02 outubro 2024

O Positivismo é eurocêntrico?

No dia 23 de Shakespeare de 170 (1.10.2024) realizamos nossa prédica positiva, continuando a leitura comentada do Catecismo positivista, em sua décima terceira conferência, dedicada à evolução histórica da religião, em particular à tríplice transição ocidental.

No sermão abordamos a seguinte questão: o Positivismo é eurocêntrico?

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/D8kIT) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/Fcspw).

Os tempos da prédica foram os seguintes:

00:00 - início e invocação inicial
02:17 - exortações iniciais
07:40 - efemérides
09:46 - leitura comentada do Catecismo Positivista
48:09 - o Positivismo é eurocêntrico?
02:15:15 - exortações finais
02:18:59 - invocação final e término

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *

Prédica positiva

(23.Shakespeare.170/1.10.2024) 

1.       Invocação inicial

2.       Exortações iniciais

2.1.1. Sejamos altruístas!

2.1.2. Façamos orações!

2.1.3. Façamos o Pix da Positividade! (Chave Pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

3.       Efemérides

3.1.1. Live AOP com Felipe Zorzi: 3 de outubro: “Educação e política: uma reflexão sobre socialização de jovens no Brasil”

3.1.2. Lembrança: eleições para prefeitos e vereadores no dia 6 de outubro

4.       Leitura comentada do Catecismo positivista

4.1.    Leitura da 13ª conferência: tríplice transição ocidental

4.2.    Antes de mais nada, vale notar que as análises histórico-sociológicas presentes nas duas últimas conferências do Catecismo (a 12ª e a 13ª), além de explicarem e justificarem o movimento moderno e, daí, a possibilidade e a necessidade do Positivismo, também permitem compreender como o Positivismo não é um eurocentrismo

5.       Sermão: o Positivismo é eurocêntrico?

5.1.    A pergunta “o Positivismo é eurocêntrico?” procura responder a uma questão, na verdade uma acusação, feita com freqüência contra nós

5.1.1. Essa acusação é tão mais comum quanto ela parece fácil e evidente

5.1.1.1.             Entretanto, a facilidade com que se acusa de “eurocêntrico” o Positivismo esconde na verdade a sua superficialidade, a sua banalidade e a confusão moral e política implícita

5.1.2. Exatamente a superficial facilidade dessa acusação, juntamente com a relevância política da preocupação subjacente, torna o tema do eurocentrismo algo urgente de ser tratado

5.2.    Comecemos então perguntando e definindo: o que é o eurocentrismo?

5.2.1. Podemos assumir como definição mínima de eurocentrismo o seguinte: é a visão de mundo, e/ou a perspectiva, que considera que a Europa é o centro do mundo, ou que é o parâmetro supremo de avaliação e de condução da política e da moral humanas

5.2.1.1.             Com freqüência o eurocentrismo é confundido com um “ocidentocentrismo” (centralidade atribuída ao Ocidente), embora, é claro, sejam coisas diferentes

5.2.2. Na verdade, convém entender o eurocentrismo como uma forma específica de etnocentrismo, ou seja, como uma forma específica de considerar que uma determinada sociedade (ou cultura, ou até civilização) é o centro do mundo

5.2.2.1.             Nesse sentido, assim como há o eurocentrismo, há também o “americanocentrismo”, o “latinoamericanocentrismo”, o “afrocentrismo”, o sinocentrismo, o russocentrismo, o arabocentrismo etc.

5.2.2.2.              Em um sentido muito geral e muito suave, podemos dizer que toda sociedade é autocentrada e que se percebe como a referência fundamental: com toda a evidência, a China é sinocêntrica, a Rússia é russocêntrica, os Estados Unidos são “americanocêntricos” etc.

5.3.    A crítica ao eurocentrismo conjuga na verdade muitas concepções intelectuais e juízos morais e políticos:

5.3.1. Essa conjugação nem sempre é evidente e os elementos que indicaremos nem sempre estão todos eles presentes; mas, ainda assim, com enorme freqüência eles estão presentes mas não são explicitados

5.3.2. As concepções e os juízos são os seguintes:

5.3.2.1.             Crítica à saudade colonial européia

5.3.2.2.             Crítica à saudade colonial e/ou ao imperialismo ocidental

5.3.2.3.             Exigência de respeito e de dignidade para com outros países, povos e civilizações não ocidentais

5.3.2.4.             Exigência de valorização das histórias e das concepções não européias

5.3.2.5.             Afirmação de que as concepções e os valores europeus/ocidentais são sempre e necessariamente particularistas

5.3.2.6.             Afirmação de que as concepções e os valores europeus/ocidentais são sempre e necessariamente opressores, expoliadores, alienadores etc.

5.3.2.7.             Afirmação de que as práticas e as instituições criadas, mantidas e apoiadas pela Europa e/ou pelo Ocidente são sempre e necessariamente opressoras, expoliadoras, alienadoras etc.

5.3.2.8.             Afirmação de que a mera valorização de concepções, práticas e valores não ocidentais bastará para criar uma ordem internacional justa

5.3.2.9.             Afirmação de que uma ordem internacional justa requer necessariamente o combate a concepções, valores e práticas europeus/ocidentais

5.3.2.10.          Afirmação de que valores, práticas e concepções não ocidentais não são opressivas, expoliadoras, alienadoras, particularistas etc.

5.3.3. A respeito dos elementos acima, o que podemos dizer é o seguinte:

5.3.3.1.             Os quatro primeiros itens são indiscutíveis, na medida em que eles afirmam e exigem a dignidade básica de todos os seres humanos; portanto, são itens de grande positividade

5.3.3.2.             Os outros seis itens têm um caráter destruidor e raivosamente particularista; embora de uma perspectiva histórica e moral ampla eles até sejam compreensíveis, eles não são justificáveis; eles apresentam um forte caráter metafísico

5.4.    Qual a origem histórica do eurocentrismo?

5.4.1. Podemos considerar que a origem histórica do eurocentrismo liga-se à expansão européia a partir do século XV (inaugurada pela tomada de Ceuta, pelos portugueses, em 1415)

5.4.1.1.             Até então, o mundo seria “multipolar”, isto é, com vários pólos de poder: China, Islã (com os califados no Egito e na Turquia), talvez Japão, Índia etc.

