16 outubro 2024

Berenice Mendes: documentário "Memória de David"

Em 1988 a documentarista Berenice Mendes produziu o vídeo Memória de David, em homenagem ao historiador paranaense David Antônio da Silva Carneiro (1904-1990).

A partir de outras reproduções na internet, inserimos esse documentário - em três partes - em nosso canal Positivismo.

As três partes do vídeo estão disponíveis aqui:

 - parte 1: https://youtu.be/C-X9cLyZlCk

- parte 2: https://youtu.be/3oGb7Wl9yZY

- parte 3: https://youtu.be/UfAZCwjSn0w

 

Cassiana Lacerda: resumo biográfico de David Carneiro

A historiadora paranaense Cassiana C. Lacerda postou no Facebook em 17.2.2019 um belo e informativo texto com um resumo biográfico do grande positivista, o historiador, economista, museólogo, empreendedor e professor David Antônio da Silva Carneiro.

Esse texto, na verdade, foi elaborado na inauguração da Escola David Carneiro, inaugurada alguns dias antes, no município da Lapa, a que o prof. David Carneiro estaria cada vez mais ligado ao longo de sua vida.

(Vale notar que,  no Paraná, há escolas públicas intituladas "David Carneiro" pelo menos também em Curitiba, em Araucária e em União da Vitória.)

Devido à quantidade e à qualidade de suas informações, reproduzimos abaixo o texto de Cassiana Lacerda.

A postagem original pode ser lida aqui: https://www.facebook.com/groups/417557358409468/posts/1256356454529550/

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DAVID ANTONIO DA SILVA CARNEIRO

Cassiana Carolo Lacerda

 

DAVID ANTONIO DA SILVA CARNEIRO (Curitiba, 29 de março de 1904 – Curitiba, 3 de agosto de 1990).

Historiador, professor universitário, escritor, ensaísta, pesquisador, museólogo, colecionador, estudioso de heráldica e nobiliarquia, professor universitário, empresário de cinema, empreendedor e mecenas.

Filho do Coronel David Antonio Carneiro e de Alice Monteiro Carneiro, interessa-se por temas históricos desde os tempos de menino, quando começa a colecionar moedas, sob incentivo, respectivamente, de seu pai e de seu avô.

Essas moedas foram a gênese do Museu Coronel David Carneiro, criado por ele em 1928 e, posteriormente, reunido no Museu David Carneiro.

Entre 1918 e 1922 estuda no Colégio Militar de Barbacena e e, a seguir, no Colégio Militar do Rio de Janeiro/RJ. Influenciado por professores como Alfredo Severo e Heitor Cajati, guarda desse período a identificação com a filosofia positivista de Augusto Comte, que passa a seguir e a propagar, tendo construído no prédio do museu uma Capela Positivista.

Avesso à carreira militar, volta a Curitiba, entre 1923 e 1924, onde tem aulas com o pintor Lange de Morretes.

Em 1927, diplomou-se em Engenharia pela UFPr.

Nesse período, seu colega de Colégio Militar, João Gualberto Gomes de Sá Filho, casado com Zoé Lacerda, o levou para a Lapa. A primeira impressão que teve da cidade foi péssima. João Gualberto, para desfazer aquela sensação, oferece-lhe um copo de água do Monge, que segundo os antigos o levaria a casar com uma lapeana. É quando conhece Marília Suplicy de Lacerda e passa a visitar a Lapa semanalmente. Chegava dirigindo seu Porshe e, talvez por emoção, foi responsável pelo primeiro acidente de carro na Lapa (como ocorreu em Curitiba, o acidente foi com uma carroça). Ainda estudante, casa-se, em 1924, com Marília Suplicy de Lacerda, uma belíssima mulher, eterno amor de sua vida e companheira até o fim da vida. Única queixa que dizia ter de Marília era o fato de não ter aderido ao Positivismo. O retrato de Marília por Theodoro de Bona é belíssimo e, hoje, encontra-se no MON (Museu Oscar Niemeyer). Chegou a viver na Lapa, cidade natal de sua esposa, quando começa a colecionar peças históricas do Cerco da Lapa, pois já considera aquela episódio histórico, uma das mais importantes participações militares do Paraná em defesa da República. Gradua-se em Engenharia, pela UFPR, em 1927.

No ano seguinte, com o falecimento de seu pai, David Carneiro – primogênito da família – assume a empresa familiar, a Ervateira Americana. É nessa época que começa a colecionar, além de objetos históricos, obras de arte, em especial cenas históricas e retratos. Faz amizade com o poeta simbolista Dario Vellozo e freqüenta então, assiduamente, o Templo das Musas, ponto de encontro de artistas e intelectuais em Curitiba.

A convite do General Mário Tourinho, então Interventor no Paraná, torna-se, em 1930, o segundo presidente do recém-fundado Banco do Estado do Paraná (Banestado), cargo em que permanece até 1932. Lança em 1934 seu primeiro livro, “O Cerco da Lapa e seus Herói”, no qual aborda os antecedentes e as conseqüências da Revolução Federalista no Paraná. Nas décadas seguintes, David Carneiro firma-se como uma das maiores personalidades da cultura paranaense, em razão de sua produção intelectual, da colaboração por quase duas décadas em jornais, do apoio oferecido a vários jovens artistas e do acervo histórico pessoalmente reunido ao longo de quase 70 anos.

Em 1940, ano no qual a Ervateira Americana (Rua Comendador Araújo com Brigadeiro Franco) sofreu um incêndio. Mas, nesse mesmo ano,, concebe e financia o Monumento à República, na Praça Tiradentes.

David Carneiro foi um aficionado pelo cinema, tanto que manteve uma sala de projeções na sua Quinta de Val de Lobos (situada na região do Parque São Lourenço), cujo nome evoca Alexandre Herculano, assim como a residência da Rua Brigadeiro Franco foi inspirada no Ramalhete de “Os Maias” de Eça de Queirós.

Manteve também uma sala na Rua Comendador Araújo, na qual projetava produções da Flama Filmes, talvez de sua propriedade.

Em 1941, David Carneiro investiu na construção do prédio de 6 andares, na Avenida, um milhão e duzentos contos de réis, “uma fortuna”, segundo suas palavras. O projeto foi do arquiteto Lucas Meurhofer, que optou pelo estilo art déco. Destinado, inicialmente, a ser apenas residencial, o edifício acabaria tendo seu térreo dividido para a entrada de um grande cinema e também uma luxuosa confeitaria.

