18 junho 2025

Conciliar "Viver às claras" e "É indigno dos grandes corações derramar as perturbações"

No dia 28 de São Paulo de 171 (17.6.2025) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Apelo aos conservadores (em sua Primeira Parte - "doutrina destinada aos verdadeiros conservadores"). 

Na parte do sermão tratamos da questão: como conciliar duas máximas do Positivismo, "Viver às claras" e "É indigno dos grandes corações derramar as perturbações que sentem"?

Antes do sermão, justificamos de maneira sistemática a adoção da palavra "sermão" nas prédicas.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://www.youtube.com/watch?v=kclW-8EUW2A&t=11s) e Igreja Positivista Virtual (aqui e aqui).

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *



Como conciliar o “Viver às claras” com “É indigno dos grandes corações derramar as perturbações que sentem”?

(28.São Paulo.171/17.6.2025) 

1.      Invocação inicial

2.      Justificativa de ausência de prédica na semana passada

2.1.   Tive uma infecção (ainda a determinar qual), que me deixou acamado ou com profundo mal-estar durante cinco dias, desde o domingo anterior à prédica

3.      Exortações iniciais

3.1.   Sejamos altruístas!

3.2.   Façamos orações!

3.3.   Como Igreja Positivista Virtual, ministramos os sacramentos positivos a quem tem interesse

3.4.   Para apoiar as atividades dos nossos canais e da Igreja Positivista Virtual: façam o Pix da Positividade! (Chave Pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

4.      Datas e celebrações:

4.1.   Dia 27 de São Paulo (16.6.2025): nascimento de Paul Edger (1875 – 150 anos)

4.2.   Dia 27 de São Paulo (16.6.2025): transformação de Ivan Lins (1975 – 50 anos)

4.3.   Dia 28 de São Paulo (17.6.2025): nascimento de Edgar Proença Rosa (1903 – 122 anos)

4.4.   Dia 2 de Carlos Magno (19.6.2025): transformação de Carlos Torres Gonçalves (1974 – 51 anos)

4.5.   Dia 4 de Carlos Magno (21.6.2025): transformação de Décio Villares (1931 – 94 anos)

4.6.   Dia 3 de Carlos Magno (20.6.2025): solstício de inverno

5.      Leitura comentada do Apelo aos conservadores

5.1.   Antes de mais nada, devemos recordar algumas considerações sobre o Apelo:

5.1.1.     O Apelo é um manifesto político e dirige-se não a quaisquer pessoas ou grupos, mas a um grupo específico: são os líderes políticos e industriais que tendem para a defesa da ordem (e que tendem para a defesa da ordem até mesmo devido à sua atuação como líderes políticos e industriais), mas que, ao mesmo tempo, reconhecem a necessidade do progresso (a começar pela república): são esses os “conservadores” a que Augusto Comte apela

5.1.1.1.           O Apelo, portanto, adota uma linguagem e um formato adequados ao público a que se dirige

5.1.1.2.           Empregamos a expressão “líderes industriais” no lugar de “líderes econômicos”, por ser mais específica e mais adequada ao Positivismo: a “sociedade industrial” não se refere às manufaturas, mas à atividade pacífica, construtiva, colaborativa, oposta à guerra

5.2.   Outras observações:

5.2.1.     Uma versão digitalizada da tradução brasileira desse livro, feita por Miguel Lemos e publicada em 1899, está disponível no Internet Archive: https://archive.org/details/augustocomteapeloaosconservadores

5.2.2.     O capítulo em que estamos é a “Primeira Parte”, cujo subtítulo é “Doutrina apropriada aos verdadeiros conservadores”

5.3.   Passemos, então, à leitura comentada do Apelo aos conservadores!

6.      Pequeno comentário sobre os “sermões”:

6.1.   Desde o início das prédicas procuramos expor tanto leituras comentadas de obras de Augusto Comte – começamos, é claro, com o Catecismo positivista e estamos agora com o Apelo aos conservadores – com reflexões de diferentes tipos: religiosas, afetivas, artísticas, filosóficas, políticas etc.

6.1.1.     Para essas reflexões, de maneira totalmente empírica e inspirando-nos na prática católica, adotamos o título de “sermões”

6.2.   A palavra “sermão” na verdade tem origem romana: “sermo, -onis”, que significa “conversa” ou “discurso”; “sermo”, por sua vez, vem do verbo “serere”, que significa “unir, encadear”

6.3.   Assim, “sermão” é uma palavra que pode ser plenamente empregada de maneira positiva, exatamente como a palavra “religião” – e até mais facilmente que “religião”, na medida em que não é (tão) necessário distinguir nela o aspecto positivo do teológico

6.3.1.     De uma única vez a palavra “sermão”: (1) indica sua origem social, romana; (2) indica o seu caráter de conversa, de diálogo; (3) lembra sua história católica; (4) lembra o necessário acento religioso (moral e sintético) de todas as nossas reflexões; (5) reafirma a continuidade histórica e, da melhor maneira possível (isto é, da maneira correta, positivando), o princípio “conservar melhorando”

7.      O tema do sermão desta semana é o seguinte: como conciliar o “Viver às claras” com o “É indigno dos grandes corações derramar as perturbações que sentem”?

7.1.   Essa é uma questão que muitas vezes surge para quem estuda o Positivismo e deseja aplicá-lo em suas vidas: como conciliar as duas máximas, “Viver às claras” e “É indigno dos grandes corações derramar as perturbações que sentem”?

7.1.1.     Como tudo a respeito do Positivismo, essa dúvida surge na verdade para todas as pessoas; nós, positivistas, apenas sistematizamos a reflexão

7.1.2.     Se falamos em “conciliar” as frases, é porque à primeira vista elas parecem incompatíveis

7.1.3.     A compatibilidade ou não dessas frases não é uma questão puramente intelectual; como são máximas morais e práticas, essa compatibilidade (ou sua ausência) tem implicações práticas imediatas

7.1.4.     Essa questão foi formulada por nosso amigo Hernani, que pediu nosso auxílio a respeito

7.2.   Para começar a tratar desse tema, o primeiro passo é considerar a compatibilidade ou ausência de compatibilidade entre as duas fórmulas

7.2.1.     Sugerimos que aparentemente há ausência de compatibilidade porque, à primeira vista, essas máximas parecem incompatíveis; mas, bem vistas as coisas, temos que afirmar a sua compatibilidade

7.2.1.1.           Embora essa compatibilidade tenha um evidente aspecto intelectual, esse em definitivo não é o âmbito mais importante na questão

7.2.2.     A noção e a exigência de compatibilidade estão implicadas no caráter sistêmico e sistemático do Positivismo e na preocupação com a coerência das idéias (e dos sentimentos e das ações)

