10 junho 2025

Monitor Mercantil: Parlamento e jornalismo, intrigas e fofocas

No dia 9 de junho o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o meu artigo "Parlamento e jornalismo, intrigas e fofocas".

A versão do jornal está disponível aqui.

Reproduzimos abaixo o texto.

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Parlamento e jornalismo, intrigas e fofocas

Jornalismo reduz política às fofocas em associação com financismo 

Por Gustavo Biscaia de Lacerda

TV digital aberta (foto de Valter Campanato, ABr)

Considera-se, de modo geral, que jornalismo e política devem andar juntos e que tanto cada um deles, em particular, quanto sua união são virtuosos. Entretanto, essas concepções são altamente discutíveis e, com frequência, equivocadas.

A princípio, não há o que discutir a respeito da importância da política. Ela é importante porque organiza a vida coletiva; gostemos ou não, queiramos ou não, todos estamos sob a influência necessária da atividade política. Mas a submissão necessária à política gera, amiúde, confusões práticas e teóricas, nas quais se considera que “tudo é política”, ou seja, que tudo se reduz à disputa de poder.

Por mais importante que seja a política, a sociedade não se reduz a ela: os aspectos filosóficos, culturais e morais regulam, moldam e orientam a política; já os aspectos materiais sempre exercem sua pressão. O resultado é que a política molda, mas também é moldada.

Mas há várias maneiras de entender a política; em inglês, distingue-se a politics (a política do dia a dia), a polity (a estrutura sociopolítica geral, que alguns traduzem como “constituição”) e a policy (cada uma das políticas públicas). A disputa de poder corresponde à politics, ao passo que as policies e, ainda mais, a polity exigem consensos, convergências, legitimidade e aceitação de regras. Claro que a politics influencia a polity e as policies, mas confundir uma coisa com as outras, reduzir a polity à politics, é um grave erro, resultando apenas em cinismo e violência.


Passemos ao jornalismo. Sua missão básica é informar os acontecimentos; assim, há vários tipos de jornalismo: investigativo, científico, econômico, de amenidades etc. Mas talvez o mais famoso e prestigiado seja o político. O jornalismo político dedica-se a narrar o dia a dia da política: ele se concentra na politics. Como as policies e a polity são de longo prazo e conceituais, elas são “chatas”, desinteressantes e não recebem atenção jornalística.

A preferência jornalística pela politics e a rejeição da polity-policy têm várias consequências. Uma primeira é a concentração das coberturas na atividade parlamentar; uma segunda é a defesa (implícita ou explícita) da atividade dos parlamentares contra o governo. A política do dia a dia é das disputas, das briguinhas, dos ciúmes, das intrigas… Com frequência, isso recebe o título edulcorado de “negociações”, mas essa é apenas uma forma empolada de referir-se ao que costuma ser apenas mesquinhez.

O jornalismo especializado em intrigas e mesquinhez não é outra coisa senão fofoca. Como as intrigas são incessantes, mas despertam interesse e paixões, os fofoqueiros têm prestígio e legitimam a concepção de que as fofocas que noticiam (“repercutem”) são a “verdadeira” política. Claro que os políticos — ou melhor, os parlamentares — saem ganhando com isso, obtendo exposição pública e sendo apresentados como “ativos”, “representativos” etc.

Esse é um sistema que se retroalimenta, em que os parlamentares (especialmente no parlamentarismo) e os jornalistas beneficiam-se mutuamente: as intrigas mesquinhas são vendidas como a verdadeira política, e as fofocas parlamentares são vendidas como verdadeiras notícias. Esses dois blocos falam em causa própria e apoiam-se mutuamente, de maneira altissonante ou até estridente; com isso, as fofocas são apresentadas como a opinião pública, e as intrigas, como a manifestação do bem comum.

Tudo isso é péssimo. Para piorar, no Brasil, o jornalismo econômico não se preocupa em informar, mas atua ativa e conscientemente como porta-voz do liberalismo econômico, isto é, de elites financistas internacionais que não querem a regulação do capital nem sua taxação e, para isso, impõem as concepções de Estado mínimo, de iniciativa privada “eficiente” e de servidores públicos incompetentes. É fácil ver que o jornalismo de fofocas é convergente com os porta-vozes do financismo internacional.

