§ 1º – Historicidade
de Augusto Comte (e dos seus críticos contextualistas)
A leitura de Augusto Comte conduz com muita intensidade à
noção de historicidade do ser humano. O seu Positivismo, ao contrário do que
argumentam os seus críticos e ao contrário do que argumentam os críticos do
“positivismo”, tem como pressuposto a noção de que o ser humano é antes e acima
de tudo um ser histórico: não é possível falar em humanidade sem levar em
consideração a historicidade. Na verdade, precisamente nesse sentido, o que
distingue a espécie humana das outras espécies animais – e que, aliás, exige
uma ciência específica para si, a Sociologia – é o caráter social do ser
humano, o que, como dito há pouco, equivale no pensamento comtiano à historicidade.
Ora, não deixa de ser profundamente irônico que justamente
os autores que postulam um historicismo radical, a partir da concepção de que é
necessário compreender cada ação humana em seu contexto específico, proponham
no final uma concepção fragmentária da realidade humana. A “história” é apenas
a sucessão de “contextos”, justapostos cronologicamente. Essa concepção, por
outro lado, lembra bastante a que Weber tinha a respeito da sociedade: para
ele, não existe um agregado supra-individual, mas apenas relações individuais.
Sem dúvida alguma, há perdas importantes de racionalidade – de “compreensão” da
realidade humana – com cada uma dessas perspectivas (a do historicismo radical
e a da sociologia weberiana): o que se perde é a compreensão de que o ser
humano é histórico.
Inversamente, é claro, tais perspectivas, fragmentadoras,
afirmam que somente elas são “históricas”, que somente elas acedem a verdadeira
natureza humana. O que ocorre é que o contextualismo histórico, sacrificando a
visão de conjunto, é útil para pesquisas empíricas, localizadas; a suposta
ausência de pressuposições, que a perspectiva fenomenológica esposada por tais
perspectivas advoga, permite que se acumulem observações empíricas
indefinidamente, sem preocupações com uma inteligibilidade histórica mais ampla
– que é descartada a priori, aliás. O
resultado é que as perspectivas contextualistas são, supostamente, úteis para a
historiografia porque – justamente ao contrário do Positivismo e ao contrário
da auto-imagem propalada – são ultra-empíricos (“empiricistas”).
(“Supostamente” porque elas apenas acumulam fatos e interpretações empíricas,
mas sacrificam totalmente a compreensão mais ampla, isto é, a grande
interpretação macro-histórica; além disso, há um orgulho na multiplicação de
abordagens “micro-históricas” e um completo desdém pela possibilidade de
síntese entre essas diversas perspectivas. É uma espécie de “capitalismo
selvagem intelectual”, com um culto à anarquia e à dispersão.)
§ 2° Abordagens “historicamente
informadas” na Sociologia e generalizações
Quando se fala em “abordagem histórica” para as teorias
sociológicas (incluindo aí, é claro, as politológicas), há evidentemente
inúmeras formas de encarar essa “historicidade”. Uma delas é aplicar os
raciocínios e métodos próprios à disciplina acadêmica chamada História: nesse
caso, a Sociologia torna-se uma província da História e, no fundo, não se vê em
que é que a Sociologia distingue-se da História, exceto, talvez – e o “talvez” deve ser bastante enfatizado –, por um certo
caráter comparativo. As abordagens contextualistas têm este viés: não existe
propriamente Sociologia, mas apenas historiografia e uma infinidade de
histórias.
Uma outra forma é entender que Sociologia e História, embora
tenham mais ou menos o mesmo objeto, mantêm entre si relações diversas, pois
seus objetivos são variados e, portanto, seus métodos também o são: neste
último caso, a Sociologia pode (e, na verdade, deve) assumir que um dos
elementos fundamentais do ser humano é seu caráter histórico e, a partir daí,
elaborar suas pesquisas. Mas a Sociologia assumir que o ser humano é histórico
não é o mesmo que assumir que a própria Sociologia deve subsumir-se à História:
significa, muito diferentemente, que as sociedades acumulam materiais afetivos,
intelectuais, políticos geração após geração e que cada geração tem que lidar
criativamente com esses materiais, que serão passados adiante. Uma teoria “historicamente
informada” na Sociologia que não seja uma forma diferente de fazer
historiografia pode assumir que o ser humano caracteriza-se pela historicidade
e, a partir daí, entender as várias formas de organizar-se e relacionar-se;
nesse caso, a disciplina da História fornece materiais empíricos para a
produção Sociológica, que tem o papel de coordenar e interpretar esses dados
empíricos. Que as interpretações sociológicas dos materiais historiográficos
sejam interpretações de segundo nível não há problema: pode-se pensar nos
níveis teóricos da Antropologia: etnografia, etnologia e antropologia. Nessa
escala, a interpretação maior caberia à Sociologia (antropologia, na seqüência
anterior) e as interpretações iniciais, ou intermediárias, caberiam à História
(etnologia, na seqüência anterior).
A História trata dos trajetos específicos de cada sociedade;
a Sociologia, por outro lado, procura comparar os diversos trajetos, sejam eles
momentos diferentes da mesma sociedade, sejam eles sociedades diferentes no
mesmo momento, sejam, por fim, momentos diferentes de diferentes sociedades. A
História, portanto, trata do que é específico; mesmo que ela faça comparações,
seu objetivo é sempre o específico (Weber aplicou esse método à Sociologia, mas
no final somente reafirmou a História, ou melhor, a metodologia
historiográfica, em completo detrimento da Sociologia). Ora, o específico é
interessante e em inúmeros casos pode ser politicamente importante, mas o fato
é que o específico trata sempre de um único caso; o específico não diz nada a
respeito das possibilidades de variação, das rotas opcionais, das grandes
marchas: isso é possível somente via comparação, ou melhor, via generalização. “Compreender”
o ser humano implica conhecer essas diversas possibilidades teóricas: em outras
palavras, só se pode conhecer efetivamente o ser humano a partir das
generalizações.
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