04 setembro 2025

A frase "fazer o bem, não importa a quem"

No dia 21 de Gutenberg de 171 (2.9.2025) realizamos nossa prédica, dando continuidade à leitura comentada do Apelo aos conservadores (em sua Primeira Parte - doutrina apropriada aos verdadeiros conservadores).

No sermão abordamos a frase popular "fazer o bem, não importa a quem", indicando que, se ela tem bons sentimentos, sua orientação é cega e tem resultados daninhos e injustos.

No final do sermão apresentamos trechos do belíssimo poema de Raimundo Teixeira Mendes, Exortação à Fraternidade.


As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *


A expressão “Fazer o bem, não importa a quem”

(21.Gutenberg.171/2.9.2025) 

1.       Invocação inicial

2.       Datas e celebrações:

2.1.    Dia 23 de Gutenberg (4.9): nascimento de Richard Congreve (1818 – 207 anos)

2.2.    Dia 24 de Gutenberg (5.9): transformação de Augusto Comte (1857 – 168 anos); comemoração de Sofia Bliaux

2.3.    Dia 25 de Gutenberg (6.9): nascimento de Henrique Oliveira (1908 – 117 anos)

2.4.    Dia 26 de Gutenberg (7.7): Independência do Brasil (1822 – 203 anos); glorificação de José Bonifácio

3.       Leitura comentada do Apelo aos conservadores

3.1.    Antes de mais nada, devemos recordar algumas considerações sobre o Apelo:

3.1.1. O Apelo é um manifesto político e dirige-se não a quaisquer pessoas ou grupos, mas a um grupo específico: são os líderes políticos e industriais que tendem para a defesa da ordem (e que tendem para a defesa da ordem até mesmo devido à sua atuação como líderes políticos e industriais), mas que, ao mesmo tempo, reconhecem a necessidade do progresso (a começar pela república): são esses os “conservadores” a que Augusto Comte apela

3.1.1.1.             O Apelo, portanto, adota uma linguagem e um formato adequados ao público a que se dirige

3.1.1.2.             Empregamos a expressão “líderes industriais” no lugar de “líderes econômicos”, por ser mais específica e mais adequada ao Positivismo: a “sociedade industrial” não se refere às manufaturas, mas à atividade pacífica, construtiva, colaborativa, oposta à guerra

3.2.    Outras observações:

3.2.1. Uma versão digitalizada da tradução brasileira desse livro, feita por Miguel Lemos e publicada em 1899, está disponível no Internet Archive: https://archive.org/details/augustocomteapeloaosconservadores

3.2.2. O capítulo em que estamos é a “Primeira Parte”, cujo subtítulo é “Doutrina apropriada aos verdadeiros conservadores”

3.3.    Passemos, então, à leitura comentada do Apelo aos conservadores!

4.       Exortações

4.1.    Sejamos altruístas!

4.2.    Façamos orações!

4.3.    Como Igreja Positivista Virtual, ministramos os sacramentos positivos a quem tem interesse

4.4.    Para apoiar as atividades dos nossos canais e da Igreja Positivista Virtual: façam o Pix da Positividade! (Chave Pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

5.       Sermão: a fórmula “fazer o bem, não importa a quem”

5.1.    O sermão de hoje abordará alguns temas que se referem a situações com que todos nós defrontamo-nos todos os dias e que, além disso, também se referem diretamente à Religião da Humanidade: a obrigação de sermos corteses, a tolerância mútua como base da fraternidade

5.2.    Comecemos com a máxima popular “fazer o bem, não importa a quem”

5.2.1. Essa fórmula apresenta um imperativo que, a princípio, é convergente com a Religião da Humanidade: nossa obrigação de sermos altruístas

5.2.2. Todavia, essa fórmula é extremamente vaga – e essa vagueza é fatal

5.2.3. Adiantando o tema, convém desde já reconhecer que, apesar da vagueza da fórmula, ainda assim ela procura resolver uma condição que é difícil por si só

5.3.    Ainda antes de seguirmos adiante, também vale a pena indicar que esse tema na verdade foi-me perguntado pelo nosso correligionário Eugênio Macedo

5.3.1. A dúvida do Eugênio era pessoal, dele, mas evidentemente ela pode e deve ser tratada de maneira mais ampla, na medida em que afeta todos nós e que, de qualquer maneira, mesmo que não fosse comum a todos nós, poderia interessar a outras pessoas