O nome do edifício, “Eloísa”, foi uma homenagem que o David Carneiro fez a sua primeira filha, Eloísa Eliodora Alice Carneiro (12/08/1933-18/03/1938), falecida devido a doença crônica. O Edifício Eloísa foi o primeiro edifício de Curitiba a ter um penthouse, que o professor David Carneiro reservou para sua residência.

Ali morou entre 1943/ 1949, quando construiu sua casa na Rua Brigadeiro Franco, que tinha o Museu como anexo, com entrada pela Rua Comendador Araújo.

Durante muitos anos, somente familiares, ou pessoas muito amigas, ocuparam os amplos, luxuosos e confortáveis apartamentos do Edifício Eloisa.

O luxuoso Cine Ópera, que funcionava no térreo, foi inaugurado em julho de 1941, com “All This And Heaven Too” -Tudo Isso e o Céu também - (1940) .

Durante quase 30 anos, seria a sala mais elegante e movimentada da cidade, pois mesmo não tendo sido projetada como cine-teatro, ali também ocorreram concertos, recitais (como o do tenor italiano Beniamino Gigli) e eventos como o I Festival do Cinema de Curitiba, em 1957, quando Ney Braga era prefeito.

Nos anos em que esteve na direção da Empresa Cinematográfica David Carneiro, o historiador acreditou no mercado cinematográfico ao ponto de, em 1955, ter investido na construção de um segundo cinema, no terreno defronte ao Largo Frederico Faria de Oliveira, daquele que será o “Cine Arlequim” Um dos seus filhos, Fernando, recém formado pela Escola Nacional de Arquitetura, do Rio, de volta a Curitiba, fez justamente o seu primeiro grande projeto enfrentado o desafio de criar um cinema mignon num terreno irregular.

Com uma belíssima decoração - murais nas paredes da artista carioca Nely Bezerra de Menezes, com a temática Arlequim / Colombina / Pierrô, e uma programação de primeira categoria, o Arlequim foi, na época, um dos bons cinemas de Curitiba. Foi inaugurado com um dos primeiros filmes a abordar a saga dos primeiros pilotos de aviões supersônicos - “Sem Barreira no Céu” (The Sound Barrier), 1952, do inglês David Lean.

Foi quando constituiu a Empresa Cinematográfica David Carneiro e, sendo dinâmico e empreendedor, tomou gosto pela coisa. Introduziu um festival de filmes inéditos, um por dia durante uma semana, que só teriam lançamento depois, abarrotando o cinema em sessões concorridíssimas; lançou as matinadas com sessões aos domingos pela manhã, com desenhos e filmes infantis, que ficaram famosas pelos desenhos do “Tom e Jerry”; também inovou ao contratar mulher para a bilheteria, já que nesta época só homens trabalhavam nos cinemas.

Ainda sob comando do professor David Carneiro, a empresa se voltou à construção de bons cinemas de bairro: o Guarani, no Portão, e o Marajó, no Seminário, foram as primeiras salas confortáveis, amplas, numa época em inexistindo televisão, o cinema era não só a opção de lazer e cultura, mas, sobretudo, um bom negócio.

Na década de 70, oprimido por dívidas e compromissos advindos de um empreendimento empresarial mal sucedido de um dos filhos, David Carneiro venderá o edifício ao comerciante libanês Husseiam Hamdar que o negociaria, de uma forma muito lucrativa, com o grupo Mesbla, para ali ser instalada uma grande loja de departamentos. Atualmente o edifício é sede de um empreendimento ligado à educação.

Em 1944, participa do Congresso Brasileiro de História da Revolução Federalista – Cinquentenário do Cerco da Lapa.

Neste mesmo ano idealiza o Pantheon dos Heróis da Lapa, construído a partir do projeto de Rubens Meister.

Nessa época cria o Museu Histórico da Lapa, que criou na Lapa e que funcionava na Casa de Câmara e Cadeia. posterior mente, por falta de cuidado e roubo de peças, Diante do triste episódio transferirá para Curitiba, unindo seu acervo ao do Museu David Carneiro Senior, por ele criado.

Esse acervo, agora com o nome de Museu David Carneiro recebeu, em 1955, uma sede anexa à casa da Rua Brigadeiro Franco, com entrada própria pela Rua Comendador Araújo.

Foi quando o seu acervo iniciado com moedas, unido ao do antigo Museu Histórico da Lapa (que criou na Lapa e que funcionava na Casa de Câmara e Cadeia, até que David Carneiro constatou o descaso e a falta de segurança do museu, materializado no desaparecimento de peças), o leva à criação do Museu David Carneiro, que chega a reunir cerca de 6 mil peças. A biblioteca particular do historiador, constitui capítulo à parte: trazia, entre seus 20 mil exemplares, raridades como a segunda edição de “Traité Elémentaire de Chimie, présenté dans un ordre nouveau et d’ápres le découvertes moderne”, de Lavoisier, revista pelo próprio cientista em 1793; ou uma edição rara de Don Quixote, de Cervantes, ilustrada pelo pintor Debret. Essa biblioteca foi vendida.

David Carneiro empenhou-se pessoalmente na formação do Museu (o pelourinho de Paranaguá, por exemplo, encontrou jogado num quintal) Entre as peças do acervo – tombado em 8 de fevereiro de 1941 pelo Patrimônio Histórico (Estadual e Nacional) – estão obras de artistas como Van Der Velde, Goya, Iria Correia, Alfredo Andersen, entre outros famosos mestres, além de objetos como armas, espadas, flechas e vestimentas, referentes a vários períodos da história paranaense, brasileira e mundial.

Por meio do museu, David Carneiro incentiva em início de suas carreiras artistas como: Arthur Nísio, Theodoro de Bona e Traple, entre outros, encomendando-lhes obras de caráter histórico.

Na década de 1950, o Museu é transferido da casa para um prédio construído especialmente para abrigá-lo, junto à sua residência, em Curitiba, no mesmo local onde David Carneiro manteve a Capela da Humanidade para o culto positivista.

Professor de Evolução da Conjuntura Econômica na Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas da UFPR e Arquitetura Analítica na Embap (Escola de Música e Belas Artes do Paraná).