5.4.1.2.             A partir do século XV a Europa começou a sua expansão marítimo-comercial-militar, impondo-se progressivamente ao mundo e unificando-o: o eurocentrismo no mundo foi uma decorrência natural disso

5.4.2. Em termos gerais, podemos dizer que houve pelo menos dois ciclos de colonização:

5.4.2.1.             Um primeiro, nos séculos XV a XVIII, que se concentrou nas Américas e que terminou com a independência desses países

5.4.2.2.             Um segundo na segunda metade do século XIX, embora iniciado nos anos 1830 (invasão francesa da Argélia), que se estendeu até a II Guerra dos 30 Anos (1914-1945) e que visou à África e à Ásia

5.4.3. Tal situação vigeu até a II Guerra dos 30 Anos (1914-1945): após ela a Europa estava destroçada, os Estados Unidos surgiram como a grande e única superpotência mundial (até 1949) e ocorreu a Guerra Fria (1947-1989)

5.4.3.1.             Após a II Guerra dos 30 Anos, a Europa não teve mais condições financeiras, humanas nem morais para manter os grandes impérios coloniais; assim, aos poucos, de diferentes maneiras, ocorreu o processo de independência das antigas colônias européias na África e na Ásia

5.4.3.1.1.                   Houve processos mais ou menos indolores, embora iniciados décadas antes, como a independência da Índia em relação à Inglaterra, em 1947

5.4.3.1.2.                   Houve processos traumáticos, como a independência da Indochina (depois Vietnã) (1955) e da Argélia (1962) em relação à França e de Angola (1975) e Moçambique (1975) em relação a Portugal

5.4.4. Embora fosse possível falar-se em eurocentrismo e criticá-lo antes do processo de descolonização, o fato é que foi a descolonização que a crítica ao eurocentrismo assumiu maior densidade filosófica e política

5.5.    A descolonização assumiu grande intensidade nos anos 1960 e, a partir daí, desenvolveu-se o chamado movimento do “Terceiro Mundo”

5.5.1. O terceiromundismo era ao mesmo tempo uma crítica à divisão bipolar do mundo, própria à Guerra Fria, e a afirmação da particularidade das vistas e das necessidades das antigas colônias européias

5.5.1.1.             Um aspecto específico do terceiromundismo era a defesa dos países subdesenvolvidos, não desenvolvidos e em desenvolvimento, em contraposição aos países desenvolvidos (no caso, os blocos capitalista e comunista)

5.5.1.2.             O terceiromundismo era ambíguo, pois, embora criticasse a divisão bipolar do mundo, incluía em suas fileiras países comunistas, como Cuba, China e Iugoslávia

5.6.    Nas últimas décadas, o terceiromundismo como tal perdeu relevância: o seu discurso desgastou-se e cansou; a referência ao “terceiro” mundo perdeu sentido (com o fim da Guerra Fria); a referência maior aos países não desenvolvidos também perdeu relevância (a China e a Rússia não são subdesenvolvidas; algo parecido pode ser dito do Brasil e da Índia)

5.6.1. No lugar do terceiromundismo, o que há desde os anos 1990 é a afirmação do “Sul Global”

5.6.1.1.             O “Sul Global” contrapõe-se aos países ricos do “Norte Global” (Estados Unidos e Canadá, Europa Ocidental, Japão, Austrália)

5.6.1.2.             Além da crítica econômica e política ao Norte Global, há a cobrança de um mundo multipolar – portanto, não mais eurocêntrico/“americanocêntrico”/“ocidentocêntrico”

5.6.1.2.1.                   O movimento do Sul Global tem algumas ambigüidades semelhantes às do terceiromundismo: não se pode com seriedade considerar que a China é um país secundário, que não é uma superpotência, que não tem uma ação colonialista; de maneira semelhante, embora a Rússia já não seja a potência econômica e militar que foi nos anos 1960, certamente ela não é um país secundário e não é um país pacifista; coisas semelhantes podem ser ditas de outros países

5.7.    Associado ao movimento político e econômico, o “Sul Global” cobra e esforça-se por desenvolver intelectualmente perspectivas e epistemologias “locais”

5.7.1. Esses esforços intelectuais realizam críticas filosóficas e políticas ao eurocentrismo/ocidentocentrismo e, de modo mais amplo, ao imperialismo/colonialismo ocidental

5.7.2. Motivadas basicamente por sentimentos e perspectivas gerais corretas, essas concepções gozam de ampla popularidade intelectual mas com freqüência e com facilidade descambam para exageros e erros

5.7.2.1.             Esses erros e exageros infelizmente não são excepcionais

5.7.2.2.             Esses erros e exageros derivam dos sentidos implícitos da crítica ao eurocentrismo, que indicamos acima, nos itens 5.3.2.5 a 5.3.2.10

5.7.3. Dois exemplos desses erros e exageros são as teses do “orientalismo”, desenvolvida pelo palestino Edward Said (1979), e a da “Atenas negra”, do estadunidense Martin Bernal (1987-2006)

5.7.4. Em todo caso, é bastante claro que os Estados Unidos e a Europa Ocidental mantêm um forte imperialismo cultural, quando não uma forte saudade colonial

5.7.4.1.             Isso pode ser visto com clareza no âmbito das Ciências Sociais, como as críticas feitas pelos nossos Guerreiro Ramos (1915-1982) e Darcy Ribeiro (1922-1997) bem exemplificam

5.8.    A partir das críticas “descoloniais”, do “Sul Global”, terceiromundistas etc. desenvolvem-se exigências de um “verdadeiro” universalismo, que abranja o mundo todo

5.8.1. A crítica ao eurocentrismo perfila-se a essa exigência

5.8.2. Os vários sentidos da crítica ao eurocentrismo começam, nesse ponto, a apresentar suas dificuldades e suas ambigüidades

