as teorias de Ptolomeu e Copérnico, Kepler e Tycho Brahe etc. Além disso, como se sabe, embora os pressupostos teóricos e epistemológicos das teorias de Einstein e de Newton sejam diferentes, tanto as comparações entre elas é possível que se encara Newton como um caso particular de Einstein[17].
Em segundo lugar, Kuhn utiliza a palavra “paradigma” em situações muito diversas. Em alguns casos, torna-a equivalente a “visão ampla de mundo”, incluindo aí valores morais e políticos, lado a lado com pressupostos teóricos e metodológicos científicos; em outros casos, adota uma definição bem mais restrita, equivalente a “teoria científica” (como visto em La révolution coperniciènne (KUHN (1973)). Alguém já disse que, ao investigar os sentidos empregados por Kuhn em seus textos, determinou cerca de 100 acepções diferentes: é evidente essa variedade prejudica – demais – sua tese.
O que as pesquisas de Kuhn têm a ver com as relações entre as Ciências Naturais e Sociais? Ora, como argumentamos antes, sua obra, publicada no início dos anos 1960, apareceu em um momento em que foi vista como uma refutação ou pelo menos um combate ao neopositivismo; dessa forma, foi uma afirmação do “discurso” sobre a “lógica” e sobre os “fatos”.
Ainda assim, bem ou mal, Thomas Kuhn era um físico que se ocupava das Ciências Naturais e que respeitava a particularidade das Ciências Naturais. Interpretação diversa, devida a uma “apropriação” diversa, é feita pelos pós-modernos, conforme exposto pela dupla de físicos Alan Sokal e Jean Bricmont (2001) no livro Imposturas intelectuais[18].
É difícil resumir em poucas palavras as propostas dos pós-modernos. Não porque sejam em si difíceis – na verdade, o problema com suas teses consiste muitas vezes em que seus vocabulários tendem a ser bastante rebuscados, beirando o incompreensível –, mas porque são várias perspectivas mais ou menos paralelas que em comum têm a negação da ciência e variadas formas de irracionalismo. Assim, exporemos em linhas muito breves algumas das perspectivas criticadas por Sokal e Bricmont e que têm importância para o nosso argumento.
Alguns autores de Ciências Humanas seguem a trilha de Michel Foucault, para quem não há “conhecimento”, mas apenas “discurso”; além disso, todo “discurso” reflete uma forma de poder. Dessa forma, Foucault radicaliza a idéia inicial de Francis Bacon – segundo a qual “saber é poder” – e inverte a fórmula de Clausewitz, afirmando que “a política é a continuação da guerra”. Dessa forma, a ciência – seja ela a Ciência Natural, seja ela, principalmente, a Ciência Humana – é simplesmente um discurso criada para legitimar formas de dominação; in extremis, sempre que abrimos a boca para falar, dominamos alguém. Não existe conhecimento da realidade; a lei da gravitação de Newton, as teorias das relatividade de Einstein, as formulações da mecânica quântica de Planck, Bohr e Heisenberg são modalidades diversas para a dominação – possivelmente, dos estratos sociais inferiores e, depois, dos povos colonizados e submetidos ao imperialismo capitalista.
Outros pensadores, como Jacques Lacan – ao menos na fase final de sua carreira –, têm um comportamento mais conspícuo. Sendo autores das Ciências Humanas, impressionam-se com o sucesso do formalismo das Ciências Naturais e procuram-se aproximar-se destas, trazendo um pouco delas para as suas próprias áreas; com isso, desenvolvem grandes formalizações, propõem muitas simbologias – várias delas realmente impressionantes (ou seja, expostas com o objetivo de impressionar). O problema é que tais simbologias, lidas em termos matemáticos, ou físicos, ou químicos (ou das Ciências Naturais de origem), não têm sentido: um sentido literal não pode ser afirmado para elas; mas, por outro lado, os autores que as propõem não sugerem nenhum sentido figurado. Ou melhor, até sugerem o sentido figurado, mas sem explicar qual ele seria e apenas de maneira ad hoc, a fim de furtar-se da responsabilidade de explicar de que maneira o sentido literal seria adequado. Desse modo, o diálogo entre as ciências é frustrado, pela inveja, pela cópia e pela fraude.
Uma outra possibilidade criticada por Sokal e Bricmont é aquela em que se afirma que entre Ciências Humanas e Ciências Naturais não há diferenças, pois todas são meros “sistemas de interpretações”. Podemos pensar no sociólogo Bruno Latour, mas também nos filósofos Richard Rorty e Jean-François Lyotard. Grosso modo, para eles as ciências são produtos da interação humana, em que os homens dialogam e trocam idéias[19] e, como tais, são meramente palavras apostas em folhas de papel ou sons proferidos no ar. A postura extrema é a de Derrida, para quem “não existe nada fora do texto”: a realidade social é um texto, minha vida é um texto, o HIV que infesta um doente com SIDA é um texto, as palafitas dos miseráveis que habitam cidades ribeirinhas do Brasil e do mundo afora são textos. Ora, o texto, por definição, é subjetivo, pode ser discutido de infinitas formas, não tem “certo” nem “errado”, não é passível de intervenção objetiva. O texto simplesmente é.
As idéias de Latour, Rorty e Lyotard têm uma ponta de verdade: as ciências são práticas humanas e, nesse sentido, são subjetivas, pois mobilizam subjetividades: idéias, palavras, imaginações, concepções, visões de mundo, paixões e por aí vai. Contudo, tais subjetividades são a todo momento controladas: os “fatos” não são “mitos”, por mais que os chamados “pós-positivistas” digam o contrário; todas as vezes que eu lançar uma pedra no ar e não houver um anteparo embaixo dela, ela cairá, independentemente das interpretações em jogo. O formalismo matemático, embora em inúmeras ocasiões seja confundido como sinônimo de cientificidade, permite um controle lógico que evita desvãos subjetivos. Por outro lado, um elemento basilar da ciência é a sua publicidade: a crítica pública, aberta, franca, vinda de diversas perspectivas é o critério mais seguro de controle da subjetividade. Ninguém aí está afirmando o banimento da subjetividade: o que se afirma é o seu controle, isto é, sua delimitação, sua circunscrição, sua devida orientação.
Sokal e Bricmont denunciam ainda outros autores das Ciências Humanas que palpitam nas Ciências Naturais. Gostaríamos apenas de indicar Henri Bergson: esse influente filósofo, cujo pensamento deixou marcas mesmo sobre a obra de Lévi-Strauss, pretendeu manter um diálogo, mesmo um debate, com Einstein a propósito da teoria da relatividade, em particular a respeito dos conceitos de tempo e espaço. O problema é que Bergson era apenas e tão-somente filósofo, sem conhecimentos de Física, ao passo que Einstein era físico e tinha conhecimentos de Filosofia: o trágico é que as contra-intuitivas idéias de Einstein são – e eram muito mais – difíceis de entender que as concepções filosóficas de Bergson, a cujas palestras acorriam dezenas ou centenas de pessoas[20].