Augusto Comte, o fundador da Sociologia, já criticava e denunciava, no século 19, essa união entre o jornalismo de fofocas e a política parlamentarista — que, devemos repetir, finge ser a opinião pública e despreza a política como projeto social amplo. Desgraçadamente, o que o fundador do Positivismo criticava já em 1824 corresponde à realidade brasileira atual.

O que se vê nos grandes jornais do país é exatamente a fofoca parlamentar vendida como jornalismo político e as intrigas parlamentares vendidas como grande política. Esse vínculo é camuflado pelas críticas reiteradas que se fazem à “falta de habilidade” do presidente Lula para “negociar” com o Congresso Nacional: o parlamento é fortemente reacionário e assustadoramente corporativista, duas características que foram estimuladas pelo governo anterior em sua busca dupla de dar um golpe de Estado e de evitar o impedimento.

Claro que o viés conservador do atual parlamento torna-o mais reticente às propostas do governo; mas os recursos que a Constituição Federal de 1988 legou ao presidente da República sempre bastaram para acomodar ou contornar dificuldades ideológicas. Entretanto, desde 2019 — na verdade, desde antes, desde 2016 —, o Congresso Nacional aprofundou cada vez mais o seu caráter clientelista, corporativista e — não há como evitar — parasitário, cobrando um preço cada vez maior para manter um simulacro de “governabilidade”. Esse parasitismo, associado ao golpismo/anti-impedimento, encontrou seu paroxismo no aberrante “orçamento secreto”.

Uma característica notável do atual governo Lula é sua moderação; seu lema de campanha — “União e reconstrução” — dá a exata medida das necessidades atuais do país e evidencia o aspecto profundamente republicano de sua proposta. Sendo bem direto, essa é uma proposta de um verdadeiro estadista. É claro que Lula não é perfeito e que as mais diversas críticas podem ser feitas contra ele, como a respeito da política identitária, com suas cotas divisionistas, e das ambiguidades em relação à Rússia e à China; mas, no conjunto, o governo está na direção certa e adota as medidas urgentes e necessárias para o desenvolvimento social e econômico do país.

Se está na direção certa, o que dificulta a ação de Lula? Basta bom senso e honestidade para perceber que é o parlamento parasitário, que é mesquinho, impede o desenvolvimento nacional, trai a confiança do governo e protege — senão estimula — o golpismo fascista. Por seu turno, o jornalismo político, reduzindo a política às fofocas e em associação com os porta-vozes do financismo internacionalista, finge que tudo isso não é uma agressiva chantagem nem o bloqueio de um programa social e político verdadeiramente republicano.

Não há país que vá para frente nessas condições. Mas também não há soluções simples: é necessário evitar — ou combater — a demagogia extremista (atualmente na versão fascista) e as fake news, que correspondem às versões extremas e irmanadas do parlamento parasitário e do jornalismo de fofocas. O caminho é longo.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

08 junho 2025

Textos e documentos disponíveis na internet

Estão disponíveis no repositório eletrônico Internet Archive diversos documentos e textos positivistas.





- Cartão de celebração do sesquicentenário de Clotilde de Vaux (português): https://archive.org/details/cartao-maximas-de-clotilde

- Décio Villares: A Humanidade com o futuro em seu colo (português): https://archive.org/details/decio-vilares-a-humanidade-catecismo-positivista

- Henrique Batista da Silva Oliveira: Esquema da Sociologia de Augusto Comte (português): https://archive.org/details/henrique-b.-s.-oliveira-esquema-da-sociologia-comtiana

- Luís Lagarrigue: Indústria da guerra, indústria da paz (espanhol): https://archive.org/details/luis-lagarrigue-industria-da-guerra-industria-da-paz-1943

- Luís Lagarrigue: O nacionalismo (português): https://archive.org/details/luis-lagarrigue-o-nacionalismo-1950

- Luís Lagarrigue: Supressão das castas na transição ocidental (espanhol): https://archive.org/details/luis-lagarrigue-supressao-das-castas-na-transicao-ocidental-1943

- Norton Demaria Boiteux: Centenário subjetivo de Elisa Mercoeur (português/francês): https://archive.org/details/norton-demaria-boiteux-centenario-de-elisa-mercoeur-1936

- Paulo Estevão Berredo Carneiro: Augusto Comte e Brasil (francês): https://archive.org/details/paulo-carneiro-augusto-comte-e-o-brasil


05 junho 2025

Valter Duarte Ferreira: "Economia, obstáculo epistemológico"

No dia 15 de São Paulo de 171 (4 de junho de 2025) realizamos uma Live AOP com o cientista político e professor Dr. Valter Duarte Ferreira Filho (UERJ e UFRJ), que fez a exposição "Economia: obstáculo epistemológico", tratando das origens filosóficas, políticas e sociais do que se chama de "economia".