5.8.2.1.             Como uma forma de realizar esse “verdadeiro universalismo”, propõe-se o multiculturalismo (associado à multipolaridade), que é entende que a ordem social atual (criada, mantida e promovida pelo Ocidente) é opressora, que portanto o bem comum e o universalismo não existem e que eles devem ser substituídos pela justaposição de perspectivas particulares, que, dessa forma, poderão ser respeitadas e valorizadas

5.9.    Feita essa breve revisão sobre a crítica ao eurocentrismo, podemos tratar do Positivismo e do seu suposto eurocentrismo

5.10.                     Comecemos com a particularidade do Ocidente para o Positivismo

5.10.1.   Augusto Comte reconhece uma natureza humana geral, (1) comum a todos os seres humanos e (2) que se realiza ao longo do tempo

5.10.1.1.          Essa natureza humana é o fundamento de toda e qualquer concepção universalista

5.10.1.2.          No fundo existe apenas um único ser humano

5.10.1.3.          A única forma de criar concepções e instituições universais é baseando-se nessa concepção

5.10.1.3.1.                Sem essa concepção fundamental há apenas a justaposição de particularismos e/ou a imposição tirânica de alguns povos sobre outros

5.10.1.4.          A partir da unidade da natureza humana, as diferenças que se verificam concretamente são devidas a ritmos, a situações e a preocupações específicas de cada povo, de cada sociedade, de cada civilização

5.10.1.5.          Se existe apenas um único ser humano, os diferentes ritmos e resultados têm que ser respeitados em suas particularidades

5.10.1.6.          Ao mesmo tempo, na medida em que há apenas um único ser humano, as particularidades de tempo e espaço não devem ser vistas como devendo fechar-se em si mesmas nem devendo ser estáticas: o ser humano foi feito para relacionar-se e foi feito para desenvolver-se

5.10.1.7.          Em face do aspecto sensível da presente discussão, importa reafirmar com muita clareza: as relações e os desenvolvimentos devem ser feitos respeitando-se a dignidade humana e as particularidades específicas

5.10.2.   A partir da comum natureza humana, todas as civilizações começaram no fetichismo e depois foram para as teocracias

5.10.3.   O Ocidente tem sua particularidade: sua história corresponde à transição das teocracias antigas à modernidade, passando pela tríplice transição (Grécia, Roma, Idade Média) e pelo duplo movimento moderno (destruidor/construtor)

5.10.4.   O desenvolvimento do Ocidente foi ao mesmo tempo específico e geral: a transição das teocracias à modernidade ocorreu no Ocidente, mas, se não tivesse ocorrido ali, teria ocorrido em algum outro lugar, em outro momento: é isso que se depreende (1) da natureza humana comum que se realiza ao longo do tempo e também (2) da noção de “lei sociológica”

5.10.4.1.          A marcha própria ao Ocidente é e não é generalizável: os resultados gerais da transição são plenamente generalizáveis, mas os grandes traços da transição e os seus aspectos específicos são cada vez menos generalizáveis (e, portanto, cada vez menos transportáveis para outras sociedades)

5.10.4.2.          O que é plenamente generalizável, então? Os grandes resultados gerais: a passagem do absoluto para o relativo; das guerras para a indústria pacífica; do localismo familista para a fraternidade universal; do presentismo para a continuidade histórica subjetiva; do egoísmo para o altruísmo; da síntese objetiva externa para a síntese subjetiva humana

5.10.4.2.1.                Esses resultados gerais são, de fato, os únicos elementos realmente generalizáveis e são os únicos fundamentos para qualquer ordem social geral que englobe todos os seres humanos do planeta Terra

5.10.4.3.          Inversamente, o Ocidente pode e deve incorporar – bem entendido, a partir dos critérios positivos – as grandes contribuições de outras civilizações e sociedades: o neofetichismo é o grande exemplo disso

5.10.5.   O reconhecimento do desenvolvimento histórico do Ocidente e sua importância política e filosófica universal não conduziu nunca Augusto Comte a uma complacência para com os erros e os crimes ocidentais

5.10.5.1.          Basta pensarmos, aí, nas críticas que Augusto Comte fazia à teologia, em particular à teologia católica

5.10.5.2.          Mais importante ainda, devemos lembrar as duríssimas críticas de Augusto Comte à escravidão moderna, a condenação feita a Napoleão Bonaparte e ao então renascente colonialismo europeu sobre a África e a Ásia

5.11.                     Quando se acusa o Positivismo de eurocentrismo, apontam-se os dedos em particular para duas instituições positivistas, a Biblioteca Positivista e o Calendário Concreto

5.11.1.   A acusação de eurocentrismo é irracional e injusta, pois essas duas instituições foram elaboradas explicitamente para a educação (moral, intelectual e prática) do proletariado ocidental do século XIX, ou seja, não têm, nem nunca tiveram, a pretensão de serem universais no tempo nem no espaço

5.11.1.1.          É importante dizermos com todas as letras: as críticas de eurocentrismo dirigidas contra essas instituições, além de injustas e irracionais, são inconseqüentes, pois limitam-se a criticar, sem fazer sugestões efetivas e, além de tudo, sem conhecerem os critérios positivos empregados para a elaboração da Biblioteca Positivista e do Calendário Concreto

5.11.2.   É necessário insistir: a Biblioteca Positivista e o Calendário Concreto têm objetivos pedagógicos para disseminar conhecimentos e sensibilidade positiva (relativismo, historicismo etc.) entre o proletariado; trata-se, portanto, de incluir, de incorporar social, moral, política e intelectualmente o proletariado

5.11.3.   Os nomes do Calendário Concreto, além disso, não somente desenvolvem a sensibilidade histórica e a noção de continuidade humana como também homenageiam os grandes tipos que foram concretamente responsáveis pela evolução humana