4. COMENTÁRIOS FINAIS

O objetivo deste artigo foi comentar um livro recém-publicado – Conceitos de força – estudo sobre os fundamentos da dinâmica. Como indicamos, ele parece inicialmente se direcionar para leitores interessados nas Ciências Naturais, mas com um pouco de esforço – bem, talvez com um esforço um pouco maior que somente “um pouco” – ele é proveitoso para leitores interessados nas Ciências Humanas e nas coisas humanas em geral. Nesse sentido, é uma publicação de excelente qualidade, feita em excelente momento.
Ao longo deste artigo comentamos algumas questões suscitadas pelo livro; algumas disseram diretamente respeito ao texto, outras foram sugeridas por sua leitura. A brevidade das observações históricas e teóricas é um problema de acesso para quem não conhece, respectivamente, Ciências Humanas e Ciências Naturais: se corrigir essas limitações estivessem além das possibilidades do autor – cuja obra, em si, já foi vultosa –, a editora poderia fazer apêndices informativos. Já a imprecisão terminológica da palavra “metafísica” é inteiramente de responsabilidade do autor: na verdade, não deixa de ser notável que em um livro dedicado à exploração teórica, conceitual, terminológica e etimológica da “força”, o autor permita-se uma imprecisão tão grande com uma palavra que suscite tantas e tão grandes polêmicas e mal-entendidos.
Por outro lado, os historiadores das Ciências Naturais estão em contato direto e natural com as Ciências Humanas, mesmo que estas e/ou aqueles não o reconheçam. Ainda assim, são diálogos possíveis e necessários. Como argumentamos antes, esses ramos científicos integram um galho maior da Ciência, que, por sua vez, integra a árvore do conhecimento humano: a idéia de unidade deve presidir tudo.
Assim como devemos ser capazes de ter vistas gerais da natureza – e, para isso, o livro de Jammer presta um grande serviço –, também devemos ser capazes de ter vistas gerais da sociedade. Assim como devemos conhecer o mundo, devemos conhecer a sociedade. Assim como devemos conhecer ciência, devemos conhecer artes. Se as ciências têm alguma utilidade além da mera acumulação de “fatos”, “dados” e teorias, é contribuir para o melhoramento humano: esse desiderato só é alcançável com a integração das perspectivas.

Referências bibliográficas

ADORNO, T. (ed.). 1976. The Positivist Dispute in the German Sociology. New York: Harper & Row.
ARON, R. 1999. As etapas do pensamento sociológico. 3ª ed. Lisboa: Dom Quixote.
Bevir, M. 2009. Contextualism: From Modernist Method to Post-Analytic Historicism? Journal of the Philosophy of History, Leiden, v. 3, n. 3, p. 211-224.
BEVIR, M. 2011. Why Historical Distance Is Not a Problem? History and Theory, Middletown, v. 50, n. 4, p. 24-37, Dec.
BURTT, E. 1991. As bases metafísicas da ciência moderna. Brasília: UNB.
COHEN, B. R. 2001. On the Historical Relationship between the Sciences and the Humanities: A Look at Popular Debates That Have Exemplified Cross-Disciplinary Tension. Bulletin of Science, Technology & Society, London, v. 21, n. 4, p. 283-295, Aug.
COMTE, A. 1899. Apelos aos conservadores. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil.
COMTE, A. 1929. Système de politique positive ou traité de Sociologie instituant la Religion de l’Humanité. 3ème ed. 4 v. Paris: Larousse.
COMTE, A. 1972. Opúsculos de Filosofia Social. São Paulo: USP.
FEDI, L. 2008. Comte. São Paulo: Estação Liberdade.
GANE, M. 2006. Auguste Comte. London: Routledge.
GIDDENS, A. 1998. Comte, Popper e o Positivismo. In: _____. Política, Sociologia e Teoria Social. São Paulo: UNESP.
GRANGE, J. 2000. Auguste Comte. La politique et la science. Paris: O. Jacob.
HEISENBERG, W. 2011. A parte e o todo. 5ª ed. São Paulo: Contraponto.
Jammer, M. 2010. Conceitos de espaço: a história das teorias do espaço na física. São Paulo: Contraponto.
Jammer, M. 2011. Conceitos de força – estudo sobre os fundamentos da dinâmica. São Paulo: Contraponto.
KUHN, T. S. 1973. La révolution coperniciènne. Paris: LGF.
KUHN, T. 2007. A estrutura das revoluções científicas. 9ª ed. São Paulo: Perspectiva.
Lacerda, G. B. 2009a. Augusto Comte e o “Positivismo” redescobertos. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 17, n. 34, out. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsocp/v17n34/a21v17n34.pdf. Acesso em: 9.fev.2011.
Lacerda, G. B. 2011. O Positivismo e o conceito de “metafísica”. Disponível em: http://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2011/03/o-positivismo-e-o-conceito-de.html. Acesso em: 28.dez.2011.
LAFFITTE, P. 1894. Cours de philosophie première. T. II: des lois universelles du monde. Paris: Société Positiviste.
LAFFITTE, P. 1928. Cours de philosophie première. T. I: théorie positive de l’entendement. Paris: Société Positiviste.
LEPENIS, W. 1996. As três culturas. São Paulo: USP.
SOKAL, A. & BRICMONT, J. 2001. Imposturas intelectuais. O abuso da ciência pelos filósofos pós-modernos. Rio de Janeiro: Record.