5.3.1.1.             É claro que essa dúvida pode ser tratada publicamente sem dificuldades, isto é, sem criar nenhum constrangimento

5.3.1.2.             O “viver às claras” refere-se aos nossos atos, mas também às motivações de nossas ações; a publicidade de nossas vidas não pode corresponder a indiscrições nem a situações vexaminosas

5.3.2. Transformar dúvidas individuais de nossos correligionários em temas de sermões é uma forma simples e eficiente de ajudar as pessoas e de demonstrar que o Positivismo é, e deve ser, útil

5.3.2.1.             Dessa forma, fica aqui o convite e o estímulo: quem tiver dúvidas, questões, comentários, apresente-os sem medo, que procuraremos responder, orientar e aconselhar

5.4.    A Religião da Humanidade proclama que a lei do dever e a fórmula da felicidade são uma única: é o “viver para outrem”

5.4.1. Devemos notar que a fórmula positivista tem um imperativo geral – devemos ser altruístas e dedicarmo-nos aos demais –, mas não é um imperativo vago; além disso, ela pressupõe o cuidado com nós mesmos e veda a autoimolação

5.5.    O problema da vagueza da fórmula popular é que ela não faz distinções de merecimento das pessoas que receberão o benefício, nem afirma os cuidados com nós mesmos

5.5.1. No que se refere ao mérito dos beneficiários: devemos, sim, considerar quem recebe o bem, pois diferentes pessoas têm diferentes comportamentos, diferentes necessidades, diferentes possibilidades; evidentemente, algumas são melhores que outras, enquanto algumas são piores que outras: tudo isso deve necessariamente ser levado em conta

5.5.2. O nosso dever de altruísmo não é unilateral; na verdade, como se trata de um dever, é uma relação, ou seja, é uma obrigação mútua: assim como cada um de nós deve ser altruísta, os demais também devem ser altruístas; a reciprocidade deve ser levada em conta e valorizada

5.5.2.1.             O “fazer o bem, não importa a quem”, especialmente na parte do “não importa a quem”, deixa de lado o aspecto relacional da vida humana; portanto, ele ignora de verdade o seu caráter de dever, apenas criando direitos para os outros, sem lhes impor também deveres mútuos

5.5.3. Devemos considerar também a justiça de nossas ações: pessoas boas que sofrem injustiças devem ser bem tratadas; pessoas que erraram mas que manifestam desejar melhorar também devem ser valorizadas; a quem errou deve ser dada a oportunidade real de emendar-se; mas quem errou, persistiu no erro e rejeitou a emenda, qual o sentido de fazer indefinidamente o bem para ela?

5.5.4. Assim, há um aspecto de valorizar a bondade e de punir a maldade – sem que haja injustiça, crueldade nem que se vede a possibilidade de emendar-se o mal

5.6.    À parte esses graves problemas de mérito e de justiça – que a fórmula popular “fazer o bem, não importa a quem” é incapaz de enfrentar –, devemos convir que a dificuldade prática nessa condição é que, qualquer que seja a fórmula – “viver para outrem”, ou “fazer o bem, não importa a quem” –, desejamos ser altruístas e generosos, mas defrontamo-nos com a necessidade concreta de limitarmos esse altruísmo e mesmo de fazermos valer o nosso egoísmo

5.6.1. Indiscutivelmente, essa é uma situação frustrante; não há como a evitar

5.6.2. Um aspecto que se evidencia a partir dela é que o também altruísmo deve ser bem orientado

5.6.2.1.             Na verdade, a correta orientação do altruísmo foi afirmada por Augusto Comte quando ele apreciou o comunismo, que, para ele, consistia em uma orientação incorreta do altruísmo e que, mesmo por isso, era superior ao individualismo liberal-burguês, que consiste no exagero do egoísmo

5.6.3. A solução para esse problema, parece-me, consiste em que devemos ser generosos, tolerantes e ter uma orientação altruísta geral; além disso, devemos considerar que todos a princípio merecem nosso respeito, nossa estima, nosso altruísmo; mas essa estima básica também deve ser confirmada cotidianamente, especialmente lembrando que o viver para outrem é uma obrigação mútua