7.2.2.1.           Sobre a coerência, vale notar que, desde há algumas décadas, é mais ou menos moda afirmar-se que a coerência é impossível, ou que é errada, ou que é tola; algumas pessoas utilizam as reflexões lógicas de Kurt Gödel para negar a validade da busca da coerência; outros afirmam que a busca da coerência é uma espécie de doença intelectual e moral de pessoas fanáticas

7.2.2.2.           Todos esses argumentos contra a coerência são tolices; não são argumentos, mas sofismas mais ou menos infantis, que se baseiam, estimulam e difundem a irracionalidade, a inconseqüência prática, a incompreensão do mundo e a ausência de parâmetros na vida – em outras palavras, são sofismas plenamente metafísicos

7.2.2.3.           Assim, convém afirmar com clareza: a coerência é um valor moral, intelectual e prático efetivo; ela deve, sim, ser buscada e, na prática, de maneira explícita ou implícita, ela é exigida o tempo todo de todos e por todos

7.3.   As duas frases integram o cânone positivista, embora tenham origens diferentes

7.3.1.     O “Viver às claras” é uma fórmula moral e política; ela foi elaborada por Augusto Comte e estabelece a publicidade dos nossos atos

7.3.2.     O “É indigno dos grandes corações” é uma fórmula moral e “de sociabilidade”; ela foi elaborada por Clotilde, em sua novela Lúcia, e estabelece um parâmetro de comportamento individual e mútuo

7.3.3.     A aparente incompatibilidade entre as duas fórmulas deve-se ao fato de que elas apontam para direções contrárias: enquanto o “Viver às claras” sugere a abertura do comportamento, o “É indigno dos grandes corações” conduz à reserva e/ou ao fechamento

7.3.4.     Para solucionarmos essa questão, vejamos o contexto de elaboração e o significado de cada uma dessas fórmulas; começaremos pela máxima de Clotilde e então passaremos à de Augusto Comte

7.4.   O “É indigno dos grandes corações” corresponde a uma das inúmeras frases espontaneamente memoráveis de Clotilde – neste caso presente em sua novela Lúcia (publicada originalmente em 20 e 21 de junho de 1845[1], no jornal Le National)

7.4.1.     O original em francês é este: “Il est indigne des grands coeurs de répandre les troubles qu’ils ressentent

7.4.2.     O trecho integra a sétima carta da correspondência ficcional, do amante Maurício a seu confidente e amigo Rogério; o trecho que importa reproduz uma fala de Lúcia a Maurício[2]:

“Maurício, é em vão que nossa infelicidade conduzir-nos-ia a rebelar-nos contra a sociedade; suas instituições são grandes e respeitáveis como o labor dos tempos; é indigno dos grandes corações derramar a perturbação que sentem” (Política positiva, v. I, p. XXVIII; Teixeira Mendes, O ano sem par, 1900, p. 223).

7.4.3.     Augusto Comte citou essa frase em diversas ocasiões:

7.4.3.1.           No Discurso sobre o conjunto do Positivismo (originalmente de 1848, depois republicado em 1851 como preâmbulo geral ao Sistema de política positiva): ele está na página 267 do v. I da Política, correspondendo à quarta parte do Discurso (“Influência feminina do Positivismo”)

7.4.3.2.           Ao reproduzir a novela Lúcia, no “Complemento” da “Dedicatória” do v. I da Política positiva (de 1851) (p. XXVIII; é de onde tiramos a citação acima)

7.4.3.3.           No conjunto das “sete máximas de Clotilde”, apresentadas no seu Testamento (originalmente de 1855; encontramos a citação na página 99 da segunda edição, de 1896)

7.4.4.     É importante notarmos que Clotilde escrevia a partir de suas experiências pessoais; seus escritos têm um forte aspecto autobiográfico; assim, seus vários escritos (Lúcia, Guilhermina, Os pensamentos de uma flor, A infância) tanto apresentam sua vida quanto exprimem seus sentimentos e pensamentos

7.4.5.     Clotilde preocupava-se muito em não gerar incômodos para seus familiares e amigos

7.4.5.1.           Insistamos: a preocupação de Clotilde era não causar distúrbios, não sobressaltar seus próximos, não lhes gerar aflições

7.4.5.2.           Ao mesmo tempo, como o texto de Lúcia evidencia e como percebemos na correspondência trocada entre Clotilde e Augusto Comte, essa preocupação não a impedia de manifestar seus sentimentos, especialmente os de desagrado, tristeza, abatimento: mas tal manifestação ocorria em seu círculo mais íntimo, notadamente com Augusto Comte

7.4.6.     Em nossa prédica de 3 de César de 169 (25.4.2023), dedicada às máximas de Clotilde[3], comentamos o seguinte a respeito desta fórmula específica:

7.4.6.1.           A preocupação de Clotilde é que os “grandes corações”, ou seja, as pessoas que buscam aperfeiçoar-se moralmente, devem evitar descontroles e explosões afetivas, especialmente em público: saber manter a reserva e até o autocontrole é uma virtude moral e prática

7.4.6.2.           Essa máxima evidentemente não quer dizer que as pessoas não devam manifestar seus sentimentos, ou que não devam chorar em momentos de grande tristeza (ou de grande alegria): o que está em questão é o descontrole do comportamento a partir dos sentimentos, especialmente quando somos tomados por sentimentos muito intensos

7.4.6.3.           Há um aspecto de exemplo e de liderança subjacente à expressão “grande coração”

7.5.   O “Viver às claras” é apresentado e explicado por Augusto Comte em vários trechos de sua obra ao abordar o regime, especialmente quando aborda as características do regime público

7.5.1.     O original em francês dessa fórmula é “Vivre au grand jour”, que, em uma tradução muito literal e meio canhestra para o português seria “Viver em grande clareza” (jour significa “dia” e também significa “claridade” ou “clareza”)

7.5.1.1.           Em inglês a tradução é “To live openly” (“viver abertamente”)

7.5.1.2.           Fazemos essa observação sobre a expressão original e a tradução para o português porque algumas pessoas no Brasil traduzem o “au grand jour” como sendo “para o grande dia”: além de errar a fórmula de nosso mestre, essa tradução também a orienta para um sentido místico ou, pelo menos, milenarista – o que, deveria ser evidente, é radicalmente contrário ao Positivismo

7.5.2.     Antes de abordarmos o trecho que nos permite tratar da compatibilidade entre as duas fórmulas, vejamos os trechos em que nosso mestre apresenta e aborda o “viver às claras”; elas estão principalmente na Política positiva (1851-1854)

7.5.2.1.           “Viver às claras” como princípio republicano: presente na carta de nosso mestre ao dr. J. M. McClintock, editor da Revista Metodista de Nova Iorque (7 de Homero de 64/4.2.1852), segundo apêndice do “Prefácio” ao v. II da Política (p. XXV):

“Segundo essa longa e escrupulosa carreira, mais homogênea talvez que qualquer outra conhecida, eu assumi um profundo hábito de viver inteiramente às claras, seguindo o verdadeiro princípio republicano”