[1] Uso a palavra “macrocontexto” devido a dois motivos: por um lado, para manter-me mais ou menos coerente com a terminologia que empreguei até agora; por outro lado, para evitar a expressão “paradigma”, cujo uso abusivo já a descaracterizou (sem mencionar a brutal imprecisão de que Thomas Kuhn (2007) dotou-a). Considerando a ampla descrição histórica de Augusto Comte, também poderia usar, até certo ponto, a expressão “estados”, no sentido comtiano (cf. por exemplo COMTE, 1929, v. III).
[2] Essa possibilidade – que parece bastante evidente nos relatos de História das Idéias científicas – é negada por alguns autores e teóricos da História das Idéias, em particular das idéias políticas – pensamos, por exemplo, na Escola de Cambridge e particularmente em Quentin Skinner (2002), que têm negado essa possibilidade pelo menos desde a década de 1960. Por outro lado, ainda que com preocupações um tanto diversas, mais recentemente Mark Bevir afirmou que a escravização ao contexto histórico não faz sentido (cf. BEVIR, 2009; 2011).
[3] A presente subseção é uma versão levemente modificação de um texto anterior (LACERDA, 2011).
[4] Uma transição anterior foi também de grande monta, ainda que de proporções relativamente menores em termos da natureza humana: a passagem da organização política clânica para a pólis constituiu-se em uma ruptura forte, em que as relações sociais mudaram bastante de aspecto.
[5] É fácil perceber, lendo esses artigos, que, como indicou Raymond Aron (1999), a motivação política subjacente a eles é a compreensão sociológica da Revolução Francesa, isto é, de suas causas e de seus efeitos. Essa preocupação específica, somada à exigência teórico-metodológica de visão de conjunto, originou uma brilhante exposição sobre a história da Humanidade – é o volume III do Sistema de política positiva –, que incorpora desde os povos fetichistas até as sociedades mais modernas e permite o diálogo (teórico e prático) entre todas elas.
[6] Isso é comprovado pelos diversos enunciados da lei dos três estados: em todos eles a metafísica é apresentada secundariamente, após a caracterização da teologia e da positividade e sempre de maneira auxiliar a essas caracterizações prévias. Além disso, à medida que avançava suas reflexões sociológicas, mais e mais Comte incluía o fetichismo como uma etapa preliminar distinta da “teologia”, de maneira a permitir a fusão do positivismo final com o fetichismo inicial, no que alguns autores (Grange, 2000; Fedi; 2008) chamam de “neofetichismo”. Um relato cerrado sobre os vários enunciados da lei dos três estados pode ser lido no livro de Mike Gane (2006).
[7] Ainda assim, Giddens não avança na compreensão da obra de Comte, preferindo o recurso fácil da redução de Comte ao Círculo de Viena.
[8] Essas observações resultam, por outro lado, em uma ácida crítica aos procedimentos de diversos cientistas e às universidades como um todo: para Comte, muito do que se entendia – e, bem vistas as coisas, ainda se entende – por ciência consistia em meras coleções de fatos isolados e, por si sós, inúteis, com o desprezo dos sentimentos e das preocupações sociais; além disso, tais práticas, em vez de subordinarem corretamente a imaginação à observação, simplesmente acabariam com a imaginação. Tais comentários estão espalhados em todas as obras de Comte, mas são especialmente claros no “Prefácio pessoal” do volume VI do Sistema de filosofia positiva, de 1842; já a afirmação do espírito positivo em relação à mera cientificidade está clara no Discurso sobre o espírito positivo, também de 1842.
[9] Aliás, não deixa de ser notável que alguns de seus membros, ou melhor, alguns dos pensadores preocupados com a diferença entre metafísica e ciência fossem teológicos: esse é o caso de Karl Popper – comumente percebido como “arquipositivista” (especialmente após a polêmica com o também teológico Adorno, da Escola de Frankfurt) – que reconhecia sua crença em deus. A coerência filosófica de Popper (e de Adorno, convém enfatizar) é, assim, bastante discutível.
[10] O caso de Popper é, em certo sentido, problemático, pois, participando dos debates promovidos pelo Círculo de Viena e preocupado com a justificação da ciência empírica, ele era crítico do Círculo de Viena. A dificuldade a seu respeito é a atribuição do qualificativo “positivista” para ele; mesmo restringindo esse adjetivo somente (ou principalmente) ao Círculo de Viena – o que, por si só, já é altamente problemático, pois descaracteriza o pensamento comtiano –, não apenas os membros do Círculo rejeitavam essa classificação como Popper afirmava não ser positivista, mas um filósofo “crítico”. A idéia de um Popper positivista foi difundida, em primeiro lugar, pela Escola de Frankfurt, com a famosa “disputa do Positivismo na Sociologia alemã”, que opôs Popper a um Adorno surdo aos argumentos contrários aos seus; depois, o chamado “pós-positivismo” criou um construto chamado “positivismo” a fim de opor-se a ele, incluindo nele Popper (e, por metonímia, Comte); a disputa de Popper com o primeiro dos “pós-positivistas” (Thomas Kuhn) certamente contribuiu para esse mito.
[11] Assumo com clareza a limitação desta exposição, que é de fato bastante sumária. Além das reduzidas proporções desses comentários, importa notar também que o Círculo de Viena não era homogêneo nem suas idéias constituíram uma “escola” propriamente dita. Na verdade, houve dois círculos, compostos por filósofos, cientistas naturais e matemáticos, reunidos pela preocupação com os fundamentos da ciência e com a demarcação relativamente à metafísica; embora procurassem o consenso, suas perspectivas não eram coincidentes e ocorria divergências marcadas entre eles. Assim, o mais das vezes, quando se fala em “Círculo de Viena”, faz-se uma generalização indevida; o principal, ou mais conhecido, pensador do Círculo era Rudolph Carnap; secundariamente, indica-se também Otto Neurath.
[12] Deixamos de lado a possibilidade de um “completo leigo” ler o livro: o “completo leigo” seria aquela pessoa sem treinamento científico, seja nas Ciências Naturais, seja nas Ciências Humanas.
[13] Podemos sugerir, quem sabe, anexos explicativos em eventuais novas edições brasileiras do livro. Evidentemente, explicativos para leigos, não para especialistas.
[14] Aliás: para os pensadores propositores da oposição entre “Ciências Naturais” e “Ciências do Espírito”, a ordem humana é somente a ordem individual, pois o coletivo não existe: as coletividades são agregados de indivíduos; por outro lado, a ordem humana é superior à ordem cósmica por desígnio divino. Mesmo que não se diga, tudo isso está implícito.
[15] Essa perspectiva, na verdade, mantém-se até os dias de hoje. Assim, por exemplo, em algum lugar o finado jornalista brasileiro Paulo Francis escreveu que a Sociologia é interessante, mas que o “verdadeiro” conhecimento da realidade está na Literatura.
[16] Duas formas diversas de mal-entendidos: por um lado, afirmar que o neopositivismo era uma apenas uma variedade do Positivismo comtiano, como afirmado pelo sociólogo inglês Anthony Giddens (cf. LACERDA, 2009a); por outro lado, atribuir aos membros do Círculo de Viena concepções teóricas, filosóficas e políticas que eles jamais defenderam, como feito à exaustão pela chamada “Escola de Frankfurt”; para isso, basta conferir-se o famoso livro compósito A disputa do Positivismo na Sociologia alemã, organizado por T. Adorno (1976)
[17] O “encaixe” das idéias de Newton nas de Einstein é possível, grosso modo, percebendo aquelas como um caso particular, de nível “médio”, nas teorias deste, que são de nível “grande”. Por outro lado, como Heisenberg (2011) indica, não apenas Max Planck não queria, de maneira alguma alterar a Mecânica Clássica quando se viu forçado a propor as hipóteses que conduziram à constituição da Mecânica Quântica, como a Mecânica Clássica (de nível “médio”) convive mais ou menos bem com a Mecânica Quântica (de nível “muito pequeno”).
[18] Convém notar que as críticas de Sokal e Bricmont, e particularmente as polêmicas mantidas após a publicação do livro pelo primeiro dos dois autores, deflagraram a atual “guerra das ciências”, conforme a expressão de Cohen (2001).
[19] Latour enfatiza as relações de poder, mas isso é secundário para o nosso argumento. Na verdade, mesmo Pierre Bourdieu afirma a importância das relações de poder para a constituição do que chama de “campo científico”, mas nem ele chega tão longe a ponto de negar a validade intrínseca do conhecimento científico.
[20] Claramente, esta exposição foi mais breve que as demais: quem tiver interesse na argumentação de Sokal e Bricmont, o melhor é ler diretamente o seu livro, redigido de maneira adequadamente didática.

(Permitida a livre reprodução do texto, desde que citada a fonte.)
(1ª versão: 27.2.2012; 2ª versão, revisada: 25.9.2014)

23 fevereiro 2012

Carvalho Romano - católicos desmerecendo o Positivismo


Dois autores de origem católica que adotam os mesmos argumentos a respeito das relações entre igreja e Estado e – o que é mais curioso – a respeito das relações entre igreja e Estado propostas por Augusto Comte são Roberto Romano e Olavo de Carvalho, respectivamente nos livros Brasil: igreja contra Estado (ROMANO, 1979) e O jardim das aflições (CARVALHO, 1999)[1].

As origens de cada um dos autores são bastante diversas: enquanto Roberto Romano começou seminarista dominicano[2] próximo à chamada “igreja progressista”, isto é, ao amálgama de catolicismo e marxismo chamado de “teologia da libertação”, há muitos anos é professor de Ética na Universidade Estadual de Campinas e, curiosamente (ou, talvez, nem tanto), especialista no pensamento político, moral, filosófico e científico do Iluminismo francês (em particular o de Denis Diderot) – justamente um dos mais agressivamente anticlericais do movimento (talvez atrás apenas do barão d’Holbach). Ainda assim, esse livro, que corresponde à tese de doutorado de Romano, é por ele valorizado até hoje, como se pode constatar facilmente no seu currículo Lattes: na base Lattes cada pesquisador pode indicar até cinco obras que considera excepcionalmente relevantes ou representativas de sua carreira – e lá está sua tese de doutorado, redigida na França, entre 1976 e 1977, sob a orientação (que, face aos problemas que indicaremos, supomos bastante indulgente) de Claude Lefort. De qualquer maneira, seus textos são (alegadamente) eruditos e articulados.

Já Olavo de Carvalho é mais conspícuo. Politicamente, começou à esquerda, integrando os grupos comunistas que abundavam nos anos 1960 e 1970; filosoficamente, buscava na astrologia orientação prática, tendo escrito diversos manuais a respeito, chegando a usar a astrologia para “predizer” – mas após os fatos – o fim do comunismo, em 1989-1991. Entre os anos 1970 e 1980, pelos desvãos da vida, desiludiu-se com a esquerda e tornou-se um áspero crítico dela, passando, por oposição, a ser da “direita”; não lhe cabe propriamente esse título, pois, segundo os critérios definidos por Bobbio (1997) em seu Direita e esquerda, Carvalho não é a favor das “desigualdades”; ele seria mais um liberal. Não um liberal elegante e cuidadoso como Raymond Aron, mas um extremamente cão raivoso, a quem esqueceram de ministrar vacina. Suas manifestações públicas (em artigos, entrevistas ou nas “redes sociais”) evidenciam sempre grande violência verbal e pessoal, autoritarismo e mesmo vulgaridade escatológica, com o uso abundante de palavrões (em particular, “cu”)[3]. Por outro lado, se Olavo de Carvalho faz questão de alardear seu afastamento da esquerda e sua aproximação do liberalismo, seu afastamento da astrologia foi muito mais silencioso e mais ambíguo: aproximou-se do catolicismo, não falou muito mais de astrologia, embora refira-se de quando em quando à astrologia, à cabala, critique o catolicismo sem muita clareza ao mesmo tempo que o defende. Em todo caso, a impressão geral que se tem é que ele é um católico, embora não se saiba precisar de que tipo específico, do mesmo modo que, ao escrever, ele não seja um católico que fale em nome do clero e/ou da igreja; além disso, da mesma forma que no caso de Romano, (alegadamente) os textos de Carvalho são eruditos e escritos com maestria retórica.