5.11.3.1.          Isso estimula o relativismo histórico e desenvolve a noção de responsabilidade pessoal e coletiva

5.12.                     Elaborados na primeira metade do século XIX, afirma-se que, a par do seu suposto eurocentrismo, o Calendário Concreto e a Biblioteca Positivista têm que ser atualizados

5.12.1.   Devemos notar, antes de mais nada, que, bem vistas as coisas, as cobranças de “atualização” e até de “representatividade” com freqüência seguem e/ou inspiram-se em valores positivistas

5.12.2.   Nesse sentido, as alterações na Biblioteca e no Calendário podem e devem ser feitas considerando pelo menos os seguintes aspectos:

5.12.2.1.          No caso da Biblioteca, muitos volumes devem ser substituídos por livros mais atuais (em particular na seção de ciência); entretanto, muitos volumes permanecerão (no caso da seção de síntese)

5.12.2.2.          No caso do Calendário Concreto, ele deve ser ampliado, não substituído: ou seja, deve-se acrescentar tipos representativos das fases da evolução humana a partir de outras civilizações além do Ocidente

5.13.                     Em face da crítica, necessária, ao eurocentrismo, apresenta-se de qualquer maneira e com força a seguinte questão: como se pode criar uma ordem humana verdadeiramente universal (ou universalizável)?

5.13.1.   A resposta é tão simples em si mesma quanto direta: o único caminho é por meio da universalização do Positivismo

5.13.2.   Cabe aqui uma observação preliminar: reconhecer, valorizar, incorporar todas as civilizações não implica, nem pode implicar, a tabula rasa uniformizadora multiculturalista

5.13.2.1.          O multiculturalismo entende o mundo como uma colcha de retalhos, em que cada povo, cada civilização, cada sociedade vive em seu espaço específico, cioso de sua particularidade (de sua “identidade”) e procurando manter-se isolado e/ou incólume em relação aos demais

5.13.2.2.          Assim, a colcha de retalhos multiculturalista não resolve nenhum problema; ao contrário, ela estimula as dificuldades

5.13.3.   A constituição de uma verdadeira humanidade exige que os vários povos (e civilizações) modifiquem-se no sentido de constituírem de fato uma única humanidade

5.13.3.1.          Assim, são inviáveis e irracionais as concepções estáticas e/ou que consideram que povos e civilizações não podem e não devem modificar-se

5.13.4.   A abertura para outros povos, além de ser, por si só, uma alteração, também exige que os vários etnocentrismos sejam postos de lado e que haja uma convergência geral de valores, concepções e práticas

5.13.4.1.          A convergência de valores tem que ser, necessariamente, para o humanismo, para o relativismo, para o caráter histórico do ser humano, para a tolerância, para o pacifismo, para a fraternidade universal, para a responsabilidade de indivíduos e povos para com todos e em particular para com os mais fracos à além de muitos outros valores e concepções, todos os quais são afirmados pelo Positivismo e apenas por ele

5.13.5.   É necessário reafirmar com clareza: o ser humano é verdadeiramente universal, no sentido de que tem uma natureza humana universal, que se desenvolve ao longo do tempo conforme as condições sociais específicas

5.13.5.1.          Essa é a concepção fundamental e necessária que permite que a fraternidade universal seja estabelecida e que a Humanidade seja de fato constituída

5.13.5.2.          Sem essa concepção, é impossível a fraternidade universal; sem essa concepção, o que há é opressão ou, no máximo, a colcha de retalhos multiculturalista

5.14.                     Devemos agora seguir adiante para outra questão: se apenas o Positivismo afirma e estabelece as concepções, os valores e as práticas passíveis de universalização, como se dará a ampliação do Positivismo para outras civilizações?

5.14.1.   Augusto Comte comentava, o bom senso indica e as cobranças políticas atuais reforçam: não há porque as demais civilizações reproduzirem a marcha própria ao Ocidente: isso seria mera imitação (servil), desperdiçaria recursos e tempo e produziria imenso sofrimento

5.14.2.   Augusto Comte previa um escalonamento conforme a proximidade intelectual e social com o Ocidente: (1) povos monoteístas (Rússia, Turquia, Pérsia); (2) povos politeístas; (3) povos fetichistas

5.14.3.   Como já indicamos, Augusto Comte afirmava que todos devemos adotar os bons hábitos, usos, costumes e concepções de outras civilizações

5.14.3.1.          Entre os hábitos que devem ser adotados por todas as civilizações (e, claro, em particular pelo Ocidente), ele indicava pelo menos o seguinte:

5.14.3.1.1.                Incorporação do fetichismo ao Positivismo

5.14.3.1.2.                Incorporação de hábitos muçulmanos: restrição ao consumo de álcool; esmolas; orientação das igrejas para Paris

5.14.4.   Augusto Comte previa uma verdadeira unificação moral e intelectual da Humanidade, que apresentaria, como sinais e como condições, o seguinte:

5.14.4.1.          Constantinopla como capital da Terra

5.14.4.2.          Superação da oposição/divisão entre Ocidente e Oriente em face da Humanidade

5.14.4.3.          Adoção de uma língua comum a toda a Humanidade

5.15.                     Para concluir: em suma, o que há, então, de “eurocentrismo” no Positivismo?

5.15.1.   Há o reconhecimento da evidência de que o Ocidente teve a feliz particularidade de adiantar-se na realização da natureza humana – realização que não é igual ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia

5.15.1.1.          Se não tivesse sido o Ocidente no período em que o realizou, teria sido alguma outra civilização, em outro momento

5.15.2.   Augusto Comte também tinha uma enorme preocupação com a educação moral, filosófica, prática do proletariado, para conduzi-lo à sua incorporação social e à sua emancipação

5.15.2.1.          Essa preocupação incluía, evidentemente, o desenvolvimento da afetividade altruísta, das vistas gerais, do sentido histórico e da continuidade, do relativismo, do pacifismo, da fraternidade universal

5.15.2.2.          Essa preocupação foi corporificada, entre outras instituições, na criação da Biblioteca Positivista e no Calendário Concreto