7.5.2.2.           Relações entre o viver às claras, o regime público e o regime privado (quarto capítulo do v. IV da Política: “Quadro geral da existência ativa, ou sistematização final do regime positivo”) (p. 312):

Qualquer que seja a reação contínua da moral individual sobre a moral pública, a moral doméstica comporta uma eficácia mais direta e mais decisiva, em virtude de u’a melhor similitude, sobretudo quando ela encontra-se socialmente instituída. É aí que a máxima fundamental: Viver para outrem começa a receber seu complemento prático: Viver às claras, sem o qual ela tornar-se-ia em breve insuficiente e mesmo com freqüência ilusória. Malgrado as precauções interessadas dos legisladores metafísicos, o instinto ocidental não tardará a ver a publicidade normal dos atos privados como a garantia necessária do verdadeiro civismo. Escola espontânea do comando e da obediência, a existência doméstica não pode assaz desenvolver sua principal destinação quando ela permanece subtraída da sã apreciação do sacerdócio e mesmo do público. Todos os que se recusarem a viver às claras tornar-se-ão justamente suspeitos não quererem realmente viver para outrem. Os sentimentos não podendo ser julgados sem os atos, as duas qualidades essenciais à vida cívica, devotamento e veneração, não se tornam habitualmente apreciáveis senão conforme seu desenvolvimento privado, mais fácil e mais universal que seu exercício público. Entretanto, a obrigação de viver às claras não resume a moral social senão ao subordiná-la à prescrição de viver para outrem, ainda que unicamente os tempos anárquicos permitam a exibição habitual de uma conduta viciosa

7.5.2.3.           Viver às claras como característica da moralidade e da atividade política (quinto capítulo do v. IV da Política: “Apreciação sistemática do presente, conforme a combinação do porvir com o passado; donde quadro geral da transição extrema”) (p. 459-461):

“A última fase da transição orgânica anunciará o término direto da revolução ocidental, enquanto exibe, desde o início, a bandeira normal, com todos os emblemas que a acompanham, seguindo as explicações especiais de meu discurso preliminar[4]. Ainda que as duas divisas características [Viver para outrem e Ordem e Progresso] possam já ter prevalecido, sua adoção sucessiva proclamava mais um voto que um princípio, tanto que a atitude ditatorial [i. e., do governo[5]] não poderia ser-lhe assaz conforme. Mas, quando o Positivismo, após ter modificado a conduta, consegue transformar a constituição, a dupla fórmula torna-se um programa decisivo, cuja preponderância manifesta-se pela mudança de cor, que repudia, sem nenhuma descontinuidade, toda solidariedade viciosa. Então a terceira divisa do regime normal: Viver às claras vem completar o conjunto das outras duas, fornecendo o resumo prático do sistema, ao mesmo tempo moral e político, irrevogavelmente adotado. Destinado sobretudo à vida pública, este último símbolo é especialmente próprio a figurar nas moedas francesas, em que esse enunciado do meio dispensará de mencionar o princípio e o resultado de que ele constitui o vínculo necessário.

Para apreciar todo o escopo de uma tal fórmula, é necessário reconhecer que sua adoção oficial caracteriza o advento de u’a marcha sistemática, sem a qual essa divisa anunciaria uma intenção moral e não uma resolução política. Ainda que a Idade Média tenha-a feito nobremente prevalecer na vida privada, ela não pode estendê-la assaz à vida pública, que, malgrado as aspirações cavalheirescas, continuou a basear-se principalmente no mistério e na intriga. Sem desconhecer os viciosos sentimentos que se reportavam a esse regime, devia-se sobretudo atribuí-lo à impossibilidade de viver às claras quando o porvir permanece obscuro e a opinião, incerta. Uma tal divisa indica então o advento decisivo de uma doutrina capaz de sistematizar ao mesmo tempo as previsões políticas e os julgamentos públicos. A regeneração final estando caracterizada por essa dupla sistematização, sua proclamação deve sobretudo residir na fórmula própria à atividade, ainda que o principal valor desse símbolo resulte de sua aptidão a representar os concernentes à inteligência e ao sentimento.

Índice e condição de u’a marcha sintética, como de uma conduta leal, essa regra convém tanto à espiritualidade positiva quanto à temporalidade pacífica. Antes de tê-la sistematizado, eu sempre a pratiquei espontaneamente, desde os meus primeiros passos, a fim de preparar os espíritos às minhas concepções e de melhorar estes pelas reações, objetivas e subjetivas, resultantes desses anúncios. Não cessei nunca de felicitar-me de um tal emprego, ainda que me tenha com freqüência exposto, seja a objeções viciosas, seja a empréstimos fraudulentos. Mas sua principal destinação concerne à política ativa, em que, os resultados tornando-se mais determinados e mais próximos, a consulta universal pode assistir e retificar mais os projetos, ou mesmo melhorar as intenções. É assim que o triunvirato positivista manifestará o caráter plenamente orgânico da terceira fase da transição final pelo hábito invariável de anunciar suficientemente seus atos quaisquer para que eles possam ser por toda parte examinados a tempo”

7.5.3.     O trecho que mais nos interessa sobre o “Viver às claras” está no Catecismo positivista (na 11ª conferência, dedicada ao regime público – p. 354-355):

“Quanto às disposições provenientes da existência doméstica, esta suscitará sobretudo a melhor aprendizagem desta regra fundamental que cada um se deverá impor livremente, como base pessoal do regime público: Viver às claras. Para esconderem suas torpezas morais, nossos metafísicos fizeram prevalecer a vergonhosa legislação que ainda nos proíbe escrutar a vida privada dos homens públicos. Mas o positivismo, sistematizando dignamente o instinto universal, invocará sempre a escrupulosa apreciação da existência pessoal e doméstica como a melhor garantia da conduta social. Como ninguém deve aspirar senão à estima daqueles a quem também estima, não somos obrigados a dar a todos, sem distinção, conta habitual de nossas ações quaisquer. Porém, por mais restrito que possa vir a ser, em certos casos, o número de nossos juízes, basta que sempre existam alguns para que a lei de viver às claras nunca perca sua eficácia moral, impelindo-nos constantemente a nada fazer que não seja confessável. Semelhante disposição prescreve logo o respeito contínuo da verdade e o cumprimento escrupuloso de todas as promessas. Este duplo dever geral, dignamente introduzido na Idade Média, resume toda a moral pública e faz-vos sentir a profunda realidade daquela admirável sentença em que Dante, representando o impulso cavalheiresco, designa para os traidores o mais horrível inferno”[6]

7.5.4.     O trecho acima do Catecismo estabelece, então, uma diferença de âmbito na aplicação do “viver às claras”; ou melhor, não é exatamente de âmbito, mas das atividades e das responsabilidades atribuídas a cada um: figuras públicas de um lado, simples cidadãos, de outro lado