Ora, nos dois livros indicados, ao tratarem das relações entre igreja e Estado e, em particular das propostas positivistas para essas relações, é surpreendente que os argumentos dos autores sejam em tudo semelhantes, à exceção de alguns detalhes: enquanto Romano apresenta algumas referências bibliográficas a título de citações de Augusto Comte e suas obras, mas não é preciso em suas indicações, Carvalho não cita nenhuma obra de Comte mas é espantosamente preciso em suas referências a ele (embora, nem por isso, seja mais correto no que afirma). As propaladas erudições e os tons “críticos” das obras – dirigidos, em um caso, aos católicos marxistas, no outro caso, aos católicos liberais (de “direita”) – são suficientes para convencer quem quer ser convencido dos argumentos expostos.

Em poucas palavras, argumentos os expostos são os seguintes. Para eles, a igreja é (sempre foi e sempre será) fonte de liberdades política, intelectual e espiritual, ao passo que o Estado, baseando-se na força física, é fonte de opressão; além disso, o Estado também teme permanentemente as forças intelectuais, por serem elas fonte de crítica às ações estatais e àquelas baseadas na força bruta[4]. De acordo com a narrativa de Romano e Carvalho, ao longo da história – bem entendido: ao longo da Idade Média e, de maneira mais específica, ao longo da alta Idade Média (séculos VI a X) –, enquanto o Estado subordinou-se à igreja, vigeu um regime de liberdades, mas à medida que o Estado combateu com sucesso essa influência eclesiástica, seja por meio da sujeição da igreja, seja por meio de elites intelectuais, políticas e sociais laicas, os meios de opressão aumentaram e, portanto, a tirania aumentou[5].

Todavia, para os autores em questão, o problema nas relações entre igreja e Estado é mais profundo. Por um lado, o Estado passou a pregar a capacidade de justificar-se a si próprio, independentemente de fundamentos “transcendentais” (a salvação das almas, o temor do inferno, o amor a deus) e/ou externos a si. Com isso, ele passaria a defender alguma coisa como uma “transcendência imanente”, ao mesmo tempo que negar as “transcendências transcendentais”: tudo o que ultrapassasse ao próprio Estado seria errado, ilegítimo, imoral.

Por outro lado, de acordo com Carvalho e Romano, a igreja é a intérprete e a representante da religião, ou melhor, da verdadeira religião, que necessariamente é a religião católica apostólica romana. O Estado é particular, restrito a territórios bem delimitados, ainda que nesses territórios circunscritos passe a afirmar-se como universal e ilimitado à medida que ele (Estado) neutraliza a igreja; a igreja (católica), por outro lado, é universal no tempo e no espaço, de modo que não conhece limites territoriais e é eterna, pois vincula-se com o próprio altíssimo e é dele que obtém e fornece sua legitimidade. As campanhas de laicização, portanto, em vez de proporem as condições de liberdade, visam ao autoritarismo e, no limite, ao totalitarismo. Trata-se, portanto, de uma suposta crítica ao totalitarismo, a partir da perspectiva eclesiástica; todavia, o papel político atribuído à igreja e, em particular, o papel desempenhado pela igreja em relação às liberdades de pensamento e expressão, ao controle social e à exigência de apoio estatal para tais práticas, é completamente silenciado, ainda que seja tomado como pressuposto. As possibilidades teóricas e os eventos históricos relativos a essas questões são soberbamente deixados de lado, como as exemplares atuações tirânicas dos frades dominicanos à frente da Inquisição em Portugal e Espanha ou o completo desregramento moral, político, intelectual e social do papado, do século XIII em diante[6]: a igreja é abstrata e etereamente tomada como exemplo e parâmetro de conduta, como se ela própria não tivesse uma longa história, cuja evolução foi marcada por ascensão, apogeu e declínio[7].

Esses são os argumentos gerais a respeito das relações entre igreja e Estado e, portanto, sobre a laicidade. No que se refere a Augusto Comte, eles dão um passo além, especialmente Romano, que dedica todo um capítulo “crítico” ao Positivismo. Claramente repetindo um conhecimento comum, ele “sabem” que Comte propôs uma “Religião da Humanidade” e que essa religião é laica; da mesma forma, Comte propôs uma “ditadura republicana” e, finalmente, Romano e Carvalho “sabem” que os militares brasileiros, em algum momento da história nacional, foram influenciados pelo Positivismo. A conclusão lógica dessa série de premissas soltas, descontextualizadas e baseadas no que há de pior no senso comum leigo e acadêmico é que Augusto Comte propôs uma religião de Estado, a ser implantada e mantida via ditadura militar, de que o Brasil ofereceu o melhor (e único) exemplo entre 1964 e 1985[8]. Não é coincidência que o único estudo comparativo que Romano use sobre a ditadura republicana no Brasil seja a pesquisa que Leopoldo Zea fez sobre o... México (de 1870 a 1910)!

Como Carvalho e Romano “provaram” anteriormente, a partir de suas premissas teológico-políticas, que a igreja é fonte de liberdade (devido aos seus vínculos com a divindade) e que o Estado, por oposição, é fonte de opressão, o Positivismo é apresentado como o caso-teste nacional de suas teses filosóficas. Em nenhum momento há um exame detido das idéias de Comte. Mas... que bobagem! O que estamos dizendo?! Em nenhum momento há sequer exposições, citações de Augusto Comte e/ou de seus discípulos, de modo a provar ou corroborar as afirmações anteriores: por mais espantoso e incrível que pareça, há simplesmente a justaposição das idéias de senso comum, apresentadas a título de premissas, seguidas das conclusões adequadas e dadas de antemão. As diferenças entre os dois autores são secundárias: Romano, como já indicamos, apresenta algumas referências bibliográficas a mais, embora em momento nenhum discuta seriamente os trechos indicados – em várias ocasiões, aliás, ele conclui exatamente o contrário do que as citações afirmam[9]! Já Carvalho não cita absolutamente nada, a despeito de suas afirmações peremptórias e de sua alegada erudição; em virtude disso, suas premissas são mais imaginativas, donde suas conclusões são mais despropositadas, ainda que seu estilo seja mais claro.

Não é possível dizer que a literatura sobre Augusto Comte seja propriamente pequena. É claro que, como diria Bourdieu, há os efeitos do campo acadêmico, que regem as modas intelectuais e que funcionam próximas dos ritmos políticos mais amplos; assim, as décadas de 1950 a 1980 caracterizaram-se pelas influências do marxismo, do comunismo, da contracultura, da Guerra Fria, do Círculo de Viena, das “guerras da ciência” e por aí vai. Assim, fazer análises “críticas” do Positivismo equivalia a falar mal dele (ao mesmo tempo em que análises “críticas” sobre o marxismo, por exemplo, eram sempre discursos laudatórios). Esse Zeitgeist valeu em particular no Brasil, durante o regime militar, quando, como comentamos, o senso comum com enorme facilidade associava Positivismo, ditadura republicana, militarismo e regime militar[10].

Todavia, não é aceitável que argumentos tão precários, sobre questões tão centrais para as vidas individuais e coletivas dos seres humanos, sejam apresentados e discutidos dessas formas tão rasteiras. No caso do livro de Romano, a conjuntura, embora não desculpe, pode até justificar: eram os anos 1970 e ele próprio era orientado por um filósofo preocupado com a centralidade da democracia para a esquerda, contra os totalitarismos. Isso, é claro, não desculpa: os problemas do seu livro são muito grandes e suas falhas não têm relação alguma com as preocupações de uma esquerda que acordava, enfim, para a importância das liberdades “formais”[11]. Já o livro de Carvalho foi escrito em meados dos anos 1990, quando o Brasil vivia um período de francas liberdades[12]; muito embora o seu alvo fosse a esquerda marxista, para atingi-la Carvalho deu uma volta enorme, a fim de “demonstrar” que a laicização é um processo daninho e que “fora da igreja não há salvação”[13].