Essa Live AOP, como de hábito, foi transmitida exclusivamente no canal Positivismo e está disponível aqui: https://youtube.com/live/VnRZqumyAFw.



As idéias apresentadas também podem ser lidas no livro de mesmo título, disponível na Editora da UERJ: https://eduerj.com/produto/economia-obstaculo-epistemologico-estudo-das-raizes-politicas-e-religiosas-do-imaginario-liberal/
Além disso, o Prof. Valter mantém um canal no Youtube, disponível aqui: https://www.youtube.com/channel/UCsWfjyhs2nhgtrW1KMuxlww.

Por fiim, o Prof. Valter sugeriu a leitura de dois livros do pesquisador Daniel Kosinski, que seguem a inspiração teórica das concepções defendidas no livro "Economia: obstáculo epistemológico"; esses livros de Daniel Kosinski são estes:


03 junho 2025

Prédica positiva (14.São Paulo.171/3.6.2025)

No dia 14 de São Paulo de 171 (3.6.2025) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Apelo aos conservadores (em sua Primeira Parte, consagrada à "doutrina apropriada aos verdadeiros conservadores").

Antes da leitura comentada, abordamos rapidamente o volume de Ramiro Marques, O livro das virtudes de sempre.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui) e Igreja Positivista Virtual (aqui e aqui).

Devido a problemas na conexão da internet, a transmissão via Youtube foi interrompida logo após a metade e restabelecida em seguida. A versão indicada acima é a que se realizou via Facebook.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

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Prédica simples

(14 de São Paulo de 171/3.6.2025) 

1.      Abertura

2.      Exortações iniciais

2.1.   Sejamos altruístas!

2.2.   Façamos orações!

2.3.   Como somos uma igreja, ministramos os sacramentos: quem tiver interesse, entre em contato conosco!

2.4.   Precisamos de sua ajuda; há várias maneiras para isso:

2.4.1.     Divulgação, arte, edição de vídeos e livros! Entre em contato conosco!

2.4.2.     Façam o Pix da Positividade! (Chave pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

3.      Datas e celebrações:

3.1.   Dia 15 de São Paulo (4.6): Live AOP com Valter Duarte Ferreira Fº: “Economia, obstáculo epistemológico”

4.      Sobre o volume O livro das virtudes de sempre, de Ramiro Marques (São Paulo, Landy, 2001)

4.1.    O autor era um pedagogo português, professor de ética e filosofia moral, viveu entre 1955 e 2023

4.1.1.     Lamentavelmente, como era português nós, no Brasil, não o conhecíamos (afinal, fazemos questão de ignorar e desprezar a realidade portuguesa, no que também lamentavelmente há uma reciprocidade do outro lado do Atlântico); apesar disso, ele desenvolveu uma importante carreira interna e externa (como se pode ver aqui)

4.2.   O livro aborda a ética de Aristóteles, apresentando-a como real, útil e prática – e adequada e necessária para os dias de hoje

4.2.1.     O argumento centra-se na concepção de “virtude”, que é a realização do bom e que se encontra no meio de dois vícios opostos (geralmente, a falta e o excesso de algum comportamento)

4.2.2.     A abordagem do autor tem, entre outras, duas grandes qualidades: (1) aborda o conjunto das obras éticas de Aristóteles (ele relaciona quatro, no total) e (2) ele não degrada Aristóteles ao reduzi-lo a Platão (como fez Giovanni Reale, em seu Introduçãoa Aristóteles (Rio de Janeiro, Contraponto, 2012))

4.3.   Parece-me que vale a pena citar esse livro devido a diversos motivos:

4.3.1.     Em primeiro lugar, as reflexões ético-morais de Aristóteles são extremamente próximas das de Augusto Comte; não por acaso, nosso mestre nomeou o mês da filosofia antiga (o terceiro mês do ano) com Aristóteles e incluiu dois livros do estagirita na Biblioteca Positivista (a Ética Nicomaquéia e a Política)

4.3.1.1.           Em particular, apesar dos fortes elementos teológico-metafísicos, a ética aristotélica é profundamente humana, realista e direcionada para a vida em comum (especialmente a vida cívica)