Como professor visitante lecionou em universidades norte-americanas, como Nebraska, em 1961; Ucla (Califórnia), em 1966; Harvard University, entre outras. O conjunto de sua obra é reconhecido internacionalmente, sendo seus livros referência obrigatória em citações bibliográficas de obras de brasilianistas.

Membro da Academia Brasileira de História (cadeira n. 54) e da Academia de Ciências e Letras de Lyon .

Passa a escrever na coluna Veterana Verba, no jornal Gazeta do Povo, durante 16 anos.

Nesta época, resolve construir uma casa na Lapa, cidade onde morou quando recém casado, reunindo dois prazeres: o de visitar a cidade natal de Marília L Carneiro e o de degustar jabuticabas. Isso porque, a casa foi construída em torno de uma jabuticabeira, prevendo colher as frutas do terraço que contornava a árvore.

Em 1969, ano no qual a Lapa comemorou 200 anos de fundação (elevada que foi como Freguesia em 13 de junho de 1769) o Prefeito da Lapa, Sérgio Leone, convida David Carneiro, como notório estudioso de Heráldica (sua biblioteca possuía vasta bibliografia sobre o tema) a conceber o brasão da Lapa.

Na década de 1970, resolve construir uma casa na Lapa, cidade onde morou quando recém casado, reunindo dois prazeres: o de visitar a cidade natal de Marília L Carneiro e o de degustar jabuticabas. Isso porque, a casa foi construída em torno de uma jabuticabeira, prevendo colher as frutas do terraço que contornava a árvore

Mas, infelizmente, não chegou a usar a casa, pois questões econômicas o impediram e o historiador é obrigado a vender sua coleção de moedas antigas – a mesma que dera início a todo o acervo – para tentar saldar uma dívida contraída por um familiar junto ao Banco do Brasil, da qual fora avalista. Em 1989, no entanto, a dívida da família Carneiro – em função da alta de juros – ultrapassa um milhão de dólares e o Banco do Brasil ameaça executá-la.

Depois de sua morte, a residência e terrenos e imóveis nas ruas Comendador Araújo, Brigadeiro Franco foram vendidos pelo Banco do Brasil por RS$ 3,78 milhões de reais a um grupo composto por cinco empresas.

Por meio de acordo com a PMC a fim de construir prédios elevados, os proprietários dos terrenos e casas na Rua Brigadeiro Franco e Comendador Araújo foram obrigados a deixar uma parte daquela que foi a residência do historiador (pouco mais do que a fachada) para um espaço cultural, o Memorial David Carneiro.

Conforme previsão do Diretor do Patrimônio da FCC, dentro de meses será aberta com uma mostra permanente sobre David Carneiro e o espaço ganhará função.

Quanto às peças do museu, foram adquiridas pelo Governo do Estado do Paraná, num gesto único de investimento em cultura de mais de 1 milhão de reais (louve-se o então governador, Roberto Requião que viabilizo a aquisição) as peças do Museu David Carneiro foram incorporadas ao Museu Paranaense, MON, Casa Lacerda e Museu Histórico da Lapa.

Espírito elevado, embora já próximo do fim da vida, ainda lúcido e bem-humorado, em nenhum instante David Carneiro se permite lamentar o destino do Museu, ameaçado pela execução de dívidas.

É essa imagem é a que vemos no documentário realizado por Berenice Mendes, através da Secretaria de Estado da Cultura, um belo registro sobre a importância de David Carneiro como historiador e figura humana.

David Carneiro teve três filhos David (já falecido), Fernando (já falecido) e Marília Beatriz.

David Carneiro publicou, entre outras obras, Pedro II na Província do Paraná; O Paraná na Guerra do Paraguai; Os Fuzilamentos de 1894 no Paraná; O Paraná na História Militar do Brasil; O Paraná e a Revolução Federalista; A História da História do Paraná; História Psicológica do Paraná; História do Período Provincial do Paraná; A Vida Gloriosa de José Bonifácio e sua atuação na Independência do Brasil Tiradentes; Educação, Universidade e História da Primeira Universidade do Brasil – UFPR; História Geral da Humanidade (em sete volumes). A historiadora Cecília Westphallen cita, ainda, Galeria de Ontem e de Hoje (1963) e Afonso de São Payo e Souza (1986) e destaca o significado pioneiro de sua “História da História do Paraná”.

 

Pesquisa realizada para discurso proferido na inauguração da Escola David Carneiro, na Lapa.

Imagens: David e Marília Carneiro, por Theodoro de Bonna (Museu Paranaense), “Illustração Brasileira” visita ao Museu David Carneiro 1944. Fotos de David Carneiro “O Estado do Paraná” 1975. Ex Libris de David Carneiro. Cine Ópera.

















15 outubro 2024

Monitor Mercantil: "O caso Sílvio Almeida e três padrões da moralidade pública"

No dia 8 de Descartes de 170 (14.10.2024) foi publicado um artigo de nossa autoria no jornal carioca Monitor Mercantil; o artigo intitula-se "O caso Sílvio Almeida e três padrões da moralidade pública".

O artigo pode ser lido no portal do periódico, aqui: https://monitormercantil.com.br/o-caso-silvio-almeida-e-tres-padroes-da-moralidade-publica/

Reproduzimos abaixo o texto.

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O caso Sílvio Almeida e três padrões da moralidade pública 

Em 6 de setembro de 2024 o Ministro dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida, foi demitido, sob a grave acusação de assédio sexual – assédio que ocorreria desde final de 2022, seria praticada por um Ministro de Estado, contra uma colega Ministra de Estado (Anielle Franco, titular do Ministério da Igualdade Racial) (além de contra outras mulheres) e alegadamente integrava um padrão de assédio moral do denunciado. Os detalhes do episódio são preocupantes, pois (1) envolvem a alta administração federal em um longo período de tempo e em um governo cuja missão é recuperar a moralidade pública após o caos lavajatista-ultraliberal-neofascista e (2) envolvem uma organização não governamental estrangeira (a estadunidense Me Too), em vez dos adequados órgãos públicos (a Presidência da República e a Controladoria-Geral da União).