Em termos acadêmicos, há várias obras brasileiras recentes de grande porte sobre o pensamento político de Augusto Comte – que, não por acaso, indicam o quanto os argumentos de Carvalho e Romano, mais que improcedentes, são sofísticos, como os livros de Lacerda Neto (2003) e Volkoff e Lacerda Neto (2004) e, ainda mais, os de Lacerda (2010; 2013; 2016; 2018). Além desses dois livros, há uma série de artigos e textos acadêmicos e de polêmica que tratam dessas e de outras questões; é possível conferi-los aqui: http://www.filosofiasocialePositivismo.blogspot.com/.

*          *          *

EXCURSO SOBRE O LIVRO DE ROBERTO ROMANO

O raciocínio do livro de Romano é que a igreja não é um “aparelho ideológico do Estado”, como pregavam Althusser e Gramsci, mas, antes, uma instituição com autonomia organizacional e intelectual, com dinâmica própria e – palavras suas – “auto-reflexão”, capaz de compreender cada momento que vive e, com base nos elementos do passado, buscar situar-se no presente para projetar-se para o futuro. Desse modo, a perspectiva do autor centra-se na igreja, especialmente em contraposição a outras organizações e elites, ou melhor, em contraposição às elites laicizantes, secularizantes e anticlericais: em outras palavras, Romano com muita clareza e sem muita preocupação escorrega do centramento na igreja para a defesa da igreja.

Essa perspectiva é realçada pelo momento histórico em que o livro foi escrito (1976-1977), durante o regime militar brasileiro: de um lado, o Estado era opressivo; de outro, amplos setores da igreja católica apresentavam-se como “progressistas” e lutavam pela liberalização do regime. Desse modo, Romano pôde, conjunturalmente, argumentar que o Estado é autoritário e que a igreja é libertária, deixando de lado o fato de que a igreja apenas episodicamente foi libertária no Brasil[14].

Sua posição é clara: a igreja esteve sempre acuada pelo Estado e pelas elites laicas, que procuravam instrumentalizar uma estrutura eclesiástica – que, de outra maneira, seria “pura” e “liberal” – para dominar a população; daí, aliás, a preferência do Estado pelas elites católicas, deixando ao baixo clero o trabalho junto às massas.

Romano considera que houve na história do Brasil três momentos principais: (1) a igreja na Colônia e no Império, (2) depois na I República Velha contra o liberalismo e, por fim, (3) no Império e na I República especificamente contra o Positivismo[15]. No que se refere ao Império, o argumento é o exposto acima: as elites imperiais oprimiram a igreja, impedindo-a de manifestar-se, expandir-se, organizar-se e expressar-se, a todo momento procurando instrumentalizar a hierarquia a favor dos meios de dominação. É notável que ele deixe de lado o fato de que a liberdade de religião não existia até 1824 e que, entre esse ano e 1890, a igreja detinha o monopólio dos atos civis públicos (nascimentos, casamentos, óbitos, enterros); além disso, embora houvesse uma certa liberdade religiosa, apenas algumas outras religiões eram toleradas e vistas como excepcionais[16].

Ao tratar do liberalismo, Roberto Romano afirma que essa corrente foi um instrumento não propriamente do Estado, mas do capitalismo que se modernizava no país, com o avanço da cultura do café: ao ser necessário integrar novos braços para a lavoura cafeicultora, o liberalismo afirmou a laicidade a fim de permitir que imigrantes europeus fossem atraídos para o Brasil. Essa laicidade tinha vários resultados positivos: atraía mão de obra qualificada; atraía europeus e deixava de lado os “inferiores” negros e índios (além dos mulatos); reforçava o poder do Estado. Assim, em um raciocínio ao mesmo tempo católico e marxista – teologia da libertação, afinal de contas... –, a laicidade teria sido meramente uma ideologia, isto é, um instrumento hipócrita da exploração do capital, não uma forma de instaurar liberdades.

Convém lembrar que Romano insiste na idéia de que a Igreja não pode retirar-se para o foro íntimo dos fiéis; ela tem que ser fiel a si mesma, atuando no âmbito público e orientando as massas em termos espirituais da mesma forma que o Estado orienta em termos temporais. A impossibilidade de retraimento para o âmbito privado, para Romano, é um argumento contrário à laicidade e uma forma de indicar a falsidade, ou hipocrisia, do liberalismo do final do século XIX.

O argumento de Romano enfatiza que o liberalismo brasileiro, seguindo os passos do europeu (como o kantiano, seguido depois pelo hegeliano[17]), dessacralizava o poder, tornando o Estado um fim e um fundamento em si mesmo, ou seja, a imanência tornava-se sua própria transcendência, criando as condições para o abuso do poder que resultaria, depois e em outras condições, no totalitarismo (essa é uma evidente, e conveniente, influência de Claude Lefort). Mas convém notar que a crítica ao liberalismo como consagrando o Estado como fim em si mesmo está presente na reacionária encíclica Quanta Cura, de 1864, em que o Papa Pio IX reforçou o movimento ultramontano ao criticar a modernidade, o liberalismo, a laicidade, a liberdade de pensamento etc.[18]. Não é por acaso que Romano adota o fácil, quase demagógico, expediente de citar trechos de artigos do jornal O Estado de S. Paulo, em que se apresentam com clareza perspectivas ao mesmo tempo liberais e discriminadoras (racistas, eurocêntricas etc.): essas citações permitem a Romano validar a crítica ao liberalismo nacional e, daí, resguardar a igreja católica. Ao mesmo tempo, Romano (no que é seguido por O. Carvalho) deixa de lado o fato de que o papado apoiou ativamente o fascismo contra o liberalismo (e comunismo e os judeus), obtendo com isso a generosa mas aberrante transformação de um palácio medieval, desde há muito sede de uma religião, em um Estado nacional (o Vaticano). O posterior apoio de Pio XII a Hitler é igualmente deixado de lado, da mesma forma que os movimentos fortemente iliberais e antiliberais brasileiros, como a neocristandade de Sebastião Leme e Jackson de Figueiredo[19].

Não é por acaso, aliás, que Romano deixe de lado nesse momento o Positivismo em sua argumentação, mas que, em outro momento, dedique-lhe um capítulo inteiro, mesmo que individualmente maior que cada um dos dois capítulos anteriores: o Positivismo como doutrina e os positivistas como ativistas não cometiam nem cometeram os erros que o Estado brasileiro e os liberais (brasileiros e/ou alemães) cometeram. Em outras palavras, como indicamos em Lacerda (2016; 2018), os positivistas não procuraram instrumentalizar a igreja para reforçar o poder do Estado; não afirmaram que o Estado é fundamento e fim de si mesmo e que não carece de nenhuma transcendência; não relegaram a população humilde a segundo plano; não foram racistas ou discriminadores; não foram anticlericais. Não é à toa que ele tem que, retoricamente, falar em “astúcia” para (des)caracterizar os positivistas: afinal, somente lhes atribuindo uma implícita má-fé, um ultramaquiavelismo que teria oito décadas de antecedência (!) é possível tornar aceitável criticar o comportamento em todo sentido exemplar deles.

Roberto Romano mistura vários procedimentos para sua confusão. Antes de mais nada, algumas palavras a respeito de seu estilo. O texto é o de um filósofo que reflete, ou seja, que desenvolve argumentos; esse desenvolvimento, todavia, não segue uma ordem muito firme, nem em termos de exposição das idéias, nem em termos de demonstração dos raciocínios. Assim, as idéias são expostas de modo truncado, sobrepondo-se argumentos e linhas argumentativas, muitas das quais não têm relação direta com o tema imediatamente anterior; da mesma forma, as citações utilizadas para ilustrar as afirmações têm referências secundárias na melhor das hipóteses – isso, claro, quando o autor dá-se ao trabalho de apresentar citações[20].

