26 agosto 2014

Formação étnica e independência nacional na "teoria do Brasil" dos positivistas

Entre 4 e 7 de agosto de 2014 tive a felicidade de participar do IX Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política, realizado em Brasília. Durante esse evento, apresentei o artigo anexo, que, após uma revisão geral, apresento ao grande público.

Deixando de lado algumas correções gramaticais menores, a única alteração maior refere-se ao título: ele passou de "Política e instituições na 'teoria do Brasil' dos positivistas ortodoxos brasileiros" (conforme a proposta original da comunicação) para "Formação étnica e independência nacional na 'teoria do Brasil' dos positivistas ortodoxos brasileiros" (que descreve mais corretamente a versão final do texto). 

De qualquer forma, convém notar que esse é apenas um resultado inicial de uma pesquisa que realizo sobre a "teoria do Brasil" dos positivistas ortodoxos brasileiros. Como havia limitação de espaço, o texto é relativamente curto.

O portal do Encontro está disponível aqui.

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Formação étnica e independência nacional na “teoria do Brasil” dos positivistas Ortodoxos brasileiros


Gustavo Biscaia de Lacerda[1]

1. Introdução

É mais ou menos senso comum nos meios acadêmicos e eruditos o fato de que o Positivismo no Brasil exerceu grande influência nos meios intelectuais e políticos no período de cerca de meio século que vai de 1881 a 1930. Nesse sentido, a frase de Otto Maria Carpeux é famosa: “A significação do positivismo na história do Brasil ultrapassa os limites da história de um sistema filosófico” (Carpeaux apud BOSI, 2010, p. 273). Em virtude disso, vários estudos de diferentes perspectivas e qualidades foram dedicados a analisar essa influência, seja desde meados do século XIX, seja nas últimas décadas, abrangendo não apenas os positivistas ortodoxos (ligados à Igreja e Apostolado Positivista do Brasil (IPB), em particular Miguel Lemos e Teixeira Mendes) como também os heterodoxos (a plêiade que atuou no jornalismo, na política, na vida acadêmica e que não se vinculava à IPB: Pereira Barreto, Júlio de Castilhos, V. Licínio Cardoso, Ivan Lins, Paulo Carneiro)[2].
Face à alegada importância dos positivistas, não deixa de causar certa estranheza a sua ausência em discussões sobre os chamados “pensamentos social e político brasileiros”. Um exemplo de ausências desse gênero está na coletânea organizada por Botelho e Schwarcz (2009), que aborda 29 autores dos séculos XIX e XX que se dedicaram a refletir a respeito do “enigma chamado Brasil”, nenhum dos quais é positivista (ortodoxo ou heterodoxo). É claro que os organizadores não tinham nenhuma obrigação de incluir positivistas e que, assim como os positivistas estão ausentes dessa coletânea, inúmeros outros pensadores nacionais também não se encontram relacionados nela: o que nos interessa aqui é destacar o aspecto exemplar dessa ausência.
Comparando as várias pesquisas havidas sobre o Positivismo no Brasil, em que se afirma a sua importância histórica, com a ausência em coletâneas e estudos sobre o pensamento social e político brasileiro, a impressão que se tem é que o Positivismo merece somente alguns comentários (“críticos”), mas não exposições mais ou menos sistemáticas de suas intervenções: é como se o grande conjunto de pensadores e ativistas que recebe a etiqueta geral de “positivistas brasileiros” não tivesse refletido sobre a história do país, sua sociedade, suas instituições, seus problemas e, claro, seus caminhos e soluções. Em outras palavras, os círculos intelectuais e acadêmicos, de direita ou de esquerda, realizam na prática e assim “confirmam” a agressiva opinião do marxista Paulo Arantes (1988, p. 185), para quem o Positivismo no Brasil foi como que um surto de sarampão – devendo-se lembrar-se dele, mas sem que isso conduza a maiores possibilidades de reflexão teórica e/ou aplicação prática positiva.
Pode-se dizer, portanto, que na literatura especializada ocorre uma importante lacuna; nesse sentido, o que propomos nesta pesquisa é investigar diretamente o conjunto de idéias e noções dos positivistas brasileiros que poderíamos enquadrar no “pensamento social e político brasileiro”. De maneira mais específica, propomo-nos a estudar aquilo que, dentro da vasta produção intelectual dos positivistas ortodoxos, denominamos anteriormente de “teoria do Brasil”.
Como etapa preliminar para as pesquisas desenvolvidas em Lacerda (2013a; 2013b), fizemos a classificação inédita de pouco mais de 350 das mais de 500 publicações da IPB[3], organizando-as em uma série de rubricas gerais, sugeridas pelos temas principais abordados em cada uma dessas publicações: em um total de 27 categorias, apresentavam-se temas tão variados quanto “separação entre Igreja e Estado”, “abolição da escravidão”, “militarismo”, “despotismo sanitário”, “relações internacionais” etc. Uma dessas categorias era “teoria do Brasil”, que apareceu em dois dos 355 opúsculos indexados como categoria principal e em outros sete como categoria secundária ou terciária.
Elaboramos a categoria “teoria do Brasil” adotando critérios ao mesmo tempo doutrinários e pragmáticos, ou seja, buscando tanto seguir e respeitar as idéias seguidas pelos dois principais autores dos opúsculos da IPB (Miguel Lemos e, principalmente, Raimundo Teixeira Mendes) quanto estabelecer termos-chave que pudessem com facilidade identificar temas gerais acessíveis aos leitores contemporâneos. No caso em questão, a “teoria do Brasil” refere-se à interpretação do desenvolvimento social e político do país, em que interagem dinamicamente as instituições, as elites, a massa da nação, a organização interna e a realidade internacional. De qualquer forma, convém notar que a maior parte dessas categorias (quando não sua totalidade), não são nem exaustivas nem mutuamente excludentes, ou seja, elas tanto sobrepõem-se umas às outras quanto com grande freqüência não esgotam os temas tratados em cada uma das publicações: assim, para o caso que nos interessa, embora “teoria do Brasil” esteja presente explicitamente em apenas nove casos, ela apresenta-se de maneira implícita em dezenas de outros, como nos textos dedicados à abolição da escravidão, à crítica à Guerra da Tríplice Aliança, à incorporação do proletariado à sociedade brasileira, à proclamação e à organização da República, à separação entre Igreja e Estado etc. Nesse sentido, é possível ampliar bastante a abrangência qualitativa e quantitativa da categoria “teoria do Brasil” no conjunto das publicações da IPB (embora tal não seja nosso objetivo aqui).
A presente comunicação pretende expor alguns dos argumentos e traços da “teoria do Brasil” defendida pelos positivistas ortodoxos, especialmente no que se refere a dois aspectos: (1) a composição étnica do país e algumas de suas conseqüências sociais e (2) a interpretação dos positivistas a respeito da independência do Brasil. Para isso, analisaremos algumas publicações da Igreja Positivista, nomeadamente a comemoração do tricentenário da morte de Luís de Camões (Teixeira Mendes, 1977 [1880]) e a biografia de Benjamin Constant (Teixeira Mendes, 1936 [1892])[4].