4.3.2.     Em segundo lugar, desde o final do século XIX o Ocidente vive marcado pelas reflexões ético-filosóficas e clínicas profundamente metafísicas e obscuras de Freud e de Nietzsche, que tinham concepções profundamente negativas e destruidoras do ser humano

4.3.2.1.           A esses dois deve-se juntar também Marx, compondo um trio de pensadores que exerceu as mais danosas influências filosóficas, sociais e políticas sobre o Ocidente, conduzindo a perspectivas negativas, contrárias à esperança, ao progresso, à fraternidade, à harmonia, favoráveis ao conflito, à disputa, à desesperança

4.3.2.2.           Freud, em particular, defendia uma concepção de ser humano como sempre doente, sempre problemático, dependente de “terapias” que exigem dedicação permanente (vários dias por semana), duram a vida inteira e, portanto, não curam nem resolvem nada, exceto a conta corrente dos psicanalistas

4.3.2.3.           A reafirmação da ética aristotélica – que, como indicamos, é largamente compartilhada pelo Positivismo – oferece um sopro de esperança e bom senso na reflexão ético-moral dos indivíduos e das sociedades, afirmando a possibilidade e a necessidade de reflexão e condução autônoma do comportamento, com vistas tanto à felicidade individual quanto ao bem comum

4.3.3.     Em terceiro lugar, embora no âmbito das nossas prédicas isto não tenha tanta importância, o livro foi escrito também com a preocupação de orientar os professores em sala de aula que desejem ou que tenham que abordar reflexões éticas, sejam em disciplinas específicas, seja de maneira “transversal”

4.4.   Todavia, apesar dessas qualidades, convém notar que a abordagem do autor apresenta alguns graves defeitos filosóficos de fundo, nomeadamente a crença em concepções absolutas e, daí, tanto a rejeição do relativismo quanto o gravíssimo equívoco de que o relativismo consiste na ausência de parâmetros

4.4.1.     Esses defeitos filosóficos do autor vinculam-se a concepções teológicas (católicas, em particular); mas, felizmente, elas têm um aspecto um tanto secundário no conjunto do livro e não afetam a competente exposição do pensamento de Aristóteles

5.      Leitura comentada do Apelo aos conservadores

5.1.   Antes de mais nada, devemos recordar algumas considerações sobre o Apelo:

5.1.1.     O Apelo é um manifesto político e dirige-se não a quaisquer pessoas ou grupos, mas a um grupo específico: são os líderes políticos e industriais que tendem para a defesa da ordem (e que tendem para a defesa da ordem até mesmo devido à sua atuação como líderes políticos e industriais), mas que, ao mesmo tempo, reconhecem a necessidade do progresso (a começar pela república): são esses os “conservadores” a que Augusto Comte apela

5.1.1.1.           O Apelo, portanto, adota uma linguagem e um formato adequados ao público a que se dirige

5.1.1.2.           Empregamos a expressão “líderes industriais” no lugar de “líderes econômicos”, por ser mais específica e mais adequada ao Positivismo: a “sociedade industrial” não se refere às manufaturas, mas à atividade pacífica, construtiva, colaborativa, oposta à guerra

5.2.   Uma versão digitalizada da tradução brasileira desse livro, feita por Miguel Lemos e publicada em 1899, está disponível no Internet Archive: https://archive.org/details/augustocomteapeloaosconservadores

5.3.   O capítulo em que estamos é a “Primeira parte”, cujo subtítulo é “Doutrina apropriada aos verdadeiros conservadores”

5.4.   Passemos, então, à leitura comentada do Apelo aos conservadores!

6.      Exortações finais

6.1.   Sejamos altruístas!

6.2.   Façamos orações!

6.3.   Como somos uma igreja, ministramos os sacramentos: quem tiver interesse, entre em contato conosco!

6.4.   Precisamos de sua ajuda; há várias maneiras para isso:

6.4.1.     Divulgação, arte, edição de vídeos e livros! Entre em contato conosco!

6.4.2.     Façam o Pix da Positividade! (Chave pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

7.      Término da prédica

 

Referências

- Augusto Comte (port.), Apelo aos conservadores (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898): https://archive.org/details/augustocomteapeloaosconservadores.

- Augusto Comte (port.), Catecismo positivista (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 4ª ed., 1934).

Giovanni Reale (port.), Introdução a Aristóteles (Rio de Janeiro, Contraponto, 2012).

Ramiro Marques (port.), O livro das virtudes de sempre (São Paulo, Landy, 2001).