No que se refere às idéias propriamente ditas, Romano não é contraditório – pois isso pressuporia um desejo de expor idéias e raciocínios e comprovar, via demonstração, alguma tese. Os vai-e-véns argumentativos não permitem considerar que se deseja provar alguma coisa, mas simplesmente expor algumas idéias gerais que devem, ao cabo da leitura, ficar associadas devido à justaposição de idéias. Quais seriam essas idéias? (1) O Positivismo é “autoritário” e prega uma “ditadura” religiosa e secular, mesmo quando defende a laicidade e mesmo que precise do apoio dos militares; (2) a exposição e defesa públicas de idéias pelos positivistas são estratégias de manipulação calculistas (“racionalidade calculadora”[21] – ou, quem sabe, “maquiavélicas”); (3) o regime militar vigente após 1964 teria tido fortes traços positivistas; (4) a igreja católica dividia-se em duas grandes partes: uma autoritária, ultramontana, própria ao clero, e outra popular, simpática ao povo, ao ativismo popular e contrária à exclusão político-econômica brasileira (e em particular a que ocorria desde 1964). Além disso, ele acusa (!!!) não somente os positivistas como também os liberais de pleitearem a laicização da política; para Romano, a laicidade do Estado é daninha para a igreja, ao impedi-la de manifestar-se publicamente de acordo com seus próprios critérios em termos universais e de propor uma transcendência para a realidade política. Implícita estão as idéias (1) de que a única religião, a única instituição que pode ter universalidade no tempo e no espaço e, portanto, que pode conferir transcendência é a igreja católica, e (2) de que a laicidade seria uma forma de censura contra a “religião”, em vez do próprio regime que permite e consagra as liberdades de consciência, expressão e associação.

É notável que o texto de Romano seja ao mesmo tempo erudito – ele cita Augusto Comte (não somente a Filosofia positiva e a Política positiva), como também Ivan Lins, Pereira Barreto, Miguel Lemos, Teixeira Mendes, João Cruz Costa – e tão desinformado. Na verdade, parece que ele desenvolve uma estratégia de simulação: multiplica algumas referências, dando a impressão de ser erudito, para melhor criticar, ou melhor, para mais facilmente dar livres asas à sua imaginação. Mesmo a sua erudição não é profunda: bastar-lhe-ia consultar dois ou três livros brasileiros (digamos, os de Ivan Lins e de João Cruz Costa) para deles extrair algumas passagens que lhe parecessem mais adequadas. Em outras palavras, absolutamente nada garante que Romano tenha de fato lido os originais e realizado uma exegese profunda. Ora, lendo os livros de Ivan Lins (História do Positivismo no Brasil) e de Cruz Costa, encontramos todas as citações feitas por Romano, embora Romano não tenha apresentado nada além das citações presentes em Cruz Costa e, acima de tudo, no livro de Ivan Lins. Em outras palavras, para tratar do Positivismo em sua tese de doutorado, Roberto Romano limitou-se a ler apenas (alguns capítulos de) dois livros.

Comecemos pelos juízos que Romano emite sobre a igreja. Ele é extremamente ambíguo sobre ela. Como indicamos, para ele há uma duplicidade eclesiástica: os grandes prelados e a arraia miúda; os “poderosos” e os “identificados com o povo”. Essa duplicidade é criticada por Romano, especialmente quando implicitamente ele critica a época em que escreve (década de 1970) a partir da teologia da libertação: o baixo clero está do lado da verdade, pois está do lado dos fracos, dos pobres, da emancipação popular; já o alto clero... a respeito do alto clero da década de 1970 Romano não fala nada, mas fala do alto clero das décadas de 1930 em diante, que conseguiu associar-se novamente ao Estado e dar um apoio fundamental ao autoritarismo que ressurgiu em 1964. Entretanto, de modo geral, Romano considera que “a igreja” (tomada tout court, sem distinção de nível social) tem propriedades institucionais, morais e políticas importantes, a começar por sua plasticidade histórica, que lhe permite modificar-se, adaptar-se e, assim, renovar-se com o passar do tempo. Em outras palavras: feitas as contas, como a igreja é a igreja, ela é boa e deve permanecer exercendo sua influência sobre a sociedade (já o que se lhe opõe é ruim).

Mas é Romano quem critica a igreja, isto é, ele arroga-se a exclusividade do direito de poder criticar a igreja: em contraposição, as observações dos positivistas a respeito da igreja são sempre vistas como suspeitas, como se sempre tivessem sido escritas com “motivos ocultos”. Indicativo dessa reiterada e profunda suspeição que Romano nutre pelo Positivismo é o título do capítulo que lhe dedica: “A astúcia do Positivismo”. Quando os positivistas criticam a igreja, sugere Romano, seria para negar sua importância histórica, política e social; quando os positivistas afirmam a laicidade do Estado é para impedir a manifestação política da igreja, acabar com a transcendência do Estado mas, ao mesmo tempo, por meio da “ditadura republicana”, implantar uma “transcendência imanente” por via das armas com apoio dos militares; quando os positivistas têm propostas sociais iguais às da igreja, é para a opressão social (isto é, para manter melhor o domínio da burguesia, do Estado e, de modo geral, da situação de passividade do povo)[22]. Novamente: as citações reproduzidas aqui e ali por Romano, quando são reproduzidas, mal têm relação com o argumento – isso quando não o contradizem frontalmente.

O que espanta na exposição de Romano são seus argumentos implícitos, a cujo respeito vale perguntar com clareza: (1) por que seria necessária alguma forma de transcendência para o Estado? (2) Por que logo, e tão-somente, a igreja católica poderia conferir essa transcendência ao Estado? (3) Por que a laicidade seria um disfarce para uma “transcendência imanente”? (4) Por que, afinal de contas, a “transcendência imanente” conduziria ao totalitarismo?

O autor toma como pressupostas essas idéias; a virulência e a má-fé que ele manifesta em relação ao Positivismo, dessa forma, assumem um outro caráter: para Romano não se trata de analisar as relações da igreja católica com uma força política, social, intelectual – em uma palavra, moral – alternativa, mas com um rival perigoso, que deve ser vilipendiado ao máximo[23].

Convém insistir no reiterado movimento histórico, por assim dizer, que Romano realizou, em que expôs idéias dos positivistas das décadas de 1870 e 1890, ao mesmo tempo que afirmou haver conseqüências delas na década de 1930 e, ainda mais, afirmou haver outras conseqüências nas décadas de 1960 e 1970. Costuma-se dizer, na História, que o historiador escreve sobre o passado pensando no presente; mas isso, evidentemente, é um certo exagero, pois há que se respeitar a autonomia dos tempos idos: qual seria a relevância contemporânea, digamos, do sistema político do Egito Antigo? Da mesma forma, há que se compreender que cada contexto tem suas particularidades e, ainda mais, há que se respeitar o princípio científico básico de que cada afirmação factual tem que ser comprovada: ora, Romano nem comprova as afirmações, nem respeita os contextos históricos. Dessa forma, ele afirma sem comprovar e comete o grave erro teórico-metodológico do anacronismo[24].

É realmente espantoso que esse conjunto – fragílimo sob qualquer perspectiva, exceto sob o da militância ideológica – tenha sido aprovada como uma “tese de doutorado”. Em suma, termina-se a leitura do livro com grande dificuldade para não pôr em questão a validade filosófica, científica, histórica e política dos argumentos, dos raciocínios e dos valores do autor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUDIFFRENT, Georges. 1925. Opúsculos sobre o catolicismo. Rio de Janeiro: J. R. Oliveira.

BOBBIO, Norberto. 1997. Direita e esquerda. Razões e significados de uma distinção política. São Paulo: UNESP.

CARNEIRO, David. 1940. Civilização católico-feudal. São Paulo: Athena.

CARVALHO, José M. 2005. Forças Armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro: J. Zahar.