2. Preliminares teóricas: evolução ocidental e inserção dos povos ibero-americanos

Dois passos preliminares, que são necessários para a presente discussão e que também foram desenvolvidos por exemplo por Teixeira Mendes (1936 [1892]), são, de um lado, a exposição de alguns elementos da teoria da história de Augusto Comte (incluindo aí a sua utopia) e, por outro lado, explicar a inserção da evolução dos povos ibero-americanos – e, portanto, do Brasil – no conjunto da evolução ocidental, igualmente de acordo com o esquema proposto por Augusto Comte. Bem vistas as coisas, esses passos correspondem a duas necessidades lógicas e teóricas de qualquer exposição histórico-sociológica: de um lado, o enquadramento teórico da exposição e, de outro lado, a contextualização. Convém reforçar o fato de que esses passos correspondem a imperativos da filosofia positivista (cf. COMTE, 1929, v. II, cap. 1) e, nesse sentido, são integrantes da concepção defendida pelos positivistas ortodoxos, sem os quais não faz sentido a sua “teoria do Brasil”. Sendo mais específicos, e diferentemente de grande parte dos analistas e intérpretes de sua época, os positivistas não consideravam o desenvolvimento do Brasil apenas nos termos mais ou menos genéricos de “surgimento e consolidação da nação”, ou da criação de um “tipo humano brasileiro”, ou da “oposição entre Estado e nação”; também não consideravam, de maneira correlata, o tratamento dessas questões tendo como pano de fundo a referência também mais ou menos abstrata às “nações mais desenvolvidas”: suas elaborações percebiam o Brasil como vinculado intimamente ao desenvolvimento da humanidade e de modo mais específico do Ocidente, considerando também as contribuições do país para a humanidade.
De acordo com Augusto Comte (1929; 1972; cf. LACERDA, 2010), desde o século XIV a Europa atravessa uma grande crise, que consiste em um duplo movimento: por um lado, destrutivo; por outro lado, construtivo. A destruição consiste no fim da ordem católico-feudal, próprio à Idade Média, primeiramente em aspectos secundários e marginais do sistema, depois sendo atacada em seu conjunto. A construção consistiu no surgimento de elementos que, ao mesmo tempo em que destruíam a ordem católico-feudal, desenvolviam traços e características de uma nova sociedade: a ciência, a atividade pacífico-industrial, concepções universalistas. A crise deflagrada após o século XIV consistiu no fato de que, embora a antiga ordem social estivesse exausta e sendo desfeita em seus vários traços, a nova ordem social ainda não estava pronta para sucedê-la: desde os 1400 até pelo menos 1789 essas duas dinâmicas foram concomitantes, embora com suas intensidades e seus ritmos variando de acordo com o momento específico e com cada país[5]. A Revolução Francesa, na concepção comtiana, corresponde a uma grande explosão social, em que a antiga ordem é destruída violentamente, subjugada pelos novos elementos – sem que, todavia, a nova sociedade constitua-se de maneira orgânica.
Quais seriam os elementos da nova sociedade, de maneira mais específica? De modo mais imediato, a atividade pacífico-industrial. Essa expressão abrange vários aspectos: a exploração racional do mundo, baseada tanto na aplicação dos conhecimentos técnico-científicos quanto, portanto, no cuidado com a sociedade e os cidadãos e também com o meio ambiente. Essa atividade não se baseia na guerra, isto é, não consiste mais no uso coletivo e generalizado da violência de uma sociedade contra outra, para dominar, para escravizar, para aniquilar, seja quais forem os fins (riqueza, poder, glória): ela deve ser pacífica, baseada na colaboração o mais livre possível entre os seres humanos, buscando-se o bem comum. A ultrapassagem da guerra em direção à atividade pacífico-industrial requer não apenas o desenvolvimento de elementos técnicos e científicos, mas principalmente o espalhamento de uma concepção de ser humano e de sociedade que adote com clareza o conceito de “humanidade”, isto é, o conjunto de seres humanos convergentes, passados, futuros e presentes: esse conceito subordinaria a si a idéia de “pátrias”, sem no entanto negá-las, de modo a regular o patriotismo e afirmar um conceito ao mesmo tempo intelectual e afetivo que possa de fato irmanar países e seres humanos.
O terceiro elemento é a concepção relativa e imanente da realidade, isto é, nem absolutista nem supraterrena. Grosso modo, essa concepção pode ser entendida como o empreendimento científico, que se opõe à teologia (e à versão corrompida da teologia, a metafísica), na medida em que a teologia é absolutista em termos filosóficos e supraterrena. Todavia, apesar de falar-se muitas vezes em “ciência” no singular, o fato é que há somente “ciências”, no plural: cada ciência corresponde tanto a um grau específico de abstração no estudo da realidade quanto ao estudo de um determinado tipo de objeto; em outras palavras, as ciências são fragmentárias e particulares. Em princípio não há problema em as ciências terem tais características: a dificuldade surge quando se considera que as ciências fragmentárias não propõem aos seres humanos concepções de conjunto sobre a realidade, sobre a sociedade e sobre os indivíduos, como a teologia faz; além disso, as ciências também se caracterizam pela especialização, acarretando não poucas vezes o seu isolamento progressivo ou, inversamente, o imperialismo intelectual de uma ciência sobre outras; tanto em um caso como em outro, Augusto Comte considera que as ciências com freqüência tendem, de maneira paradoxal, ao absolutismo filosófico.
Assim, cumpre o desenvolvimento de uma concepção geral da realidade que se baseie nas ciências mas que não se limite a elas, ou seja, que ao mesmo tempo seja sintética (em vez de analítica) e que, assim, seja capaz de contemplar os vários aspectos e as várias atividades humanas: a vida prática, os sentimentos, os pensamentos; a política, a economia, as artes, a ciência, a vida familiar. Mais particularmente, essa concepção deve abranger também os valores morais e, portanto, deve ter um caráter normativo, afirmando e valorizando o altruísmo, comprimindo (e, caso necessário, repreendendo) o egoísmo. Para Comte, essa concepção é de caráter filosófico e, ao estabelecer uma interpretação geral da realidade e parâmetros de relacionamento, consiste em uma religião: daí o grande sistema teórico que é o Positivismo e a proposta comtiana de Religião da Humanidade.