Diálogo sobre a morte como transformação


O diálogo abaixo ocorreu em um grupo do Whattsapp dedicado ao estudo e à difusão do Positivismo, isto é, da Religião da Humanidade, nos dias 2 e 3 de junho de 2025. Como se pode ver pela pergunta inicial, o tema era o conceito positivo de morte como “transformação”. Essa pergunta inicial, por inúmeros motivos, é interessante e pode ser elaborada por muitas pessoas: por esse motivo, consideramos que esse diálogo vale a pena ser divulgado.

Para manter a privacidade do inquiridor, suprimimos seu nome; além disso, acrescentamos vários comentários, para a resposta ser um pouco mais completa e didática; por fim, editamos um pouco a resposta para fins de divulgação. 

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Pergunta

O termo “transformação” para se referir à morte no Positivismo vem da famosa frase de Lavoisier: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”?

 

Gustavo

Essa é uma boa pergunta, que permite muitas reflexões.

Antes de mais nada, é necessário rejeitar vigorosamente o fisicalismo – ou seja, o materialismo físico-químico – implícito nessa pergunta. Já veremos o que isso quer dizer e como aplicar esse princípio geral.

Quando o Positivismo, ou melhor, a Religião da Humanidade afirma que a morte de um ser humano deve ser chamada de “transformação”, a idéia é que a morte não é um fim absoluto, como querem o materialismo e mesmo muitas versões do espiritualismo. Quando uma pessoa morre, encerra-se para essa pessoa o fenômeno biológico da vida; ou seja, as trocas contínuas entre o corpo e o ambiente, que mantêm o equilíbrio interno.

De maneira bem didática, a vida pode ser entendida como andar de bicicleta: só mantemos o equilíbrio enquanto estamos andando, enquanto estamos em movimento; o próprio movimento cria as condições para que a bicicleta mantenha-se equilibrada e em movimento. Quando a bicicleta está parada, não há condições de manter-se o equilíbrio, embora a própria bicicleta e o ambiente continuem existindo.

Quando uma pessoa morre, as trocas contínuas entre o organismo e o ambiente cessam e o equilíbrio interno deixa de existir. A bem da verdade, continuam ocorrendo trocas entre o corpo morto e o ambiente, mas não mais no sentido da manutenção de um equilíbrio interno, mas da decomposição do corpo.

Em termos biológicos, a vida pode ser entendida da forma acima. Mas em termos sociológicos e morais, a vida é algo diferente, que se baseia na realidade biológica mas que assume um aspecto bem diferente. A noção de trocas contínuas permanece, mas elas passam a ocorrer de maneira compartilhada e em termos objetivos e subjetivos. Na verdade, o compartilhamento das trocas objetivas e subjetivas é algo que se manifesta já nos animais superiores, ou seja, especialmente nas aves e nos mamíferos, e que se realiza em sua plenitude com o ser humano. (A Biologia, assim, é preparatória para a Sociologia e a Moral.)

No caso do ser humano, esse aspecto de vida objetiva-subjetiva compartilhada assume uma característica ainda mais marcada: não há propriamente indivíduos, apenas a Humanidade; embora a Humanidade só possa existir e agir por meio dos indivíduos, estes só se realizam por meio da Humanidade. Nos termos de nosso mestre, no fundo os indivíduos são uma abstração, ao mesmo tempo em que valem as palavras de Dante: a Humanidade é “filha de seu filho”.

Enquanto os indivíduos – que, para terem de fato orientação, sentido e dignidade na vida, devem ser vistos e devem entender-se como servidores da Humanidade – vivem e morrem, a Humanidade permanece e desenvolve-se com o passar tempo. Dessa forma, se a vida humana é compartilhada, é objetiva e subjetiva, se só somos o que somos, se só podemos ser o que somos na e pela Humanidade, tem de fato algum sentido dizer que a morte dos indivíduos é um encerramento absoluto?

A vida objetiva-subjetiva compartilhada significa que todos atuamos de maneira “concreta” (objetivamente) e, necessariamente, também de maneira “abstrata”, isto é, moral e intelectual (subjetivamente: afetiva, filosófica, artística). Quando alguém morre, sua atividade objetiva termina; mas sua influência permanece, seja a influência subjetiva, seja também a influência objetiva.

