22 agosto 2024

Monitor Mercantil: "Degradação como progresso (!)"

O jornal carioca Monitor Mercantil publicou no dia 21.8.2024 um texto de nossa autoria, intitulado "Degradação como progresso (!)".

Como de hábito, redigimos uma versão inicial grande, que depois foi cortada para adequar-se aos parâmetros de publicação jornalística.

A versão publicada está disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/degradacao-como-progresso/.

Apresentamos abaixo a versão inicial do texto.

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Degradação como progresso (!) 

Gustavo Biscaia de Lacerda

 

Advertência inicial

Antes de mais nada, um aviso: este artigo certamente desagradará muitos, talvez a maioria, de quem se considera “progressista”; mas é justamente em nome do progresso, em defesa do progresso, que escrevi estas linhas. Começarei expondo duas situações concretas, geralmente celebradas (de maneira equivocada) como progressistas e em seguida comentarei o que se deve entender por progresso.

A polêmica olímpica

A primeira situação concreta refere-se aos jogos olímpicos. O belo espetáculo das Olimpíadas, em sua recente edição de Paris 2024, foi marcado em sua abertura, no dia 28 de julho, por polêmicas intensas. Não foi todo o evento de abertura, que se caracterizou por múltiplas atividades realizadas ao mesmo tempo, muitas delas realmente bonitas e inovadoras, respeitando e exaltando o universalismo próprio aos jogos olímpicos, bem como celebrando aspectos da cultura francesa e da preocupação com o futuro da Humanidade. Contudo, alguns aspectos foram particularmente polêmicos – e, convém dizê-lo com clareza, propositalmente agressivos. Essas polêmicas referiram-se em particular a uma suposta representação teatral, ou “performática”, do famoso afresco de Leonardo da Vinci, A última ceia (1495-1498), em que – supostamente, conforme as críticas – as figuras de Jesus Cristo e dos apóstolos teriam sido trocadas por figuras de diabos, bacantes etc., em poses e situações extremamente eróticas e sexualizadas. Em contraposição, alguns dos defensores da “performance” afirmaram que se tratava na realidade de uma representação da tela A festa dos deuses, de Utrecht Jan Harmensz (1635-1640), ou, ainda (mas com menos verossimilhança), de A festa dos deuses, de Giovanni Bellini (1514). O diretor artístico do evento, Thomas Jolly, foi extremamente ambígüo a respeito: embora inicialmente ele não tenha confirmado nem negado nada, após as imediatas críticas feitas pela igreja católica da França, por católicos e por políticos de direita e extrema direita, ele afirmou que não se tratava de nenhuma tentativa de degradar ou desprezar o afresco de Leonardo da Vinci nem, por extensão, o catolicismo, mas, ao contrário, de ser “inclusivo ao máximo”; aliás, ele também afirmou que “um pouco de polêmica é sempre bom”, pois um mundo sem polêmicas seria “muito chato”. Em face de tal polêmica, tanto o presidente da comissão francesa para os jogos olímpicos, o canoísta Tony Stanguet, quanto o Presidente da República, Emmanuel Macron, viram-se obrigados a confirmar e a apoiar o espetáculo, inclusive fazendo coro ao empenharem o republicanismo, a laicidade e até a tradição anticlerical francesa como base para esse apoio.

Os ideais olímpicos: paz, universalismo, inclusão

Se a “performance” foi mesmo baseada na Última ceia, isso está aberto à discussão; de fato, é necessário forçar um pouco para concluir que ela referiu-se mesmo à obra de Da Vinci. Entretanto, o que não está sujeito a debate é a intenção consciente de ser polêmico – e de ser polêmico por meio da vulgaridade. Bem distante de buscar o máximo de inclusão, o que o “diretor artístico” da abertura das Olímpiadas desejava era chocar ao máximo a platéia, causar mal-estar, a partir de cenas degradantes e inadequadas. A importância dos jogos olímpicos está na afirmação do seu universalismo, bem como na belíssima idéia de que as disputas violentas entre as nações – em particular as guerras – são suspensas e, mais do que tudo, substituídas por disputas pacíficas, em que se busca não a destruição e a morte, mas o respeito e o desenvolvimento do ser humano. Esses ideais foram comprovados repetidamente durante o evento, com as selfies conjuntas de coreanos do Sul e do Norte, os auxílios de corredores que acudiram seus adversários/colegas, a “adoração” das ginastas estadunidenses pela nossa Rebeca Andrade.