7.5.4.1.           No caso das figuras públicas, o “viver às claras” deve ser aplicado de maneira direta: a vida íntima de quem exerce o poder (seja o poder político, seja o poder econômico, seja também o poder espiritual) deve ser sujeita a escrutínio público

7.5.4.2.           No caso dos simples cidadãos, o “viver às claras” significa adotar condutas passíveis de avaliação pelos familiares e pelos amigos mais próximos, além de pelo sacerdócio; essa avaliação, por seu turno, tem que se realizar a partir de critérios publicamente aceitáveis e razoáveis

7.5.4.3.           A vinculação entre sentimentos e idéias, de um lado, e atos concretos, de outro, está sempre em questão: embora nem sempre consigamos agir conforme desejemos e nem sempre obtenhamos os resultados desejados, certamente os atos praticados têm que corresponder aos sentimentos e às idéias professados (ou, pelo menos, às intenções afirmadas) – é uma questão de coerência e honestidade

7.5.4.4.           Convém lembrar que os dois princípios elementares da moral pública consistem em falar a verdade e honrar a palavra dada (ou, de maneira negativa: não mentir e não trair)

7.5.4.5.           Uma recordação pessoal também ajuda um pouco, seja para entendermos o “Viver às claras” para os simples cidadãos, seja para estabelecermos a compatibilidade entre as duas máximas: o saudoso David Carneiro Jr., o Vivi (1926-1997), que tinha um temperamento prático muito acentuado, afirmava, repetindo o industrial positivista Augusto Trajano Antunes, que devemos “viver às claras” mas não “viver às escâncaras”

7.5.4.6.           O objetivo do “viver às claras” não é devassar a vida íntima das pessoas, mas garantir – especialmente no caso das figuras públicas – que elas de fato vivem para outrem, que falam a verdade, que honram a palavra dada, que seus sentimentos são altruístas, que suas idéias são sintéticas e que suas ações são convergentes, pacíficas e construtivas

7.6.   Em suma: a partir das indicações acima, consideramos que as duas máximas são, evidentemente, compatíveis, em particular da seguinte maneira:

7.6.1.     Um sentido básico do “viver às claras” consiste em adotar parâmetros públicos e publicamente confessáveis na vida

7.6.2.     As figuras públicas e/ou aquelas que exercem o poder têm que ter suas vidas, incluindo aí suas vidas privadas, passíveis de exame público

7.6.3.     Já os simples cidadãos não se submetem a essa exigência de escrutínio geral; mas, por outro lado, seus comportamentos continuam passíveis de apreciação por seus familiares, seus amigos e pelo sacerdócio

7.6.4.     O objetivo do viver às claras não é devassar a vida íntima das pessoas, mas garantir a moralidade da conduta – e essa moralidade é dada pelo viver para outrem

7.6.5.     Ora, no viver às claras nada obriga as pessoas a “derramarem as preocupações que sentem”: a exigência de exame da vida privada das figuras públicas implica o exame das relações pessoais, familiares e de amizade dessas figuras; já as preocupações mais íntimas, mais pessoais – desde que não tenham conseqüências públicas – podem e devem ser preservadas para apreciação na intimidade

7.6.6.     Aos simples cidadãos as exigências de viver às claras são menores; a eles aplica-se com ainda mais facilidade a máxima dos “grandes corações”

7.6.7.     É importante notar que a expressão de Clotilde sobre os grandes corações não busca o fechamento, nem o isolamento, nem o segredo; sua intenção é indicar que as pessoas realmente generosas buscam não incomodar ou atrapalhar os demais; em outras palavras, seu sentido é que cada um evite de criar, estimular e/ou disseminar dissabores, suspeitas, intrigas etc.

8.      Exortações finais

8.1.   Sejamos altruístas!

8.2.   Façamos orações!

8.3.   Como Igreja Positivista Virtual, ministramos os sacramentos positivos a quem tem interesse

8.4.   Para apoiar as atividades dos nossos canais e da Igreja Positivista Virtual: façam o Pix da Positividade! (Chave Pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

9.      Invocação final

 

Referências

- Augusto Comte (franc.), Sistema de política positiva (Paris, s/n, 1851-1854)

- Augusto Comte (franc.), Testamento (Paris, Exécution Testamentaire d’Auguste Comte, 2ª ed., 1896): https://bibdig.biblioteca.unesp.br/items/510b1daa-24d3-48e3-a1ed-ddce5191ee5a.

- Augusto Comte (port.), Apelo aos conservadores (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898): https://archive.org/details/augustocomteapeloaosconservadores.

- Augusto Comte (port.), Catecismo positivista (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 4ª ed., 1934).

- Gustavo Biscaia de Lacerda (port.): O momento comtiano (Curitiba, UFPR, 2019).

- Gustavo Biscaia de Lacerda (port.): Sobre as máximas de Clotilde de Vaux (26 de abril de 2023): https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2023/04/sobre-as-maximas-de-clotilde-de-vaux.html

- Raimundo Teixeira Mendes (franc.), Comte e Clotilde (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1903): https://bibdig.biblioteca.unesp.br/items/f3d104ea-4350-4a3d-a58a-63ec4a10fc54.

- Raimundo Teixeira Mendes (port.), O ano sem par (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900): https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-o-ano-sem-par-portug._202312/page/n7/mode/2up.




[1] Não deixa de ser uma bela e feliz coincidência o fato de que estamos próximos de celebrar os 180 anos de publicação dessa novela!

[2] Convém explicarmos a estrutura da novela Lúcia para que a citação faça plenamente sentido. A novela é composta por diversas cartas trocadas entre várias pessoas, após uma introdução narrada em primeira pessoa. As pessoas que trocam cartas são a sofrida Lúcia, seu amor Maurício, um amigo (e confidente) de Maurício chamado Rogério, o médico de Lúcia. As cartas apresentam confidências pessoais e também narram situações diversas; ao narrarem as situações vividas, as cartas – que, logicamente, são escritas em primeira pessoa – com freqüência adotam o discurso direto, procurando transcrever literalmente os diálogos conforme eles teriam ocorrido. É dessa forma que, na passagem abaixo, Maurício narra a Rogério um diálogo travado entre Lúcia e Maurício (e, em particular para o que nos interessa, uma fala de Lúcia para Maurício).

[4] Referência ao Discurso sobre o conjunto do Positivismo, de 1848, inserido em 1851 como preâmbulo geral ao Sistema de política positiva, no v. I desta obra, sob o título de “Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo”.

[5] A palavra “ditador” (e suas variações) não tem, para Augusto Comte, o sentido contemporâneo negativo, que é sinônimo de autoritarismo; para o fundador da Sociologia, o “ditador” é o governante que atua de maneira monocrática, em oposição à dispersão do poder característica das assembléias e do parlamentarismo. Dessa forma, há ditadores progressistas, ditadores retrógrados, ditadores liberais, ditadores repressivos etc. Uma exposição detalhada dessa questão e de aspectos próximos pode ser consultada em nosso livro O momento comtiano (Curitiba, UFPR, 2019).