Para Comte, a perspectiva que afirma a humanidade e o altruísmo deve servir para regular também as diversas relações sociais. De modo mais específico, notamos que, aceitando tanto o governo quanto a propriedade privada, Comte afirmava a necessidade de orientá-los para a satisfação das necessidades sociais, o que resultava, no seu sistema filosófico, em um governo não autoritário, em cidadãos nem revoltosos nem servis, em patrões respeitadores dos padrões de vida de seus trabalhadores. Além disso, um Estado que não adote nenhuma crença em caráter oficial e que não a imponha aos cidadãos; inversamente, doutrinas, igrejas e associações que não usem o Estado para imporem-se nem para oprimirem outras doutrinas. Todas essas relações seriam afirmadas em um âmbito público não-estatal, ou seja, na sociedade civil; o órgão sistematizador e propagador dessas idéias religiosas seria a igreja positivista.
Embora relativamente longa, esta digressão foi necessária para que se compreenda tanto a interpretação que os positivistas ortodoxos faziam do Brasil quanto a sua própria atuação prática.
Enfim: para Comte, no duplo processo de decadência da ordem católico-feudal e de criação da sociedade pacífico-industrial, a península ibérica ocupava uma posição bastante específica. Desde o século XV o papado conferiu aos reis de Portugal e Espanha o regalismo, ou seja, o direito e o dever de protegerem a Igreja Católica em seus territórios, fossem os metropolitanos, fossem os coloniais. O regalismo por si só indica ao mesmo tempo a incapacidade do papado de manter e regular a igreja e a doutrina em determinados territórios e o poder material dos reis, isto é, sua capacidade de controlar seus territórios. De qualquer forma, pelo menos no caso português, ao regalismo associou-se o padroado, ou seja, a obrigação legal da igreja católica em um país de pedir autorização para o governo para os seus processos diversos, quer fossem doutrinários, quer fossem eclesiásticos.
Em linhas gerais, para Comte, a outorga feita pelo papado aos governos ibéricos do controle sobre a igreja resultou em que as populações portuguesa, espanhola e suas respectivas colônias (especialmente as americanas) estiveram muito mais sob a influência do poder Temporal que do poder Espiritual; além disso, o catolicismo praticado em tais países teria um caráter muito mais ritual, pro forma, que autêntico; a expulsão (e posterior fim) dos jesuítas em meados do século XVIII confirmaria essa tendência. Ainda assim, em virtude do peso histórico, o clero conservaria uma influência social considerável, especialmente na Europa: na América isso teria menor importância e, portanto, o surgimento de um novo poder Espiritual, positivo, em substituição ao católico, enfrentaria menores obstáculos. Não por acaso, a seguinte citação, que resume essas considerações, é usada por Teixeira Mendes (1936 [1892], p. 1) como epígrafe do cap. 1 da sua biografia de Benjamin Constant:
"Porém, por mais normais que sejam essas esperanças quanto ao clero na Península [Ibérica], elas parecem-me convir sobretudo à expansão americana do duplo elemento ibérico. O centro romano pode, na Espanha, obstar a regeneração do sacerdócio, se não em virtude de uma preponderância direta, há muito extinta aí mais do que alhures, pelo menos em virtude do ascendente indireto que lhe conservam as disposições populares. O mesmo não acontece na América, onde o papado jamais prevaleceu senão por meio da realeza, única fonte real da hierarquia eclesiástica. Depois que as colônias católicas obtiveram a independência política, a influência romana encontra-se aí naturalmente desenraizada. Ainda que os chefes temporais falhem aí em termos de consistência, eles devem espontaneamente suceder às atribuições eclesiásticas do governo real. Esses ditadores precários, ainda que empíricos, devem respeitar mais a independência de um único sacerdócio incorporado profundamente a tais populações" (COMTE, 1929, v. IV, p. 488-489).
Um outro aspecto importante das concepções especificamente de Comte é o caráter ao mesmo tempo social e afetivo das populações neolatinas, o que evidentemente inclui Portugal e a sua colônia americana, o Brasil. Para Comte, os países do Sul da Europa integraram diretamente o Império Romano e, assim, sofreram a sua influência, que consistiu em estimular a sociabilidade, ao criar uma grande associação humana surgida da guerra mas voltada para a paz, subordinando a política à moral e a inteligência à política. Assim, os países do Sul da Europa teriam unido os avanços intelectuais gregos à sociabilidade romana (algo que os países do Norte da Europa só obtiveram indiretamente, por meio da expansão posterior do catolicismo): no esquema comtiano, a civilização católico-feudal desenvolveu os atributos afetivos, com o culto cavalheiresco à mulher, com as preocupações diretamente morais (embora mais voltadas para um certo combate ao egoísmo que para o estímulo do altruísmo), mas também com a progressiva emancipação dos escravos (que passaram a homens livres via servidão nas glebas), com as guerras defensivas (em relação às sucessivas invasões bárbaras e, depois, com a reação à expansão do Islã) e com o ensaio da separação entre os dois poderes (com o poder Espiritual unificado em meio à dispersão feudal e com as disputas entre o papa e o imperador).
No caso específico de Portugal, as lutas contra os mouros e, depois, a afirmação da identidade política face aos reinos espanhóis conduziu à precoce unidade política ainda no fim da Idade Média. A monarquia lusa, depois do século XIV, dobrou perante si a igreja católica e a nobreza, promovendo, por um lado, a confusão entre os dois poderes e, por outro lado, afirmando-se como a fonte de poder. Após o ciclo da afirmação da nacionalidade, nos séculos XII e XIII, o país passou a dedicar-se à exploração marítima, contornando primeiramente a África e depois atravessando o Atlântico, rumo ao Brasil.

