O texto abaixo corresponde a uma carta que escrevi aos autores da coleção "Breve história da ciência moderna", referente aos comentários que eles fizeram no volume 4 dessa coleção, intitulado "A belle-époque da ciência (século XIX)".
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Caros Marco Braga, Andréia Guerra e José Cláudio Reis:
Li o seu recém-lançado livro sobre a história da ciência, volume 4, correspondente ao século XIX. O que me interessou nele foi a referência a Augusto Comte e ao Positivismo.
Considerando que a coleção que vocês escrevem é didática e de introdução à ciência e à história da ciência, não faz muito sentido dedicar páginas demais a cada escola ou corrente; além disso, o resumo que vocês fizeram da obra de Comte foi correto, embora bastante tradicional.
Todavia, tenho algumas observações sobre seus comentários no último parágrafo do capítulo dedicado ao Positivismo, em que vocês afirmam que o ideal de estudar cada ciência a partir dos mais recentes avanços é comtiano, desprezando, assim, a história da(s) ciência(s) em nome de alguma coisa como uma "pureza" científica e antimetafísica:
1. pura e simplesmente, Augusto Comte foi o fundador não somente da Sociologia (pelo que ele é mais conhecido), como, principalmente para o presente objetivo, da História das Ciências. TODA a obra de Comte é uma afirmação da inalienável importância do estudo da história das ciências para a compreensão de cada ciência em particular e das formas de pensamento humano em geral.
1.1. Na verdade, pode-se ler logo no início de uma das poucas obras comtianas vertidas para o português a afirmação segundo a qual "só se entende verdadeiramente um conceito se se conhece a história desse conceito".
1.2. Afirmando a importância da história das ciências, ele propôs ao governo francês, no início da década de 1830, a criação de tal disciplina na Sorbonne ou no Collège de France - proposta que foi rejeitada por Guizot, sob a justificativa de que seria inoportuno politicamente - isto é, poderia esclarecer o povo e causar transtornos.
1.3. O curso de História das Ciências só foi aceito e reconhecido na III República, proclamada em 1870.
1.3.1. A III República teve grande influência do Positivismo comtiano, como se pode perceber na ação de Léon Gambetta e de Jules Ferry, além dos republicanos dreyfusistas.
1.3.2. A cadeira de História das Ciências foi criada em 1892 e ocupada pelo discípulo direto de Comte, Pierre Laffitte, de acordo com o planejamento comtiano (cf. http://www.college-de-france.fr/media/lis_prf/UPL45507_LISTE_DES_PROFESSEURS.pdf).
1.4. Durante mais de 25 anos Comte ministrou um curso popular, gratuito, de Astronomia. Esse curso era sem dúvida teórico, mas fortemente histórico.
1.5. Na relação de livros que Augusto Comte recomendava aos positivistas do século XIX para terem uma instrução moral, política, científica e artística, ele incluía, por exemplo, a "História da Astronomia", de Adam Smith, como tendo um caráter exemplar para o estudo da humanidade.
2. Face ao exposto acima - facilmente comprovável em qualquer obra de Augusto Comte -, eu não sei de onde vocês tiraram uma tal afirmação.
2.1. Essa afirmação parece ser o tipo de repetição de outras fontes, que repetem outras fontes, que repetem outras fontes - e assim sucessivamente, sem que se determine a referência original. Nada menos científico; nada mais imbuído de preconceitos.
2.1.1. A referência primeira desse preconceito, evidentemente, estava ou está imbuída de má-fé; os seus repetidores, idem.
2.2. Comte afirmava com todas as letras que a melhor maneira de combater a metafísica - e, claro, antes disso, também a teologia - era precisamente estudar as ciências e suas histórias.
3. Os positivistas jamais foram favoráveis a "manuais", no sentido das atuais apostilas, para o ensino das ciências.
3.1. A proposta de ensino das ciências por meio de apostilas, como se isso fosse suficiente para entender a ciência, se foi devida a algum "positivismo", deve ser procurada nos adeptos do Círculo de Viena, não em Comte.
3.1.1. Como vocês são historiadores da ciência, não parece necessário reafirmar que não há relações entre Comte e o Círculo de Viena, exceto no que se refere à rejeição da metafísica.
3.2. É de esperar-se que não haverá nenhuma referência desse tipo no volume 5 da coleção.
4. O estudo histórico e teórico das ciências, para Comte, era uma forma de humanização do ser humano, no duplo sentido de 1) afastar-se tanto da teologia quanto da metafísica e aproximar-se da positividade e 2) de tornar-se mais "positivo", conforme definido no "Apelos aos conservadores" (real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático).
4.1. Em outras palavras, estudar a história das ciências integrava o projeto religioso de Comte.
5. Uma das coisas que mais espanta nessa afirmação é o fato de vocês serem cariocas.
5.1. No Rio de Janeiro há a Igreja Positivista do Brasil e numerosos positivistas, que poderiam elucidar, comentar e explicar o ponto em questão.
5.2. Vocês são professores do Colégio D. Pedro II. Pois bem: foi professor de Química nesse colégio, com orgulho e por muitas e muitas décadas, o sr. Rubem Descartes de Garcia Paula. O sr. Rubem Descartes era um dos mais ativos positivistas. O comentário em questão não faz justiça nem a ele nem à escola em que vocês lecionam.
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