[6] Dante inclui os traidores no nono e último círculo do inferno, padecendo dos mais terríveis castigos; a exposição e a apreciação desses sofrimentos ocupa os últimos cantos do Inferno.

10 junho 2025

Monitor Mercantil: Parlamento e jornalismo, intrigas e fofocas

No dia 9 de junho o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o meu artigo "Parlamento e jornalismo, intrigas e fofocas".

A versão do jornal está disponível aqui.

Reproduzimos abaixo o texto.

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Parlamento e jornalismo, intrigas e fofocas

Jornalismo reduz política às fofocas em associação com financismo 

Por Gustavo Biscaia de Lacerda

TV digital aberta (foto de Valter Campanato, ABr)

Considera-se, de modo geral, que jornalismo e política devem andar juntos e que tanto cada um deles, em particular, quanto sua união são virtuosos. Entretanto, essas concepções são altamente discutíveis e, com frequência, equivocadas.

A princípio, não há o que discutir a respeito da importância da política. Ela é importante porque organiza a vida coletiva; gostemos ou não, queiramos ou não, todos estamos sob a influência necessária da atividade política. Mas a submissão necessária à política gera, amiúde, confusões práticas e teóricas, nas quais se considera que “tudo é política”, ou seja, que tudo se reduz à disputa de poder.

Por mais importante que seja a política, a sociedade não se reduz a ela: os aspectos filosóficos, culturais e morais regulam, moldam e orientam a política; já os aspectos materiais sempre exercem sua pressão. O resultado é que a política molda, mas também é moldada.

Mas há várias maneiras de entender a política; em inglês, distingue-se a politics (a política do dia a dia), a polity (a estrutura sociopolítica geral, que alguns traduzem como “constituição”) e a policy (cada uma das políticas públicas). A disputa de poder corresponde à politics, ao passo que as policies e, ainda mais, a polity exigem consensos, convergências, legitimidade e aceitação de regras. Claro que a politics influencia a polity e as policies, mas confundir uma coisa com as outras, reduzir a polity à politics, é um grave erro, resultando apenas em cinismo e violência.


Passemos ao jornalismo. Sua missão básica é informar os acontecimentos; assim, há vários tipos de jornalismo: investigativo, científico, econômico, de amenidades etc. Mas talvez o mais famoso e prestigiado seja o político. O jornalismo político dedica-se a narrar o dia a dia da política: ele se concentra na politics. Como as policies e a polity são de longo prazo e conceituais, elas são “chatas”, desinteressantes e não recebem atenção jornalística.

A preferência jornalística pela politics e a rejeição da polity-policy têm várias consequências. Uma primeira é a concentração das coberturas na atividade parlamentar; uma segunda é a defesa (implícita ou explícita) da atividade dos parlamentares contra o governo. A política do dia a dia é das disputas, das briguinhas, dos ciúmes, das intrigas… Com frequência, isso recebe o título edulcorado de “negociações”, mas essa é apenas uma forma empolada de referir-se ao que costuma ser apenas mesquinhez.

O jornalismo especializado em intrigas e mesquinhez não é outra coisa senão fofoca. Como as intrigas são incessantes, mas despertam interesse e paixões, os fofoqueiros têm prestígio e legitimam a concepção de que as fofocas que noticiam (“repercutem”) são a “verdadeira” política. Claro que os políticos — ou melhor, os parlamentares — saem ganhando com isso, obtendo exposição pública e sendo apresentados como “ativos”, “representativos” etc.

Esse é um sistema que se retroalimenta, em que os parlamentares (especialmente no parlamentarismo) e os jornalistas beneficiam-se mutuamente: as intrigas mesquinhas são vendidas como a verdadeira política, e as fofocas parlamentares são vendidas como verdadeiras notícias. Esses dois blocos falam em causa própria e apoiam-se mutuamente, de maneira altissonante ou até estridente; com isso, as fofocas são apresentadas como a opinião pública, e as intrigas, como a manifestação do bem comum.

Tudo isso é péssimo. Para piorar, no Brasil, o jornalismo econômico não se preocupa em informar, mas atua ativa e conscientemente como porta-voz do liberalismo econômico, isto é, de elites financistas internacionais que não querem a regulação do capital nem sua taxação e, para isso, impõem as concepções de Estado mínimo, de iniciativa privada “eficiente” e de servidores públicos incompetentes. É fácil ver que o jornalismo de fofocas é convergente com os porta-vozes do financismo internacional.

Augusto Comte, o fundador da Sociologia, já criticava e denunciava, no século 19, essa união entre o jornalismo de fofocas e a política parlamentarista — que, devemos repetir, finge ser a opinião pública e despreza a política como projeto social amplo. Desgraçadamente, o que o fundador do Positivismo criticava já em 1824 corresponde à realidade brasileira atual.

O que se vê nos grandes jornais do país é exatamente a fofoca parlamentar vendida como jornalismo político e as intrigas parlamentares vendidas como grande política. Esse vínculo é camuflado pelas críticas reiteradas que se fazem à “falta de habilidade” do presidente Lula para “negociar” com o Congresso Nacional: o parlamento é fortemente reacionário e assustadoramente corporativista, duas características que foram estimuladas pelo governo anterior em sua busca dupla de dar um golpe de Estado e de evitar o impedimento.

Claro que o viés conservador do atual parlamento torna-o mais reticente às propostas do governo; mas os recursos que a Constituição Federal de 1988 legou ao presidente da República sempre bastaram para acomodar ou contornar dificuldades ideológicas. Entretanto, desde 2019 — na verdade, desde antes, desde 2016 —, o Congresso Nacional aprofundou cada vez mais o seu caráter clientelista, corporativista e — não há como evitar — parasitário, cobrando um preço cada vez maior para manter um simulacro de “governabilidade”. Esse parasitismo, associado ao golpismo/anti-impedimento, encontrou seu paroxismo no aberrante “orçamento secreto”.

Uma característica notável do atual governo Lula é sua moderação; seu lema de campanha — “União e reconstrução” — dá a exata medida das necessidades atuais do país e evidencia o aspecto profundamente republicano de sua proposta. Sendo bem direto, essa é uma proposta de um verdadeiro estadista. É claro que Lula não é perfeito e que as mais diversas críticas podem ser feitas contra ele, como a respeito da política identitária, com suas cotas divisionistas, e das ambiguidades em relação à Rússia e à China; mas, no conjunto, o governo está na direção certa e adota as medidas urgentes e necessárias para o desenvolvimento social e econômico do país.