3. Alguns dos elementos da “teoria do Brasil” dos positivistas ortodoxos

3.1. Composição étnica do Brasil

O primeiro elemento da teoria do Brasil dos positivistas ortodoxos que devemos considerar refere-se à composição étnica do país. Teixeira Mendes nota que a população brasileira é composta pelos tipos europeu, africano e autóctone, definidos em termos de seus respectivos desenvolvimentos: o português, como vimos, seria o grupo ao mesmo tempo intelectual e social, que, integrando o movimento geral da Europa, atravessaria a transição revolucionária em direção à plena positividade; além disso, como comprovariam os costumes gerais e a língua, foi o grupo dominante na constituição do Brasil. Os índios e os africanos eram povos feiticistas (TEIXEIRA MENDES, 1977 [1880], p. 47; 1936 [1892], p. 2-3), colaborando com a imaginação e, no caso específico dos escravos negros, desenvolveriam bastante os atributos afetivos do povo brasileiro.
Teixeira Mendes observa que o isolamento geográfico e político da nação brasileira manteve o país distante dos progressos intelectuais e industriais realizados na Europa, especialmente nos países protestantes. Sem dúvida, isso nos privou de avanços importantes; mas, por outro lado, também evitou que se difundisse no Brasil a “semiputrefação” a que uma “incompleta emancipação teológica” condenava esses países. Como o catolicismo nacional era pro forma e os colonos brasileiros de origem portuguesa buscavam aqui a melhora das condições materiais, o país manteve-se livre dos grupos sociais mais energicamente retrógrados. A conjugação desses fatores resultaria em que não seria difícil ao Brasil a assimilação posterior dos progressos intelectuais e materiais das nações mais desenvolvidas, ao mesmo tempo em que se garantiria a subordinação desses progressos à cultura afetiva – o que, no sistema comtiano, equivale ao estímulo do altruísmo, da sociabilidade e do caráter e do destino sociais da inteligência[6].
A mistura dos três grupos sociais e a prevalência do elemento português na exposição de Teixeira Mendes apresentam dois aspectos dignos de nota. Em primeiro lugar, Teixeira Mendes fala em “raça” ao longo dos textos, especialmente na comemoração de Camões: mas, entre os vários empregos dessa palavra, aqui e ali ele observa que a emprega em sentido sociológico e não biológico. A investigação de diferenças biológicas entre os seres humanos como fundamento para a afirmação das raças, de acordo com a narrativa de Teixeira Mendes, seria anticientífica (TEIXEIRA MENDES, 1977 [1880], p. 41), isto é, metafísica. Para Teixeira Mendes, seguindo A. Comte, em termos biológicos o que há é unidade do ser humano (no que se refere à natureza humana); as diferenças não são dadas a priori por variações genéticas, mas, bem ao contrário, o que ocorre são diferenças de adaptação dos vários grupos aos seus ambientes, que a pouco e pouco se fixam nos grupos sociais: quando se trata do ser humano, portanto, a discussão sobre as raças deve pautar-se pelas investigações históricas e sociológicas, em vez de pelas biológicas.
Em segundo lugar, há uma sensível diferença de ênfase entre a conferência de 1880 e o livro de 1892 a respeito da colaboração dos povos feiticistas na constituição do povo brasileiro. Na comemoração de Camões, Teixeira Mendes afirma a um tempo a afetividade dos negros africanos, bem como o caráter social e também afetivo dos portugueses; também lembra que o fetichismo estimula a imaginação e a afetividade[7]. Entretanto, ao avaliar a contribuição que os índios e os africanos teriam para a formação étnica brasileira, caso tivessem a proeminência, considera que seria pequena ou mesmo negativa, em virtude do estágio em que se encontravam em suas evoluções, especialmente se comparado com os portugueses (TEIXEIRA MENDES, 1977 [1880], p. 47). Essas considerações não deixam de parecer um pouco brutais para os leitores do início do século XXI; entretanto, relendo atentamente os trechos o que se evidencia é que a preocupação de Teixeira Mendes está na direção geral do processo e não propriamente nas colaborações parciais dos grupos: nesse sentido, o que aconteceria com o nível de abstração atingido pelos portugueses se os índios ou os africanos dirigissem a colonização? Ou, então, como ficaria a instituição da monogamia ou as vistas gerais de humanidade em situação similar? De qualquer forma, na biografia de Benjamin Constant, ainda que não interessasse a Teixeira Mendes estender-se a respeito da formação étnica do Brasil, ele comenta de maneira mais suave e positiva a contribuição dos dois grupos subalternos (especialmente dos africanos) para o Brasil, notando que eles influenciaram-nos em particular no sentido de aumentar e estimular a afetividade (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 3). Além disso, em ambos os livros Teixeira Mendes não deixa de afirmar a responsabilidade dos europeus pelos seus crimes, a começar pelas escravidões dos índios e, depois, dos africanos na América (que, cada uma a seu tempo, contou com o apoio direto da igreja católica) e referindo-se também, entre outras coisas, ao “criminoso industrialismo” que prevalecia em sua época e que degradava os trabalhadores e desunia os seres humanos.
Pondo de lado as diferentes preocupações de cada um dos escritos – explicar a importância social e literária de Camões em um caso, explicar a importância social e política de Benjamin Constant no outro caso –, como poderíamos entender as ênfases nos dois escritos? Antes de mais nada, temos que observar que Teixeira Mendes era muito coerente consigo próprio, ou seja, a partir dos escritos de Augusto Comte, procurou manter ao longo de sua vida adulta concepções estáveis sobre o mundo e a sociedade; ainda assim, essa coerência ao longo do tempo não equivale a dureza ou alheamento à realidade; em vários momentos ele (bem como Miguel Lemos) mudou publicamente de opinião – como, por exemplo, nas recomendações a respeito dos destinos para os negros tornados livres, em que passaram de sugerir a transformação dos negros em servos da gleba (nas mesmas antigas fazendas em que antes eram escravos) para a sua incorporação direta nas cidades, como proletariado livre e respeitado (cf. LINS, 1973); em outro momento (TEIXEIRA MENDES, 1915) comentou que, ao longo do tempo, procurou ser sempre cada vez mais positivo, isto é, mais altruísta, mais sintético, mais cooperativo. Dito isso, parece-nos que há duas ou três razões para as diferentes ênfases, todas de caráter mais ou menos “contextual”. Em primeiro lugar, a comemoração de Camões foi um dos seus primeiros escritos públicos de grande alcance com base no Positivismo, quando contava com menos de 25 anos de idade: embora já conhecedor das idéias de Comte, percebe-se um tom enérgico, que poderíamos considerar como sendo um pouco próprio à idade; a energia dos seus textos manteve-se, mas sem dúvida ele adocicou-se com o passar do tempo. Em segundo lugar, entre os dois escritos a participação política de Teixeira Mendes aumentou bastante: por “participação política” não entendemos a vida partidária, mas, de acordo com o ideal dos positivistas ortodoxos de constituírem-se em um poder Espiritual, incluímos aí as intervenções cotidianas nos assuntos públicos, por meio de prédicas, palestras e escritos. Ao longo da década de 1880, como se sabe, entre as várias campanhas que agitaram a sociedade civil e os políticos brasileiros, uma destacou-se: a campanha pela abolição da escravatura. Assim, embora ainda tencionemos verificar seus posicionamentos diretamente nos textos publicados sobre esse tema, cremos que foi o decidido engajamento dos positivistas na campanha abolicionista que fez Teixeira Mendes mudar sua ênfase a respeito da colaboração das raças na constituição da nacionalidade brasileira[8].