Na semana em que esse episódio desenrolou-se houve intensa agitação midiática; mas, como sói acontecer, passados alguns dias o tema desapareceu do noticiário. Ainda assim, vale a pena brevemente o reconsiderarmos, sob uma luz que não foi abordada: as perspectivas de moralidade pública. O nosso argumento é bastante direto: podemos identificar pelo menos três padrões de moralidade, a da direita, a da esquerda e o republicano – dois dos quais são insatisfatórios e um terceiro que não é (não é mais, ou ainda não é) praticado.

Comecemos notando que a vida política tem que se submeter à moral. Essa concepção pode parecer contraintuitiva; a reflexão academicista afirma, a partir de Maquiavel, que a política é “autônoma” em relação à moral, sugerindo assim que a prática política tem parâmetros próprios, irredutíveis, ou melhor, incompatíveis com a moral. Assim, a teoria política academicista postula que no âmbito privado é correto falar a verdade, honrar a palavra dada etc., mas na vida pública dá-se o inverso: mentir, trair, enganar é que seriam as virtudes. Esse amoralismo que logo se revela um imoralismo é vendido como “realismo”.

Claro, essas concepções chocantes são falsas: agir conforme o que se afirma e honrar a palavra dada são princípios elementares em qualquer lugar; inversamente, quem mente e trai, quem é incoerente em termos de alianças e práticas, logo é recriminado e perde apoio. Mais: quando a mentira, a hipocrisia, o cinismo viram a regra, o regime político como um todo perde legitimidade. Evidentemente, se a noção de república – isto é, de “res publica”, de coisa pública – tem algum sentido, tal sentido vincula-se à subordinação da política à moral; quando o bem comum é desrespeitado e usado como uma pomposa desculpa para o enriquecimento privado e o benefício de grupos particularistas e excludentes, o sistema político como um todo entra em crise e buscam-se opções antissistêmicas: essa é a origem profunda da aventura autoritária a que assistimos desde há dez anos, com o lavajatismo, o ultraliberalismo e o neofascismo. Mas, enfim, a crise do sistema confirma o primado da subordinação da política à moral, embora as opções buscadas sejam profundamente antirrepublicanas.

Em face da subordinação da política à moral, a “direita” considera basicamente que os valores morais devem ser “conservadores”; mas isso é uma forma meio enviesada de dizer que a sociedade moderna tem que se pautar por valores teológicos, em particular cristãos; não por acaso, esses conservadores costumam idealizar para as sociedades modernas uma volta no tempo, para quando se seguiam os parâmetros teológicos com ou sem a regulação da igreja (a Idade Média, ou as épocas de Abraão, Moisés ou São Paulo). Lidando mal com as concepções e instituições que não sejam as suas próprias, os conservadores pregam uma desaceleração geral do mundo; assim, de maneira confusa, parcial e muito incoerente pregam um certo respeito à continuidade histórica. Por fim, considerando que o cristianismo em si regulou apenas vida privada mas foi omisso sobre a vida pública, a subordinação da política à moral para a direita conservadora consiste em adotar parâmetros familistas e/ou um clericalismo generalizado.

Uma outra direita, mais recente, só é direita e só é “conservadora” em oposição à esquerda (e à esquerda revolucionária): são os liberais economicistas. Também para eles, a vida pública reduz-se à vida privada; mas em vez de clericalismo ou familismo, os parâmetros privados que devem ser generalizados são os das empresas privadas: a sociedade é vista como um vasto mercado; o Estado deve ser o seu regulador geral; a sociedade compõe-se de famílias e empresas, isto é, de consumidores e vendedores. Moralidade toda própria, sem dúvida.

Da parte da “esquerda”, especialmente a marxista, a moralidade é confusa. Por um lado, a partir do materialismo, finge-se que não há subjetividade nem moralidade em jogo; por outro lado, evidentemente há fortes princípios morais em ação. A moral pública é afirmada sobre a moral privada; mas não existe bem comum, apenas o bem de uma classe sobre outras; como as classes estão perpetuamente em conflito, só haverá bem comum quando não houver mais classes. O passado e o presente são hipócritas ou alienantes; até haver, no futuro, uma revolução salvadora, a moral pública consagra o conflito, a violência, a hipocrisia sistêmica e constitutiva.

Uma esquerda mais recente é a identitária. Ela também consagra a desconfiança e afirma o conflito constitutivo e sistêmico; mas não vê resolução desses problemas. A moral pública, então, basicamente é a moral da “maioria”, que, por definição, é opressora e cujos pecados constitutivos devem ser expiados eternamente. Em face disso, a esquerda identitária promove uma “contra-moral”, em que a história, ou melhor, o estudo da história serve para revelar e estimular a culpa de opressores (que são a “maioria”), bem como o ressentimento dos perseguidos e humilhados (sempre as “minorias”, que devem sempre ser compensadas). As preocupações privadas tomam conta da moral pública, que rejeita a confiança e estabelece um punitivismo sistemático e particularista como objetivo da política.

O caso Sílvio Almeida deve ser entendido com o identitarismo e seu punitivismo, particularismo raivoso e ânsia expiatória. Almeida e Franco são promotores de diferentes vieses identitários: ele, do identitarismo racialista; ela, do identitarismo feminista. Embora a demora para a denúncia sugira uma aliança temporária entre eles, os canais não oficiais, a presunção de culpa do denunciado e a conseqüente rapidez com que o denunciado foi demitido após a denúncia ilustram bem a lógica identitária: ânsia punitivista, desconfiança sistemática e generalizada, intenso particularismo moral e social, estímulo conjugado de culpa e ressentimento. Com dois identitarismos entrando em choque direto, para além da ânsia punitiva não se vê muito bem como o bem público está sendo servido; mas o que se percebe é que, em sendo verdadeiras as acusações feitas contra o ex-Ministro (cuja culpa ainda não comprovada), a mentalidade da “maioria” sempre culpada e da minoria sempre ressentida foi necessariamente insuficiente para regular o comportamento público e privado de um alto promotor do identitarismo e impedir um comportamento inaceitável sob qualquer ponto de vista.

