04 janeiro 2007

Políticas de gravidez, moralidade e a CNBB

POLÍTICAS DE GRAVIDEZ SEGURA, A CNBB E A MORALIDADE

Recentemente a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB, condenou a política pública adotada pelo Ministério da Saúde em relação à gravidez de adolescentes e de mulheres que sofreram violência sexual. A política do Ministério consiste em aulas de educação sexual para adolescentes e pré-adolescentes, distribuição de preservativos, das “pílulas do dia seguinte” e da regulamentação do aborto em caso de gravidez por violação; a crítica da CNBB consiste em afirmar que essas políticas são um desregramento moral.

Indo diretamente ao ponto: por incrível que pareça, a CNBB acertou em seu comentário: sem dúvida alguma, a política do Ministério da Saúde é um desregramento: afinal de contas, violência sexual, sexo entre pré-adolescentes e mesmo falta de controle da própria sexualidade indicam, com clareza, o desregramento moral.

O problema que se apresenta, todavia, é se a política do Ministério da Saúde é o culpado do desregramento ou se procura sanar alguns dos seus efeitos, do ponto de vista da higiene e da saúde pública, em última análise para não ser omisso.

É claro que é melhor educar a população, apresentando-lhe valores e princípios que regulem sua conduta – no caso, sua moral sexual –, além de instruí-la sobre a fisiologia feminina e difundindo políticas de planejamento familiar, mas continua sendo verdadeiro: a ação educativa não se opõe à adoção de políticas públicas de controle de gravidez e de natalidade, especialmente quando essas políticas referem-se a situações especialmente difíceis do ponto de vista pessoal e social: meninas que engravidam porque têm a iniciação sexual muito cedo (devido, em grande parte, à falta de instrução), mulheres que engravidam porque foram violentadas.

Sem dúvida, se não ocorresse esse desregramento, essas políticas não seriam necessárias, ou talvez o fossem mas em menor grau. Infelizmente, há necessidade dessas políticas e elas devem ser aplicadas.

Por outro lado, convém notarmos quem fala em desregramento: a Igreja Católica. É notória a conduta da mais antiga instituição do mundo no que se refere a desregramentos ou a regramentos viciosos: venda de indulgências, padres pedófilos, apoio da Santa Sé à política nazista (na década de 1930). O fato, em todo caso, é que se torna irônico que a Igreja Católica afirme que a política do Ministério da Saúde é um desregramento: afinal, o desregramento é a desobediência às regras morais, em grande parte porque elas perderam sua legitimidade. No caso que nos interessa, são as regras morais católicas relativas à conduta sexual que perderam sua legitimidade e, portanto, sua eficácia.

Há vários motivos que justificam essa perda de legitimidade, entre os quais podemos citar a propaganda comunista e a fragmentação católica no sem-número de seitas protestantes, que cresce mais e mais. De um ponto de vista mais filosófico, todavia, o que se percebe é uma lenta e contínua decadência, não apenas da Igreja Católica, mas de todas as fés teológicas ou extra-humanas desde há vários séculos; o que se percebe, em outras palavras, é o declínio progressivo da ordem moral baseada em considerações não-humanas e a preocupação crescente (e, espera-se, irrevogável) com os assuntos e a realidade humanos. Enquanto a sociedade caminha para a autonomia cada vez maior do ser humano, individual e coletivamente considerado, a partir de uma percepção dinâmica e relativa da realidade, as teologias mantêm concepções estáticas e absolutas do ser humano.

Ao denunciar o “desregramento” que torna a política do Ministério da Saúde necessária, a CNBB acerta relativamente o diagnóstico mas relativamente erra no tratamento. O diagnóstico é: há um desregramento, cujos efeitos têm que ser objeto de uma política pública, mas não é a política pública que causa o desregramento mas, sim, a decadência da influência da própria Igreja Católica. Por outro lado, o tratamento consiste sim no regramento moral da sociedade e dos indivíduos, mas não na volta à doutrina católica ou a qualquer outra doutrina teológica; ele deve consistir no cuidado que a sociedade civil deve ter – ativamente, diga-se de passagem – com a família, com a infância, com a gravidez planejada e responsável, com a liberdade humana.

Em suma: enquanto não há uma moral humana que substitua consistentemente as morais teológicas (ao menos no Brasil), o Ministério da Saúde aplica as medidas necessárias para remediar a situação.

Em tempo: a questão é sim de moralidade, pois a moral sexual ainda é uma forma de moral. Já está mais do que na hora de ultrapassar-se o preconceito contra os valores morais, tachados de “moralismos”, e discutir-se com clareza as várias morais sociais. No Brasil, a perda de influência da Igreja Católica apenas tem aberto espaço para que outras igrejas teológicas, mais ou menos desvinculadas da realidade humana, assumam seu espaço; enquanto os acadêmicos consideram “moralismo”, questão de conservadorismo ou reacionarismo as preocupações morais, o povo permanece em busca de padrões de conduta, encontrando apenas as teologias como solução. Nunca é demais lembrar: a verdadeira moralidade humana nunca nega a liberdade do ser humano, individual ou coletiva.

4 comentários:

  1. Prof. Gustavo, concordo com a sua consideração a respeito da moralidade, mas a lógica clássica me faz notar que o sr. não utiliza um argumento adequado quanto às críticas à Igreja Católica, e sim um argumento "ad hominem", num caso um pouco mais elaborado, uma vez que se trata de uma instituição. Obrigado pela atenção.

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  2. João: interessante seu comentário. Todavia, o que discuto na minha postagem não é uma questão de lógica (seja ela "lógica clássica", seja ela lógica não-clássica), mas (1) de história, (2) de responsabilidade política e (3) da validade social dos valores.

    Assim, o que importa saber é quais os valores que estão sendo contrapostos, quais os atores que os propõem e quais as conseqüências já ocorridas ou as previstas: nesse sentido, como não me referir diretamente aos valores e às práticas da igreja católica?

    Sua crítica parece um materialismo lógico, na medida em que reduz um problema histórico-sociológico a uma questão de lógica formal. Além disso, também parece um caso de diversionismo, na medida em que afasta o problema central, que é político, afirmando a suposta existência de um outro problema, que seria de caráter lógico.

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  3. Prof.: Concordo quanto à necessidade de um regramento, e que a sociedade civil deve ampliar o seu cuidado com ela; e, mesmo não estando totalmente convencido quanto à remoção de doutrinas teológicas, não ousaria criticar o argumento central, elaborado de uma maneira consistente. A minha crítica refere-se especialmente ao sexto parágrafo, e ao expor a minha fundamentação da crítica na lógica clássica, não quero fugir da discussão central, mas discuti-la com argumentos válidos. Pautar a crítica à Igreja Católica (ou qualquer outra instituição religiosa) denegrindo a imagem de seus membros é tão limitado quanto criticar a ciência por conta da vida que alguns cientistas levaram.

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  4. O sr. João tem um quê de razão mas está dirigindo sua atenção para aspectos secundários. Em termos sociológicos e políticos, pouco importa se acusar os padres de pedófilos e a igreja católica de acobertá-los é um argumento ad hominem. Aliás, é exatamente disso que se trata: apontar essa conduta do catolicismo, sua incoerência em relação às críticas feitas contra as propostas do Ministério da Saúde e situá-las no contexto histórico.

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