Então, quando alguém morre, a carne morre, mas a influência dessa pessoa não deixa de ocorrer. Se a memória permanece e se os entes que morreram continuam exercendo influência sobre nós, como é que se pode dizer que a morte é de fato um fim absoluto? O que há, portanto, é uma transformação, da vida objetiva-subjetiva para a vida plenamente subjetiva. É isso que queremos dizer com “transformação”.

Por outro lado, muitas concepções espiritualistas consideram que existe algo chamado “alma”, algo que de fato é indefinível e incompreensível; a alma seria um fantasma, ou uma fumaça, ou – como diversas teologias sugerem – um sopro, que por obra da divindade insere-se no corpo e dá-lhe vida e movimento[1]. Nessas concepções, o corpo é como que uma casca que é habitada por tal sopro, ou melhor, pela alma; é a alma que dá vida ao corpo.

Para as concepções teológicas, com a morte, isto é, com a morte da carne, a alma abandona o corpo, havendo plenamente uma dissociação. A morte aí é definitiva; a carne apodrece e nada mais resta da pessoa; o que seria a sua essência – a alma – abandona a carne e vai para algum lugar (o além) em uma existência que seria mais “verdadeira”. Há aí uma confusão entre o objetivo e o subjetivo; essa confusão é em parte ingênua, é em parte generosa (altruísta), mas em parte também é profundamente interessada (ou seja, egoísta): trata-se por um lado de desejar que os nossos entes queridos continuem existindo, ou vivendo, e, por outro lado, trata-se também do nosso próprio desejo de nunca morrermos. Qualquer que seja a motivação, a confusão entre o objetivo e o subjetivo consiste em atribuir realidade objetiva à concepção teológica e totalmente fictícia de alma; em conseqüência disso, trata-se também de atribuir existência objetiva ao “outro mundo” (cujas realidade e característica são total e necessariamente ignoradas). A concepção teológica de alma (bem como a de “além”) é totalmente subjetiva; mas atribui-se a ela uma realidade objetiva: a dificuldade toda está em desfazer essa confusão e entender o que é e como se relacionam entre si cada um desses elementos e desses âmbitos.

Vale notar que a noção teológica de alma, portanto, é a origem do famoso dualismo mente-corpo, que tantos problemas filosóficos, morais e práticos produz até os dias de hoje. Essa concepção, aliás, é atribuída a Descartes, pela qual ele é um tanto injustamente criticado: na verdade, ele só deu uma roupagem metafísica a uma concepção que na verdade é plenamente teológica.

A concepção positiva de alma rejeita a noção do sopro divino e, portanto, rejeita a dualidade corpo-alma: a concepção positiva de alma considera-a como sendo o próprio corpo, estando localizada no cérebro. Nos termos de Augusto Comte, a alma consiste no conjunto das funções cerebrais; se a alma pode ter alguma objetividade, é apenas essa.

Ainda assim, isso não encerra a questão. Se a alma é estritamente individual (e, na concepção teológica, ela é radicalmente individual), como indicamos antes a existência humana é compartilhada – e compartilhada em termos objetivos e subjetivos. Quando alguém morre, em termos positivos não se pode falar em “alma”, mas é correto e necessário falar em memória, recordação, influência... é a subjetividade atuando plenamente aí.

A Religião da Humanidade concede um peso muito grande à influência subjetiva dos servidores da Humanidade; a noção de memória não ilustra bem esse peso, pois ela é meio passiva e meio fraca; já a influência subjetiva dos mortos pode ser dispersa, mas ela tem um aspecto bastante ativo e, portanto, bastante intenso. Na verdade, embora a Humanidade só possa existir concretamente por meio dos seres humanos vivos, a atuação da Humanidade ocorre cada vez mais, sempre e necessariamente, devido à influência, devido ao peso crescente que os mortos têm sobre os vivos (e também sobre os que ainda não nasceram); é por isso que o Positivismo faz questão de afirmar e realizar o culto aos mortos e é isso que significa a famosa e bela frase de nosso mestre, “Os vivos são sempre e cada vez mais, necessariamente, governados pelos mortos”.

Considerando tudo isso, para nós – que rejeitamos tanto as ficções teológico-metafísicas quanto o materialismo cientificista –, quando alguém morre não há separação de diferentes tipos de matéria (ou de essências); o que ocorre é, objetivamente, o fim das trocas que chamamos de vida e, subjetivamente, a afirmação da influência do morto sobre nós. É por isso que, ao tratarmos da morte, falamos mais propriamente em “transformação”.