A recorrente vulgaridade de Madonna

Mas o fato é que a vulgaridade que degradou a abertura dos jogos olímpicos de Paris, em 2024, não é algo novo; aqui no Brasil já vimos cenas parecidas antes, como na apresentação da cantora Madonna, em Copacabana, em maio de 2024. À diferença dos jogos olímpicos, Madonna não tem a menor preocupação em ser universalista; mas, à semelhança do ocorrido em Paris, desde o início de sua carreira, no começo dos anos 1980, ela busca chocar e causar comoção, em particular por meio de cenas agressivamente sexualizadas. É claro que em parte isso é jogo de cena com fins de propaganda, para ela aumentar a vendagem de seus produtos (ou seja, para ela enriquecer mais); mas essa estratégia baseia-se em valores profundos professados pela cantora.

A hipersexualização vendida como progresso

Pois bem: tanto no caso dos jogos olímpicos quanto no de Madonna a vulgaridade da extrema sexualização é apresentada como sinal de progresso – e isso é amplamente entendido como correto e aceitável por grupos autointitulados “progressistas”. Ora, basta um pouco de bom senso para perceber-se com clareza que nem a degradação nem a vulgaridade correspondem a qualquer sentido aceitável de “progresso”. Devemos, então, saber o que é o progresso.

Definindo o progresso

Um sentido elementar do progresso é o desenvolvimento das capacidades humanas, seja em termos coletivos, seja em termos individuais: progredir, nesse sentido, é o ser humano “crescer”. Não se trata simplesmente de mudar: afinal de contas, podemos mudar para pior. Assim, a noção de progresso implica tanto o desenvolvimento quanto o aperfeiçoamento. Clara e necessariamente há um juízo de valor implicado aí, em que devemos melhorar as coisas. Daí decorre também um outro aspecto, o espírito construtivo do progresso: progredir significa necessariamente construir. Por certo que às vezes, para progredirmos, temos que antes destruir algumas coisas (isto é, algumas práticas, algumas instituições, até mesmo alguns objetos); mas, como deve (ou deveria) ser evidente, essas destruições prévias têm que ser excepcionais e, acima de tudo, as coisas destruídas têm que ser substituídas por outras. Isso equivale a dizer – aliás, repetindo o que o líder da Revolução Francesa Georges Danton já dizia (mas que, quase com certeza, nem Thomas Jolly nem Madonna conhecem e muito menos respeitam) – que “só se destrói o que se substitui”: o puro espírito destruidor, a pura destruição, o mero destruir por destruir, nada disso é de verdade o “progresso” – mesmo que se diga que é.

O progresso geralmente é contraposto à ordem, seja em termos filosóficos e morais, seja em termos sociopolíticos. De fato, essa é uma possibilidade; entretanto, a contraposição entre ordem e progresso resulta em oscilações intensas e em disputas sociais amargas, como vivemos ao longo do século XX e como temos tido a infelicidade de atualizar neste século XXI. Assim, para ultrapassar as oscilações entre a ordem e o progresso, é necessário uni-los e constituir uma nova síntese, de “ordem e progresso”. Tal síntese foi elaborada pelo fundador da Sociologia, o francês Augusto Comte, herdeiro da Revolução Francesa, indicando que a ordem tem que ser a consolidação do progresso e que, assim, o progresso é o desenvolvimento da ordem. (A ordem, dessa forma, não é entendida como imóvel, como estática.)

Não deixa de ser irônico, ou melhor, triste que a degradante “performance” realizada em Paris tenha sido feita ao mesmo tempo em nome do progresso, do espírito olímpico e da Revolução Francesa. Ora, como indicamos acima, foi justamente durante a Revolução e não por acaso que se concebeu a máxima “só se destrói o que se substitui”; mas, mais do que isso, a degradação exibida em julho de 2024 em Paris também foi feita em nome do “amor”, mas tanto para os revolucionários de 1789 quanto para a maioria dos cidadãos de hoje espetáculos hipersexualizados como os de Thomas Jolly e de Madonna têm pouco ou nada a ver com o amor, mas apenas com uma nauseante caricatura do que deve ser o amor.

Christopher Lasch e Oscar Wilde: progresso como “subida mecânica” e como “decadência com elegância”