Se está na direção certa, o que dificulta a ação de Lula? Basta bom senso e honestidade para perceber que é o parlamento parasitário, que é mesquinho, impede o desenvolvimento nacional, trai a confiança do governo e protege — senão estimula — o golpismo fascista. Por seu turno, o jornalismo político, reduzindo a política às fofocas e em associação com os porta-vozes do financismo internacionalista, finge que tudo isso não é uma agressiva chantagem nem o bloqueio de um programa social e político verdadeiramente republicano.

Não há país que vá para frente nessas condições. Mas também não há soluções simples: é necessário evitar — ou combater — a demagogia extremista (atualmente na versão fascista) e as fake news, que correspondem às versões extremas e irmanadas do parlamento parasitário e do jornalismo de fofocas. O caminho é longo.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

08 junho 2025

Textos e documentos disponíveis na internet

Estão disponíveis no repositório eletrônico Internet Archive diversos documentos e textos positivistas.





- Cartão de celebração do sesquicentenário de Clotilde de Vaux (português): https://archive.org/details/cartao-maximas-de-clotilde

- Décio Villares: A Humanidade com o futuro em seu colo (português): https://archive.org/details/decio-vilares-a-humanidade-catecismo-positivista

- Henrique Batista da Silva Oliveira: Esquema da Sociologia de Augusto Comte (português): https://archive.org/details/henrique-b.-s.-oliveira-esquema-da-sociologia-comtiana

- Luís Lagarrigue: Indústria da guerra, indústria da paz (espanhol): https://archive.org/details/luis-lagarrigue-industria-da-guerra-industria-da-paz-1943

- Luís Lagarrigue: O nacionalismo (português): https://archive.org/details/luis-lagarrigue-o-nacionalismo-1950

- Luís Lagarrigue: Supressão das castas na transição ocidental (espanhol): https://archive.org/details/luis-lagarrigue-supressao-das-castas-na-transicao-ocidental-1943

- Norton Demaria Boiteux: Centenário subjetivo de Elisa Mercoeur (português/francês): https://archive.org/details/norton-demaria-boiteux-centenario-de-elisa-mercoeur-1936

- Paulo Estevão Berredo Carneiro: Augusto Comte e Brasil (francês): https://archive.org/details/paulo-carneiro-augusto-comte-e-o-brasil


05 junho 2025

Valter Duarte Ferreira: "Economia, obstáculo epistemológico"

No dia 15 de São Paulo de 171 (4 de junho de 2025) realizamos uma Live AOP com o cientista político e professor Dr. Valter Duarte Ferreira Filho (UERJ e UFRJ), que fez a exposição "Economia: obstáculo epistemológico", tratando das origens filosóficas, políticas e sociais do que se chama de "economia".

Essa Live AOP, como de hábito, foi transmitida exclusivamente no canal Positivismo e está disponível aqui: https://youtube.com/live/VnRZqumyAFw.



As idéias apresentadas também podem ser lidas no livro de mesmo título, disponível na Editora da UERJ: https://eduerj.com/produto/economia-obstaculo-epistemologico-estudo-das-raizes-politicas-e-religiosas-do-imaginario-liberal/
Além disso, o Prof. Valter mantém um canal no Youtube, disponível aqui: https://www.youtube.com/channel/UCsWfjyhs2nhgtrW1KMuxlww.

Por fiim, o Prof. Valter sugeriu a leitura de dois livros do pesquisador Daniel Kosinski, que seguem a inspiração teórica das concepções defendidas no livro "Economia: obstáculo epistemológico"; esses livros de Daniel Kosinski são estes:


03 junho 2025

Prédica positiva (14.São Paulo.171/3.6.2025)

No dia 14 de São Paulo de 171 (3.6.2025) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Apelo aos conservadores (em sua Primeira Parte, consagrada à "doutrina apropriada aos verdadeiros conservadores").

Antes da leitura comentada, abordamos rapidamente o volume de Ramiro Marques, O livro das virtudes de sempre.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui) e Igreja Positivista Virtual (aqui e aqui).

Devido a problemas na conexão da internet, a transmissão via Youtube foi interrompida logo após a metade e restabelecida em seguida. A versão indicada acima é a que se realizou via Facebook.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *


Prédica simples

(14 de São Paulo de 171/3.6.2025) 

1.      Abertura

2.      Exortações iniciais

2.1.   Sejamos altruístas!

2.2.   Façamos orações!

2.3.   Como somos uma igreja, ministramos os sacramentos: quem tiver interesse, entre em contato conosco!

2.4.   Precisamos de sua ajuda; há várias maneiras para isso:

2.4.1.     Divulgação, arte, edição de vídeos e livros! Entre em contato conosco!

2.4.2.     Façam o Pix da Positividade! (Chave pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

3.      Datas e celebrações:

3.1.   Dia 15 de São Paulo (4.6): Live AOP com Valter Duarte Ferreira Fº: “Economia, obstáculo epistemológico”

4.      Sobre o volume O livro das virtudes de sempre, de Ramiro Marques (São Paulo, Landy, 2001)

4.1.    O autor era um pedagogo português, professor de ética e filosofia moral, viveu entre 1955 e 2023

4.1.1.     Lamentavelmente, como era português nós, no Brasil, não o conhecíamos (afinal, fazemos questão de ignorar e desprezar a realidade portuguesa, no que também lamentavelmente há uma reciprocidade do outro lado do Atlântico); apesar disso, ele desenvolveu uma importante carreira interna e externa (como se pode ver aqui)

4.2.   O livro aborda a ética de Aristóteles, apresentando-a como real, útil e prática – e adequada e necessária para os dias de hoje

4.2.1.     O argumento centra-se na concepção de “virtude”, que é a realização do bom e que se encontra no meio de dois vícios opostos (geralmente, a falta e o excesso de algum comportamento)

4.2.2.     A abordagem do autor tem, entre outras, duas grandes qualidades: (1) aborda o conjunto das obras éticas de Aristóteles (ele relaciona quatro, no total) e (2) ele não degrada Aristóteles ao reduzi-lo a Platão (como fez Giovanni Reale, em seu Introduçãoa Aristóteles (Rio de Janeiro, Contraponto, 2012))

4.3.   Parece-me que vale a pena citar esse livro devido a diversos motivos:

4.3.1.     Em primeiro lugar, as reflexões ético-morais de Aristóteles são extremamente próximas das de Augusto Comte; não por acaso, nosso mestre nomeou o mês da filosofia antiga (o terceiro mês do ano) com Aristóteles e incluiu dois livros do estagirita na Biblioteca Positivista (a Ética Nicomaquéia e a Política)

4.3.1.1.           Em particular, apesar dos fortes elementos teológico-metafísicos, a ética aristotélica é profundamente humana, realista e direcionada para a vida em comum (especialmente a vida cívica)

4.3.2.     Em segundo lugar, desde o final do século XIX o Ocidente vive marcado pelas reflexões ético-filosóficas e clínicas profundamente metafísicas e obscuras de Freud e de Nietzsche, que tinham concepções profundamente negativas e destruidoras do ser humano