5.15.3.   Reconhecer um certo adiantamento do Ocidente é muito diferente de conceder ao Ocidente (e/ou à Europa) a exclusividade na realização da natureza humana, na produção de idéias, práticas, usos e costumes; também é muito diferente de justificar toda e qualquer de suas ações

5.15.3.1.          O respeito a todas as sociedades e civilizações, bem como a abertura às elaborações de todas elas, são dois imperativos intransponíveis

5.15.4.   Se, quando Augusto Comte escrevia, o Ocidente tinha uma certa primazia, no futuro – aliás, futuro que já se realiza – é necessário afirmar efetivamente a universidade do ser humano: no fundo, o que há é apenas a Humanidade

5.15.4.1.          A universalização implica o respeito e a valorização ativos de todas as sociedades e civilizações

5.15.4.2.          Dessa forma, o eixo moral, intelectual e prático da Humanidade passará do Ocidente, como era até o século XIX, para a própria Humanidade, no futuro

5.15.5.   Essa universalidade foi elaborada inicialmente no Ocidente, mas ela resultará em que o Ocidente deve reconhecer seus limites e colaborar ativa e dignamente com outras sociedades, civilizações e povos

5.15.5.1.          Sem desprezar ou negar as próprias elaborações e contribuições, o Ocidente tem mudar comportamentos, corrigir erros, adotar procedimentos, perspectivas e valores positivos elaborados por outras civilizações

5.15.6.   A crítica ao Positivismo como sendo eurocêntrico afirma, de maneira implícita ou explícita, o seguinte:

5.15.6.1.          Que, apenas devido aos erros do Ocidente, seria aceitável e desejável que o caminho já percorrido pela Humanidade pode ser desprezado e que seria aceitável e desejável refazê-lo todo, para chegar-se ao mesmo ponto em que estamos atualmente

5.15.6.2.          Que seria aceitável e desejável instituir internacionalmente uma colcha de retalhos multiculturalista, como se a justaposição de etnocentrismos fosse uma verdadeira solução para problemas da ordem internacional

6.       Exortações finais

7.       Invocação final

17 setembro 2024

Responsabilidade política

No dia 9 de Shakespeare de 170 (17.9.2024) tivemos nossa prédica positiva, com a leitura comentada do Catecismo positivista (iniciando a décima terceira conferência, dedicada à  tríplice transição ocidental).

Na parte do sermão abordamos a responsabilidade política.

Além disso, antes do sermão, falamos sobre alguns filmes para a cinemateca positivista e também abordamos um livro de Alberto Cupani.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/miPwS) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/dNWrD).

Os tempos da prédica foram os seguintes:

00 min 00 s - início

03 min 28 s - exortações iniciais

16 min 44 s - efemérides

21 min 10 s - cinemateca positivista

46 min 10 s - comentário sobre livro

55 min 09 s - leitura comentada do Catecismo Positivista

1 h 21 min 50 s - sermão

2 h 22 min 10 s - exortações finais

2 h 30 min 04 s - término

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *

Prédica positiva

(9.Shakespeare.170/17.9.2024) 

1.       Início

2.       Exortações iniciais

2.1.    Sejamos altruístas!

2.1.1. De modo específico 1: não sejamos imaturos nem mesquinhos

2.1.2. De modo específico 2: cuidemos do meio ambiente, melhoremos o padrão de consumo, apoiemos a transição energética, combatamos o aquecimento global, as queimadas, o negacionismo climático

2.2.    Façamos orações!

2.3.    Façam o Pix da Positividade! (Chave pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

3.       Efemérides:

3.1.    2 de Shakespeare (10.9): nascimento do nosso correligionário italiano Mattia Caneppele (2004)

3.2.    9 de Shakespeare (17.9): transformação de Rodolfo Paula Lopes (1984)

3.3.    13 de Shakespeare (21.9): nascimento de Luís Lagarrigue (1854)

3.4.    14 de Shakespeare (22.9): início da primavera

4.       Cinemateca positiva

4.1.    Julie e Júlia (EUA, 2009, direção de Nora Ephron)

4.1.1. É um filme que combina comédia romântica com comédia dramática, de maneira muito simpática

4.1.2. Podemos considerá-lo positivista porque apresenta a importância que a história tem para as pessoas; porque indica que a influência subjetiva, após a transformação, por vezes é maior que a influência objetiva; porque indica que essa influência subjetiva pode ser benfazeja e dar sentido (e sentido positivo) à vida das pessoas

4.2.    Sobre Pollyanna

4.2.1. Na semana passada nosso amigo e correligionário Eugênio Macedo perguntou-nos se o livro e filme Poliana poderiam ser enquadrados na Biblioteca e na cinemateca positivista; naquele momento não conseguimos responder, mas agora podemos

4.2.2. O livro Poliana foi escrito em 1913 pela estadunidense Eleanor H. Porter (1868-1920)

4.2.3. A personagem Poliana enfrenta problemas na vida e, para isso, joga o “jogo do contente”, em que, em face de dificuldades, procurava encontrar sempre o lado bom das coisas

4.2.3.1.             Por exemplo: “Uma vez eu tinha pedido bonecas e ganhei muletas. Mas fiquei feliz porque não precisava delas [das muletas]” (citação extraída da Wikipédia)

4.2.4. Em si mesmo, o “jogo do contente” pode ser entendido como uma técnica para manter o bom humor e, no limite, para manter a sanidade quando enfrentamos graves e/ou contínuos problemas na vida

4.2.5. Entretanto, há que se ter muito cuidado com isso, pois com facilidade pode converter-se em uma forma de alienação sistemática

4.2.5.1.             Por exemplo: quando ocorre um acidente de trânsito com ônibus (ou acidente aéreo) e morrem todos menos uma pessoa: no jogo do contente considera-se bom que uma pessoa tenha sobrevivido: por certo que essa vida tem que ser valorizada, mas valorizá-la mais que a morte de todos os outros é uma forma grosseira e mesquinha de alienação

