Kuhn
derruba as barreiras entre ciências e humanidades. Augusto Comte não?
Na edição 296 da revista Ciência
Hoje foi publicada a matéria “A queda do muro entre ciências e humanidades”,
referindo-se ao cinqüentenário da publicação original do livro A estrutura das revoluções científicas,
de Thomas Kuhn, em que se apresenta uma interpretação sociológica e histórica
das ciências[1].
Segundo os autores, uma das maiores contribuições desse livro teria sido mostrar
que as ciências naturais são tão sociais e históricas quanto as ciências
humanas e, portanto, seriam possíveis análises (teórica, metodológica e epistemológica)
das ciências naturais de maneira integrada às ciências humanas.
Comemorar os 50 anos de publicação do livro de Thomas Kuhn é
interessante; mas afirmar que ele é importante porque teria “rompido as
barreiras entre as Ciências Humanas e Naturais” é um exagero despropositado –
e, pior, ignorante e preconceituoso. (Deixando de lado, é claro, os inúmeros
problemas e inconsistências teóricos da obra de Kuhn. Mas isso não vem ao
caso.)
A integração entre Ciências Humanas e Naturais ocorreu precisamente ao mesmo tempo em que a Sociologia e a História das Ciências surgiram – ou seja, quando Augusto Comte, pai do Positivismo, criava a Sociologia de uma perspectiva histórica e concentrava grande atenção no desenvolvimento histórico das ciências, vistas como produto social.
A obra mais conhecida de Comte – e, no Brasil, mais ou menos a única que se conhece, embora reduzida aos dois primeiros capítulos[2] –, o Sistema de filosofia positiva (1830-1842) tratou de realizar uma avaliação geral dos principais resultados teóricos e metodológicos das várias ciências, a fim de elaborar as bases teóricas e metodológicas da Sociologia.
Já no Sistema de política positiva (1851-1854), especialmente em seus volumes I e III (respectivamente, de 1851 e 1853), Comte dedicou-se a insistir no caráter social e histórico das ciências (naturais e humanas), investigando como os ambientes sociais facilitaram (ou dificultaram) suas constituições. Aliás, muito mais do que isso, Comte nessa obra adotou uma perspectiva radicalmente relativa, humana e histórica – em termos atuais: transdisciplinar – a fim de examinar como cada ciência contribui para o ser humano e para a sociedade. Essa perspectiva é o que ele chamava de “método subjetivo”.
Na verdade, o método subjetivo ia ainda mais fundo, afirmando que é necessário à ciência (e à política) reconhecer o valor lógico e teórico das artes (geralmente chamadas também de “humanidades”). Nesse sentido, por exemplo, Comte afirmava que se deve ampliar o conceito de “lógica”, deixando de restringi-lo à lógica matemática (a lógica dedutiva, chamada por ele de “lógica dos sinais”), para incorporar também a lógica das emoções e a lógica das imagens. “Lógica”, nesse sentido, significa formas gerais de o ser humano entender (i. e., observar, compreender e falar a respeito de) a realidade.
Entretanto, a filosofia criada por A. Comte chama-se “Positivismo”, cuja fortuna crítica posterior modificou radicalmente o sentido originalmente concedido pelo pensador francês. Além disso, o valor dessa palavra alterou-se bastante ao longo do tempo, passando de favorável a negativo. Os preconceitos contrários ao “Positivismo”, que abrangem a obra de Comte por pura metonímia, são amplamente compartilhados pelas Ciências Humanas desde há várias décadas, incluindo aí os profissionais da História das Ciências e da Filosofia das Ciências.
Historiadores da ciência que desconhecem a obra de Comte – que precedeu em muito mais de um século a obra de Kuhn – demonstram, portanto, não apenas ignorância da história da ciência, como preconceito: afinal, como é senso comum, “todos” “sabem” que o “Positivismo” é “cientificista”, anistórico e objetivista. Pena que ninguém lê A. Comte e todos repetem: “não li e não gostei”.
[1] “A queda do muro entre
ciências e humanidades”, publicada em Ciência
Hoje (São Paulo, v. 50, n. 296, p. 74-75, set.). Disponível em: http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/2012/296/a-queda-do-muro-entre-ciencias-e-humanidades.
Acesso em: 7.jan.2013.
[2] Convém notar que apenas 5%
da obra de Comte estão traduzidos para o português, o que é altamente
sintomático dos problemas indicados acima.
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