3.2. A independência nacional

O segundo elemento que abordaremos da “teoria do Brasil” dos positivistas ortodoxos é o da independência nacional, exposta principalmente na biografia de Benjamin Constant (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892]).
Seguindo a teoria comtiana, Teixeira Mendes observa alguns aspectos a respeito da expansão territorial européia desde o século XV e os processos de independência dos séculos XVIII e XIX. De acordo com A. Comte, as grandes nações modernas surgiram devido à decadência do ascendente religioso existente na Idade Média, seja porque os reis passaram a manter o controle territorial via força das armas, sem reguladores morais, seja porque a própria ausência da regulação moral deixou os reis entregues a si próprios, preocupados apenas com a expansão territorial: em outras palavras, prolongando a política guerreira em termos internacionais (ainda que desenvolvendo a política pacífica internamente). Ao mesmo tempo, a expansão marítima e comercial levou os europeus a procurarem novos territórios fora da Europa, conduzindo aos ciclos das grandes navegações e da colonização das Américas.
Por outro lado, para Comte as pátrias da sociedade pacífico-industrial devem ser pequenas, com áreas variando entre as dos Países Baixos (41,5 mil km2) e de Portugal (92,4 mil km2)[9]. Essa pequena extensão corresponderia a um vínculo político forte, que deve basear-se na associação livre dos cidadãos irmanados pela atividade pacífica e por história e valores comuns; além disso, e de modo mais importante, a pequena extensão territorial permite um conhecimento mais direto dos cidadãos entre si, o que aumenta a confiança mútua e também a responsabilidade dos gestores públicos e privados dos diversos tipos de capital.
No que se refere ao continente americano, os europeus realizaram a colonização da América desde o século XVI de diferentes maneiras e com variados objetivos, mas no fim do século XVIII as antigas colônias já se encontravam relativamente estruturadas e conscientes de si. Nesse período, as metrópoles passaram a cobrar cada vez mais tributos das colônias, ao mesmo tempo que a impor mais e mais restrições às suas vidas autônomas: controle das alfândegas, restrições às liberdades de pensamento e discussão etc. Aliás, em parte o aumento das exigências metropolitanas deveu-se exatamente à estruturação e à riqueza das colônias, sem que, em contrapartida às taxações adicionais, as metrópoles preocupassem-se com o desenvolvimento das terras d’além-mar: para Londres, Lisboa e Madri, a América era fonte de riquezas e eventualmente foco de conflitos, mas não parceira na vida nacional da Europa.
A despeito dos esforços de muitos dos habitantes das colônias americanas com vistas a manterem a unidade política, as ações metropolitanas eram claramente no sentido de aumentarem as restrições e as taxações, resultando em tirania. Como se sabe, a primeira colônia da América a declarar-se e a fazer-se independente, nesse quadro, foram os Estados Unidos[10]; nesse período, as idéias críticas de A. Sidney, J. Locke e de outros pensadores contratualistas – metafísicos, de acordo com as concepções comtianas – foram instrumentais para a crítica ao governo metropolitano. A luta pela independência estadunidense, bem como o seu sucesso, influenciaram bastante tanto os outros países europeus quanto as demais colônias americanas.
No que se refere aos colonos portugueses na América, Teixeira Mendes caracteriza-os como sendo populares que buscavam em terras d’além-mar o melhoramento de suas condições. Além disso, como a igreja era subordinada ao rei, a maior fonte de prestígio estava, precisamente, no rei: essas duas circunstâncias uniram-se para que “[...] a nação brasileira se formou na ausência quase total de qualquer das classes dirigentes do regime católico-feudal e, portanto, livre das enérgicas tendências retrógradas de tais classes” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 3).
Nesse quadro, o exemplo das colônias inglesas na América do Norte e o garroteamento imposto por Portugal ao Brasil tiveram como primeira conseqüência a Inconfidência Mineira e a conseqüente morte solitária do Tiradentes. No caso de Tiradentes, Teixeira Mendes comenta que ele não era o líder da insurgência nem se destacava por suas habilidades políticas, mas a coragem e o desprendimento que exibiu no processo criminal e na sua execução tornaram-no um símbolo da independência do país. Por outro lado, observa Teixeira Mendes que, no ano em que a Inconfidência foi tornada pública, iniciava-se também a Revolução Francesa, passando a França a influenciar mais diretamente os rumos do Brasil doravante: fosse com o Positivismo a partir de meados do século XIX, fosse mais diretamente no início do século XIX, quando Napoleão Bonaparte invadiu a Península Ibérica, acarretando a migração forçada da família real portuguesa para o Brasil.
A vinda da família real e da corte para a América trouxeram consigo várias medidas que equipararam os dois países em termos políticos e que aliviaram as pressões sofridas pela antiga colônia. Mesmo assim, problemas de longa data acarretaram em Pernambuco, em 1817, sublevações republicanas, o “[...] que veio identificar ainda mais o sentimento popular da independência com as aspirações republicanas da parte mais avançada da nação” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 6).
Assim, as medidas tomadas ao longo da década de 1810 resultaram em que
“A separação política das duas porções da raça portuguesa parecia conjurada pela satisfação dada às aspirações nacionais, quer do povo, quer da massa dirigente. Quebradas as opressões mais intoleráveis, a monarquia lusitana apresentava o aspecto de uma livre federação sob a presidência de uma realeza tradicionalmente venerada” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 6-7).
A revolução do Porto, de 1820, reverteu esse quadro, trazendo consigo o retorno do Brasil ao statu quo ante, na condição de colônia estreitamente controlada: com isso, o movimento independentista reapresentou-se.
Para Teixeira Mendes, face às condições sociais e políticas vividas pelo Brasil desde meados do século XVIII, a independência do Brasil era questão de encontrar-se um líder capaz de empolgar a nação e realizar o movimento. Após a inconfidência mineira, a vinda da família real tornou aceitáveis as condições em que vivia o Brasil, mas o retorno do rei a Portugal reverteu o quadro: nesse momento apresenta-se a figura de José Bonifácio.
“José Bonifácio, o tipo mais eminente da raça portuguesa naquele tempo, reconhecendo a gravidade da situação, pôs-se à testa dos patriotas. Um pensamento o domina. Frustrada a união política dos portugueses de ambos os hemisférios, o velho cidadão preocupa-se com salvar pelo menos a unidade da América portuguesa. Essa unidade se lhe oferece no seu duplo aspecto: manutenção da integridade política das pátrias brasileiras e fusão completa das três raças que as constituem, de modo a formar com elas uma nação homogênea” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 7).