4.2.6. Augusto Comte era contrário a essa forma de alienação, que ele chamava de “otimismo” e que nos dias atuais podemos chamar de “providencialismo teológico”

4.2.6.1.             Uma versão satírica e extremada desse otimismo – que, vale insistir, com enorme facilidade descamba para o providencialismo teológico – foi descrida por Voltaire no livro Cândido, ou o otimismo (de 1759)

4.2.7. Em face disso, o livro e o filme Poliana não se enquadram precisamente no espírito positivo; como dissemos, o otimismo da personagem Poliana aproxima-se mais da alienação providencialista que do verdadeiro espírito positivo

4.2.7.1.             Em contraposição, vale notar que Augusto Comte recomendava a leitura de livros (e a assistência de óperas) que têm conteúdos duríssimos: basta considerarmos as obras de Homero e de Shakespeare

4.2.7.1.1.                   Homero compôs a Ilíada, que não apenas é o relato de uma guerra como, em particular, aborda o episódio da “ira de Aquiles”

4.2.7.1.2.                   Shakespeare compôs peças por vezes belas e leves, como A tempestade e Sonhos de uma noite de verão, mas também peças pesadas, como Otelo, Macbeth e mesmo Romeu e Julieta

5.       Comentário sobre livro

5.1.    Livro Sobre a ciência (https://fil.cfh.ufsc.br/livro-alberto-cupani-sobre-a-ciencia-estudos-de-filosofia-da-ciencia/), de Alberto Cupani (Florianópolis, UFSC, 2023, 2ª ed.)

5.1.1. Esse livro expõe debates e reflexões contemporâneos sobre as ciências

5.1.2. Esse livro tem duas qualidades em particular:

5.1.2.1.             Por um lado, ele é muito didático, ao expor com clareza e ao explicar os debates, as polêmicas etc.

5.1.2.2.             Por outro lado, embora o autor não cite Augusto Comte e embora (repetindo o senso comum academicista) considere que o “positivismo” é o Círculo de Viena e concepções objetivistas, reducionistas etc., o fato é que suas preocupações e suas perspectivas são positivistas ou, pelo menos, são muito próximas a nós

6.       Leitura comentada do Catecismo positivista

6.1.    Início da décima terceira (e última) conferência, dedicada à exposição do desenvolvimento histórico da evolução humana, ou seja, do desenvolvimento da religião, em particular da transição própria ao Ocidente

7.       Sermão: sobre a responsabilidade política

7.1.    O tema de hoje relaciona-se diretamente com o Positivismo e, ao mesmo tempo, com as nossas vidas cívicas, seja no Brasil, seja no mundo: a responsabilidade de nossas ações

7.1.1. O que exporemos são apenas algumas indicações sobre a responsabilidade política e sobre os mecanismos de responsabilização; não temos nenhuma intenção de esgotar o assunto

7.2.    Como veremos, ao tratar das responsabilidades, há algumas confusões que convém desfazer, assim como há separações duras que convém também desfazer

7.2.1. Ao tratarmos das “responsabilidades políticas”, o Positivismo tem clareza que uma coisa são as responsabilidades políticas e outra são as responsabilidades sociais: entretanto, para nós, embora distintas, elas não são (e não podem ser) radicalmente separadas – embora a reflexão sociopolítica atual, muito marcada pelo academicismo, faça questão de separá-las com dureza

7.2.2. De maneira semelhante, no Positivismo reconhecemos que há o âmbito doméstico e o âmbito cívico, assim como há o Estado e a chamada “iniciativa privada”: são distinções importantes que devem ser preservadas e respeitadas; ainda assim, não se pode nem se deve opor de maneira dura e radical esses âmbitos: para o Positivismo, o cívico e o doméstico são complementares, da mesma forma que, como todos trabalhamos para o benefício de todos, devemos considerar que todos somos “servidores públicos”, ou seja, que nossas ações visam ao bem comum

7.2.3. Atualmente, quando se fala em “responsabilidade política”, a preocupação central é com a responsabilização pelas más ações, pelas omissões, pela incompetência – ou seja, o viés é negativo e com um quê de punitivismo –; entretanto, uma teoria sociopolítica verdadeira tem que considerar antes de mais nada e acima de tudo o viés positivo, reservando o viés negativo para uma situação extrema e anormal: o Positivismo adota essa perspectiva e desenvolve sua teoria sociopolítica com essa preocupação

7.3.    Passemos então ao tema das responsabilidades

7.4.    Tudo na vida exige responsabilidade; crescer, amadurecer, virar adulto consiste justamente em assumir responsabilidades

7.4.1. Uma parte importantíssima da ação das famílias consiste, justamente, em preparar os infantes para assumirem responsabilidades, vinculando, assim, a vida doméstica à vida pública

7.4.1.1.             Essa vinculação é afirmada com todas as letras pelo Positivismo

7.4.1.1.1.                   O Positivismo, sendo uma religião positiva, isto é, real, útil, relativa e simpática, é a única religião que estabelece os objetivos da família, que estabelece os objetivos da sociedade cívica e que estabelece as relações mútuas entre ambas (em particular no sentido indicado acima)

7.4.1.2.             Vale notar que, infelizmente, nas últimas décadas, a tendência moral – e comercial! – é no sentido da infantilização dos adultos e da manutenção das pessoas em condições mentais e morais próximas da infância, isto é, em infâncias perpétuas

7.4.1.3.             Nessa tendência, o que se apresenta, ou melhor, o que se vende é a concepção de que uma boa vida é a vida sem responsabilidades

7.4.1.4.             Deveria ser evidente que nenhum país pode manter-se, que dirá desenvolver-se, com a mentalidade infantilizadora que permeia nossas sociedades – o que é agravado pelos seriíssimos problemas que enfrentamos (crise climática, desinformação sistemática, radicalização política, graves conflitos internacionais)

7.5.    Assumir responsabilidades é assumir obrigações; em outras palavras, assumir responsabilidades significa cumprir deveres