CARVALHO, Olavo. 1999. O jardim das aflições. São Paulo: É Realizações.

COMTE, Augusto. 1899. Apelos aos conservadores. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil.

COMTE, Augusto. 1929. Système de politique positive ou traité de Sociologie instituant la Religion de l’Humanité. 4ème ed. 4 v. Paris: Larousse.

Cornwell, John. 2000. O Papa de Hitler: a história secreta de Pio XII. Rio de Janeiro: Imago.

CRUZ COSTA, João. 1956. Contribuição à História das Idéias no Brasil. Rio de Janeiro: J. Olímpio.

DELLA CAVA, R. 1975. Igreja e Estado no Brasil do século XX: sete monografias recentes sobre o catolicismo brasileiro, 1916-64. Novos Estudos, São Paulo, n. 12, p. 5-52, abr.-jun.

HARRISON, Frederic. 1894. The Meaning of History and Other Historical Pieces. London: MacMillan.

Herculano, Alexandre. 2011. História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal. Lisboa: Pradense.

HUACO, M. 2008. A laicidade como princípio constitucional do Estado de Direito. In: LOREA, Roberto A. (org.). Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado.

Kertzer, David I. 2017. O Papa e Mussolini. A conexão secreta entre Pio XI e a ascensão do fascismo na Europa. Rio de Janeiro: Intrínseca.

LACERDA NETO, Arthur V. 2003. A república positivista. Teoria e ação no pensamento de Augusto Comte. 3ª ed. Curitiba: Juruá.

LACERDA, Gustavo B. 2010. O momento comtiano: república e política no pensamento de Augusto Comte. Florianópolis. Tese (Doutorado em Sociologia Política). Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível em: http://www.tede.ufsc.br/teses/PSOP0369-T.pdf. Acesso em: 30.nov.2018.

Lacerda, Gustavo B. 2013. Teoria política positivista: pensando com Augusto Comte. Marília: Poiesis.

Lacerda, Gustavo B. 2016. Laicidade na I República brasileira: os positivistas ortodoxos. Curitiba: Appris.

Lacerda, Gustavo B. 2018. Comtianas brasileiras: Ciências Sociais, Brasil e cidadania. Curitiba: Appris.

LAFFITTE, Pierre. 1897. Les grands types de l’Humanité. Aprréciation systématique des principaux agents de l’évolution humaine. Le catholicisme. Paris: Société Positiviste.

LEVITSKY, Steven & ZIBLATT, Daniel. 2018. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar.

LILLA, Mark. 2018. O progressista de ontem e o do amanhã: desafios da democracia liberal no mundo pós-políticas identitárias. São Paulo: Companhia das Letras.

LINS, Ivan. 2009. História do Positivismo no Brasil. 3ª ed. Brasília: Senado Federal.

MARIANO, Ricardo. 2002. Secularização do Estado, liberdades e pluralismo religioso. Artigo apresentado no III Congreso Virtual de Antropología y Arqueología. Disponível em: http://www.naya.org.ar/congreso2002/ponencias/ricardo_mariano.htm. Acesso em: 14.nov.2011.

RODRIGUES, Cândido M. 2005. A Ordem. Uma revista de intelectuais católicos (1934-1945). Belo Horizonte: Autêntica.

ROMANO, Roberto. 1979. Brasil: igreja contra Estado. São Paulo: Kairós.

ROMANO, Roberto. 1994. O pensamento conservador. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 3, p. 21-31.

SCAMPINI, José. 1978. A liberdade religiosa nas constituições brasileiras. Petrópolis: Vozes.

VÉLEZ RODRÍGUES, Ricardo. 2011. O liberalismo francês. A tradição doutrinária e a sua influência no Brasil. Juiz de Fora: Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro.

Volkoff, Vladimir & Lacerda Neto, Arthur Virmond. 2004. Pequena História da Desinformação & A desinformação antipositivista. Curitiba: Vila do Príncipe.

ZEA, Leopoldo. 1968. El Positivismo en México. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica.