No vaivém entre direita e esquerda, conservadores/retrógrados e revolucionários, ordem retrógrada e progresso anárquico, o bem comum é sacrificado: não se reconhece um efetivo bem comum (sempre sacrificado pelos particularismos, pelos conflitos e pelo punitivismo) nem se valoriza efetivamente a confiança pública (entre governantes e governados e entre os cidadãos). Ora, a solução para isso é deixar de lado as oposições entre ordem e progresso e assumir que esses dois elementos devem andar juntos; que o bem comum deve ser afirmado e que se deve estimular a confiança na sociedade; além disso, os âmbitos público e privado, sem serem radicalmente separados, devem ter suas particularidades respeitadas. Essas concepções, tão incomuns nos dias de hoje, têm um nome e uma autoria: trata-se do republicanismo, conforme delineado pelo fundador da Sociologia, o grande Augusto Comte. Cumpre valorizá-las e aplicá-las.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Sociologia Política (UFSC) e sociólogo da UFPR.

Vídeos dos ciclos de palestras do Centro Positivista do Lavradio: laicidade e utopia republicana

Nos dias 27 e 28 de Carlos Magno de 169 (13 e 14 de julho de 2023) foi criado o Centro Positivista do Lavradio, no Rio de Janeiro, com sede gentilmente compartilhada pela Sociedade Brasileira de Belas Artes. Na ocasião, marcando o acontecimento, ocorreu o I Ciclo de Palestras do Centro Positivista do Lavradio.

Já nos dias 13 e 14 de Frederico de 169 (17 e 18 de novembro de 2023) ocorreu o II Ciclo de Palestras do Centro Positivista do Lavradio.

Em cada uma dessas ocasiões fizemos palestras sobre e a partir do Positivismo: no dia 28 de Carlos Magno apresentamos a palestra "O Positivismo e a laicidade do Estado"; no dia 14 de Frederico apresentamos a palestra "Crítica à República e desistência de uma utopia".

Essas exposições foram gravadas; os seus vídos estão indicados abaixo:

- palestra "O Positivismo e a laicidade do Estado": disponível aqui: https://acesse.dev/J8lFm

- palestra "Crítica à República e desistência de uma utopia", parte 1: disponível aqui: https://l1nq.com/gD7KS

- palestra "Crítica à República e desistência de uma utopia", parte 2: disponível aqui: https://encr.pw/yjp6K

O Positivismo é contra as rupturas?

No dia 9 de Descartes de 170 (15.10.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua décima terceira conferência (dedicada à evolução histórica da religião, em particular da tríplice transição ocidental).

Na seqüência apresentamos alguns comentários sobre o livro O multiculturalismo como religião política (São Paulo, É Realizações, 2019), de Mathieu Bock-Côté.

No sermão respondemos à seguinte questão: o Positivismo é contra rupturas?

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://www.youtube.com/watch?v=SfDRJVpg3OQ&t) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://www.facebook.com/IgrejaPositivistaVirtual/videos/1791910151636965).

Os tempos da prédica foram os seguintes:

00:00 - início

02:38 - exortações iniciais

09:18 - efemérides

18:28 - comentários sobre o livro Multiculturalismo como religião política

34:39 - leitura comentada do Catecismo positivista

1:02:20 - o Positivismo é contra as rupturas?

2:11:40 - exortações finais

2:15:28 - invocação final

As anotações que serviram de base para a exposição oral estão indicadas abaixo.

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Prédica positiva

(9.Descartes.170/15.10.2024)

1.       Invocação inicial

2.       Exortações iniciais

2.1.1. Sejamos altruístas!

2.1.2. Façamos orações!

2.1.3. Façamos o Pix da Positividade! (Chave Pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

3.       Efemérides

3.1.1. Dia 2 de Descartes (8.10.2024): Festa de Comte e Clotilde

3.1.1.1.             Em 8 de outubro de 1845, Augusto Comte escreveu uma bela carta a Clotilde, em que evidenciava a plena intimidade entre ambos e a aceitação, da parte de Clotilde, dos sentimentos de Augusto Comte para com ela

3.1.1.2.             A “Festa de Comte e Clotilde” baseia-se, então, na correspondência de Comte e Clotilde (como registro e meio da sua relação) e nas orações cotidianas de nosso mestre (como periodização e celebração desse relacionamento)

3.1.2. Dia 4 de Descartes (10.10.2024): nascimento de Paulo Carneiro (1901)

3.1.3. Dia 6 de Descartes (12.10.2024): descoberta da América (1496); festa de Colombo

3.1.4. Dia 12 de Descartes (18.10.2024): nascimento de Frederic Harrison (1831) e de Benjamin Constant (1836)

4.       Comentários sobre o livro Omulticulturalismo como religião política (São Paulo, É Realizações, 2019), de Mathieu Bock-Côté

4.1.    Esse é um desses livros que compramos em livrarias de corredor (de rodoviária, no caso) e que, em face do preço promocional, podem ser bons, podem ser ruins: no caso, o livro é muito bom (e por esse motivo comentamo-lo aqui)

4.2.    O autor é um sociólogo canadense nascido em 1980 e que integra, ou revive, uma tradição de sociologia conservadora própria à França, que já teve como representante pensadores como Raymond Aron

4.3.    O propósito do livro é, a partir de um certo conservadorismo, expor e criticar o multiculturalismo e efetivamente defender esse certo conservadorismo

4.3.1. O autor é ao mesmo tempo conservador e nacionalista (a favor da independência do Quebeque, que é a província francófona – e republicana – do Canadá)

4.3.2. É no mínimo curioso que o autor afirme-se conservador mas não fale em momento nenhum em divindade, na Idade Média etc. (embora, ao mesmo tempo, seja muito crítico da laicidade e não se refira em momento nenhum ao forte republicanismo quebequense)

4.3.3. A argumentação do autor, no final das contas, é puramente humana e não dá margem nenhuma para interpretações sobrenaturais (nem autoritárias nem discriminatórias): assim, ele realmente dá o que pensar

4.4.    O autor avalia o multiculturalismo e o identitarismo a partir da experiência européia, em particular francesa, mas também canadense – e a origem canadense é importante, pois o multiculturalismo é um princípio constitucional lá

4.4.1. A relação com a Europa é importante porque confere um quadro sociológico, histórico e filosófico mais amplo que o comum das críticas, restritas ao EUA

4.4.2. De maneira específica, o multiculturalismo europeu é criticado devido à rejeição européia contemporânea (isto é, após 1968) da exigência de integração social e cultural dos imigrantes e também devido à rejeição européia dos estados nacionais