No que se refere à unidade política do Brasil, Teixeira Mendes nota que a colonização do Brasil foi “empírica” e “não-sistemática”, ou seja, foi feita de maneira irregular, de acordo com as possibilidades, as necessidades e as oportunidades; com isso, os vários núcleos de povoamento tinham poucos contatos entre si e nenhum deles centralizava e coordenava, de fato, todos eles[11]; muitas províncias comunicavam-se mais repetida e facilmente com a Europa que com o Rio; finalmente, algumas províncias eram suspicazes em relação a outras, como no caso de Pernambuco em relação à Corte (devido ao movimento republicano de 1817); por fim, em todo o território havia tropas militares de origem européia. O problema de José Bonifácio, nesse sentido, era tornar o Brasil independente e ao mesmo tempo manter todas as províncias unidas, a despeito dos poucos e frágeis laços que as uniam entre si.
No que se refere à unidade étnica, Teixeira Mendes define assim o problema:
“Examinada na sua composição, a população incorporada à civilização ocidental, dividia-se em duas castas: uma de senhores, outra de escravos. E a população indígena, que escapara às devastações, vagava errante pelo interior em tribos mais ou menos desmoralizadas pelos contatos ocidentais” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 7).
Nesses termos, as dificuldades estavam em acabar com a divisão entre senhores e escravos, que, econômica e jurídica, perpetuava-se no tempo e era consagrada pelo catolicismo, chegando a constituir duas diferentes castas sociais. Da mesma forma, era necessário incorporar os índios à sociedade nacional sem os erradicar fisicamente nem os degradar moral e culturalmente, ou seja, permitindo ao mesmo tempo as trocas culturais e a digna autonomia das tribos indígenas.
Para Teixeira Mendes, a solução obtida por José Bonifácio para esses dois problemas foi a instalação da monarquia constitucional no Brasil. Essa monarquia seria encabeçada pelo príncipe regente, herdeiro presuntivo do rei: o respeito tradicional à monarquia bragantina garantiria de um lado a unidade política e, por outro lado, a reprodução no país da doutrina constitucionalista européia seria a forma por que as liberdades públicas seriam consagradas. Ainda assim, a essa proposta a resistência pernambucana tanto à monarquia quanto à centralização no Rio de Janeiro seria uma dificuldade.
A monarquia constitucional também permitiu “solucionar”, ou melhor, encaminhar o outro problema, qual seja, o da unidade étnica. Teixeira Mendes faz duas observações sobre José Bonifácio a esse respeito: por um lado, o político santista não concebia uma república com escravos; por outro lado, ele tinha projetado a emancipação gradual mas rápida dos escravos brasileiros; da mesma forma, ele projetara a incorporação dos índios com base na ciência, em vez de com base na catequese teológica. Uma república não poderia ser escravista (mesmo que por pouco tempo): a monarquia podia. Dessa forma, sem poder de fato acabar (pelo menos imediatamente) com o tráfico negreiro e com a escravidão, a monarquia serviu para manter ambas as práticas[12].
Mesmo com essas importantes limitações, Teixeira Mendes julga que José Bonifácio merece o título de estadista – na verdade, o único estadista brasileiro até 1891-1892 –, em virtude de ele ter compreendido os problemas brasileiros mais profundos:
“Foi assim que José Bonifácio patenteou ter sido até hoje o único estadista de nossa pátria. Depois dele se procura em vão quem tenha apanhado em toda a sua plenitude o conjunto do problema brasileiro. As suas soluções foram empíricas e por isso quiméricas ou insuficientes; mas é força convir que as luzes de então dificilmente comportavam outras. Infelizmente só poude o patriota realizar a parte mais secundária de seus projetos, instituindo a unidade política das pátrias brasileiras” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 8).
Na biografia de Benjamin Constant, a narrativa de Teixeira Mendes segue tratando das vicissitudes da política imperial – isto é, expondo-as e avaliando-as –, nos seus três grandes períodos (o I Império, o interregno regencial e o II Império). Ela é interessante, seja devido à exposição factual, seja devido aos comentários avaliativos sobre cada um desses momentos; todavia, não trataremos deles, na medida em que desejávamos apresentar, nesta seção, a interpretação que fez Teixeira Mendes da teoria comtiana da história e sua aplicação na história brasileira, a respeito do contexto e dos problemas enfrentados no período da independência nacional.
De qualquer forma, cabem ainda alguns comentários a respeito da “teoria das pátrias brasileiras”, conforme proposta por Teixeira Mendes. Nas exposições acima, aqui e ali usou-se essa expressão – “pátrias brasileiras” –; o plural aí não é acidente: o vice-Diretor da Igreja Positivista, ao empregá-la, considera duas acepções, pelo menos. A primeira é histórico e descritivo, correspondente à pluralidade de províncias brasileiras, surgidas ao longo da colonização: essas várias províncias, como indicamos há pouco, surgiram e desenvolveram-se de maneira “empírica” e “não sistemática”, conforme a avaliação de T. Mendes, mantendo entre si e entre elas e as capitais (fosse metropolitana, no caso de Lisboa, fosse colonial, nos casos de Salvador e, depois, do Rio de Janeiro) vínculos bastante frouxos: em vez de ligações verdadeiramente orgânicas entre as províncias e entre elas e a capital, o que existiria no Brasil seria mais uma “colcha de retalhos” política.
A segunda acepção é de caráter normativo e baseia-se na definição comtiana das “pátrias”, conforme visto acima: devem ser unidades políticas de tamanho reduzido, em que a cooperação material (isto é, política e econômica) seja pacífica e plenamente voluntária e em que seja possível o contato pessoal entre os líderes políticos e o corpo de cidadãos, entre os chefes industriais e o proletariado e, portanto, seja efetivamente possível cumprir as responsabilidades sociais do poder, da riqueza e do controle social dos recursos públicos.
Ao referir-se a “pátrias brasileiras” em meio às suas narrativas a respeito da formação territorial e étnica do Brasil, bem como do processo de independência nacional, Teixeira Mendes evidencia que reconhece a pluralidade das formações sociais e políticas brasileiras – incluindo aí as tribos indígenas – e que, rejeitando o unitarismo político, advoga o federalismo ou o confederalismo[13]. A defesa do federalismo ou do confederalismo não é absoluta, no sentido de que os consideraria válidos a qualquer instante ou a qualquer transe: seguindo o relativismo comtiano, em sua discussão sobre a independência nacional e sobre as propostas de José Bonifácio, Teixeira Mendes demonstra que reconhece a centralização política como o instrumento, de caráter transitório, encontrado naquele momento para (1) obter-se a independência das pátrias brasileiras, (2) de maneira pacífica (fosse mais ou menos em relação a Portugal, fosse das províncias entre si, fosse mesmo do Brasil em relação aos países vizinhos); da mesma forma, essa centralização seria aceitável desde que respeitasse as liberdades civis, políticas e sociais (o que foi prometido em 1822, mas desrespeitado no período posterior a 1823 (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 12-13)).