No final das contas, resta pouco, ou melhor, não resta nada da fórmula de Lavoisier no conceito positivo de morte como transformação. A associação da transformação com a fórmula de Lavoisier talvez seja sugerida por uma interpretação fisicalista, ou cientificista, do conceito de morte como “transformação”; se é esse o caso, isso acaba sendo um bom exemplo de como por vezes é difícil superarmos determinados hábitos mentais, em particular aqueles que oscilam entre o materialismo cientificista e o espiritualismo teológico-metafísico.




[1] Claro que o sopro é sugerido pelo fato de que os seres humanos (e os animais superiores) viventes respiram, ou seja, “sopram”. Para as teologias que adotam a noção de alma e, em particular, a noção de alma como sopro, a divindade assopra a alma nos seres vivos e assim concede tanto a alma quanto a vida.

28 maio 2025

Clotilde: superioridade moral e intelectual

No trecho abaixo Augusto Comte homenageia Clotilde de Vaux, ao afirmar que ela reúne duas características excepcionais: a pureza moral e a superioridade mental, ou seja, a excelência moral e a excelência intelectual. Aliás, como sabemos, Clotilde era de fato um ser humano superior, ao integrar a essas características também a superioridade de caráter. Nosso mestre ainda indica que, na Europa do início do século XIX, apenas uma outra mulher reunia essas características – Sofia Germain (1776-1831).

O trecho abaixo está na 161º carta da correspondência entre Augusto Comte e Clotilde de Vaux, de 15 de fevereiro de 1846. A tradução é de Raimundo Teixeira Mendes e está presente no belíssimo e importante volume O ano sem par (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 698).

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“Quanto a mim, conto que a minha perseverança infatigável obterá enfim da vossa sincera modéstia a preciosa autorização de render convenientemente uma homenagem solene a essa natureza excepcional, quando nada fosse para oferecer indiretamente ao vosso sexo um digno tipo real, mais eficaz do que as melhores demonstrações filosóficas. Essa aliança, única decisiva, da pureza moral com a superioridade mental, não se realizou, em nossos dias, senão na ilustre mulher de quem vos convidei a ler um eminente opúsculo[1]”.





[1] Nota de Teixeira Mendes: “O nosso Mestre alude a Sofia Germain, e o opúsculo a que se refere é a publicação póstuma que tem por título: Considerações gerais sobre o estado das ciências e das letras nas diferentes épocas da sua cultura”.

Tendo Sofia Germain vivido entre 1776 e 1831, essa obra foi publicada em 1833. Sofia Germain está no Calendário Positivista concreto, no décimo primeiro mês, de Descartes, dedicado à filosofia moderna; ela é adjunta de Hegel, no dia 27, na semana de David Hume.

27 maio 2025

Igreja Positivista do Brasil: Regimento (1881)

Reproduzimos abaixo o regimento da Igreja Positivista do Brasil, conforme foi estabelecido por Miguel Lemos em 11 de maio de 1881.

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Miguel Lemos (19.5.1886)

Extraído das capas internas da edição brasileira do Apelo aos conservadores[1]

 

IGREJA E APOSTOLADO POSITIVISTA DO BRASIL

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GRÊMIO GERAL

I. A Igreja e o Apostolado Positivista do Brasil compõe-se do conjunto de indivíduos e de famílias que aceitam integralmente a Religião da Humanidade, fundada por Augusto Comte, e que reconhecem a autoridade espiritual do Apostolado Positivista do Brasil.

II. Ela compreende um grêmio geral constituído pela totalidade dos fiéis e um núcleo de direção espiritual formado por aquele Apostolado.

III. Os fiéis dividem-se, por sua vez, em dois grupos caracterizados respectivamente pelas denominações de positivistas completos e de prosélitos.

IV. Os primeiros se comprometem ao cabal cumprimento de todos os deveres positivos e negativos prescritos pela sua religião, harmonizando em tudo a conduta com a fé que professam.

V. Os segundos, conquanto participem da mesma plenitude de crenças e reconheçam igualmente a direção espiritual do Apostolado, não podem ainda, ou por deficiência de preparação própria, ou por circunstâncias exteriores, aceitar em toda a sua extensão o mesmo compromisso.

A apreciação dos obstáculos peculiares a cada caso individual compete ao Diretor do Apostolado.

VI. Os positivistas completos poderão receber todos os sacramentos conferíveis pelo Diretor do Apostolado; os prosélitos, porém, só receberão as consagrações compatíveis com a situação especial de cada um.