4.4.3. Em termos gerais, essas experiências européias são distintas das dos EUA (que são as que mais diretamente influenciam o Brasil)

4.5.    O multiculturalismo é entendida pelo autor como a concepção sociológica de fundo que embasa o identitarismo

4.6.    Os argumentos apresentados pelo autor de modo geral confirmam o que vimos dizendo a respeito do identitarismo:

4.6.1. Rejeição do universalismo; promoção do particular (e do marginal)

4.6.2. Criação mítica da “maioria”

4.6.3. Concepção de que a “maioria” é sempre persecutória, egoísta e discriminatória

4.6.4. Criação e promoção de uma cultura expiatória, da culpa, do ressentimento, da fragilidade intencional e institucionalizada

4.6.5. Concepção de que a história, se for cumulativa, é apenas o acúmulo de opressões, explorações e humilhações da “maioria” contra as minorias

4.6.6. Concepção de que a história deve ser ensinada para estimular a culpa de uns e o ressentimento de outros e que, no final das contas, a história como processo passado da “maioria” deve ser terminantemente rejeitada

4.6.7. Concepção de que a única história que presta e que deve ser valorizada é a das minorias

4.6.8. Afirmação da política como sendo um âmbito dedicado apenas à publicidade do que até então era particular e subjetivo (e apenas da subjetividade das “minorias”)

4.6.9. Redução da política ao reconhecimento, à culpa e às desculpas

4.6.10.   Rejeição da noção de bem comum e, portanto, da república

4.6.11.   Rejeição da noção de que a política e o Estado devem tratar das condições objetivas da vida coletiva

4.6.12.   Rejeição da separação entre os dois poderes: o Estado deve ser ativo e deve ser um instrumento na promoção da mentalidade particularista, exclusivista, persecutória e expiatória própria ao multiculturalismo/identitarismo

4.6.13.   Desprezo da noção do Estado nacional como representante dos interesses nacionais legítimos

4.6.14.   Desprezo da noção de permanência social legítima para a “maioria”

4.6.15.   Defesa do transnacionalismo: nesse ponto, o autor afasta-se claramente do que o Positivismo considera aceitável – afinal, nós apoiamos o transnacionalismo (embora não sejamos a favor da extinção do Estado nem das pátrias)

5.       Leitura comentada do Catecismo positivista

5.1.    As análises histórico-sociológicas presentes nas duas últimas conferências do Catecismo (a 12ª e a 13ª) explicam e justificam o movimento moderno e, daí, a possibilidade e a necessidade do Positivismo

5.2.    Leitura da 13ª conferência: tríplice transição ocidental

6.       Sermão: o Positivismo e as rupturas

6.1.    O sermão desta semana é mais uma reflexão geral e menos uma pequena palestra: são apenas algumas indicações intelectuais, morais e políticas a partir do Positivismo

6.2.    A questão desta semana surgiu de maneira simples e curiosa: há algumas semanas, enquanto eu almoçava no restaurante universitário central da UFPR, ouvi uma caloura de Ciências Sociais justificar seus vícios de linguagem (“saca”, “tipo assim” etc.) apelando para sua origem social: segundo ela, como seus vícios representam sua origem e como ela deseja manter-se vinculada a essa origem, os seus erros e seus problemas lingüísticos seriam aceitáveis e poderiam (e deveriam) ser mantidos

6.2.1. Essa menina, que apresentou esses argumentos com grande simplicidade, ingenuidade, franqueza e simpatia, é ao mesmo tempo de classe média, de esquerda e cursa Ciências Sociais (que é um curso que atrai um público “crítico”) – e, convém reforçar, está em uma instituição universitária de nível superior

6.2.2. Eu argumentei com essa menina (bem como com dois colegas calouros que almoçavam com ela) (1) que a correção da linguagem é uma questão de clareza conceitual; (2) que os vícios de linguagem são muletas mentais usados por adolescentes para contornarem suas inseguranças pessoais e intelectuais; (3) que as regras lingüísticas existem para serem seguidas e que isso não é por acaso

6.2.2.1.             Faltou eu argumentar (4) que o respeito à língua é também uma questão de respeito para com a nossa história – mas, naquele momento, tive a impressão de que particularmente esse argumento não seria muito levado a sério

6.2.2.2.             Também seria necessário argumentar (5) que esse tipo de raciocínio é uma forma simples, eficaz e aparentemente “popular” e “progressiva” de negar ao comum do povo o conhecimento filosófico, moral, intelectual e artístico que muitas vezes as elites reservam para si; em outras palavras, que o raciocínio apresentado pela menina é uma forma simples e eficientíssima de garantir a alienação do povo

6.2.2.3.             Apesar desses argumentos, nem a menina em questão nem seus colegas levaram a sério meus argumentos (embora eu tenha-me identificado com clareza como sociólogo com longa carreira profissional), aparentemente os considerando “conservadores” (e, daí, “alienantes” e/ou “opressivos”)

6.2.3. Adiantando um pouco o argumento: o raciocínio exposto pela menina é ao mesmo tempo uma desculpa cômoda (e não podemos deixar de notar: também uma desculpa molenga) para manter erros e vícios de linguagem, mas, para o que nos interessa aqui, é também uma incoerência política e uma incoerência pessoal-profissional-intelectual

6.2.3.1.             É uma incoerência política na medida em que a esquerda é a favor das rupturas histórico-sociais, embora haja uma certa dose de hipocrisia nisso

6.2.3.2.             É uma incoerência pessoal-profissional-intelectual na medida em que essa menina está em uma universidade e no curso de Ciências Sociais, ou seja, em um ambiente que, por definição e de maneira intencional, estabelece uma ruptura com o contexto de origem

6.3.    De qualquer maneira, refletindo sobre as ingênuas e simpáticas incoerências dessa menina, percebi que esse tema (as rupturas) é um bom tema para as prédicas – daí este sermão

6.3.1. Devemos notar também que, considerando o descrito acima, vimo-nos na curiosa e inusitada situação em que tivemos nós, positivistas, que convencer uma esquerdista (universitária e do curso de graduação em Ciências Sociais) que ela deveria proceder a um rompimento