4. Comentários finais

Em virtude do tamanho necessariamente reduzido deste artigo, a exposição das concepções sociais e políticas dos positivistas ortodoxos – que compendiamos na categoria “teoria do Brasil” – tiveram que se limitar a apenas dois elementos, ainda que amplos: a formação étnica e o processo de independência. Muitas outras questões ainda poderiam ser incluídas na rubrica da “teoria do Brasil”: a crítica à Guerra da Tríplice Aliança; a defesa do abolicionismo; a incorporação dos índios à sociedade brasileira; a incorporação do proletariado à sociedade; a defesa de uma política externa brasileira e de uma política internacional pacíficas; a separação entre igreja e Estado; a defesa de um imaginário especificamente republicano, humanista e fraterno para a República brasileira após 1889.
Seja com base nos elementos expostos neste artigo, seja com base em pesquisas prévias (LACERDA, 2013a; 2013b), parece-nos que é possível tirar algumas conclusões e (re)afirmar algumas considerações, incluindo uma clara defesa da produção intelectual e política dos positivistas ortodoxos brasileiros.
A primeira consideração diz respeito ao título “ortodoxo” e à conotação usual de que a ortodoxia corresponderia a um engessamento mental, ou mesmo a um reacionarismo intelectual e/ou político. Miguel Lemos e Teixeira Mendes, seguindo as orientações de Augusto Comte (cf., p. ex., COMTE, 1929, v. I-IV, prefácios), definiam-se como “ortodoxos” em virtude de aceitarem a integralidade da obra de Comte, ou seja, por incluírem em suas reflexões os livros políticos e religiosos do fundador do Positivismo, em vez de limitarem-se ao exame preliminar que Comte fez das ciências e das filosofias das ciências. Dessa forma, o serem “ortodoxos” não os impedia de interpretarem a realidade, em particular a realidade nacional. Aliás, bem vistas as coisas, nem haveria motivos epistemológicos para tal impossibilidade, na medida em que, como se sabe – e como o próprio Comte afirmava, em contraposição aos empiristas radicais –, qualquer exame da realidade requer um conjunto preliminar de idéias e hipóteses: o Positivismo, mais que um mero “conjunto preliminar de idéias e hipóteses”, apresenta uma visão geral da realidade, abrangendo valores morais, métodos de pesquisa e categorias analíticas, que permitem ter uma visão de conjunto da história e, com base nela, descer aos detalhes e às particularidades nacionais. Pode-se gostar ou não das análises dos positivistas ortodoxos, pode-se concordar ou não com elas: em todo caso, conforme já defendemos anteriormente (LACERDA, 2013a), parece difícil que uma leitura cuidadosa e honesta de seus escritos corrobore a famosa tese exposta por Sérgio Buarque de Hollanda em Raízes do Brasil, tantas vezes repetida de diferentes formas por muitos autores, segundo a qual os positivistas teriam um “secreto horror à realidade”.
As discussões dos positivistas ortodoxos conjugavam exposições da história nacional com interpretações originais, por meio da aplicação de perspectivas teórico-metodológicas delimitadas, começando por um conceito de historicidade que poderíamos denominar de “historicidade profunda”, ou, de acordo com a terminologia proposta por A. Comte, de “filiação histórica” (COMTE, 2012): cada época tem suas condições sociais preparadas e definidas pelas épocas prévias, ao mesmo tempo em que preparam e definem as condições para os períodos seguintes; da mesma forma, o “social” das “condições sociais” tem que ser entendido de maneira ampla, abrangendo a política e a economia, mas também a filosofia, a moral, as artes (que geralmente são compendiadas nos rótulos gerais de “ideologia” e/ou “cultura”), resultando em uma exposição que em suas linhas mais grosseiras é simples, mas que se complica e ramifica-se à medida que se realiza o ajuste fino da análise. A definição e a aplicação desses procedimentos teórico-metodológicos resultam em que a narrativa histórico-sociológica dos positivistas ortodoxos conjuga a todo instante as “estruturas” com a “agência”: em cada momento, em cada configuração social, os indivíduos agem de acordo com as possibilidades e os limites das configurações anteriores, conformando as configurações seguintes. As várias ações dos indivíduos são feitas ativamente e é função tanto de seus resultados coletivos e históricos quanto de suas intenções que esses indivíduos são avaliados.
Por fim, importa notar que os positivistas ortodoxos defendiam um modelo de organização social e política ideal, ou seja, uma utopia. Esse modelo, conforme a definição de Augusto Comte, em termos sociais era a “sociocracia” e, em termos políticos, era a república. Neste artigo apresentamos apenas alguns elementos tanto de uma quanto de outra, mas em outros artigos (cf. p. ex., LACERDA, 2010; 2013b) apresentamos de maneira mais completa, e complexa, tais concepções: o seu conjunto revela um modelo que poderíamos qualificar de “modelo denso de república”, bem como um “modelo denso de sociedade”. Embora seja hábito corrente nos meios acadêmicos o ridicularizar e o sugerir que tais propostas seriam liberticidas, em outra ocasião argumentamos (LACERDA, 2009) que tais observações costumam basear-se seja em um completo desconhecimento das idéias de Comte, seja em preconceitos intelectuais e políticos, seja na prática do double standart, isto é, nos “dois pesos e duas medidas”. Assim, o resultado é que as propostas de Comte, consubstanciadas em termos políticos na república sociocrática, são válidas e dignas de atenção, reflexão e, a partir daí, de aplicação prática: as amplas e longas aplicações que delas fizeram os positivistas ortodoxos brasileiros são um exemplo disso.

