04 janeiro 2007

Valores republicanos e a estátua de Benjamin Constant


Toda sociedade tem seus símbolos e seus heróis míticos e, apesar do que alguns importantes políticos (e mesmo intelectuais) têm dito, precisamos deles. Muitas vezes esses “heróis”, da maneira como são percebidos, não correspondem aos fatos históricos, mas sua importância reside nos valores que transmitem, ou melhor, nos valores que despertam e atualizam em cada cidadão, em cada membro da sociedade.

A despeito das bobagens que se falou a respeito dos símbolos míticos, durante o século XX no mundo e particularmente a partir da década de 1980 no Brasil, todos precisamos desses “heróis”, pois são eles que nos inspiram, que “dizem” quem somos e quem desejamos ser. É claro que não são os símbolos, os mitos, os heróis que nos “dizem” essas coisas; no fundo, é a sociedade, é o que alguém já chamou de “consciência coletiva” que nos diz tudo isso.

Cada tipo que cultuamos indica traços de nós mesmos; ao vermos certas características em alguns tipos, estamos dizendo que elas são-nos importantes. Por outro lado, a maneira como lidamos com esses símbolos também indica o apreço ou desapreço que temos por alguns valores.

Em uma época em que se descobre que o “mensalão” é uma prática política corrente e semi-institucionalizada; em que o partido que supostamente seria o “bastião da ética” revela-se fraudulento, o tratamento dispensado pela cidade de Curitiba à estátua de Benjamin Constant revela-se pleno de sentido.

Essa estátua homenageia, na principal praça de Curitiba, o fundador da República do Brasil. Ela compõe-se de três níveis: no superior há uma estátua da República, com a imagem mítica de Marianne carregando o pendão nacional; no nível intermediário está uma estátua de corpo inteiro de Benjamin Constant e, na base do monumento, estão altos-relevos dos participantes do movimento fundador da República, juntamente com máximas políticas republicanas: “Ordem e Progresso”, “A sã política é filha da moral e da razão”, “Viver às claras” – todas elas mais ou menos esquecidas e, como não poderia deixar de ser, mais necessárias do que nunca.

Ora, as “críticas históricas” – da direita e da esquerda; dos marxistas, dos liberais e/ou dos católicos, em seus variados matizes – gostam de indicar um caráter golpista da parte de Benjamin Constant ao proclamar a República no alvorecer de 15 de novembro de 1889; ao fazerem-no, procuram desmerecer não apenas o regime então inaugurado (no caso da esquerda, em favor de alguma variante do socialismo), como também seus valores fundamentais (em favor de todos os críticos). Em nome da melhoria das condições de vida do proletariado e de sua incorporação à sociedade, alguns adotam por modelos Che Guevara, Fidel Castro e outros, propondo impor o progresso às custas de qualquer ordem social, sacrificando inclusive a liberdade. Outros, por sua vez, abandonam o proletariado à própria sorte em nome de um liberalismo laissez-faire ou, ainda, combatem o progresso identificando-o ao comunismo. A bem da verdade, o discurso esquerdista – bem como seus símbolos – é o que prevalece hoje, como bem o demonstram os discursos do progresso revolucionário (afinal, “todos temos que ser revolucionários”, não é mesmo?) e da luta de classes (qual escola não ensina, de acordo com os parâmetros (semi-)oficiais, que “o motor da história é a luta de classes”, nas disciplinas de História?), além da mitificação dos seus símbolos (Olga Benário Prestes, Antônio Gramsci e o já citado e onipresente Che Guevara).

Esses valores – que consagram a disputa entre a ordem e o progresso, à direita ou à esquerda – são os mesmos que permitem e justificam que os símbolos fundadores e o projeto da República brasileira sejam mal-preservados e desrespeitados. O projeto de Benjamin Constant era o de unir a ordem ao progresso: não a ordem dos cemitérios ou das baionetas ou mesmo de uma propriedade privada absoluta e irresponsável; nem, por outro lado, o progresso liberticida ou anárquico. Esse projeto era de um regime de liberdades individuais e coletivas, de responsabilidade social (exatamente no sentido que se confere hoje a essa expressão) e de subordinação da política à moral (isto é, de ética pública). O regime proposto, defendido e, enquanto viveu, praticado por Benjamin Constant pautava-se pelas liberdades de discussão e associação, de respeito escrupuloso à coisa pública (“res publica”) e ao bem comum, de permanente abertura ao escrutínio público (e, diga-se de passagem, de não-enriquecimento da parte dos agentes políticos enquanto agentes políticos).

Como dissemos no início deste artigo, a maneira como um povo cuida de seus símbolos revela bem os seus ideais, suas perspectivas e suas esperanças: a estátua de Benjamin Constant em Curitiba é completamente mal-conservada (tanto pela “elite” como pelo “povo”; tanto pela direita quanto pela esquerda): suja, pichada, com excrementos, defecações e fogueiras em sua base; além disso, tem exatamente à sua frente uma luminária e, atrapalhando sua contemplação, copas de árvores mal-aparadas.

O respeito que (não) prestamos à República e aos seus valores não poderia ser mais emblemático.

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