6.3.2. Além disso, de maneira um pouco mais ampla, o tema das rupturas no âmbito do Positivismo surge porque, considerando a importância evidenciada e reiterada claramente por Augusto Comte para a continuidade, é muito, muito comum haver leituras e interpretações apressadas e superficiais que consideram que o Positivismo é sistematicamente contra as rupturas

6.3.2.1.             Essa interpretação – apressada, superficial e convenientemente esquemática – é estimulada em particular pelo marxismo, que dedica um culto especial ao mito da revolução e vê todas as perspectivas que não são marxistas como adversárias e inimigas

6.4.    Tratemos, então, das rupturas à luz do Positivismo

6.4.1. Para tratar das rupturas, temos que considerar o conceito inverso, a continuidade

6.5.    Como sabemos, para o Positivismo a continuidade histórica é uma preocupação central

6.5.1. O Positivismo considera que o ser humano caracteriza-se acima de tudo pela continuidade histórica, ou seja, pelo acúmulo das produções humanas ao longo do tempo

6.5.1.1.             Esse acúmulo não é estático, ou seja, ao mesmo tempo em que as produções (morais, intelectuais, artísticas, práticas) acumulam-se, elas necessariamente se modificam e reorientam a produção e o acúmulo

6.5.1.2.             Falar em “acúmulo ao longo do tempo” é uma outra forma de afirmar a historicidade do ser humano

6.5.2. Muitas noções positivistas dependem da noção de continuidade:

6.5.2.1.             A noção de progresso evidentemente se baseia na noção de continuidade

6.5.2.2.             A noção de ordem baseia-se na noção de continuidade, em particular devido às suas relações com o progresso

6.5.2.3.             A harmonia humana – seja coletiva, seja individual – baseia-se na noção de continuidade, seja porque a harmonia tem que se manter ao longo do tempo, seja porque sua constituição definitiva exige o desenvolvimento histórico do ser humano (isto é, ela depende do progresso)

6.5.3. Podemos considerar que a fórmula positivista que resume a continuidade é a fórmula religiosa fundamental: “os vivos são sempre e cada vez mais, necessariamente, governados pelos mortos”

6.5.4. De modo geral, o ser humano reconhece a importância e a necessidade da continuidade: é assim com o fetichismo, é assim com as teocracias, é assim com o politeísmo militar, é assim até mesmo (embora de maneira muito confusa) com o monoteísmo

6.5.5. Entretanto, a necessidade de afirmação e reafirmação explícitas da continuidade baseia-se no fato de que o Ocidente em particular rejeita essa noção:

6.5.5.1.             O politeísmo militar, ao constituir-se, rejeitou em parte o politeísmo sacerdotal (ou seja, as teocracias), apesar de ter sido uma rejeição involuntária e, portanto, não intencional e de ter clara e conscientemente mantido a continuidade social em relação às teocracias

6.5.5.2.             O monoteísmo católico rejeitou conscientemente e de maneira agressiva o politeísmo militar

6.5.5.2.1.                   Augusto Comte indica que mesmo o islamismo também rejeitou o politeísmo militar

6.5.5.3.             A modernidade rejeitou a Idade Média

6.5.5.4.             Além disso, a modernidade, de maneira mais ampla, consagra as rupturas históricas: é a sistematização do espírito crítico, iniciado pelo protestantismo, consagrado pelas metafísicas (marxista, identitária)

6.5.5.4.1.                   Essa tendência destruidora é reforçada pelo capitalismo e pelo desenvolvimento tecnológico, que estimulam cada vez mais as rupturas

6.5.5.4.1.1.  A esse respeito, basta considerar-se (1) o elogio da “destruição criativa” de José Schumpeter, (2) o culto neoliberal à ausência de estabilidade no trabalho e ao nomadismo profissional e o (3) culto tecnoanarquista das “tecnologias disruptivas”

6.5.6. Como indicamos antes, à parte o Ocidente (e, por extensão, a partir de Roma, à parte também o Islã), as demais civilizações valorizam a continuidade: basta pensarmos no Egito antigo e também na China e no Japão

6.5.7. De uma perspectiva individual, as continuidades são sempre importantes: as relações de família, as amizades, as relações profissionais, as pátrias etc.

6.5.7.1.             A quebra dessas continuidades sempre gera mal-estar, distúrbios, confusões, conflitos

6.5.8. Mas, inversamente, vale notar que muito da história e das nossas vidas baseia-se em rupturas ou exige-as: casamentos, mudanças de nível de ensino, destinação profissional; mudanças de regimes políticos

6.5.8.1.             Muitas dessas mudanças são suaves, ou melhor, são entendidas pelo comum das pessoas como mudanças normais e naturais ao longo da vida

6.5.8.1.1.                   Tais mudanças, nesse sentido, correspondem a uma aplicação específica da noção positiva de progresso, que é o “desenvolvimento da ordem”

6.5.9. Há outras tantas mudanças que são menos suaves mas que, de qualquer maneira, são entendidas como eventualmente adequadas: por exemplo, algumas mudanças de regimes políticos

6.6.    Ao mesmo tempo em que reiteradamente afirmava que a continuidade humana é um traço fundamental do ser humano (é a característica definidora do ser humano) e que ela deve ser recuperada no Ocidente, Augusto Comte não deixava de reconhecer que há muitas mudanças que exigem rupturas

6.6.1. Os positivistas também afirma(ra)m com clareza a necessidade de muitas rupturas

6.6.2. Os melhores exemplos disso são os seguintes:

6.6.2.1.             Da parte de Augusto Comte: além de muitíssimos outros, a Revolução Francesa; os esforços para a instauração da república na França (já no século XIX); a negação da herança medieval na época moderna antes da constituição do Positivismo

6.6.2.2.             Da parte dos positivistas: no caso brasileiro, a independência nacional, a abolição da escravidão e a proclamação da república

6.6.2.3.             Um caso especial e importante: com certa freqüência, as conversões religiosas implicam rupturas (maiores ou menores, mais intensas ou mais suaves)

6.6.3. Em cada um desses casos, a valorização da ruptura não se deu arbitrariamente e tendo por objetivo a destruição em si; em sua apreciação e em sua valorização, esses casos seguem os seguintes critérios:

6.6.3.1.             Os casos em questão resultam do conjunto da história do Ocidente em geral e de cada país em particular

6.6.3.2.             Esses casos afirmam a natureza e a dignidade humanas, além de permitirem o desenvolvimento normal do ser humano