7.5.1. Esses deveres são autoimpostos e/ou impostos “externamente” (pelas nossas relações familiares, pelos nossos empregos, pelas nossas profissões, pelas nossas carreiras públicas de modo geral)

7.5.2. Novamente, o Positivismo afirma com clareza: todos nós temos deveres de todos para com todos: viver em sociedade e, ainda mais, viver de maneira altruísta implica necessariamente assumir e cumprir nossos deveres

7.5.3. Vale notar que cumprir nossos deveres não significa não viver com alegria, com satisfação e/ou com leveza; mas, inversamente, significa não entender os deveres, as obrigações, as responsabilidades como ônus, como fardos, como sempre e necessariamente coisas ruins e desagradáveis (e ruins e desagradáveis em particular porque nos obrigam a sair de nossos egoísmos)

7.6.    Por outro lado, assumir responsabilidades também significa “responsabilizar-se por” algo, ou seja, significa assumir os ônus nos casos de problemas com aquilo a nosso cargo

7.6.1. Como sabemos, esse é o sentido habitual de “responsabilizar-se” por algo

7.6.2. Uma possível conseqüência extrema da responsabilização é a eventual destituição do cargo, da função ou, em todo caso, da responsabilidade

7.7.    Vale notar que a responsabilização só pode acontecer quando encaramos as ações como especificamente humanas: o que está acima ou abaixo do ser humano (“deus ou besta”, como dizia Aristóteles) é “irrresponsável”, ou seja, irresponsabilizável

7.7.1. A política e as ações teológicas são indiscutíveis e irresponsáveis – logo, são irresponsabilizáveis

7.7.2. Mas a “soberania popular” e a “vontade popular”, na medida em que estão “sempre certas”, também são irresponsáveis e irresponsabilizáveis: não por acaso, a soberania popular é a corrupção metafísica da “soberania divina” dos reis

7.7.2.1.             Rousseau era muito claro nesse aspecto: a democracia nunca erra, por piores que sejam suas decisões!

7.8.    Na vida política, o tema da responsabilização vincula-se estreitamente à reflexão republicana; isso significa que somente quando se leva a sério o conceito de república é que se pode falar com seriedade em responsabilidades

7.8.1. Uma das formas de levar a sério a república é falar-se em “cidadania” – embora isso seja um caminho meio enviesado, que assume o republicanismo travestindo-o de democracia, ao mesmo tempo em que se finge que a democracia à la Rousseau não é irresponsável e irresponsabilizável

7.8.2. Evidenciar o vínculo entre republicanismo e cidadania pode parecer banal, mas não é

7.8.2.1.             Por um lado, como vimos, a democracia à la Rousseau rejeita a noção de responsabilidade

7.8.2.2.             Por outro lado, o marxismo condena como sendo “burguês” (ou seja, falso, alienante, formalista, hipócrita) o republicanismo e toda a preocupação com a responsabilidade pública

7.8.2.2.1.                   Vale notar que, atualmente, o marxismo acabou aceitando a noção de “cidadania”; mas desde Marx até a derrocada do marxismo soviético em 1989-1991, os marxistas (e, daí, o conjunto da esquerda e dos “progressistas”) rejeitavam o republicanismo e a cidadania como tolices hipócritas, cínicas, formalistas – burguesas, enfim

7.9.    Para que a responsabilização por algo seja possível, são necessárias pelo menos duas condições, uma social e outra institucional:

7.9.1. A condição social é a existência da sociedade civil, em particular da sociedade civil organizada, isto é, com órgãos próprios que expressem as opiniões

7.9.2. A condição institucional é que sejam garantidas as liberdades fundamentais, que são as liberdades de consciência (e de pensamento), de expressão e de associação

7.9.3. Na verdade, Augusto Comte, no Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo, nota que as condições são três e não somente duas: o público (a sociedade civil), o sacerdócio (um órgão de interpretação) e uma doutrina sociopolítica (o Positivismo); adicionalmente, incluímos também as liberdades

7.9.3.1.             O Positivismo é tanto a doutrina quanto o órgão de interpretação e fiscalização; da mesma forma, a existência, a relevância, a autonomia da sociedade civil e das liberdades são afirmadas e defendidas pelos positivistas; por fim, como vimos antes, também defendemos a noção de deveres (e, portanto, de responsabilidades)

7.9.3.2.             Convém notar que as responsabilidades são públicas, ou seja, de todos para com todos, quer sejam do Estado, quer sejam da iniciativa privada, quer sejam da sociedade civil

7.9.4. O Positivismo também afirma outro princípio político fundamental para a responsabilização: trata-se do “viver às claras”

7.9.4.1.             A importância do viver às claras torna-se evidente quando se considera que, sem o que se chama atualmente de “transparência”, é impossível que a sociedade civil acompanhe as ações dos governantes, ou melhor, dos líderes (quer sejam do governo, quer sejam da sociedade civil)

7.10.                     Atualmente a reflexão sobre as responsabilidades políticas assume o nome pomposo, necessariamente em inglês, de “accountability[1]

7.10.1.   A palavra accountability indica a propriedade de ser accountable, ou seja, responsabilizado por algo, de prestar contas por algo

7.10.2.   Na verdade, a concepção da accountability é restrita à responsabilização, pouco preocupada com o exercício das responsabilidades

7.10.2.1.          Há um certo elemento de punitivismo na preocupação da teoria da accountability com a responsabilização: não por acaso, os autores que tratam da accountability reconhecem a origem liberal dessas reflexões

7.10.2.2.          Infelizmente, o exercício efetivo das atividades públicas (governamentais ou não), mesmo quando se emprega o rótulo geral de “república”, é considerado sob a luz do liberalismo, ou seja, não como uma função pública que exige dedicação e seriedade, mas como gastos a serem a todo momento justificados

7.10.3.   Em termos da responsabilização, a accountability considera dois ou três aspectos: (1) o acompanhamento pelo público das ações dos líderes; (2) a imputação de culpa nos casos de fracasso ou má gestão; (3) a imputação de penas àqueles considerados responsáveis

7.10.4.   Por outro lado, reconhecem-se dois ou três mecanismos institucionais gerais para a prática da accountability:

7.10.4.1.          Mecanismos verticais: de cima para baixo, são as eleições

7.10.4.2.          Mecanismos horizontais: são os controles institucionais internos (no caso do Estado brasileiro, são órgãos como o Tribunal de Contas, a Controladoria-Geral da União e até o Ministério Público)

7.10.4.3.          Mecanismos sociais: a fiscalização realizada pela própria sociedade

7.10.5.   É notável que apenas os mecanismos eleitorais e institucionais sejam “classicamente” (isto é, nos últimos 50 anos) considerados; como Rodrigo Horochovski nota, apenas recentemente se passou a levar em consideração os mecanismos sociais – logo esses mecanismos, que são anteriores lógica, social e historicamente aos outros!