Dito isso, voltemos à degradação fantasiada de progresso. Em 1994 o ensaísta estadunidense Christopher Lasch (A revolta das elites), ao abordar o conceito de progresso, propôs e defendeu que desde o final do século XIX havia duas possibilidades para esse conceito; a primeira ele caracterizou como sendo a noção de desenvolvimento contínuo e irreversível para cima, uma “subida mecânica” – na verdade, uma caricatura elaborada pelos críticos conservadores e retrógrados do progresso e que, na falta de elaboração filosófica verdadeira, foi referendada pela esquerda e pelo próprio Lasch. O outro conceito apresentado pelo estadunidense seria o do desenvolvimento da arte e das faculdades artísticas, em que a arte seria cada vez mais autônoma, isto é, cada vez mais independente dos outros âmbitos da vida, em particular o da moralidade; esse segundo conceito teria sido proposto pelo dramaturgo irlandês Oscar Wilde, que propunha, de maneira concomitante, as noções de que o primeiro sentido do progresso seria “chato” e próprio a pessoas “estúpidas”, enquanto a arte seria a expressão e o desenvolvimento cada vez maior do egoísmo e da mais pura autoexpressão individual e antissocial. (Como se vê, Lasch desconsidera, talvez ignore, o sentido mais cuidadoso, matizado e complexo que expusemos acima.) Ao mesmo tempo, na linha dessa superficialidade inidividualista, Oscar Wilde celebrava a noção de que o conteúdo específico da arte contemporânea é o da “decadência com elegância” (a tal décadence avec élégance, que foi popularizada por um ambígüo e polêmico cantor brasileiro nos anos 1980). O conceito de “progresso” proposto por Oscar Wilde (que Christopher Lasch acaba pessoalmente subscrevendo) evidentemente é paradoxal; com um pouco de atenção logo se vê que ele não é de fato progresso em nenhum sentido razoável, embora corresponda perfeitamente à inteligência ágil, à mentalidade e à sensibilidade aristocrática, superficial e desorientada de Wilde, esse Voltaire atrasado e de segunda linha posterior à Era Vitoriana.

O fato é que a sensibilidade de Oscar Wilde, com sua marcada superficialidade e sua agressiva destruição, é o que alimenta a noção de progresso “decadente e elegante” dos recentes espetáculos hipersexualizados que citamos antes. Não há nesses espetáculos nenhuma busca efetiva de “progresso”, isto é, de aperfeiçoamento humano, de melhoria das condições sociais e individuais; há apenas a degradação moral travestida de, ou melhor, corruptora da bela e importante noção de “progresso”.

Silêncio constrangido e/ou omisso dos progressistas

Em face das inevitáveis críticas que tais apresentações receberiam dos grupos conservadores e retrógrados – aliás, sendo franco: críticas que em grande parte estão corretas –, muitos intelectuais que se dizem progressistas vão em bloco em defesa dessas apresentações, no famoso movimento de briga de torcida, incapazes de qualquer verdadeira apreciação. Com essa defesa em bloco, mecânica e acrítica, não é à toa que esses “progressistas”, ou a chamada esquerda, sejam tantas vezes mal vistos ou percebidas como “imorais”.

Dissemos “muitos intelectuais defendem”, com isso querendo sugerir que não são todos e, talvez, nem a maioria: temos a impressão de que aqueles intelectuais progressistas que não se manifestam têm clareza de o quão degradantes são esses espetáculos e que, por isso, não querem expor-se ao ridículo de defender o indefensável, embora, ao mesmo tempo, não queiram indispor-se com seus colegas “progressistas” ao custo de serem vistos como “conservadores” ou retrógrados. Tal silêncio também é conveniente com a dupla percepção (e duplamente incorreta), da parte desses intelectuais, (1) de que as mudanças sociais que importam seriam as mudanças materiais (políticas e econômicas) e (2) de que a agenda de “costumes”, dita moral, é secundária e, portanto, poderia ficar à mercê de espetáculos como os comentados acima.

Defesa da “cultura LGBTQIAP+”?

Podemos abordar agora o elefante branco desta reflexão. Muitos dos intelectuais que defendem esses espetáculos e que subscrevem a noção de progresso como “destruição com degradação” preocupam-se com o fato de que esses espetáculos muitas vezes são feitos por artistas “LGBTQIAP+” e nominalmente em sua defesa. Entretanto, como indicamos acima, esses espetáculos são extremamente agressivos e destruidores: talvez, quem sabe, fosse possível defendê-los argumentando que se trata de manifestações específicas de uma “cultura LGBTQIAP+”, mas isso é muito discutível e pouco defensável, na medida em que “essencializa” essa cultura e degrada a própria comunidade “LGBTQIAP+”, reduzindo-a à hipersexualização. Aliás, a redução do amor a manifestações públicas hipersexualizadas feitas com o objetivo de chocar é, sob qualquer parâmetro, uma péssima estratégia, que serve apenas para irritar e afastar quem se deveria agradar e atrair, bem como para degradar o ambiente público, a arte, os grupos envolvidos e as noções de progresso e amor. O tolo comentário de Thomas Jolly, de que “a vida seria muito chata sem polêmicas”, dá a medida da infeliz superficialidade que move tais espetáculos.

Em suma, no fundo, o que se evidencia é a ausência de qualquer concepção verdadeira de progresso – isto é, de qualquer concepção que ultrapasse o sentido caricato de “subida mecânica” ou o sentido de “decadência com elegância” de Oscar Wilde.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo e doutor em Sociologia Política.

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