VII. Tanto os primeiros como os segundos comprometem-se especialmente:

1. A não aceitar cargos políticos durante a fase empírica da transição moderna, tal como foi definida por Augusto Comte;

2. A não exercer funções nos estabelecimentos oficiais de ensino superior e secundário, com exceção das escolas destinadas a preparar os professores primários.

Os que já forem professores em tais estabelecimentos antes de se converterem ao positivismo considerarão essa situação como provisória e farão a promessa solene de se esforçarem por deixar os respectivos cargos dentro de um prazo que cada qual determinará para si, com a aprovação do Diretor do Apostolado;

3. A não fazer parte de associações científicas, literárias ou políticas.

4. A não fazer parte do jornalismo, diário ou não, quer como redator ou simples colaborador, quer como proprietário ou associado, e a só recorrer a este meio de publicidade para comunicações urgentes e de efeito imediato, ou para simples anúncios;

5. A não auferir lucros pecuniários das publicações que fizerem, a assiná-las com o seu nome e assumir a inteira responsabilidade moral e legal que daí decorre.

VIII. Ao Diretor do Apostolado cabe exclusivamente deferir ou indeferir os pedidos de admissão na Igreja, baseando-se essas decisões numa escrupulosa apreciação de cada caso individual.

IX. Os postulantes deverão ser maiores de idade, contar já um ano, pelo menos, de iniciação positivista; e, tratando-se de senhoras solteiras, ainda sob a autoridade paterna, ou outra equivalente, deverá o pedido ser acompanhado do consentimento escrito do pai, ou de quem as suas vezes fizer.

Quanto às senhoras casadas, não poderão também ter ingresso em nossa Igreja senão mediante um consentimento análogo por parte de seus maridos.

X. A admissão de uma mãe de família no grêmio da Igreja importa a incorporação religiosa de seus filhos menores.

XI. É dever elementar de cada fiel concorrer periodicamente para o subsídio geral da Igreja, com uma quota que ele próprio arbitrará.

XII. Serão considerados como tendo renunciado a permanecer em nosso grêmio os que durante um ano seguido deixarem, sem motivo justificado, de contribuir para o sustento material da Igreja.

XIII. Ao Diretor do Apostolado cabe outrossim excluir do nosso grêmio os membros que aberrarem da fé e disciplina comuns, que faltarem com reincidência aos compromissos tomados, ou que se tornarem indignos pela sua conduta pessoal, doméstica, ou cívica.

 

NÚCLEO ESPIRITUAL

XIV. O elemento coordenador da Igreja é constituído pelo Apostolado Positivista do Brasil, composto dos positivistas completos que se consagram sistematicamente à propagação da nossa fé e ao exercício das funções espirituais que a situação atual comporta e exige.

XV. Nele distinguem-se dois graus: o de aspirante, na idade de 28 anos, e o de apóstolo propriamente dito, aos 35 anos.

XVI. São condições essenciais para o apostolado sistemático:

1. Uma preparação teórica cujo grau pode ser avaliado mediante a seguinte fórmula: ser suficientemente capaz de explicar o Catecismo positivista de Augusto Comte, com os complementos relativos à teoria da transição moderna e às últimas concepções do Mestre;

2. Uma abnegação temporal caracterizada pela obrigação de viver exclusivamente de um modesto subsídio fornecido pela Igreja, logo que esta o possa fazer;

3. Uma preparação moral resumida num digno casamento.

XVII. Ao Apostolado ficarão adidos os artistas positivistas que, aceitando a condição de abnegação temporal acima declarada, consagrarem a sua aptidão estética à propaganda e ao culto da nossa religião.

 

LIGA RELIGIOSA

XVIII. Finalmente sob o título de – Liga Religiosa – compreende-se a associação espontaneamente formada pelo apoio de todos quantos simpatizam com a missão do Apostolado, ou porque já se sintam inclinados a aceitar as soluções positivistas, ou porque, embora filiados a outros credos, reconhecem a utilidade social dos nossos esforços no sentido de estabelecer as condições gerais necessárias à realização da reforma religiosa.

XIX. A adesão a esta liga religiosa apenas supõe uma contribuição material permanente, cujo quantum fica ao arbítrio de cada um.

XX. As senhoras, porém, poderão ser dispensadas deste concurso pecuniário, substituído então por um ato de adesão explícita à Liga Religiosa.



[1] Augusto Comte, Apelo aos conservadores, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898.