5.6.4. O “fazer o bem, não importa a quem” tenta lidar com o egoísmo por meio da sua negação; mas, ao negar, ele não lida de verdade com ele e, em particular, ele não regula o egoísmo: mas a questão, no caso, é exatamente essa: é necessário ao mesmo tempo estimular o altruísmo e regular (pelo altruísmo) o egoísmo

5.7.    Um outro aspecto que devemos considerar é que, se devemos viver para outrem, o nosso altruísmo não se desenvolve nem se mantém no vazio, como pura abstração: ele exige objetos concretos, relações reais

5.7.1. Em outras palavras, o desenvolvimento e a manutenção iniciais do altruísmo necessitam de focalização e personalização

5.7.2. Nosso mestre indicou com clareza, na parte do culto, os objetos de nosso altruísmo; eles são ascendentes, passando de relações pessoais para relações familiares, então para relações cívicas e daí para relações universais

5.7.3. Em outras palavras, começamos com nossas mães, nossos cônjuges, nossos filhos, pais e irmãos; seguimos para nossas famílias ampliadas; então vamos para as relações cívicas (colegas de trabalho, chefes, subordinados, concidadãos, líderes); ampliamos então para a Humanidade; tudo isso começando com relações objetivas mas logo devendo estender-se também para as relações subjetivas

5.7.4. Bem vistas as coisas, essa seqüência ascendente corresponde a uma aplicação da terceira lei dos três estados, ou seja, da lei afetiva (de que tratamos em uma prédica anterior)

5.7.5. Esse desenvolvimento progressivo do altruísmo, para o que estamos tratando aqui, consiste também na ampliação progressiva do “fazer o bem” – mas que, como estamos afirmando, não pode ser “não importa a quem”

5.8.    Um problema relacionado com o do “fazer o bem, não importa a quem” é: como estimular o altruísmo?

5.8.1. A teologia e a metafísica prometem recompensas ou punições; em qualquer caso, os móveis são sempre egoístas

5.8.2. A Religião da Humanidade, a partir da experiência cotidiana e multimilenar, afirma que o altruísmo é a própria recompensa

5.8.3. Como sintetizou com beleza Clotilde de Vaux, “Não há prazeres maiores que os da dedicação”

5.9.    Para concluir estes comentários, quero aproveitar para referir-me a um poema de Teixeira Mendes

5.9.1. Trata-se do Exortação à Fraternidade, que foi composto no aniversário de transformação de Clotilde, ou seja, em 5 de abril de 1911

5.9.2. Esse poema tem o seguinte comentário explicativo: “Ensaio de uma paráfrase positivista do Capítulo XVI, Livro I, da Imitação de Tomás de Kempis, segundo a tradução em verso de Corneille: Como se deve sofrer os defeitos de outrem

5.9.3. Em outras palavras, Teixeira Mendes afirma, ou lembra, que a fraternidade exige que todos tenhamos paciência uns com os outros, pois todos temos defeitos

5.9.4. É claro que o poema todo vale a pena; mas citaremos só as partes III e IV

III. Queremos cada qual sujeito à disciplina,

            Sofrendo a necessária correção;

Revolta-nos, porém, se alguém nos examina,

E à conduta nossa o seu valor assina,

            Realçando qualquer imperfeição.

 

Exprobramos aos mais o quanto d’indulgência

            Consigo têm e o que se dão de gozos;

E é ofensa atroz não ter-se a complacência

De nada recusar, com suma deferência,

            Aos nossos movimentos caprichosos.

 

Estatutos prendendo em rigoroso laço

            Severamente aos outros desejamos;

E, seja de quem for, o mais ligeiro traço,

Ao nosso bel-prazer, criando um embaraço

            D’império absoluto, a mal levamos.

 

Onde se esconde, pois, o férvido Altruísmo,

            Que Viver para outrem nos sugere?

E como então sentir que, ou seja no heroísmo,

Ou na dedicação comum, ou no ascetismo,

            Prazer algum não há que os seus supere.

 

No Mundo, a imperfeição por toda parte abunda,

            A jerarquia eterna acompanhando,

Que, sob a mais grosseira, a lei mais nobre funda;

Somente a paciência, em méritos fecunda

            Essa ordem fatal vai mitigando.