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[1] Gustavo Biscaia de Lacerda (GBLacerda@gmail.com) é Doutor em Sociologia Política e “pós-doutor” em Teoria Política, ambos pela UFSC, e sociólogo da UFPR.
[2] Entre esses vários estudos, podemos citar as recensões de Alonso (1996) e Trindade (2007); as exposições de João C. O. Torres (1943), Cruz Costa (1956), Soares (1998) e Lins (2009), além das pesquisas de Carvalho (1990), Graebin e Leal (1998), Maio (2004), Maestri (2010; 2011) e Ribeiro (2012).
[3] Entre outras características, os opúsculos da IPB eram numerados em ordem seqüencial desde que começaram a ser publicados, em 1881; além disso, seus títulos e subtítulos são bastante explicativos: dessa forma, com uma dessas publicações em mãos, é possível tanto saber quantos foram publicados até aquela data quanto saber com grande clareza o assunto de que trata. É em virtude da numeração contínua que sabemos que foram publicados mais de 500 textos desde 1881 até, pelo menos, 1930; por outro lado, como em meados de 2013 tínhamos acesso a apenas cerca de 350 dos títulos do acervo, limitamos então a classificação a esse conjunto.
[4] Na verdade, desejávamos também apresentar neste artigo algumas observações a respeito da implantação da república no Brasil; todavia, em virtude das limitações de espaço, tivemos que suprimir esse tópico.
[5] Essa observação parece evidente, mas na verdade não é. O esquema geral das idéias históricas de Augusto Comte é claro e pode ser exposto em relativamente poucas linhas; entretanto, à medida que se entra nos detalhes referentes tanto aos vários períodos do desenvolvimento histórico (particularmente ocidental) quanto aos vários lugares que passam por esse desenvolvimento, a exposição ganha detalhes e o esquema geral complica-se. Devido à obrigatória brevidade deste artigo, não é possível descer a muitos detalhes.
[6] Como se sabe, a contraposição entre os caracteres dos povos neolatinos aos anglossaxões (ou, de modo equivalente para vários autores, das tradições católicas às protestantes) teve, como ainda tem, uma grande carreira teórica. Teixeira Mendes, seguindo Comte, valoriza as características neolatinas, em oposição aos anglossaxões. Uma perspectiva bastante semelhante foi retomada nas últimas décadas por Richard Morse (1988) – embora ele não deixe de referir-se de maneira zombeteira e superficial aos positivistas –, em oposição a autores como Sérgio Buarque de Hollanda, que consideravam negativamente a origem lusitana do Brasil (cf. MONTEIRO, 2009).
[7] O caráter ritual do catolicismo praticado no Brasil reduzir-se-ia a mero fetichismo das celebrações: “Bem cedo ficou ele [o catolicismo no Brasil] reduzido, como hoje [1892], a presidir às cerimônias comoventes de um culto no qual o fetichismo medievo vinha misturar-se com o fetichismo índio e africano” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 3)
[8] A partir do momento em que assumiram a defesa do fim da escravidão, os positivistas ortodoxos foram sempre bastante claros e sistemáticos a respeito. Alguns comentadores – como João Cruz Costa (1956) – ironizam as proscrições que Miguel Lemos realizou no movimento positivista logo que o assumiu, em 1880, mas deixam de notar, ou de enfatizar, que algumas de tais proscrições eram devidas à exigência de os positivistas não terem escravos, ou seja, era uma questão de coerência política.
De qualquer forma, Ribeiro (2012) recupera alguns dos argumentos dos positivistas ortodoxos a respeito do abolicionismo, ainda que sua pesquisa tente realizar um contraponto entre os positivistas (M. Lemos, Teixeira Mendes) e os liberais (J. Nabuco) e, ao tratar dos positivistas, sua narrativa seja monótona e sem vigor.
[9] Em termos dos estados brasileiros, a sugestão de Comte corresponderia à variação havida entre o Espírito Santo (46,1 mil km2) e Pernambuco (98,3 mil km2), passando pelo Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Paraíba e Santa Catarina (cf. LACERDA, 2010, p. 296-298).
[10] Augusto Comte considerava que, mesmo antes da independência dos EUA, o processo de fragmentação das grandes nações começou com a luta neerlandesa por sua independência em relação à Espanha, nos séculos XVI e XVII. De qualquer forma, o caso dos Estados Unidos é mais ilustrativo, pois tratou-se da separação entre dois povos de mesma língua, mesma fé e mesma cultura (cf. COMTE, 1929, v. IV, p. 460-467; LACERDA, 2010, p. 352).
[11] Essa falta de coordenação entre os núcleos de povoamento, nota de passagem T. Mendes, persistia até pelo menos o momento em que redigia a biografia de Benjamin Constant, ou seja, até pelo menos 1891-1892: “[...] o Brasil não possuía então, como realmente não possui hoje, uma verdadeira capital” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 7).
[12] Mais adiante, Teixeira Mendes nota que os novos países americanos surgiam como repúblicas, embora fossem repúblicas muito imperfeitas: com escravidão no caso dos Estados Unidos, com religião de Estado no caso dos países hispano-americanos (“verdadeiras monarquias constitucionais sem rei”); além disso, a instituição das repúblicas, novamente no caso da América hispânica, deu-se com a ocorrência de grandes conflitos com a metrópole e, depois, de guerras civis (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 9-10).
[13] O federalismo seria claramente defendido no projeto de constituição federal apresentado por Miguel Lemos e Teixeira Mendes em 1890, logo em seguida à Proclamação da República, no famoso documento intitulado “Bases de uma Constituição política ditatorial federativa para a república brasileira”. Sendo mais específicos, nos artigos 1º e 2º, Lemos e Teixeira Mendes defendem tanto o federalismo quanto o confederalismo: uma federação entre os “estados ocidentais brasileiros” (as antigas províncias do Império) e os “estados americanos brasileiros” (as tribos indígenas dispersas pelo território brasileiro) e uma confederação entre os vários “estados ocidentais brasileiros”. Cf. Lemos e Teixeira Mendes (1890). 

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