[1] Uma primeira versão destas anotações foi escrita e publicada em 23.2.2012; uma ampla reformulação ocorreu em 27.11.2018.
[2] Na “Introdução” ao seu livro Romano agradece à Ordem dos Pregadores (ou seja, aos dominicanos).
[3] Para o comum dos seres humanos – incluindo todos aqueles “cristãos conservadores” de quem Olavo de Carvalho apresenta-se como uma espécie de porta-voz autoproclamado –, essa vulgaridade é simplesmente chocante e desagradável. Todavia, o seu uso reiterado sugere que Olavo de Carvalho entende essa vulgaridade como uma forma de expressão “afirmativa”, “livre”, “sem censura” etc. Como Lilla (2018) indicou, aliás, a virada mais conservadora e fundamentalista do Partido Republicano nos Estados Unidos, entre os anos 1970 e 1980, foi justamente marcada pelo início do emprego de uma retórica violenta e “sem concessões”. Da mesma forma, como Levitsky e Ziblatt (2018) observam, a instalação de regimes autoritários (quando não fascistas) é precedida pela violência política, que começa exatamente com a violência retórica.
[4] Como se vê, esses dois autores adotam a concepção que opõe o poder Temporal ao Espiritual, de origem medieval (de S. João Crisóstomo). Nesse sentido, embora não por acaso não o reconheçam, eles acompanham A. Comte, da mesma forma que ignoram, ou fingem ignorar, que acompanham o fundador do Positivismo em algumas das conseqüências propostas para as relações entre os dois poderes. Sobre a filosofia política de Comte e sobre as relações entre os poderes, cf. Comte (1899; 1929) e Lacerda (2010; 2013; 2016; 2018).
[5] Pode-se dizer que essa concepção é especificamente católica: além de ser exposta por O. Carvalho e Romano, ela também está claramente presente Scampini (1978) e, como indica Huaco (2008), ela integra o arsenal teórico e retórico do Vaticano em sua luta contra a laicidade do Estado.
[6] Sobre o declínio papal do século XIII em diante, cf. Harrison (1894); sobre a Inquisição, cf. Herculano (2011).
[7] É importante notar que, assim, a despeito de afirmarem-se defensores das liberdades, a idéia de que a única e verdadeira religião é a católica apostólica romana é um argumento implícito ao longo dos dois livros e em nenhum momento discutido. Com isso, a liberdade que defendem é a sua própria. Dessa forma, as reiteradas críticas, ou referências, ao totalitarismo tornam-se confusas, incoerentes ou ambígüas.
[8] Como discutimos longamente em Lacerda (2016; 2018), esse raciocínio é propriamente um sofisma baseado em pressupostos falsos, dados históricos incorretos e uma imaginação desenfreada, além de, pura e simplesmente, grande má vontade para com o Positivismo. Ainda assim, cumpre notar que Sérgio Buarque de Hollanda tem a primazia em tais defeitos.
[9] Convém notar que a quase totalidade das citações de Romano são de segunda mão, extraídas do livro de Ivan Lins (2009) mas, em sua maioria, sem indicação de que ele cita a citação. É possível determinar a origem das citações de Romano por meio do simples cotejo com o livro de Lins: Romano cita estritamente apenas o que Lins cita e nada mais.
[10] Esse gênero de associação ainda ocorre, embora investigações historiográficas e políticas mais recentes indiquem o quanto elas são improcedentes. Cf. José Murilo de Carvalho (2005) e Lacerda (2018).
[11] As anotações feitas no “Excurso”, abaixo, demonstram com clareza esses problemas.
[12] Na verdade, Carvalho considera que o Brasil vive uma “tirania comunista” (e “globalista”), disfarçada sob a máscara das liberdades públicas; essa verdadeira conspiração teria tido lugar especialmente durante as décadas de 2000 e 2010, ou seja, durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Em virtude dessa tirania disfarçada, em 2005 ele autoexilou-se nos Estados Unidos, ainda que em 2018 ele tenha manifestado apoio ao candidato fascista Jair Bolsonaro, em nome do combate ao PT, ao “marxismo cultural”, ao comunismo e ao “globalismo” (!!!).
[13] Parece claro que nenhum dos dois autores, ao escrever, fala em nome da igreja, seja em nome do episcopado, seja em nome do laicato; mas, ainda assim, apresentam-se como representantes implícitos da igreja. Ora, essa era a missão de d. Sebastião Leme e de Jackson de Figueiredo, que desenvolveram a partir da década de 1910 o projeto de recatolicização das elites e do Estado por meio da “neocristandade” e que, afinal, “retomaram” o Estado após 1930 (embora nem Carvalho nem Romano assumam-no). Mas as críticas de Carvalho e de Romano à laicidade e ao liberalismo são semelhantes às de Sebastião Leme e de Figueiredo. Uma linha investigativa bastante interessante pode ser esta: até que ponto esses católicos “desgarrrados” dão continuidade à obra da militância católica antiliberal do início do século XX? Sobre esses intelectuais, cf. Rodrigues (2005).
[14] Esquecendo-se, por algum motivo, das justificativas para as escravidões indígena e negra, para a manutenção dos privilégios eclesiásticos, para a religião oficial de Estado, para o monopólio de nascimento, de casamento e de enterro; para o ensino oficial e obrigatório da religião católica etc. etc. Como vimos, nisso o esquerdista Romano é acompanhado de perto pelo direitista Carvalho.
[15] Romano trata de cada um desses temas respectivamente nos capítulos 4, 5 e 6 de seu livro (ROMANO, 1979).
[16] De modo específico: os protestantismos, que se limitavam a regiões muito definidas no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e no Rio de Janeiro, e, depois, o Positivismo. As religiões fetichistas de origem nativa e africana e o espiritismo eram duramente perseguidos e reprimidos (cf. MARIANO, 2002; LACERDA, 2016).
[17] Ao tratar dos liberalismos kantiano e hegeliano, Romano comete algumas das mais incríveis falácias possíveis. Em primeiro lugar, ele restringe o liberalismo às suas versões alemãs, deixando de lado as francesas e, em particular, as inglesas e as estadunidenses: por exemplo, cita apenas uma única vez John Locke – e apenas Locke, quando trata do mundo inglês. Isso é notável, na medida em que mesmo liberais conservadores, como Ricardo Vélez Rodríguez (2011), tratam do liberalismo francês e celebram-no. Por outro lado, ao caracterizar o ambiente sócio-econômico-cultural alemão em comparação com o brasileiro, ele afirma que na Alemanha do início do século XIX as idéias de Hegel não tiveram muita repercussão, pois não tinham muito contato com a realidade da época; isso, todavia, não era problemático, pois garantiu grande liberdade e originalidade ao pensador idealista, que, depois, teve inúmeros seguidores. Já no Brasil o pensamento liberal estabeleceu-se em um solo previamente ocupado, de modo que sua atividade foi servil e ideológica, mesmo que a favor da laicidade do Estado, da abolição da escravatura, da proclamação da República etc. Em outras palavras, deixando de lado a estranha retórica a respeito da “presença prévia de idéias no país” (algo que lembra bastante a equívoca argumentação das “idéias fora do lugar”, de Roberto Schwarcz), no Brasil Hegel teria sido ideológico e servil simplesmente porque foi contrário aos ideais defendidos por Romano.
[18] Como vimos antes, a mesma idéia – de que o Estado laico torna-se o fundamento de si mesmo e, daí, a base para o totalitarismo – é repetida por Olavo de Carvalho em seu O jardim das aflições e, por algum motivo, atribuída por ele ao Positivismo (cf. CARVALHO, 2000). A coincidência dessa perspectiva entre um esquerdista e um direitista sugere que, provavelmente, o motivo dessa imputação seja, pura e simplesmente, propagar desinformação em favor do catolicismo.
[19] Sobre o apoio do papado a Mussolini e a transformação do Vaticano de mera sede da igreja católica em Estado nacional, cf. Kertzer (2017); sobre as relações entre Pio XII e Hitler, cf. também Cornwell (2000); sobre a neocristandade, cf. Della Cava (1975) e Rodrigues (2005).
[20] É difícil não vir à mente a provinciana – mas, neste caso, bastante adequada – contraposição feita pelos ingleses desde o início do século XX entre a “filosofia analítica” e a “filosofia continental” – em que a primeira caracterizar-se-ia pela clareza analítica e pela busca da elucidação dos enunciados, justamente os traços opostos da “filosofia continental”. Sem dúvida que essa contraposição é falaciosa e virulenta, mas é impossível não considerar que o livro de Romano é um exemplo quase ideal-típico dessa “filosofia continental”.
[21] A expressão “racionalidade calculadora” tem um outro sentido, é claro: refere-se também à crítica, de caráter metafísico, feita pela Escola de Frankfurt à razão e à “racionalidade instrumental”; em contraposição a elas, os frankfurtianos defendem alguma coisa como “o espírito” ou o “mundo da vida”. Como, infelizmente, é mais fácil desdenhar da obra de Comte que a conhecer, as críticas de Romano e da Escola de Frankfurt parecem fazer sentido quando dirigidas para o Positivismo.
[22] Bastaria ler-se os originais da Igreja Positivista do Brasil para qualquer um convencer-se de que o que Romano argumenta é tolice, fruto de delírio ou de má-fé. Todavia, como esses originais são relativamente difíceis de serem encontrados atualmente – bem entendido: encontrados em suas versões originais, pois na internet é muito fácil encontrar versões digitalizadas –; bastaria ler-se o livro de Ivan Lins, ou mesmo o de João Cruz Costa, na medida em que ambos têm longas citações dos positivistas. Por fim, embora já o tenhamos indicado diversas vezes nestas anotações, convém reiterar: em Lacerda (2016; 2018) apresentamos longamente as concepções de Comte e dos positivistas brasileiros a respeito das relações do Estado com as igrejas, incluindo aí claras afirmações da importância histórica da igreja católica e do necessário respeito que se deve a qualquer igreja nos dias atuais. Entre dezenas mais, podemos citar ainda como outras fontes de consulta os livros de Laffitte (1897), Audiffrent (1925) e Carneiro (1940).
[23] Isso não é exagero: como vimos anteriormente, antes de ser repetidor de Filosofia, Roberto Romano era seminarista dominicano, ou seja, integrante de uma das mais ativas e agressivas ordens religiosas que atuaram no verdadeiro movimento repressivo que foi a Inquisição. A Igreja Positivista é, literalmente, uma rival da Igreja Católica, a ser devidamente combatida.
[24] Como não poderia deixar de ser, esse comportamento enviesado de Roberto Romano a propósito do Positivismo não se limitou à tese-de-doutorado-manifesto-político redigida sob orientação de Claude Lefort: em diversos outros textos, Romano insiste na idéia de que o Positivismo é “conservador”, com isso querendo dar a entender que a filosofia, a política e a religião criadas por Augusto Comte seriam opressivas, a favor da discriminação, da exploração etc. Isso está evidente, por exemplo, no artigo “O pensamento conservador” (ROMANO, 1994), em que Romano lembra a observação banal, feita pelo próprio Comte, de que o Positivismo teria uma dívida intelectual com o pensamento conservador francês (na figura de Louis-Grabriel de Bonald e, acima de tudo, de Joseph de Maistre), na conceituação da “ordem”. Ora, Roberto Romano enfatiza a dívida comtiana com De Maistre, mas silencia totalmente as reiteradas referências do fundador do Positivismo a respeito da sua dívida com Diderot e Condorcet, dois pensadores que na França definiram a idéia de “progresso”. Esse silenciamento feito por Romano a respeito da dívida comtiana para com os progressistas não é casual; não é um “esquecimento”, mas uma omissão proposital, que se evidencia quando se tem em mente que desde a década de 1980 Romano especializou-se no pensamento de... Diderot! Assim, ao mesmo tempo em que Romano silencia a respeito da sua própria origem conservadora (quase foi frade dominicano), ele critica o Positivismo porque o Positivismo é um rival da igreja católica e, bem vistas as coisas, Romano também critica o Positivismo e Comte porque deseja deter o monopólio dos comentários sobre Diderot.