Sobre feriados, república e republicanismo
À memória de Benjamin Constant e Teixeira Mendes
No dia 15 de novembro o Brasil comemora a Proclamação da República, isto é, da instauração, em 1889, do nosso regime político. Juntamente com a Proclamação da Independência, comemorada no dia 7 de setembro, a Proclamação da República é nossa data maior – ou, pelo menos, deveria ser.
Há muito é senso comum sociológico que no Brasil há uma separação secular entre o “povo” e as “elites”; o relacionamento entre ambos dá-se pela exploração que as últimas impõem sobre o primeiro. Essa idéia, instrumentalizada pelo atual Presidente da República para manter-se no poder (e a despeito de ser ele mesmo integrante da “elite”), é uma das explicações para o fracasso dos feriados “oficiais” (Tiradentes, Independência, República) e para o sucesso dos feriados “populares” (páscoa, natal, finados, N. Sra. Aparecida, corpus christi e, claro, o carnaval).
Por que tratar dos feriados? Porque os feriados, mais – ou melhor: antes – que dias de ócio remunerado, são momentos em que coletivamente se celebram alguns valores considerados coletivamente importantes. Assim, é de fato profundamente revelador que os feriados “populares” sejam todos de caráter religioso (exceção feita ao 13 de maio, dedicado à integração das raças, cuja popularidade, na medida em que existe, deve-se aos esforços aos movimentos negros), em que se inclui mesmo o carnaval, cuja datação é decidida em função de critérios religiosos e que é percebido como um extravasamento profano prévio à purificação religiosa. Em outras palavras, o brasileiro reconhece-se como participante de uma coletividade de fé, mas não de uma coletividade política; ele reconhece-se como crente, como fiel, mas não como cidadão. (A passagem de uma identidade religiosa para uma política consiste na modernização política: assim, o brasileiro, nesse sentido, é pré-moderno em termos políticos.)
Tal situação é conhecida e reconhecida desde há muito tempo; por exemplo, nos primórdios da República, na década de 1890, alguns dos mais ardorosos defensores de uma república de caráter social (isto é, inclusiva e justa) bateram-se pela criação de um imaginário efetivamente republicano no Brasil; de modo semelhante à França, esses propagandistas – Miguel Lemos, Teixeira Mendes (autor, aliás, da bandeira nacional), Benjamin Constant, Demétrio Ribeiro – procuraram substituir tanto os símbolos teológicos quanto os oficiais (em particular as paradas militares) na constituição do imaginário cívico popular do país.
O sucesso desses esforços, como se sabe, foi infelizmente limitado: após algumas vitórias iniciais (a proclamação da República em si, a instituição da bandeira republicana, a separação entre a Igreja e o Estado, a instituição de um calendário cívico abrangendo comemorações nacionais e universais), o ideal republicano de 1889 passou a sofrer diversos reveses. Por um lado, a chamada “questão social” não foi resolvida: a inclusão social dos ex-escravos foi tratada como “não-problema”, preteridos que foram pelos imigrantes europeus (italianos, espanhóis e alemães, basicamente) e chineses; por outro lado, o princípio da separação entre Igreja e Estado passou a ser criticado e, embora juridicamente respeitado, passou a ser ignorado na prática, em nome de o “Brasil ser um país cristão”.
O que importa notar aqui é que o fracasso da institucionalização do republicanismo no Brasil não se deveu apenas à separação entre o “povo” e as “elites” nacionais, pois, como vimos, setores dessas mesmas elites tinham projetos de inclusão social e de criação de imaginário e de instituições especificamente republicanas. Não foi apenas a “ganância” das elites oligárquicas dos diversos estados, que a partir de 1895, ou melhor, de 1898 organizaram-se na “política dos governadores”: papel fundamental nesse nosso parco republicanismo tiveram as elites religiosas, leigas ou clericais, que, ao mesmo tempo em que sabotaram o republicanismo, incentivaram a “religiosidade popular” (tão celebrada atualmente).
Essas questões podem parecer meramente históricas, mas não são. Como dissemos no início deste artigo, o sucesso dos feriados religiosos e sua maior importância popular em comparação com os feriados propriamente cívicos assinalam a atualidade desses problemas – mas ainda se pode afirmar que essas são questões “meramente culturais”. Em termos propriamente políticos, há indicadores mais claros: a constituição de bancadas parlamentares especificamente religiosas é fato de conhecimento público, assim como a criação de um partido político de base também especificamente religiosa (ironia das ironias: tendo em seu nome a palavra “republicano”!). Além disso, ocorre a exigência demagógica de qualquer candidato demonstrar-se “temente a deus” para ser eleito – como se a fé fosse um valor político, isto é, próprio à cidadania! Por fim, os constantes apoios oficiais a comemorações religiosas – como se coubesse ao Estado subvencionar as diversas igrejas, por mais expressivos demograficamente que sejam seus “rebanhos”.
A data de 15 de Novembro lembra-nos: urge celebrarmos a República; urge sermos republicanos!
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