7.10.6.   Os mecanismos sociais são os mais claros, na medida em que indicam os critérios e os objetivos das ações e também avaliam o desenvolvimento, os resultados, a eficiência e a eficácia e a moralidade das ações

7.10.6.1.          Não é por acaso que o Positivismo afirma a centralidade dos mecanismos sociais

7.10.7.   Os mecanismos institucionais têm lá sua importância; embora interfiram bastante no desenvolvimento das ações públicas, com freqüência são opacos em seus critérios e seus objetivos

7.10.8.   Já os mecanismos eleitorais são confusos, pois misturam mudanças dos governantes com avaliação de políticas públicas com responsabilização por efeitos e comportamentos; isso tudo além de considerar-se que as eleições são fonte de legitimação e, claro, que “a soberania popular nunca erra”

7.10.8.1.          Vale notar que os liberais dividem-se a respeito dos mecanismos eleitorais e sociais: alguns aferram-se ao formalismo eleitoral desprezando a sociedade civil e seus órgãos; outros desprezam o elemento popular que se manifesta na sociedade e/ou nas eleições

7.10.8.2.          Os mecanismos eleitorais, além de misturarem e confundirem inúmeras questões, apresentam dois graves problemas fundamentais:

7.10.8.2.1.                Travestem questões qualitativas em problemas quantitativos; ou seja, fingem que a qualidade governativa e a responsabilidade social são meras questões de número

7.10.8.2.2.                Transportam para os “representantes” a expressão das opiniões da sociedade, o que na prática desautoriza a sociedade de representar e expressar a si própria com autonomia

7.11.                     Em suma:

7.11.1.   Ao tratarmos das responsabilidades, há algumas confusões correntes, assim como algumas divisões profundas – tanto umas quanto outras o Positivismo recusa

7.11.1.1.          As responsabilidades políticas e as responsabilidades sociais não podem ser separadas de maneira radical e profunda

7.11.1.2.          A noção de responsabilidade não pode limitar-se ao viés negativo e potencialmente punitivista de “responsabilizar-se por”, mas deve considerar, antes, os parâmetros positivos que estabelecem os objetivos, as metas, os critérios da vida social e que definem os deveres de todos para com todos

7.11.2.   O Positivismo afirma com clareza, desde o início, que todos devemos cumprir com seriedade e da melhor maneira possível as nossas obrigações quaisquer: esse é o sentido fundamental de “ter responsabilidade” ou de “ser responsável”

7.11.2.1.          Assim, o Positivismo afirma que todos temos deveres com todos

7.11.3.   O Positivismo também considera que “ter responsabilidade” significa “ser responsabilizado” pelas ações ou pelas omissões, no caso de fracasso, imperícia ou erros

7.11.4.   Para o Positivismo, a “responsabilização” anda em conjunto com o “viver às claras”

7.11.5.   Para o Positivismo, tanto as responsabilidades positivas quanto a responsabilização negativa é feita pela sociedade, por meio de seus órgãos, que estabelece os objetivos das ações e os critérios de avaliação, além de acompanhar a realização dessas ações, eventualmente exigindo a substituição de incompetentes e/ou a punição dos faltosos

8.       Exortações finais

9.       Término da prédica 



[1] Para muito dos comentários sobre a literatura técnica sobre a accountability, baseio-me largamente no artigo de Rodrigo R. Horochovski, “A accountability e seus mecanismos: um balanço teórico” (disponível aqui: https://www.researchgate.net/profile/Rodrigo-Horochovski/publication/359415384_ACCOUNTABILITY_E_SEUS_MECANISMOS_UM_BALANCO_TEORICO/links/623afe32b0cf7d78ec6d55e2/ACCOUNTABILITY-E-SEUS-MECANISMOS-UM-BALANCO-TEORICO.pdf). É importante realçar, entretanto, que me basear é diferente de reproduzir: vários conceitos que apresento são interpretações minhas.

16 setembro 2024

Stephen Fry: cerimônias humanistas

No vídeo abaixo a Associação Humanista Britânica apresenta algumas cerimônias humanistas; como a inspiração e a necessidade de tais cerimônias estão conforme o Positivismo, ou melhor, a Religião da Humanidade, divulgamos o vídeo aqui.

Em termos positivos, tais cerimônias são sacramentos; no caso abaixo, apresentam-se os sacramentos da apresentação, do casamento e da transformação.

É importante divulgar tais práticas para realçar que o humanismo não se limita ao ateísmo, isto é, à negação intelectual da teologia e à negação prática dos cultos teológicos: o humanismo tem que celebrar o ser humano, suas vidas e suas relações; assim, os sacramentos são necessários. Infelizmente, a quase totalidade dos humanistas mantém-se presa à confusão teológica entre "religião" e "teologia", o que confunde a todos e impede, da parte desses humanistas, o desenvolvimento e a difusão dos aspectos humanos da religião - o que, em outras palavras, consiste justamente na Religião da Humanidade.

O vídeo abaixo foi narrado pelo ator e comediante britânico Stephen Fry.

O vídeo também pode ser visto em nosso canal Positivismo (aqui: https://encr.pw/h52DD). 

O original encontra-se disponível aqui: https://acesse.dev/WvxLh.