 

IV. É pois na sujeição qu’ensina a Humanidade

            O aperfeiçoamento basear-se;

Não há beleza inteira, ou íntegra bondade;

Assim é dever nosso e nossa felicidade

            Uns aos outros o fardo aliviar-se.

 

Ninguém é sem senão, ninguém é sem fraqueza;

            Ninguém sem precisar d’algum amparo;

Ninguém tem de ciência, em si, assaz riqueza;

Ninguém é forte assaz com a própria fortaleza.

            Para não sentir faltar-lhe apoio caro.

 

Urge pois entre-amar-se, urge pois entre-instruir-se

            Urge pois, em tudo, entre-auxiliar-se;

Urge entre-prestar-se o olhar a dirigir-se;

Urge entre-estender-se a mão conduzir-se;

            Urge um ao outro dar com quem curar-se.

 

Quanto maior a dor, mais fácil prova of’rece

            Até que ponto fora alguém perfeito;

E os golpes mais cruéis que uma alma então padece

Não são que a fazem fraca; apenas se conhece

            Assim o que ela vale com efeito.

6.       Invocação final

 

Referências

- Augusto Comte (franc.), Sistema de filosofia positiva (Paris, Société Positiviste, 5e ed., 1893)

- Augusto Comte (franc.), Sistema de política positiva (Paris, L. Mathias, 1851-1854)

- Augusto Comte (port.), Apelo aos conservadores (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898): https://archive.org/details/augustocomteapeloaosconservadores.

- Augusto Comte (port.), Catecismo positivista (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 4ª ed., 1934)

- Gustavo Biscaia de Lacerda (port.), Prédica "O início do Positivismo: as três leis dos três estados" (Curitiba, Igreja Positivista Virtual, 26.8.2025): https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2025/08/o-inicio-do-positivismo-as-tres-leis.html

- Raimundo Teixeira Mendes (port.), As últimas concepções de Augusto Comte (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898): https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-ultimas-concepcoes-de-augusto-comte-i e https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-ultimas-concepcoes-de-augusto-comte-ii.

- Raimundo Teixeira Mendes (port.), O ano sem par (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900): https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-o-ano-sem-par-portug._202312/page/n7/mode/2up.

- Raimundo Teixeira Mendes (port.): Exortação à Fraternidade (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1911; opúsculo n. 316): https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2025/08/teixeira-mendes-exortacao-fraternidade.html

01 setembro 2025

Objetividade, subjetividade e entendimento humano

As citações abaixo são extraídas do v. 2 do Sistema de política positiva, de Augusto Comte, em seu cap. 1. 


Elas tratam de várias questões fundamentais para o ser humano: como entendemos a realidade, qual a parte do mundo e qual a parte do ser humano em nossas idéias, qual o papel dos sentimentos... isso pode parecer, à primeira vista, mera discussão acadêmica, mas são reflexões que têm aplicações diretas e imediatas na vida de todos nós.

É uma leitura densa, mas muito recompensadora.

O volume 2 da Política positiva foi publicado em 1852 e seu subtítulo é este: “Contendo a Estática Social ou o tratado abstrato da ordem humana”.

O capítulo 1 desse livro tem por título o seguinte: “Teoria geral da religião, ou teoria positiva da unidade humana”.


*   *   *


 

- Hipóteses, objetividade, subjetividade; separação inicial entre razão teórica e razão prática; pesquisa das leis preponderante sobre o objetivismo dos fatos e o subjetivismo das causas; relativismo e absolutismo das sínteses:

“Eu caracterizei suficientemente agora, sob todos os aspectos essenciais, o único modo sintético que convém plenamente à natureza humana. Seu desenvolvimento direto e especial pertence ao último volume deste tratado, quando seu advento decisivo encontrar-se-á convenientemente demonstrando a partir do conjunto do passado. Mas, para completar minha teoria geral da religião, resta-me aqui, como inicialmente anunciei, caracterizar sumariamente minha longa e difícil iniciação que exigia o estabelecimento da verdadeira unidade.

As diversas explicações precedentes devem ter feito implicitamente sentir que uma tal síntese não comportaria de maneira nenhuma um desenvolvimento imediato, malgrado a espontaneidade das tendências que nos conduzem a ela sempre. Será agora então fácil de motivar diretamente sua preparação necessária. Ela é igualmente exigida pela natureza intelectual e pela fonte moral da verdadeira religião.