6.6.3.3.             Esses casos conjugam mudanças com permanências

6.6.3.4.             Esses casos realizam o preceito “só se destrói o que se substitui”, ou seja, substituem instituições ruins por instituições melhores

6.6.4. Assim, em outras palavras, essas rupturas ocorrem considerando uma continuidade mais ampla

6.6.4.1.             Essa “continuidade mais ampla” é concomitante ou sucessiva à ruptura

6.6.4.2.             Continuidades concomitantes: com isso queremos referir-nos a processos que ocorrem ao mesmo tempo em que se dão as rupturas

6.6.4.2.1.                   Por exemplo, na Proclamação da República, enquanto houve mudança (ou melhor, substituição) de regime, o povo brasileiro (as pessoas, as instituições, a história, os usos e costumes) manteve-se

6.6.4.2.2.                   Comentário do nosso amigo Hernani Gomes da Costa, durante a prédica, ilustrando o ponto em questão:

“A geometria analítica oferece uma imagem que esclarece bem a possibilidade de conciliar a continuidade com a ruptura. As chamadas funções descontínuas mostram como uma linha pode ser rompida sem estar separada da função.

Basta considerar que a um intervalo aberto à esquerda num segmento de curva siga-se um outro intervalo de curva que seja fechado à direita (ou vice versa) conquanto que ambos os extremos possuam sempre um mesmo valor na abscissa”

A ilustração abaixo auxilia a entender o raciocínio acima:

 

Fonte: Telma João Santos, “Entre o pensamento matemático e a arte da performance: questões, analogias e paradigmas” (tese de doutorado em Artes, Universidade de Lisboa, 2016), p. 61.

 

6.6.4.3.             Continuidades sucessivas: com isso queremos referir-nos às continuidades que são afirmadas após um período de ruptura e de rejeição da continuidade

6.6.4.3.1.                   Por exemplo, a reafirmação do valor da Idade Média pelo Positivismo, após a sua necessária rejeição pela ciência na modernidade

6.7.    Em termos da política atual, isto é, de “direita” e “esquerda”, o que podemos considerar a respeito de continuidades e rupturas:

6.7.1. Antes de mais nada, vale lembrar que, inicialmente, a direita e os conservadores são teológicos, ao passo que a esquerda e os revolucionários são metafísicos

6.7.2. A chamada “direita” reconhece a continuidade:

6.7.2.1.             Todavia, essa continuidade é estática ou é retrógrada: é uma continuidade que rejeita o progresso, ou seja, a evolução e as mudanças

6.7.2.2.             Além disso, essa continuidade é afirmada apenas de maneira muito parcial, pois, geralmente, a direita é cristã (ou católica) e a continuidade que eles afirmam refere-se apenas e exclusivamente em relação ao cristianismo (como doutrina e como um conjunto de igrejas), sem ao menos valorizar o conjunto da Idade Média e em desprezo total do fetichismo, das teocracias antigas e do politeísmo militar

6.7.2.3.             Por outro lado, a direita liberal-capitalisto-tecnocrática também é a favor sistematicamente das rupturas

6.7.3. No que se refere à “esquerda”, há um aspecto confuso e hipócrita, ou confusamente hipócrita, nos seus raciocínios:

6.7.3.1.             Tradicionalmente, as rupturas sistemáticas são valorizadas por definição (a partir da “criticidade”, contra o “capitalismo” etc.): basta considerar-se os mitos da revolução, da luta de classes etc. próprios ao marxismo

6.7.3.2.             Mas, a partir de e com base no multiculturalismo/identitarismo, as rupturas são rejeitadas quando se referem a comunidades “tradicionais”, o que inclui povos indígenas, quilombos, o Islã, as comunidades tribais centro-africanas etc.

6.7.3.3.             As duas perspectivas acima são afirmadas ao mesmo tempo, apesar da diversidade de origens e de objetivos

6.7.3.3.1.                   O resultado então é que a esquerda é a favor das rupturas no Ocidente e a favor das continuidades no que não é o Ocidente

6.8.    Trazendo essas reflexões para o caso específico da caloura no restaurante universitário:

6.8.1. Se o seu impulso básico foi o da continuidade, é necessário reafirmarmos com clareza: usar a continuidade para a manutenção dos vícios de linguagem é uma desculpa; ela quer uma justificativa fácil e aparentemente aceitável para manter erros sistemáticos (os quais evidentemente ela mesma reconhece como sendo erros – daí a necessidade de justificá-los)

6.8.1.1.             A justificativa dada pela menina é parcialmente aceitável, na medida em que ela é jovem (presumivelmente tem apenas 18 anos) e foi formulada com certa ingenuidade e com simpatia – mas essa desculpa é aceitável apenas durante um certo tempo

6.8.2. Deixando de lado o fato de que a menina é de classe média (e, portanto, na situação brasileira, não se compreende muito esse apego à “origem”), o aspecto central é que ela está em uma universidade e em um curso de Ciências Sociais, ou seja, em uma instituição e em um curso cujos objetivos são mudar radicalmente a situação mental e social das pessoas

6.8.3. Deve-se notar que essa menina é de esquerda: ora, a retórica da esquerda pela “criticidade” conduz necessariamente a rupturas sistemáticas

6.8.4. Em resumo: a menina usa a correta noção de continuidade para negar um necessário progresso, de tal sorte que ela adota da pior maneira possível um comportamento conservador

6.9.    Em suma, para concluir:

6.9.1. O impulso básico para manter os hábitos de origem faz sentido: é o impulso para a continuidade

6.9.1.1.             A continuidade é o que caracteriza o ser humano, é um traço da natureza humana e, assim, é um elemento central na (busca da) harmonia e, daí, da religião

6.9.1.2.             A fórmula que resume a continuidade é a fórmula religiosa fundamental: “os vivos são sempre e cada vez mais, necessariamente, governados pelos mortos”

6.9.2. Devemos sempre valorizar profundamente a continuidade, mas sem temer mudanças (nem mudanças por vezes bruscas)

6.9.2.1.             Tais mudanças, bruscas ou não, devem corresponder às necessidades individuais e coletivas

6.9.2.2.             O princípio regulador das mudanças bruscas é o “só se destrói o que se substitui”

7.       Exortações finais

8.       Invocação final