4.3.2.1.           A esses dois deve-se juntar também Marx, compondo um trio de pensadores que exerceu as mais danosas influências filosóficas, sociais e políticas sobre o Ocidente, conduzindo a perspectivas negativas, contrárias à esperança, ao progresso, à fraternidade, à harmonia, favoráveis ao conflito, à disputa, à desesperança

4.3.2.2.           Freud, em particular, defendia uma concepção de ser humano como sempre doente, sempre problemático, dependente de “terapias” que exigem dedicação permanente (vários dias por semana), duram a vida inteira e, portanto, não curam nem resolvem nada, exceto a conta corrente dos psicanalistas

4.3.2.3.           A reafirmação da ética aristotélica – que, como indicamos, é largamente compartilhada pelo Positivismo – oferece um sopro de esperança e bom senso na reflexão ético-moral dos indivíduos e das sociedades, afirmando a possibilidade e a necessidade de reflexão e condução autônoma do comportamento, com vistas tanto à felicidade individual quanto ao bem comum

4.3.3.     Em terceiro lugar, embora no âmbito das nossas prédicas isto não tenha tanta importância, o livro foi escrito também com a preocupação de orientar os professores em sala de aula que desejem ou que tenham que abordar reflexões éticas, sejam em disciplinas específicas, seja de maneira “transversal”

4.4.   Todavia, apesar dessas qualidades, convém notar que a abordagem do autor apresenta alguns graves defeitos filosóficos de fundo, nomeadamente a crença em concepções absolutas e, daí, tanto a rejeição do relativismo quanto o gravíssimo equívoco de que o relativismo consiste na ausência de parâmetros

4.4.1.     Esses defeitos filosóficos do autor vinculam-se a concepções teológicas (católicas, em particular); mas, felizmente, elas têm um aspecto um tanto secundário no conjunto do livro e não afetam a competente exposição do pensamento de Aristóteles

5.      Leitura comentada do Apelo aos conservadores

5.1.   Antes de mais nada, devemos recordar algumas considerações sobre o Apelo:

5.1.1.     O Apelo é um manifesto político e dirige-se não a quaisquer pessoas ou grupos, mas a um grupo específico: são os líderes políticos e industriais que tendem para a defesa da ordem (e que tendem para a defesa da ordem até mesmo devido à sua atuação como líderes políticos e industriais), mas que, ao mesmo tempo, reconhecem a necessidade do progresso (a começar pela república): são esses os “conservadores” a que Augusto Comte apela

5.1.1.1.           O Apelo, portanto, adota uma linguagem e um formato adequados ao público a que se dirige

5.1.1.2.           Empregamos a expressão “líderes industriais” no lugar de “líderes econômicos”, por ser mais específica e mais adequada ao Positivismo: a “sociedade industrial” não se refere às manufaturas, mas à atividade pacífica, construtiva, colaborativa, oposta à guerra

5.2.   Uma versão digitalizada da tradução brasileira desse livro, feita por Miguel Lemos e publicada em 1899, está disponível no Internet Archive: https://archive.org/details/augustocomteapeloaosconservadores

5.3.   O capítulo em que estamos é a “Primeira parte”, cujo subtítulo é “Doutrina apropriada aos verdadeiros conservadores”

5.4.   Passemos, então, à leitura comentada do Apelo aos conservadores!

6.      Exortações finais

6.1.   Sejamos altruístas!

6.2.   Façamos orações!

6.3.   Como somos uma igreja, ministramos os sacramentos: quem tiver interesse, entre em contato conosco!

6.4.   Precisamos de sua ajuda; há várias maneiras para isso:

6.4.1.     Divulgação, arte, edição de vídeos e livros! Entre em contato conosco!

6.4.2.     Façam o Pix da Positividade! (Chave pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

7.      Término da prédica

 

Referências

- Augusto Comte (port.), Apelo aos conservadores (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898): https://archive.org/details/augustocomteapeloaosconservadores.

- Augusto Comte (port.), Catecismo positivista (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 4ª ed., 1934).

Giovanni Reale (port.), Introdução a Aristóteles (Rio de Janeiro, Contraponto, 2012).

Ramiro Marques (port.), O livro das virtudes de sempre (São Paulo, Landy, 2001).

Diálogo sobre a morte como transformação


O diálogo abaixo ocorreu em um grupo do Whattsapp dedicado ao estudo e à difusão do Positivismo, isto é, da Religião da Humanidade, nos dias 2 e 3 de junho de 2025. Como se pode ver pela pergunta inicial, o tema era o conceito positivo de morte como “transformação”. Essa pergunta inicial, por inúmeros motivos, é interessante e pode ser elaborada por muitas pessoas: por esse motivo, consideramos que esse diálogo vale a pena ser divulgado.

Para manter a privacidade do inquiridor, suprimimos seu nome; além disso, acrescentamos vários comentários, para a resposta ser um pouco mais completa e didática; por fim, editamos um pouco a resposta para fins de divulgação. 

*          *          *

 

Pergunta

O termo “transformação” para se referir à morte no Positivismo vem da famosa frase de Lavoisier: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”?

 

Gustavo

Essa é uma boa pergunta, que permite muitas reflexões.

Antes de mais nada, é necessário rejeitar vigorosamente o fisicalismo – ou seja, o materialismo físico-químico – implícito nessa pergunta. Já veremos o que isso quer dizer e como aplicar esse princípio geral.

Quando o Positivismo, ou melhor, a Religião da Humanidade afirma que a morte de um ser humano deve ser chamada de “transformação”, a idéia é que a morte não é um fim absoluto, como querem o materialismo e mesmo muitas versões do espiritualismo. Quando uma pessoa morre, encerra-se para essa pessoa o fenômeno biológico da vida; ou seja, as trocas contínuas entre o corpo e o ambiente, que mantêm o equilíbrio interno.

De maneira bem didática, a vida pode ser entendida como andar de bicicleta: só mantemos o equilíbrio enquanto estamos andando, enquanto estamos em movimento; o próprio movimento cria as condições para que a bicicleta mantenha-se equilibrada e em movimento. Quando a bicicleta está parada, não há condições de manter-se o equilíbrio, embora a própria bicicleta e o ambiente continuem existindo.

Quando uma pessoa morre, as trocas contínuas entre o organismo e o ambiente cessam e o equilíbrio interno deixa de existir. A bem da verdade, continuam ocorrendo trocas entre o corpo morto e o ambiente, mas não mais no sentido da manutenção de um equilíbrio interno, mas da decomposição do corpo.

Em termos biológicos, a vida pode ser entendida da forma acima. Mas em termos sociológicos e morais, a vida é algo diferente, que se baseia na realidade biológica mas que assume um aspecto bem diferente. A noção de trocas contínuas permanece, mas elas passam a ocorrer de maneira compartilhada e em termos objetivos e subjetivos. Na verdade, o compartilhamento das trocas objetivas e subjetivas é algo que se manifesta já nos animais superiores, ou seja, especialmente nas aves e nos mamíferos, e que se realiza em sua plenitude com o ser humano. (A Biologia, assim, é preparatória para a Sociologia e a Moral.)