Inicialmente, a fé devia ser essencialmente objetiva, desde que o dogma positivo consiste no conhecimento real da ordem universal. As inspirações subjetivas não podem concorrer para a elaboração dos seus diversos elementos senão por meio de uma influência secundária, suficientemente indicada acima, fornecendo as hipóteses destinadas a tornar-se leis, conforme sua verificação exterior. Quando a sistematização positiva é enfim possível, a subjetividade começa a prevalecer, como a única capaz de coordenar os materiais obtidos, seguindo as explicações de meu primeiro volume. Mas esse termo não chega senão após uma inteira extensão do espírito científico até os fenômenos menos gerais e mais complicados. Antes que essa condição seja suficientemente preenchida, a preponderância da subjetividade viciaria radicalmente todas as nossas teorias. Ora, uma tal realização não poderia ser incitada, desde que a descoberta da ordem natural não poderia fazer-se senão sucessivamente, procedendo sempre do mundo em direção ao homem, ou dos fenômenos mais gerais aos mais particulares.

Mas, por outro lado, em virtude mesmo dessa marcha característica, a objetividade não poderia nunca construir uma síntese qualquer. Se sua impotência para sistematizar é hoje reconhecida após vinte séculos de estéreis esforços, com mais forte razão ela seria inevitável antes da aquisição de materiais positivos. Toda síntese deve então ser subjetiva, ainda que ela não comporte realidade senão conforme uma base objetiva, cuja elabora demora muito tempo. Entretanto, o homem não pode nunca ficar sem uma síntese qualquer, para coordenar seus pensamentos, de maneira a dirigir sua conduta. Uma tal situação mental não admite outra saída senão a construção, inteiramente subjetiva, de uma síntese felizmente espontânea, mas necessariamente quimérica e então puramente provisória.

Ora, tal solução inicial, sem a qual nossa razão não poderia surgir, resulta naturalmente de nossas tendências primitivas em direção às concepções absolutas, que nos dispensariam de todas pesquisas especiais, ao permitir-nos deduzir sempre sem ter nunca induzido. As leis reais, vale dizer os fatos gerais, não puderam manifestar-se senão muito tarde, mesmo a respeito dos menores fenômenos celestes. Enquanto eles permanecem desconhecidos, o espírito humano persegue necessariamente a vã determinação das causas, vale dizer, das origens e das destinações absolutas. Essa pesquisa, então animada pela esperança de um império ilimitado sobre um mundo em que a ordem parece arbitrária, é a única que pode dissipar nosso torpor inicial. Um tal problema não comporta, mesmo hoje, outra solução que essa que surgiu inicialmente, a explicação do mundo conforme o homem, seguindo a assimilação espontânea da natureza morta à natureza viva. Assim se institui diretamente o método subjetivo, cujo livre desenvolvimento não sofre então nenhum entrave objetivo. Em uma palavra, nessa filosofia intuitiva, que pesquisa a essência de tudo, as vontades ocupam o lugar das leis. Uma semelhante síntese, que agora convém tão pouco à especulação quanto à ação, foi por muito tempo tão indispensável a esta quanto àquela. Recairemos sempre aí quando desejamos agir sistematicamente, sobre fenômenos de que ignoramos as leis especiais. Com efeito, na falta de noções exteriores, é necessário que nossa sabedoria siga com cuidado os impulsos interiores, mais morais que mentais, a menos que ela abstenha-se totalmente, o que se torna com freqüência impossível.

O primeiro estado de nossa inteligência não permite então nenhuma harmonia durável entre a razão prática e razão teórica. Enquanto uma, exclusivamente objetiva, não oferece senão fatos isolados, a outra, puramente subjetiva, não apresenta senão generalidades incapazes de ligar nossas noções particulares. Ainda que guiada por falsas aproximações, esta tende sempre à previsão sistemática, o mesmo ao que renunciamos em seguida. Mas aquela prepara também o estado normal, ao descobrir em toda parte algumas leis empíricas, que permitem previsões reais em inúmeros casos usuais. Nossa iniciação mental consiste sobretudo em combinar suficientemente essas duas tendências simultâneas em direção à realidade das noções e à generalidade das concepções. Essa combinação não se torna possível senão ao corrigir os excessos respectivos de objetividade e de subjetividade. Ora, o conjunto dos impulsos práticos dispõe a isso naturalmente, ao fazer cada vez mais sentir que esses dois vícios opostos impedem igualmente de prever para melhor agir. Afinal, um entrava toda indução geral e o outro, toda dedução real. Assim surgiu gradualmente a dupla preponderância do estudo das leis sobre o conhecimento dos fatos e sobre a pesquisa das causas.

Comparada à síntese definitiva, essa síntese provisória oferece semelhanças essenciais sob profundas diferenças. Sua espontaneidade característica torna-a inteiramente subjetiva; mas sua destinação exige que se a creia objetiva. Por aí se anuncia, e mesmo se prepara, a conciliação final das duas grandes condições especulativas. Cada síntese repousa sobre a preponderância do tipo humano: mas ele é pessoal em uma e social na outra. Sua principal diferença resulta da natureza absoluta da primeira, oposta à relatividade da segunda. Esse contraste científico é completado por seu contraste lógico, consistindo sobretudo em que as hipóteses primitivas não são nunca verificáveis, ao passo que as hipóteses definitivas são-no sempre. Conforme o conjunto dessas oposições, as duas sínteses tendem a tornar-se inconciliáveis, à medida que a última desenvolve seus verdadeiros caracteres.

Em segundo lugar, a apreciação social manifesta ainda melhor a impossibilidade inicial da verdadeira unidade e a necessidade de um regime preparatório. Além de que o Grande-Ser não poderia de maneira nenhuma ser apreciado então, ele não é mesmo suficientemente formado. Seu desenvolvimento decisivo supõe uma longa evolução, à qual devem presidir ficções espontâneas. O amor, com dificuldade suficiente hoje, mantém-se inicialmente de tal maneira restrito que o ódio domina em direção à quase totalidade da nossa espécie. Toda a atividade coletiva emana então dos instintos inferiores. Não podendo realizar a conquista de um mundo que parece tão invencível quanto inexplicável, cada associação parcial esforça-se sobretudo por submeter as outras. Mas essa tendência, no início cegamente destrutiva, regulariza-se desenvolvendo-se. Ela institui espontaneamente a sociabilidade preliminar, cimentando a união interior e conduzindo à incorporação exterior. A Pátria prepara a Humanidade e o egoísmo nacional dispõe ao amor universal.

Esse regime guerreiro, como o dogma fictício, permanece sempre incompleto, como conseqüência de sua comum oposição às exigências práticas. A atividade industrial surgiu sob um, da mesma forma que o espírito positivo sob o outro. Assim se desenvolvem os elementos definitivos durante a imperfeita dominação dos elementos primitivos, até que o aumento daqueles e a diminuição destes conduzem às lutas que aceleram o advento necessário da verdadeira unidade.

As duas potências provisórias tendem cada uma a dominar sem partilha. Entretanto, sua rivalidade natural pode ser suficientemente contida por uma afinidade espontânea, que lhes permite por muito tempo combinarem-se. O espírito absoluto do dogma fictício e o caráter egoísta do regime guerreiro são muito análogos para permanecerem sempre inconciliáveis. Ao combinarem-se, um estende sua preponderância e o outro aumenta sua consistência. Então as opiniões não demonstráveis e as autoridades não discutíveis apóiam-se mutuamente. De sua conexão resulta inicialmente a consolidação do regime inicial, mas em seguida sua tendência a dominar além de seu destino normal. De qualquer maneira, seu elemento temporal mantém-se mais compatível que seu elemento espiritual com o desenvolvimento da síntese final. Ele não é destinado, como este último, a uma inteira extinção; pois ele pode cessar de prevalecer sem perder toda eficácia. A atividade militar conservará sempre um ofício subalterno em relação às existências humanas e às organizações animais que violam ou rejeitam a harmonia universal sem poderem a ela serem trazidas de volta. Mas a fé sobrenatural já perdeu toda verdadeira utilidade entre as populações de elite; ela deve enfim apagar-se por toda parte, pois sua autoridade não pode nunca aceitar a subalternidade” (Política, v. II, p. 79-83).