No caso do ser humano, esse aspecto de vida objetiva-subjetiva compartilhada assume uma característica ainda mais marcada: não há propriamente indivíduos, apenas a Humanidade; embora a Humanidade só possa existir e agir por meio dos indivíduos, estes só se realizam por meio da Humanidade. Nos termos de nosso mestre, no fundo os indivíduos são uma abstração, ao mesmo tempo em que valem as palavras de Dante: a Humanidade é “filha de seu filho”.

Enquanto os indivíduos – que, para terem de fato orientação, sentido e dignidade na vida, devem ser vistos e devem entender-se como servidores da Humanidade – vivem e morrem, a Humanidade permanece e desenvolve-se com o passar tempo. Dessa forma, se a vida humana é compartilhada, é objetiva e subjetiva, se só somos o que somos, se só podemos ser o que somos na e pela Humanidade, tem de fato algum sentido dizer que a morte dos indivíduos é um encerramento absoluto?

A vida objetiva-subjetiva compartilhada significa que todos atuamos de maneira “concreta” (objetivamente) e, necessariamente, também de maneira “abstrata”, isto é, moral e intelectual (subjetivamente: afetiva, filosófica, artística). Quando alguém morre, sua atividade objetiva termina; mas sua influência permanece, seja a influência subjetiva, seja também a influência objetiva.

Então, quando alguém morre, a carne morre, mas a influência dessa pessoa não deixa de ocorrer. Se a memória permanece e se os entes que morreram continuam exercendo influência sobre nós, como é que se pode dizer que a morte é de fato um fim absoluto? O que há, portanto, é uma transformação, da vida objetiva-subjetiva para a vida plenamente subjetiva. É isso que queremos dizer com “transformação”.

Por outro lado, muitas concepções espiritualistas consideram que existe algo chamado “alma”, algo que de fato é indefinível e incompreensível; a alma seria um fantasma, ou uma fumaça, ou – como diversas teologias sugerem – um sopro, que por obra da divindade insere-se no corpo e dá-lhe vida e movimento[1]. Nessas concepções, o corpo é como que uma casca que é habitada por tal sopro, ou melhor, pela alma; é a alma que dá vida ao corpo.

Para as concepções teológicas, com a morte, isto é, com a morte da carne, a alma abandona o corpo, havendo plenamente uma dissociação. A morte aí é definitiva; a carne apodrece e nada mais resta da pessoa; o que seria a sua essência – a alma – abandona a carne e vai para algum lugar (o além) em uma existência que seria mais “verdadeira”. Há aí uma confusão entre o objetivo e o subjetivo; essa confusão é em parte ingênua, é em parte generosa (altruísta), mas em parte também é profundamente interessada (ou seja, egoísta): trata-se por um lado de desejar que os nossos entes queridos continuem existindo, ou vivendo, e, por outro lado, trata-se também do nosso próprio desejo de nunca morrermos. Qualquer que seja a motivação, a confusão entre o objetivo e o subjetivo consiste em atribuir realidade objetiva à concepção teológica e totalmente fictícia de alma; em conseqüência disso, trata-se também de atribuir existência objetiva ao “outro mundo” (cujas realidade e característica são total e necessariamente ignoradas). A concepção teológica de alma (bem como a de “além”) é totalmente subjetiva; mas atribui-se a ela uma realidade objetiva: a dificuldade toda está em desfazer essa confusão e entender o que é e como se relacionam entre si cada um desses elementos e desses âmbitos.

Vale notar que a noção teológica de alma, portanto, é a origem do famoso dualismo mente-corpo, que tantos problemas filosóficos, morais e práticos produz até os dias de hoje. Essa concepção, aliás, é atribuída a Descartes, pela qual ele é um tanto injustamente criticado: na verdade, ele só deu uma roupagem metafísica a uma concepção que na verdade é plenamente teológica.

A concepção positiva de alma rejeita a noção do sopro divino e, portanto, rejeita a dualidade corpo-alma: a concepção positiva de alma considera-a como sendo o próprio corpo, estando localizada no cérebro. Nos termos de Augusto Comte, a alma consiste no conjunto das funções cerebrais; se a alma pode ter alguma objetividade, é apenas essa.

Ainda assim, isso não encerra a questão. Se a alma é estritamente individual (e, na concepção teológica, ela é radicalmente individual), como indicamos antes a existência humana é compartilhada – e compartilhada em termos objetivos e subjetivos. Quando alguém morre, em termos positivos não se pode falar em “alma”, mas é correto e necessário falar em memória, recordação, influência... é a subjetividade atuando plenamente aí.

A Religião da Humanidade concede um peso muito grande à influência subjetiva dos servidores da Humanidade; a noção de memória não ilustra bem esse peso, pois ela é meio passiva e meio fraca; já a influência subjetiva dos mortos pode ser dispersa, mas ela tem um aspecto bastante ativo e, portanto, bastante intenso. Na verdade, embora a Humanidade só possa existir concretamente por meio dos seres humanos vivos, a atuação da Humanidade ocorre cada vez mais, sempre e necessariamente, devido à influência, devido ao peso crescente que os mortos têm sobre os vivos (e também sobre os que ainda não nasceram); é por isso que o Positivismo faz questão de afirmar e realizar o culto aos mortos e é isso que significa a famosa e bela frase de nosso mestre, “Os vivos são sempre e cada vez mais, necessariamente, governados pelos mortos”.

Considerando tudo isso, para nós – que rejeitamos tanto as ficções teológico-metafísicas quanto o materialismo cientificista –, quando alguém morre não há separação de diferentes tipos de matéria (ou de essências); o que ocorre é, objetivamente, o fim das trocas que chamamos de vida e, subjetivamente, a afirmação da influência do morto sobre nós. É por isso que, ao tratarmos da morte, falamos mais propriamente em “transformação”.

No final das contas, resta pouco, ou melhor, não resta nada da fórmula de Lavoisier no conceito positivo de morte como transformação. A associação da transformação com a fórmula de Lavoisier talvez seja sugerida por uma interpretação fisicalista, ou cientificista, do conceito de morte como “transformação”; se é esse o caso, isso acaba sendo um bom exemplo de como por vezes é difícil superarmos determinados hábitos mentais, em particular aqueles que oscilam entre o materialismo cientificista e o espiritualismo teológico-metafísico.




[1] Claro que o sopro é sugerido pelo fato de que os seres humanos (e os animais superiores) viventes respiram, ou seja, “sopram”. Para as teologias que adotam a noção de alma e, em particular, a noção de alma como sopro, a divindade assopra a alma nos seres vivos e assim concede tanto a alma quanto a vida.