Crítica à metafísica alemã, objetividade e subjetividade

As citações abaixo são extraídas do v. 2 do Sistema de política positiva, de Augusto Comte, em seu cap. 1. 

Elas tratam de várias questões fundamentais para o ser humano: como entendemos a realidade, qual a parte do mundo e qual a parte do ser humano em nossas idéias, qual o papel dos sentimentos... isso pode parecer, à primeira vista, mera discussão acadêmica, mas são reflexões que têm aplicações diretas e imediatas na vida de todos nós.

É uma leitura densa, mas muito recompensadora.

O volume 2 da Política positiva foi publicado em 1852 e seu subtítulo é este: “Contendo a Estática Social ou o tratado abstrato da ordem humana”.

O capítulo 1 desse livro tem por título o seguinte: “Teoria geral da religião, ou teoria positiva da unidade humana”.


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- Crítica à metafísica neokantiana, caráter aproximativo e conveniente das leis naturais, margem para elaboração estética das leis, acordo objetivo-subjetivo:

“Essa subjetividade assessória, viciosamente exagerada pelos pretensos sucessores de Kant, conduz ainda ignorantes pensadores a um idealismo não menos imoral que absurdo, que consagra involuntariamente uma completa personalidade e rejeita doutoralmente toda vida coletiva. Faz-se assim degenerar em retrogradação na direção do absoluto a direção filosófica mais própria a constituir o espírito relativo, conforme as diversas condições cerebrais de cada noção real. Mas, por outro lado, os puros cientistas [savants], e sobretudo os geômetras, na falta de um regime enciclopédico, resultam com freqüência, de uma forma inversa, na mesma degradação, ao exagerarem, por seu turno, a independência da ordem natural.

A sã filosofia caminha firmemente entre essas duas armadilhas contínuas. Ela representa todas as leis naturais como construídas por nós com materiais exteriores. Apreciadas objetivamente, sua exatidão não pode ser nunca senão aproximativa. Mas, estando destinadas apenas às nossas necessidades, sobretudo ativas, essas aproximações tornam-se plenamente suficientes, quando elas são bem instituídas segundo as exigências práticas, que fixam habitualmente a precisão conveniente. Além dessa medida, permanece com freqüência um grau normal de liberdade teórica, que devemos sabiamente usar para melhor satisfazer nossas puras inclinações mentais, inicialmente científicas, em seguida mesmo estéticas. Em relação às mais simples e melhor elaboradas de todas as leis reais, os geômetras, a despeito de si mesmos, aplicam freqüentemente essa preciosa faculdade ao justo aperfeiçoamento de suas concepções fundamentais. Eles empregam-na sobretudo para fornecer às relações abstratas uma plena continuidade, indispensável ao desenvolvimento das especulações matemáticas, mas que a ordem exterior desmentiria sempre, se conduzíssemos demasiadamente longe seu estudo sistemático. Por exemplo, a lei newtoniana da gravitação não convém mais para toda distância que a lei de Mariotte para toda pressão. Elas fornecem entretanto bases legítimas, uma à nossa mecânica celeste, a outra à teoria matemática de nosso gás. Sem essa continuidade subjetiva, seu uso racional tornar-se-ia quase ilusório.

Nossa construção fundamental da ordem universal resulta então de um concurso necessário entre o exterior e o interior. As leis reais, vale dizer os fatos gerais, não são nunca senão hipóteses suficientemente confirmadas pela observação. Se a harmonia não existisse de maneira nenhuma fora de nós, nosso espírito seria inteiramente incapaz de concebê-la; mas, em nenhum caso, ela não se verifica tanto quanto supomo-la. Nessa cooperação contínua, o mundo fornece a matéria e o homem, a forma de cada noção positiva. Ora, a fusão desses dois elementos não se torna possível senão por sacrifícios mútuos. Um excesso de subjetividade impediria toda visão geral, sempre fundada sobre a abstração. Mas a decomposição que nos permite abstrair permaneceria impossível se não descartássemos um excesso natural de subjetividade. Cada homem, ao comparar-se com os outros, remove espontaneamente de suas próprias observações o que elas têm inicialmente de muito pessoal, a fim de permitir o acordo social que constitui a principal destinação da vida contemplativa. Mas o grau de subjetividade que é comum a toda a nossa espécie persiste ordinariamente, aliás sem nenhum grave inconveniente. Nós não poderíamos reduzi-lo senão pelo comércio intelectual com outros animais, que não se estabelece senão raramente e para noções subalternas. Aliás, algumas restrições sucessivas que experimentaram assim a influência subjetiva, conforme uma necessidade crescente de ouvir-se com inteligências as mais diversas, jamais as concepções alcançariam uma pura objetividade. É assim tão impossível quanto inútil determinar exatamente as participações respectivas do exterior e do interior em cada noção real” (Política, v. II, p. 32-35)

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“A dificuldade principal da elaboração positiva consiste então na sucessão necessária de diversas grandes fases teóricas, em que cada uma depende da precedente e que entretanto não se tornam religiosamente eficazes senão por sua combinação total. Cada um desses graus sucessivos exige induções que lhes são próprias; mas elas não podem nunca se tornar sistemáticas senão sob o impulso dedutivo resultante de todas as ordens menos complicadas. Sem essa subordinação normal, conforme à dependência dos fenômenos, as leis naturais perderiam tanto consistência quanto racionalidade. Em uma tal hierarquia, as ordens inferiores propagam para o alto a regularidade e a fixidez diretamente próprias à sua simplicidade, ao passo que elas adquirem em retorno a dignidade inerente ao domínio superior. A eficácia religiosa da filosofia real depende sobretudo dessa dupla comunicação entre seus diversos elementos essenciais. Tais são as condições indispensáveis para estabelecer suficientemente a invariabilidade fundamental da ordem universal, cujo melhor tipo concernirá sempre aos fenômenos celestes, como os únicos subtraídos a toda intervenção humana.

Mas, malgrado a constante preponderância dessa primeira apreciação, o dogma positivo deve também caracterizar cuidadosamente as modificações normais que comporta quase sempre a economia natural. Para bem as conceber, é necessário inicialmente reconhecer que elas não oferecem nada de fortuito. Pois elas resultam diretamente da hierarquia geral dos fenômenos, em que cada ordem modifica todas aquelas que a dominam. Com efeito, a harmonia universal exige tanto essa reação quanto esse império. Haveria, sem dúvida, anarquia total se os fenômenos mais particulares não estivessem subordinados aos mais gerais. Mas a ausência de modificações inversas estabeleceria uma confusa identidade. A verdadeira distinção entre as grandes categorias naturais repousa essencialmente sobre essas reações necessárias, a cuja falta apenas as mais simples leis subsistiriam. É necessário então conceber a ordem real como tão distante do caos quanto da anarquia, ou como supõem ao mesmo tempo o movimento e a fixidez. Tal é, pelo menos, sua noção necessária em todo o mundo compatível com a vida; isso é o que constitui o único caso digno de exame.

Com efeito, a concepção de ordem universal como mais ou menos modificável resulta diretamente do grande dualismo filosófico entre a natureza morta e a natureza viva. Inicialmente, todo ser vivo, seja ele reduzido à existência vegetativa, modifica sem cessar o meio que o domina, conforme os materiais de que ele dispõe daí e os produtos que ele elabora. Por outro lado, ele modifica-se a si mesmo, para melhor se adaptar à sua situação. Esse duplo atributo expande-se sempre à medida que o ser torna-se mais elevado e mais desenvolvido. Ora, importa reconhecer que o ser não cria nunca no meio a aptidão para as modificações correspondentes: ele limita-se a utilizá-la. Se já o meio não fosse de maneira nenhuma modificável por si só, uma reação tão fraca quanto o é necessariamente a influência vital não lhe poderia alterar a constituição. Da mesma forma as mudanças que sofre a ordem material, apenas sob o conflito das potências inorgânicas, são com freqüência superiores a todas as provenientes dos seres vivos. Estes seres não fazem então senão determinar ao exterior o exercício de uma propriedade sobre a qual repousa sua existência. Mas essa relação constitui entretanto a única destinação necessária de uma tal aptidão exterior. Ainda que não pudéssemos de maneira nenhuma conceber a vida em um meio imodificável, suporíamos facilmente um tal meio, desde que nada nele vivesse, como em alguns planetas inabitáveis. A variabilidade normal da ordem material refere-se então essencialmente à existência vital, mas sem dela provir” (Política, v. II, p. 36-38).